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A menina desmemoriada e o corpo despedaçado

The dememorized girl and the dismembered body

RESUMO:

O que possibilita nos sentirmos nós próprios? Como podemos ter a sensação de permanência no corpo próprio e no mundo? Este artigo parte de uma experiência clínica de uma menina que acha que não pode lembrar do passado. No entanto, sabemos que são as nossas histórias que dizem quem somos e nos fazem poder ser “si mesmos”. Para percorrermos essa trajetória, nos utilizamos do conceito lacaniano do tempo lógico, os conceitos de experiência e vivência de Walter Benjamin e o texto de ficção História sem fim.

Palavras-chave:
psicanálise; memória; narrativa; corpo; ficção.

ABSTRACT:

What enables us to feel ourselves, be ourselves? How can we experience the sensation of permanence whithin our bodies in this world? This article starts off from the clinical experience of a girl who thinks she is unable to remember the past. Nevertheless, we are aware that it is our stories that narrate who we are, allowing us to be "ourselves". In order to cover this trajectory, the Lacanian concept of logical time is followed, along with the concepts of life and experience of Walter Benjamin, and the book Endless history.

Keywords:
psychoanalysis; memory; narrative; body; fiction.

Ela acha que não deve lembrar de sua história. Se esquece e se perde. Se esquece de onde veio ou finge esquecer. Tem muitos medos: medo de lobisomem, da mulher de branco e da namorada da mulher de branco. Desenha os seus medos e depois os corta com a tesoura em pedaços bem pequenos. Eu, por outro lado, esqueço constantemente o que se passou nos nossos encontros anteriores. Quando entro na sala com ela, sinto um vazio, como se as lembranças dos atendimentos estivessem sido arrancadas de mim. Tenho a necessidade de escrever, de registrar. Esse texto nasceu assim, de uma transferência que causava esquecimento.

Sua vida foi uma sucessão de perdas e mudanças. A única constante foi o desamparo, mas, por sorte, um desamparo compartilhado com seus numerosos irmãos, que sempre estiveram com ela. Quando tinha um ano, foram todos morar no abrigo. Não falava e não caminhava. Só gritava. Não deixava que ninguém a tocasse. Aos poucos começou a confiar e deixar que a cuidassem. Aos três anos, com a ajuda de uma fonoaudióloga, começou a falar. Se fez amar por muitos. Queriam adotá-la. Mas, quando o desejo estava quase se realizando, ela fazia, segundo suas próprias palavras, um “fiasco”. Seus ex-futuros pais ficavam com medo e a abandonavam. Provocava a perda do amor de tanto medo que tinha de perder o amor. Provocava o abandono de tanto medo que tinha de ser abandonada.

Sentia que tinha que esquecer de todo o seu passado para encontrar um novo “pai” e uma nova “mãe”. Foram muitos os que chamou de pai e de mãe. A cada vez, esquecia, ou tentava esquecer, os pais e mães anteriores. Cada perda foi vivida como se essa perda nunca tivesse existido, como se aqueles que passaram em suas vidas não tivessem lhe deixado marcas. Mas, sem as marcas, sem os registros, sem um texto que lhe desse uma linha do tempo, era como se perdesse a memória. O que lhe restava era ela mesma se perder - perder seu corpo - e os medos voltavam. Eram os medos que lhe davam alguma sustentação.

Mistura todas as tintas e me diz que está “tudo errado”. O que está errado? Tudo. Ela, mais uma vez, estava perdida e desmemoriada. Contei a ela sua história: era uma vez uma menina que morava com os pais e os irmãos. Mas os pais estavam muito doentes e não conseguiam cuidar muitos bem dos filhos. A menina passava fome e não falava. Um dia, ela e os irmãos foram para o abrigo. Ali conheceu várias pessoas que a amaram e quiseram ficar com ela. Mas a menina tinha medo e acabou afastando todas essas pessoas. Um dia, a vida dessa menina mudou, e ela foi morar com os irmãos na “casa-lar”, onde mora até hoje. A menina gosta muito dessa nova casa. Ali tem vários bichos, açude, muita árvore. Ela gosta muito de seus novos pais. Mas a menina fica com muito medo de lembrar das outras pessoas que passaram em sua vida. Acha que, se lembrar, vai perder o que tem agora. Então, a menina finge que já nasceu ali onde está agora, como se ali sempre estivera. A menina tem medo de que seu passado destrua o seu presente. Que lembrar seja trair o que tem agora.

Ela me olha e pergunta como é que eu sei de tudo isso. Não lembra que foi ela mesma que me contou. Eu me transformo no próprio lugar das memórias. Ela me faz, então, muitas perguntas, como se eu de tudo soubesse. Pego sua mistura de tintas e começo a buscar com ela quais as tintas que fizeram aquela mistura. Digo a ela que essa mistura de tintas é ela, e que cada cor é uma pessoa-tinta que passou em sua vida. Que quanto mais pessoas conhecer, mais colorida pode ficar.

A menina me lembra o personagem Bastian, do livro História sem fim. Bastian é um resto. É feio, gordo, sem amigos e motivo de piadas para os colegas de escola. Sua mãe morreu e o pai deixou de se interessar por ele e pelo mundo. Um dia, Bastian, fugindo dos colegas de escola, entra em uma livraria e encontra o livro que mudará sua vida. Encontra a História sem fim. O livro se passa em Fantasia, um mundo paralelo ao dos homens. Os dois mundos dependem um do outro para existir: sem fantasia, o mundo dos homens se torna uma mentira; mas a fonte das fantasias de Fantasia é as fantasias dos homens. Como os homens, porém, estão deixando de acreditar em fantasias, Fantasia está sendo destruída pelo Nada.

Para dizer o que é o Nada, vamos ao texto de História sem fim. Nesse trecho, alguns seres de Fantasia, de localidades muito distantes, se encontram. São todos eles mensageiros e todos trazem a mesma mensagem:

- Por que você iniciou sua viagem, Blubb? - Na nossa terra, no Pântano da Podridão (...) aconteceu uma coisa... uma coisa inacreditável... Ou melhor, ainda está para acontecer... é difícil de explicar... começou assim: a leste de nossa terra há um lago... ou, melhor dizendo, havia... que se chamava Caldo Fervente. Tudo começou quando, certo dia, o lago Caldo Fervente desapareceu... pela manhã, não estava mais ali. Compreendem? - Quer dizer que secou? - perguntou Ukuk.

- Não - Respondeu fogo-fátuo. - Se assim fosse, haveria ali um lago seco. Mas não foi assim. No lugar onde havia um lago não havia nada... Nada mesmo, compreendem? - Havia um buraco? - rangeu o comedor de rochedos.

- Não, não havia um buraco. - O fogo-fátuo parecia cada vez mais atrapalhado. - Um buraco ainda é alguma coisa. E ali não há nada. Os outros três mensageiros olharam uns para os outros.

- E que aspecto tinha então... esse nada? - perguntou o gnomo noturno. - Exatamente isso que é tão difícil de explicar - replicou o fogo fátuo com ar infeliz. - Na verdade, não se parece com coisa alguma. É como... como... Bom, não há palavras para explicar!

- É como se uma pessoa ficasse cega, quando olhasse para esse lugar, não é? - interrompeu o Minúsculo. (ENDE, 2010ENDE, Michael. A História sem fim. 9. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 23)

Não há palavras para falar do Nada. É um ponto cego. Deixa aqueles que o olham como que cegos. Mas o lago ainda vive na memória de quem conta que ali havia um lago antes que o Nada o desmaterializasse. O lago não existe mais, mas vira palavras, vira discurso, vira memória. Enquanto o personagem ainda puder dizer do lago, o lago existirá.

Se a menina desmemoriada puder contar sua história, a história terá materialidade e uma linha do tempo. A narrativa poderá dar consistência ao seu corpo. Mesmo que seja um lembrar para esquecer.

Há uma diferença entre um apagamento da memória e um esquecimento da memória. Lembrar infinitas vezes para poder esquecer é incorporar a memória, fazer dela o corpo de quem lembra. É transformar a memória em carne, em matéria. É poder ressignificá-la. Mesmo que essa memória seja inconsciente, é uma marca que diz de onde fala aquele que a porta. Mas não se permitir lembrar o passado por medo de perder o presente é perder-se no presente, é tentar apagar a memória, fingir que as memórias não deixaram rastros na história do sujeito. Mas não há presente sem passado, não há corpo sem a linha do tempo das palavras e das memórias.

A menina desmemoriada acha que vai perder sua vida do agora se lembrar do passado. Acha que vai trair aqueles que a cuidam no presente se lembrar de quem a cuidou antes. É como se quisesse apagar a dívida simbólica da existência para ter alguém no presente que lhe garanta sua existência. Mas, sem passado, não há corpo, e, sem corpo, não há presente. Sem dívida simbólica, não há como ter uma posição no mundo, uma posição frente ao Outro. Fingir que sua origem não existiu, para fingir que onde está agora é o local onde sempre esteve, não é uma fantasia, mas uma mentira. E a mentira não constrói mundos - os destrói.

Uma mentira sempre diz uma verdade. E, no caso da menina desmemoriada, a verdade do seu desejo de ser cuidada. Mas uma mentira não é uma narrativa suficiente que garanta a consistência de sua posição frente ao Outro. Se o for, deixa de ser uma mentira e se transforma em ficção. É necessária muita fantasia para que a vida não se torne uma mentira.

No livro História sem fim, há um momento no qual, para que Fantasia não seja engolida pelo Nada, uma pessoa do mundo dos homens deve entrar “no livro” com uma missão bem específica: renomear a imperatriz de Fantasia e reconstruir esse mundo.

É necessário que Bastian deixe a terra dos homens e entre em Fantasia. Nesse momento, há uma virada interessante no livro. Todos mudam de posição frente à história: Bastian deixa de ser o leitor da História sem fim e passa a ser personagem; e nós, os leitores, passamos a ocupar o lugar antes ocupado por Bastian frente à história.

O livro nos impulsiona, do mesmo modo como antes impulsionou Bastian, a sair da posição de leitor - aquele que lê uma história de fantasia - para a posição daquele que cria suas próprias fantasias. Assim como Bastian, cabe à menina desmemoriada sair da posição de quem ouve a sua própria história para a posição de quem se apropria de sua história e torna própria a própria história.

Bastian entra em Fantasia. Não mais aquela que conhecera antes, mas uma que fora devastada pelo Nada. Agora ele é aquele que ocupa a posição de herói, aquele que será o salvador de Fantasia. Do lugar de dejeto, ele passa a ocupar o lugar de soberano, no qual todos seus desejos serão realizados. Mas isso tem um preço: a cada desejo realizado, ele perderá uma memória. É fundamental que Bastian crie o mundo, já que muito pouco dele restou. Mas como consequência, é necessário que haja algumas perdas do passado, de algumas de suas memórias, para que o futuro de Fantasia se reconstrua. Mas sem seu passado, ele deixa de saber quem é. Esquece por que e como chegou à Fantasia, esquece o menino que sofria de desamparo e de solidão na terra dos homens, esquece sua história, e acaba se tornando um ser de Fantasia. Ao menos é nisso que ele acredita: ter sempre vivido em Fantasia. Bastian esquece de onde veio e torna-se um tirano, um monstro. Torna-se aquele que, por não lembrar-se de sua história e não saber quem é, acaba por não conseguir enxergar seus semelhantes, tornando-se incapaz de enxergar o mundo à sua volta em sua complexidade. Dentro de Fantasia, ele se torna uma mentira.

Agora, como em nosso caso, a menina desmemoriada deverá fazer uma escolha: ser uma massa amorfa de tintas, sem cor e sem lembranças; ou ser colorida, lembrando e incorporando a origem de cada pessoa-tinta que coloriu a sua vida.

Tempo e experiência

O que fazer com o que fica na ordem de um trauma, de um Real que, como nos ensina Lacan (1972-73/1985)LACAN, Jacques. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. (O seminário, 20)., não cessa de não se inscrever? O que dizer de um sintoma, como o da menina desmemoriada, que “deve” esquecer seu passado, porque julga que essa é a única forma de ter um presente? Como ter presente e futuro sem o passado? O que causa a tentativa de apagamento de suas origens e, por consequência, a tentativa do apagamento de sua posição em relação ao Outro? Como viver no mundo, se ela sente que só pode fazê-lo apagando a dívida da existência, tentando, portanto, apagar seus rastros?

Viver sem rastros, sem linha, é viver perdida no ponto. Um ponto que, por não estar amarrado a outro, a nada, martela insistentemente tentando fazer marca. Um ponto que não pode se ressignificar, justamente porque é como se não pudesse deixar nenhuma marca. A menina torna-se assim uma massa-ponto de tinta amorfa, já que tenta esquecer quais foram as pessoas-tintas que a fizeram ser quem ela é hoje.

Em relação aos sobreviventes de guerra, onde todo o conhecido fora destruído, Maria Rita Kehl nos diz que

era necessário impedir as invasões do psiquismo pelas reminiscências espontâneas (fragmentos vivos do passado no presente), por pelo menos duas razões: em primeiro lugar, porque a memória de tantas referências destruídas tornaria a vida insuportável; em segundo, para manter a atenção consciente trabalhando a todo o vapor a fim de promover as reações adequadas e imediatas aos estímulos e solicitações do novo mundo. (KEHL, 2009KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 156)

Não se trata aqui de uma situação de guerra literal. Mas, para suportar a morte, a perda, o abandono, a fome e o desamparo, para seguir adiante e sobreviver quando o desamparo não é somente o existencial de todos nós, mas uma situação concreta e palpável, parece ser necessário à menina desmemoriada apagar essas “tantas referências destruídas” para seguir adiante. O problema é que não se segue adiante sem história - não há futuro sem passado.

Walter Benjamin nos explicita em seu texto Experiência e pobreza (1933/1994) que a materialidade que diz da contemporaneidade é o vidro. É o vidro justamente porque vivemos um tempo de tentar apagar os rastros do sujeito. Ele começa seu texto da seguinte forma:

Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho. (BENJAMIN, 1933BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza (1933). In: Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994./1994, p. 114)

A partir desta parábola, o autor afirma que a experiência, atualmente, está empobrecida, justamente porque ela seria a pérola que decanta do trabalho e que persiste no tempo. A experiência seria o resto que cai de uma transmissão vinda de uma autoridade, não para ficar estática, mas para que aquele que a recebe possa cavar - assim como os filhos, na história, cavam a terra, não para encontrar o ouro, mas para encontrar seus próprios lugares frente a esta transmissão. Cavam para se apropriar e se responsabilizar por sua posição frente ao Outro.

O autor faz uma distinção entre vivência e experiência. A vivência seria aquilo que não deixa necessariamente marcas. Ela estaria em um nível de respostas rápidas, onde temos de lidar imediatamente com aquilo que vem da realidade. A experiência, por outro lado, seria da ordem do inconsciente, mas não exclusivamente dele.

As experiências não ficam no registro consciente, mas “pertencem antes ao sistema inconsciente - e coletivo - do vivido. Inconsciente porque coletivo” (KEHL, 2009KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 169). A experiência se realiza no mais profundo e, ao mesmo tempo, no mais superficial de nós mesmos; ali onde marcamos uma posição frente ao Outro.

Benjamin nos ensina que, para que uma vivência se transforme em experiência, deve haver uma transmissão. Um outro semelhante traz em si, em sua narrativa, a narrativa do mundo, pois o que ele transmite é para além dele mesmo. Mas essa narrativa é transmitida de forma esburacada, não inteira. Esse “esburacamento” dá possibilidade àquele que escuta de interpretar essa narrativa a partir de seu próprio ponto de vista. A experiência propriamente faz marca quando aquele que recebeu a transmissão passa a ser ele mesmo o transmissor. É quando transmite o que lhe foi transmitido que se pode perceber, a posteriori, o que lhe fez marca e memória.

A marca da história particular da menina desmemoriada é o abandono e o desamparo. É o que se repete insistentemente. Como viveu institucionalizada, sua história lhe foi transmitida por poucas palavras através dos irmãos e dos monitores e funcionários do abrigo. Sua existência está atrelada fisicamente aos irmãos, que são seus espelhos. O corpo deles e o seu carregam a sobrevivência - e não uma narrativa propriamente dita.

No entanto, a transmissão da experiência, como Benjamin a entende, talvez seja coisa do passado, como ele mesmo nos indica. O que veio em seu lugar, no lugar da experiência, segundo Márcio Seligmann-Silva, foi o testemunho. O autor nos diz que

O testemunho possui um papel de aglutinador de um grupo de pessoas (...) que constroem a sua identidade a partir dessa identificação com essa “memória coletiva” de perseguições, de mortes e de sobreviventes. Na “era das catástrofes”, a identidade coletiva (e mesmo nacional) tende a se articular cada vez menos com base na “grande narrativa” dos fatos e personagens heróicos e a enfatizar as rupturas e derrotas (...) o testemunho funciona como o guardião da memória. (SELIGMANN-SILVA, 2009SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho da Shoah e literatura. 2009. Disponível em: <Disponível em: http://www.diversitas.fflch.usp.br/files/active/0/aula_8.pdf >. Acesso em: 14 fev. 2014.
http://www.diversitas.fflch.usp.br/files...
, p. 3)

Podemos pensar que a psicanálise vem ocupar esse lugar antes ocupado pelo narrador benjaminiano: aquele que transmitia algo da cultura e que era incorporado pelo ouvinte quando o ouvinte mesmo se transformava no transmissor da cultura. Na “era de vidro”, do apagamento dos rastros, o que resta é a busca por si mesmo, pois não sabemos quem somos ou de onde viemos. Não por acaso a psicanálise nasce nessa época, onde os enigmas não estão mais “fora” (em Deus), mas “dentro” (no inconsciente). Mas não se trata de uma lógica binária dentro/fora. Aprendemos com a psicanálise que aquele que busca o testemunho em uma análise para procurar si mesmo só encontra um outro. Na busca de si mesmo, o sujeito começa a enxergar a si próprio para além de si mesmo.

A psicanálise, portanto, vem como prática que “cria as condições para a autorização da experiência” (KEHL, 2001KEHL, Maria Rita. Prefácio. In: COSTA, Ana. Corpo e escrita: relações entre memória e transmissão da experiência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.).

Se memória e linguagem são indissociáveis, sendo impossível se estabelecer a precedência de uma sobre a outra - ambas se originam do mesmo traço que inscreve o sujeito no campo do Outro - também não é possível dissociar experiência e testemunho. É no ato de testemunhar, ou de narrar, ato de fala endereçada a um outro, que o vivido se constitui como experiência. (KEHL, 2001KEHL, Maria Rita. Prefácio. In: COSTA, Ana. Corpo e escrita: relações entre memória e transmissão da experiência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., p. 22)

O corpo, a memória e a fobia

O corpo não é apenas feito de carne. Ele é feito de memórias. Sua matéria é a linha de tempo da história particular do sujeito atrelada ao caldo cultural de um tempo histórico. Linha de tempo feita de pontos - pontos de ancoragem que formam a figura do corpo. Pontos de reminiscências que criam teias narrativas. Mas essa narrativa deve ser incorporada pelo sujeito, para que ele dê carne ao corpo e corpo à carne, para que ele tenha um corpo que possa se movimentar no mundo sem se perder de si próprio.

A fobia vem como defesa de um corpo mais ou menos despedaçado, de um corpo que se sente separado da própria história. O sintoma fóbico é a busca de um referente externo quando o sujeito se sente perdido no tempo e no espaço. Como explicitou outra paciente, ela era “uma bolinha de sabão, sem área definida”, que ficava flutuando pelo mundo. Uma bolinha de sabão é algo frágil, algo que flutua, sem rumo, que é “levado pelo vento”, que não escolhe para onde vai e que pode se desfazer ao toque.

O sujeito tem medo de se perder, uma vez que o referente que o posiciona no mundo está caduco, frágil. É por esta razão que o sintoma fóbico vem no lugar do pai enquanto metáfora. Se não há um referente que diga ao sujeito qual é a sua posição no mundo, ele sente que pode se perder e o sintoma vem dizer a ele, esquadrinhar, por onde ele poderá se locomover e se movimentar no mundo. Não por acaso, a menina desmemoriada ocupa muitas sessões delimitando espaços, contornado seu nome com nuvens e corações. Diz que é “cada um no seu quadrado”. Movimenta-se, tenta se separar do mundo ao mesmo tempo em que procura seu lugar no mundo. Sente que não há lugar no mundo para ela.

É o próprio do corpo que sente que está perdendo. É o medo de se liquefazer, de se desfazer que está em questão. O fóbico esquadrinha o espaço a partir de seus medos justamente porque é corpo o que lhe falta. E esse corpo só pode existir se for inserido em uma história: a sua. A narrativa evitará que o sujeito caia no nada. O nada como o ponto cego constitutivo do sujeito. O olho do Outro que o posicionou no mundo.

A menina desmemoriada sente que não tem corpo, porque não se permite lembrar a sua história. Acha que vai se perder ao se lembrar dela. Mas é justamente a lembrança e a apropriação dela que poderá salvá-la de cair no vazio, como no Nada da História sem fim. São as fantasias e ficções atreladas aos pontos de ancoragem de suas lembranças, mesmo as inconscientes, que lhe possibilitarão ser no mundo.

Mas não se trata aqui de uma “lembrança fixa”, como nos ensina uma outra paciente, a menina com excesso de memória - que tenta fazer suas lembranças se transformarem em imagens, sem buracos. As lembranças para essa outra menina devem ser faladas, descritas, nos mínimos detalhes, para que nada se perca, para que ela não se perca. É uma lembrança-imagem porque não é uma lembrança-simbólica, com furos. Uma lembrança-simbólica pode ser incorporada e, portanto, pode ser esquecida sem angústia, justamente porque já faz parte do sujeito - é o sujeito, o sujeito que incorporou e se tornou esta narrativa.

A memória, com sua linha do tempo, produz uma sensação de permanência no mundo. Sem memória não há corpo. O registro Imaginário atrelado ao Simbólico possibilita que o trauma - o Real que não faz registro - dê a ilusão de unidade corporal.

A memória obedece às leis que regem o imaginário. É ela quem nos dá alguma medida, tanto individual quanto coletiva, do fio do tempo, e estabelece uma consistente impressão de continuidade entre os infinitos instantes que compõem uma vida. (...) É a memória que confere uma permanência imaginária a essa forma negativa do tempo, que é o passado. A função da memória, participante do mesmo registro psíquico do corpo e do narcisismo, é essencial para manter nosso sentimento imaginário de identidade ao longo da vida; ela funciona como garantia de que algo possa se conservar diante da passagem inexorável do tempo que conduz tudo o que existe em direção ao fim e à morte. (KEHL, 2009KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009., p. 127)

É de falta de permanência que sofre a menina desmemoriada. Faltam aqueles que permaneçam em sua vida para além de seus irmãos-espelhos, falta uma casa que sinta como sua, faltam objetos reais que contem de sua vida - bonecas, brinquedos, roupas, fotografias. Mas falta, principalmente, a ilusão de permanência de seu corpo no mundo. E é essa falta de permanência que a menina indica com seu sintoma de esquecimento e seu medo de lembrar.

Mas como ter a sensação de permanência em relação ao corpo próprio? Qual é a relação dessa permanência “individual” em relação ao tempo e ao espaço público? Como manter a sensação de existir e de permanecer “si mesmo” quando se vive em uma situação concreta de desamparo?

O “si mesmo” não existe apartado do mundo, do espaço público, do Outro, mas existe como amarração ternária, moebiana, entre singular e coletivo. A perda de lugar no mundo, a perda de referências atinge a imagem de si, a ilusão de unidade corporal e a sensação de permanência na passagem do tempo.

“Nós vamos nos ver ontem?”

Com essa frase, a menina desmemoriada indica o meu lugar transferencial de memória. Sim, nós vamos nos ver ontem, ali onde as memórias estão. Mas ela também mostra que o ontem também está no futuro e no presente. O ontem toma conta do presente. Porque ele não pode ser esquecido, ele não para de não se inscrever. O ontem não se inscreve para que alguém a cuide no presente. Como Bastian, ela tenta fazer com que seus desejos se realizem ao preço do apagamento de suas lembranças. Isso não significa que as memórias não tenham se inscrito, apenas que ela tenta apagar seus rastros. Para ela, construir um futuro é apagar o passado e não esquecê-lo ou o ressignificá-lo.

A menina desmemoriada diz que o futuro é sempre igual ao passado. Pede para limpar sua caixa de brinquedos, quer colocar muitas coisas fora, no lixo. Até determinada época de sua vida, essa caixa era o único objeto que possuía. Roupas e brinquedos eram todos divididos com as outras crianças do abrigo. Nada era só seu. Essa caixa, que ficava guardada na clínica de atendimento, era algo valioso para ela. Ela me pedia para ver onde a caixa estava guardada. Muitas vezes a abria para verificar se alguém havia mexido nela. Queria saber se a caixa era realmente só sua, se podia confiar em mim para cuidar desse objeto tão valioso. Pedir para limpar a caixa, para jogar algumas de suas coisas fora, me pareceu algo muito diferente de quando comecei a atendê-la. Parecia querer “limpar” o passado para que a caixa tivesse outro futuro. E, se já podia jogar coisas fora, é porque já as tinha dentro de si.

Ela quer colocar todas as tintas velhas fora e ficar somente com as novas. Digo a ela que faz o mesmo com a sua história: coloca-a no lixo. Sugiro que possamos misturar as cores velhas para fazer delas novas. Não precisamos colocar todas as coisas fora, podemos transformá-las em outras coisas - assim como sua história.

Ela me conta então que nasceu da barriga da mãe. Que ela e seus irmãos nasceram aos pares, colados, como se fossem todos gêmeos, como se fossem espelhos uns dos outros. São seis crianças e teriam nascido de dois em dois. Cada par nasceu ora costurado um no outro, ora descosturado um do outro. Às vezes fala do irmão - seu par - como se fosse ela mesma. Confunde-se com ele. Conta que cada par tinha o seu berço, mas ela e o seu par, por terem medo de trovão, dormiam na mesma cama que a mãe. É o medo de trovão que dá a ela o lugar junto à mãe. É o medo de algo externo que a posiciona num lugar privilegiado. Aqui já há uma diferença muito significativa da história, muito crua, que me contava anteriormente sobre seu nascimento: que veio de uma barriga ensanguentada.

Desse mito de origem passa a outro. Explica por que, a seu ver, as crianças têm que morar no abrigo. Conta que duas meninas fugiram da instituição e foram para a praia. Como estavam sozinhas, sem nenhum adulto para cuidar delas, morreram afogadas. Essas mortes aparecem com dupla significação para ela: as crianças não podem morar sozinhas porque vivem em abrigos “para não virarem moradoras de rua”, e também é por causa dessas mortes que os abrigos um dia (no futuro) vão fechar e todos se tornarão casas-lares. Como já foi dito, é numa casa-lar que mora agora. Com essas histórias, ela condensa sua história particular: por não poderem viver sozinhos, ela e os irmãos foram para o abrigo e, de lá, para a casa-lar - lugar onde gosta de viver. E ainda faz uma espécie de denúncia, já que as meninas de sua história fugiram do lugar que deveria protegê-las e acabaram se afogando em falta de cuidados. Porque as crianças não foram cuidadas, portanto, os abrigos serão extintos e se transformarão em casas-lares.

Lemos no prefácio de Maria Rita Kehl, escrito para o livro Corpo e escrita, de Ana Costa, que há duas funções da memória: dar corpo ao “si mesmo” e fazer rastro desse corpo-sujeito no mundo.

A memória tem pelo menos duas funções. Uma delas é a que dá consistência ao sujeito e promove uma ligação duradoura entre este e seu eu. Esta é uma memória inconsciente, que Ana Costa chama de registro: aquilo que se inscreve no corpo, a partir da intervenção do Outro, e que permite que o sujeito “saiba” quem ele é, reconheça-se, identifique-se com seu nome próprio e seja capaz de dizer: “este sou eu”, sem precisar presentificar-se, certificando-se de si mesmo continuamente diante da imagem especular.

Esta memória é o que confere ao sujeito um lugar, que lhe parece tão “natural”, tão suportado por uma verdade eterna (verdade que vem do Outro) que o sujeito só se indaga sobre ele quando algo, deste lugar, lhe escapa ou se desloca. O lugar do sujeito e o traço que o confirma para os outros se atualiza permanentemente em seus atos. (2001, p. 13)

A outra {função} é a memória da rememoração e da transmissão da experiência. Para falar dela, e desta tarefa impossível que é a de transmitir o vivido, Ana Costa começa pelo enigma da morte. Se muito falamos, escrevemos, representamos a morte, é justamente porque não existe registro dela no inconsciente. Da morte, só se vive a experiência da perda do outro. Mas como a experiência depende daquilo que passa pelo corpo, a constatação de que os outros, mesmo os seres mais queridos, morrem, não é suficiente para constituir uma experiência de morte (2001, p.14).

No primeiro mito de origem que a menina - agora não mais tão desmemoriada - cria sobre seu nascimento, parece estar localizando seu lugar, seu Eu (Moi) no mundo, frente ao grande Outro. Explicita sua necessidade de estar costurada, colada com seus irmãos. Em pares, é como se constituíssem sua imagem especular do estádio do espelho lacaniano.

Lacan (1949/1998)LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu (1949). In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. nos ensina que a ficção antecipada do Outro cria um suposto e futuro sujeito. Essa criação que é o Eu (Moi) dá ao sujeito a sensação de permanência, a sensação de que é um no mundo. E seu corpo serve de suporte para essa sensação de permanência. A menina desta história parece dizer que só permanecerá no mundo se estiver junto com seus irmãos. Eles nascem colados em pares, costurados uns nos outros, todos espelhos uns dos outros, como se todos fossem gêmeos. Ela diz que são todos irmãos gêmeos. É medo da morte que sente se for separada dos irmãos. Como se seu corpo não se sustentasse sozinho.

Por outro lado, ela se confunde com o que se costura e o que se descostura. Com o que está colado e o que está descolado. Cola e recorta constantemente suas produções. Parece querer se separar, mas tem medo de se perder, de cair, de morrer.

Nesse momento, ela começa a colocar as coisas fora. Parece querer perder as coisas. Mas não basta mais colocá-las no lixo, quer jogá-las pela janela. Parece endereçar ao Outro, ao social, suas produções; parece querer endereçar a si mesma ao Outro. Ela me pergunta o que aconteceria se se jogasse pela janela. Começa a falar da morte, da sua morte.

Aqui podemos perceber dois movimentos antagônicos que ocorrem a um só tempo: por um lado, parece se identificar com esses objetos - ela é qualquer uma. Pode se jogar pela janela porque é um objeto qualquer. Por outro lado, parece dizer de uma morte que diz sobre ela poder perder coisas sem se perder de si mesma. Não parece mais ter tanto medo de se perder, nem de ser abandonada. Parece poder ficar só, ou, pelo menos, mais só.

Os três tempos como condição da permanência

Lacan (1945/1998)LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu (1949). In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. diz que há três tempos para que o sujeito passe de uma posição de alienação para uma responsabilização de si: o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir. Para explicar sua formulação, ele parte de uma situação hipotética na qual três prisioneiros têm a chance de sair do presídio onde se encontram. Somente aquele que descobrir o enigma proposto poderá ter sua liberdade.

Nas costas de cada um dos prisioneiros será colocada uma cor: branca ou preta. Todos terão de descobrir qual é a sua cor. O prisioneiro que desvendar o enigma primeiro terá a liberdade. Mas não poderá olhar para a sua cor, terá de descobri-la logicamente através da cor que enxerga nas costas dos demais.

São muitas as consequências que Lacan tira dessa situação e não nos cabe aqui entrar em detalhes. O que nos interessa salientar é que o sujeito só poderá descobrir quem ele é e ter a sua liberdade a partir da observação dos demais prisioneiros. Ele somente se descobrirá e poderá ter a sua liberdade através da mediação do olhar dos outros. É a partir da reação dos demais - no tempo de compreender - que o sujeito poderá sair dessa posição, poderá sair da prisão. Não foi por acaso que Lacan escolheu a situação do presídio e que a liberdade foi o prêmio do enigma. Enquanto eles estão no momento de compreender, estão todos numa posição de alienação. Dependem do olhar e das reações dos outros - dos olhares-espelho - para saber de sua própria posição. Lacan parece reafirmar a todo instante que é o olhar do Outro que nos constitui e nos diz de que matéria somos feitos - nos diz de nossa posição no mundo. Não podemos olhar o ponto constitutivo por onde olhamos o mundo, mas podemos olhar o olho daqueles que nos olham e interpretar esse olhar.

O momento de concluir - a saída da prisão - sempre porta um risco. É uma incerteza. O momento de concluir é falar quem somos - sempre sem garantias. Temos que ultrapassar a porta e sair por ela sozinhos, falando por nós mesmos, sair da posição de alienação para a de liberdade. Mas precisamos de um tempo suficiente de alienação para poder suportar a solidão da liberdade. E esse risco só é possível quando há uma responsabilização por si mesmo, uma incorporação do desejo do Outro.

Dito de outra forma, o tempo de compreender seria um momento especular, imaginário, já que é a partir da identificação com o outro que se pode inferir qual é a posição que ocupamos em relação ao Outro. O olhar do outro nos dará pistas sobre a nossa posição no mundo. É o momento onde os detentos do presídio se dão conta de que só poderão saber que marca há em suas costas a partir das reações dos demais detentos. São as pausas, as hesitações que explicitarão e dirão aquilo que o outro vê em nós que nós mesmos não podemos ver. São os olhos dos outros os nossos espelhos. Por esta razão, o tempo de compreender é um momento imaginário: precisamos do outro para termos a garantia de nossa posição, de quem somos nós (KEHL, 2009KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.).

Da alienação à responsabilização

Descosturar-se dos irmãos é não precisar mais ser gêmea para existir no mundo. É poder ser só si mesma - no sentido de que pode sentir que pertence ao próprio do corpo e faz parte do mundo. É o momento de poder jogar fora sem achar que ela mesma vai cair, sem achar que vai perder seu corpo ou que é um objeto qualquer. Ela não vai mais cair/morrer. Ela pode agora se endereçar ao mundo, jogando suas coisas fora pela janela como se fossem cartas (lettre). Mas isso só porque pode lembrar, imaginar e fantasiar.

Neste momento, a menina começa a falar de seu desamparo, da necessidade de estar colada ao irmão-espelho e da vontade de se separar para crescer. Começa a falar do futuro. Diz que seus dentes estão caindo e que a fada do dente faz nascer do dente uma moeda. Que ela vai crescer, ficar velha e morrer. Aqui é um tempo de mudança na transferência. Ela diz que está crescendo, que há, portanto, uma passagem do tempo. Coloca-me, então, em uma posição materna. “Eu tô quase na tua barriga”, me diz em relação à sua altura. Pergunto a ela o que fica na barriga, e ela me diz que são os bebês, que os bebês vêm da barriga da mãe. Começa então a me seduzir com seu corpo, assim como os bebês o fazem. Mostra a sua barriga, as suas pintinhas, suas marcas.

Sempre há alguém que ocupa essa posição transferencial na vida da menina. É uma constante. Não por acaso, muitos quiseram adotá-la. Adoções sempre fracassadas, já que ela provocava o rechaço logo que essa possibilidade começava a tomar corpo. Essa possibilidade dizia da separação insuportável de seus irmãos - insuportável porque são eles que dão a ela um lugar no mundo, dão a ela permanência no mundo. Nas épocas das possíveis adoções, desenhava muitas casas com portas e janelas fechadas, e placas de “Proibida a entrada”. Ela dizia-se fora da casa.

Até hoje desenha muitas casas, mas agora são outras, porque ela está dentro delas. Diz que o lobisomem e o lobo mau estão lá fora, fora da casa. Não gosta quando eu pronuncio as palavras lobisomem ou lobo mau, como se a palavra evocasse a coisa mesma, a materializasse. Mas são eles que parecem delimitar os espaços, a casa dela, o seu corpo. São eles que dizem o que pode ficar dentro e o que pode ficar fora da casa.

Melman, em seu texto Casas de arquitetos, casas de analistas, nos ensina que “nós podemos pensar (que) aquilo que os primeiros construtores tentaram fazer nada mais era do que cercar justamente, em suas construções, o Ser mesmo” (1994, p. 163). Seu texto diz da arquitetura e sua função de delimitar os espaços, o dentro e o fora. Mas um dentro e fora que mantenha em si a possibilidade da subjetividade. E, para que haja tal possibilidade, deve haver no dentro zonas de obscuridade, zonas labirintos, zonas de incertezas. Deve haver, portanto, a inscrição do Outro no dentro, para que opere uma torção nesse espaço. Será este terceiro, o Outro, que abrirá um intervalo neste interior da casa, abrindo um buraco, um espaço que dê as condições para que o sujeito não se sufoque consigo próprio. “Basta ter lembranças da infância para saber que nas construções que elas habitavam, como todas estas zonas de sombra - tanto no porão como no sótão - eram lugares bastante essenciais” (idem, p. 168). É, portanto, uma tentativa de inscrever o infinito no espaço interior da casa. Inscrever o infinito no interior do corpo.

A menina diz que a casa é minha e dela, que moramos juntas. Imediatamente, quer ter sua própria casa, quer se separar de mim. Pede para ir embora. Às vezes quer se colar, se costurar a mim, como se eu fosse o espelho dela. Então amarra as minhas mãos com durex. Em outras, me rechaça, me xinga, me manda calar a boca. Quer ter seu próprio espaço. Ela sabe que precisa do Outro para viver, mas o Outro, por vezes, parece invadi-la, e ela precisa tomar distância para não cair no Nada. O Nada parece estar em toda parte. Se se aproximar demais do Outro, será invadida por ele; se mantiver muita distância, cairá no abandono absoluto. O que a salva, nesse momento, é o lobisomen que permanece lá fora delimitando o dentro da casa.

(...) a presença deste lugar (o Outro) que é comum a todos e ao qual nós não cessamos de nos referir, nem que fosse em nossas questões, que por mais singulares que sejam, são contudo fundamentalmente comuns a todos. Então a questão é evidentemente a seguinte: como, nesta arquitetura, tornar sensível esta presença, mais além da diversidade de cada um de seus habitantes? (idem, p. 162)

Quando cria sua ficção de origem no abrigo, a menina não está mais falando unicamente de sua existência no mundo, mas parece ter criado a sua relação com o espaço público e com o Outro. Parece se perguntar por que sua vida foi assim, por que foi privada de seus pais. Ela diz que as meninas mortas da história se afogaram porque as crianças não podem ficar sozinhas, que mesmo sendo ruim, esse lugar a mantém viva e que não pode viver sem a ajuda do outro, não pode (ainda) ser só.

Ela sente que morrerá se estiver sozinha, o que já explicita sua condição de desamparo. Ao mesmo tempo, essa ficção diz da vontade de sair de lá, de fugir, de estar em outro lugar. Aqui fala de um tempo passado, da época em que vivia no abrigo: “no futuro, há muito tempo atrás, só existirão casas-lares”. Seu desejo era de ter saído “há muito tempo atrás” do abrigo. Denuncia o abrigo, pois, se o abrigo fosse bom, as meninas não teriam fugido e morrido. Ao mesmo tempo, ela diz que agora está numa casa, num lar, numa casa-lar, que é para onde todas as crianças deveriam ir.

Mas, como já foi dito, sua casa precisa de um lobisomem para existir. Apesar de estar endereçando suas produções ao Outro, de estar se separando e simbolizando, é do lado de fora que o lobisomem se encontra. É ele quem determina o que fica dentro ou fora da casa. É ele quem demarca os territórios por onde pode circular.

Será que um dia a menina poderá ter o lobisomem dentro de casa, embaixo da cama ou dentro do armário? Dentro de casa, o lobisomem estará operando em uma lógica ternária e não mais binária. Dentro de casa, o lobisomem falará do estranho que habita em todos nós.

Referências

  • BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza (1933). In: Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
  • ENDE, Michael. A História sem fim 9. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
  • KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.
  • KEHL, Maria Rita. Prefácio. In: COSTA, Ana. Corpo e escrita: relações entre memória e transmissão da experiência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
  • LACAN, Jacques. As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 5).
  • LACAN, Jacques. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. (O seminário, 20).
  • LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu (1949). In: LACAN, Jacques. Escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
  • LACAN, Jacques. O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada (1945). In: LACAN, Jacques. Escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
  • MELMAN, Charles. Casas de arquitetos, casas de analistas. In: A Fobia Rio de Janeiro: Revinter, 1994.
  • SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho da Shoah e literatura 2009. Disponível em: <Disponível em: http://www.diversitas.fflch.usp.br/files/active/0/aula_8.pdf >. Acesso em: 14 fev. 2014.
    » http://www.diversitas.fflch.usp.br/files/active/0/aula_8.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2014
  • Aceito
    10 Jan 2015
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