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A interface mente-corpo em Sándor Ferenczi: perspectiva histórica dos primórdios da Psicossomática Psicanalítica 1 1 Apoio: CAPES.

RESUMO:

Este estudo teve como objetivo principal apresentar as concepções de Sándor Ferenczi (1873-1933) sobre a interface mente-corpo, destacando, sobretudo, dois conceitos fundamentais propostos pelo autor, a saber: patoneurose e neurose de órgão. Salientamos que o autor, fundamentando-se em Freud, recorre ao modelo teórico da histeria ao aludir às patoneuroses, mas alinha seu posicionamento às formulações acerca das neuroses atuais, ao descrever as neuroses de órgão. Dessa forma, sustentamos que as contribuições de Ferenczi forneceram subsídios de grande relevância para os progressos posteriores no campo da Psicossomática Psicanalítica, ainda que tal fato muitas vezes não seja devidamente reconhecido.

Palavras-chave:
Psicossomática Psicanalítica; Sándor Ferenczi; História da Psicanálise.

ABSTRACT:

This study’s primary objective was to present Sándor Ferenczi’s (1873-1933) understanding regarding the mind-body interface, emphasizing two fundamental concepts proposed by the author: pathoneurosis and organ neurosis. Note that, based on his understanding of Freud, the author resorts to the theoretical model of hysteria to introduce pathoneuroses but aligns his position with the formulations of actual neuroses to describe organ neuroses. Therefore, we argue that Ferenczi provided very important support for further advancements in the field of Psychoanalytic Psychosomatics, even though this fact is often not properly acknowledged.

Keywords:
Psychoanalytic Psychosomatics; Ferenczi, Sándor; History of psychoanalysis.

Introdução

A configuração relativamente recente da Psicossomática Psicanalítica enquanto campo de estudos suscita uma série de questionamentos por conta das relações complexas que estabelece, por um lado, com a Medicina e, por outro, já inserido mais diretamente em sua proposta de trabalho, com a Psicanálise. Ocorre que, de acordo com Peres e Santos (2012PERES, R. S.; SANTOS, M. A. Psicossomática Psicanalítica: intersecções entre teoria, pesquisa e clínica. Campinas: Alínea, 2012.), atualmente seria mais apropriado empregar o termo “Psicossomática”, não para qualificar certas doenças orgânicas - ou seja, doenças que acometem o corpo em sua dimensão material - supostamente psicogênicas, mas, sim, para nomear de uma disciplina científica fundamentada na existência de uma unidade funcional entre corpo e mente. Esta disciplina estabelece, desde sua origem, um diálogo bastante fértil com a Psicanálise e, inclusive, se caracteriza, em certo sentido, como uma extensão de seus postulados, a despeito de também se apoiar em elementos conceituais oriundos de outras vertentes teóricas.

No entanto, alguma discórdia ainda permeia as relações entre a Psicanálise e a Psicossomática Psicanalítica. Casetto (2006CASETTO, S. J. Sobre a importância de adoecer: uma visão em perspectiva da psicossomática psicanalítica no século XX. Psychê, ano X, n. 17, 2006, p. 121-142.), em um artigo em que discute o desenvolvimento da Psicossomática Psicanalítica durante o século XX, salienta que alguns analistas se mantêm reticentes às aplicações da teoria e da técnica na compreensão e abordagem dos aspectos psíquicos das doenças orgânicas. Gurfinkel (1997)GURFINKEL, D. Psicanálise, regressão e psicossomática: nas bordas do sonhar. In: FERRAZ, F. C.; VOLICH, R. M. (orgs.). Psicossoma: psicossomática psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997., por sua vez, aponta certos impasses no diálogo entre a Psicanálise e a Psicossomática Psicanalítica no que se refere ao fundamento e à delimitação do alcance de suas aplicações, embora defenda que não seja possível desvincular uma da outra ao considerar que partilham de uma mesma base de compreensão teórica sobre o funcionamento mental e sua interface com o funcionamento somático.

No presente estudo, intentamos delinear historicamente os primórdios do desenvolvimento da Psicossomática Psicanalítica. Mais especificamente, temos como objetivo principal apresentar as concepções de Sándor Ferenczi (1873-1933) sobre a interface mente-corpo, destacando, sobretudo, dois conceitos fundamentais propostos pelo autor, a saber: patoneurose e neurose de órgão. Para contemplar tal objetivo de forma contextualizada, contudo, inicialmente procuraremos circunscrever sucintamente o papel deste psicanalista húngaro nos primórdios da Psicanálise e estabelecer aproximações entre seu posicionamento teórico e aquele preconizado por Georg Groddeck (1866-1934), o qual, em linhas gerais, propunha uma leitura interpretativa dos fenômenos corporais. Outrossim, apresentaremos breves considerações sobre as formulações freudianas acerca da histeria e das neuroses atuais, reconhecendo que estas exerceram grande influência nas propostas ferenczianas.

O presente estudo, de caráter estritamente bibliográfico, busca, assim, estabelecer um recorte contextual, a partir de uma leitura compreendida tanto teórica quanto historicamente, para tratar das ideias originais destes autores - sobretudo Ferenczi - acerca da temática em questão. A proposta de uma leitura dessa natureza se reveste de importância porque se configura como uma reinterpretação, a partir de um olhar atualizado, que parte de uma perspectiva diferente e posterior, de forma que possibilita a análise de um conjunto de formulações teóricas em um panorama ampliado e complexo (CASADORE, 2014CASADORE, M. M. A Escola Húngara de Psicanálise e sua influência na constituição e desenvolvimento do movimento psicanalítico. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual Paulista, 2014.). Logo, tem sua legitimidade preservada justamente pela possibilidade de reconfiguração das compreensões e, ainda, por estabelecer paralelos aproximativos entre o passado e o presente. Vale destacar que as pesquisas teóricas em Psicanálise, conforme Mezan (1993MEZAN, R. Que significa “pesquisa” em psicanálise? In: SILVA, M. E. L. (org.). Investigação e Psicanálise. Campinas: Papirus, 1993.), ainda se caracterizam pela manutenção de um vínculo estrito com o trabalho clínico, na medida em que favorecem reflexões que, em última instância, dele se originam ou a ele remetem.

A figura de Sándor Ferenczi nos primórdios da Psicanálise

Ferenczi fez parte da primeira geração de psicanalistas, mas, ainda hoje, ocupa lugar central nos estudos acerca dos progressos da Psicanálise, principalmente no que concerne aos denominados “casos difíceis”. Este psicanalista húngaro, por vezes reconhecido como “o mais brilhante clínico de toda a história da Psicanálise” (ROUDINESCO; PLON, 1998ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998., p. 751), destaca-se justamente por suas experimentações no que tange à técnica psicanalítica, atentando-se de maneira especial ao papel do analista, à ética da relação de trabalho estabelecida com o paciente e, intrínseca a isso, à relação terapêutica (CASADORE, 2012CASADORE, M. M. Sándor Ferenczi e a Psicanálise: pela errância das experimentações. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.).

Ferenczi assumia uma postura investigativa incessante, sendo que, deparando-se com a complexidade de certos pacientes, não hesitava em formular novas hipóteses e explorar técnicas diferenciadas. Em uma época bastante precoce da evolução psicanalítica, tal empreitada se mostrava, por vezes, radical, mas nem por isso o autor deixava de ser estimulado por Freud a escrever e compartilhar aquilo que experienciava na clínica. Há de se acrescentar, ainda, que as iniciativas de Ferenczi sempre eram cautelosas, embora originais, e é possível perceber facilmente em seus textos o quanto a autocrítica e a constante problematização daquilo que colocava em prática sempre acompanharam seu trabalho.

Em nosso entendimento, foi exatamente esse “espírito inquieto” (FERENCZI, 1931/2012FERENCZI, S. Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade (1924b). São Paulo: WMF Martins Fontes , 2012. (Obras completas. Psicanálise, 3)., p. 80), presente ao longo do desenvolvimento da obra do autor, o que proporcionou a ele um reconhecimento como clínico brilhante. No obituário escrito por ocasião da morte precoce de Ferenczi, Freud inclusive chega a dizer que seus trabalhos tinham tornado “todos os analistas seus discípulos” (FREUD, 1933/1996FREUD, S. Sándor Ferenczi (obituário) (1933). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 22)., p. 224). Michael Balint (1896-1970), aluno de Ferenczi, escreveria 15 anos após a morte deste, que, depois de Freud, o autor que mais fundamentalmente contribuiu para os avanços da Psicanálise teria sido, justamente, Ferenczi. E destacaria, ainda, que Ferenczi havia antecipado teorias sobre algumas questões que surgiriam apenas posteriormente - como, por exemplo, o estudo dos estágios mais arcaicos do desenvolvimento infantil - e, portanto, seria importante um retorno às ideias de Ferenczi a fim de uma melhor compreensão acerca das mesmas (BALINT, 1948/1957BALINT, M. Sándor Ferenczi, obiit 1933 (1948). In: Problems of human pleasure and behaviour. New York: Liveright Publishing Co, 1957.).

Groddeck e Ferenczi: as primeiras leituras psicanalíticas das doenças orgânicas

Ferenczi reconhecia em Groddeck o pioneiro nos estudos que visavam não somente estabelecer uma relação íntima entre os estados emocionais e o funcionamento fisiológico, como, ainda, a aplicação dos conhecimentos psicanalíticos ao tratamento de pacientes acometidos por doenças orgânicas. Groddeck, médico alemão de inspiração vitalista, havia apresentado suas ideias acerca do assunto já em meados da década de 1910, e foi, no início, incentivado por Freud a publicar seus livros e artigos. Em Ferenczi, conheceu um interlocutor que compartilhava consigo vários posicionamentos acerca da teoria e da técnica psicanalítica.

A amizade entre os dois autores seria responsável por influências mútuas na construção e desenvolvimento de suas teorias. Fortune (2002FORTUNE, C. Georg Groddeck's influence on Sándor Ferenczi's clinical practice as reflected in their correspondence 1921-1933. Psychoanalysis and History, v. 4, 2002, p. 85-94.), a partir da análise das correspondências entre Ferenczi e Groddeck, salienta que suas cartas revelavam uma amizade mais franca e aberta, quando em comparação com aquelas que trocavam com Freud, por exemplo. Por conta disso, dispunham-se a conversar sobre questões bastante pessoais, e o quanto estas poderiam representar uma variável em suas práticas clínicas e teorizações.

Consideramos relevante ressaltar que os dois se conheceram intermediados por Freud. Na primeira carta que Freud escreveu a Groddeck, já há uma menção a Ferenczi e ao seu recém-publicado artigo, intitulado As patoneuroses. A intenção de Freud era justamente aproximá-los devido ao interesse comum pelos fatores psíquicos das doenças orgânicas. No mesmo ano, já após conhecerem-se pessoalmente, o psicanalista húngaro escreve uma resenha dedicada ao livro de Groddeck, Die psychische Bedingtheit und psychoanalytische Behandlung organischer Leiden (Condicionamento psíquico e tratamento psicanalítico dos adoecimentos orgânicos, em tradução livre), na qual exalta a originalidade do colega com relação às suas propostas teóricas e elogia, também, o modo como o mesmo concebe seus métodos investigativos, pautados essencialmente em fatos e experiências (FERENCZI, 1917b/2012FERENCZI, S. A psicanálise dos estados orgânicos (Groddeck) (1917b). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. (Obras completas. Psicanálise, 2).).

Além disso, alguns anos depois, Ferenczi escreve outra resenha a um novo livro de Groddeck, Der Seelensucher: ein psychoanalytischer Roman (O explorador de almas: um romance psicanalítico, em tradução livre), na qual volta a afirmar que “não se pode, em nenhum caso, contestar ao autor a seriedade de sua tese e o rigor de sua argumentação” (FERENCZI, 1921/2012FERENCZI, S. Georg Groddeck: o explorador de almas (1921). São Paulo: WMF Martins Fontes , 2012. (Obras completas. Psicanálise, 3)., p. 142). Neste texto, Ferenczi salienta que o advento da Psicanálise aponta que o inconsciente se aproxima muito mais do que a consciência da “esfera física” do corpo. O autor ainda assevera que os analistas haviam se concentrado nas alterações físicas presentes na histeria de conversão, e Groddeck, por sua vez, havia se embrenhado em um caminho teórico pouco explorado, ao aplicar os aportes freudianos no campo da Medicina Geral na tentativa de delimitação de fatores psíquicos de doenças orgânicas diversas, ao atribuí-las a defesas contra “sensibilidades inconscientes”.

Parece-nos válido propor que, para Ferenczi, Groddeck não foi simplesmente uma influência, mas, antes disso, uma inspiração. Como coloca Fortune (2002FORTUNE, C. Georg Groddeck's influence on Sándor Ferenczi's clinical practice as reflected in their correspondence 1921-1933. Psychoanalysis and History, v. 4, 2002, p. 85-94.), seria possível inclusive especular que, se não fosse pela relação com Groddeck, talvez não tivéssemos o “último Ferenczi”, com propostas que questionavam algumas perspectivas de Freud e, consequentemente, superavam certas fronteiras de até então da teoria e técnica psicanalíticas. Ao analisar o conteúdo das cartas entre os dois psicanalistas, Fortune destaca que Ferenczi igualmente admirava Groddeck como escritor e admitia que gostaria de escrever tão bem quanto ele, e sentir-se livre para poder se posicionar sobre tudo aquilo que pretendia sem antecipar a si mesmo as possíveis críticas negativas que receberia - em especial, Ferenczi receava as possíveis críticas de Freud. Groddeck ajudou Ferenczi a superar seus “bloqueios” e acabou por inspirá-lo a terminar Thalassa (FERENCZI, 1924b/2012FERENCZI, S. Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade (1924b). São Paulo: WMF Martins Fontes , 2012. (Obras completas. Psicanálise, 3).), livro no qual este apresenta postulados quase experimentais articulando a Psicanálise e a Biologia, sobretudo recorrendo às teorias evolucionistas, em uma tentativa de traçar linhas paralelas e coerentes entre o desenvolvimento filogenético e ontogenético.

Nesse mesmo ano, Ferenczi publicou também sua obra escrita em parceria com Otto Rank (1884-1939), Perspectivas da psicanálise (FERENCZI, 1924a/2012FERENCZI, S. Perspectivas da psicanálise (1924a). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. (Obras completas. Psicanálise, 3).), que apresenta críticas à técnica psicanalítica e assume como preocupação repensá-la, considerando fatores como, por exemplo, a relação terapêutica e o setting. Aqui, já é possível perceber uma escrita original, mais incisiva e problematizadora, a qual, a propósito, anteveria uma série de artigos ferenczianos focados cada vez mais na clínica e nas demandas consideradas difíceis ou contra-indicadas ao tratamento psicanalítico. Seria possível até mesmo estipular esse período de meados da década de 1920 como uma espécie de turning point do teor dos escritos de Ferenczi.

Se, por um lado, seu “espírito inquieto” e a primazia dos estudos voltados à clínica sempre estiveram presentes na obra deste psicanalista húngaro, é somente a partir desta época que o mesmo trata desses assuntos de maneira mais contundente e estabelece experimentações voltadas à técnica psicanalítica, as quais colocam em cheque posicionamentos conservadores que começavam a se tornar ortodoxos no seio da Psicanálise. Na esteira de Groddeck, Ferenczi, assim, mantém um pensamento autônomo e essencialmente questionador a partir de então, julgando-o necessário não apenas para evitar dogmatismos e o que chega a classificar como “hipocrisias”, mas, também, para demarcar novos limites da clínica. Desse modo, demonstra a necessidade de se problematizar constantemente a terapêutica psicanalítica, a fim de ampliar seu alcance e conservar a possibilidade de um trabalho ético e responsável.

Podemos concluir, portanto, que entre Ferenczi e Groddeck não existiam em comum, simplesmente, posicionamentos teóricos ou técnicos concordantes. Havia algo mais que perpassava a relação dos dois autores e se referia à postura dos mesmos enquanto pesquisadores e clínicos. Afinal, ambos ficaram reconhecidos na história do movimento psicanalítico pela originalidade com que concebiam seus estudos e pelo posicionamento progressista e crítico que assumiam. É possível perceber, na leitura de seus mais importantes artigos, o quanto se importavam com a chamada “Psicanálise aplicada” e como, antes de se voltarem às construções metapsicológicas, buscavam lidar com as dificuldades vivenciadas na clínica. Ferenczi (1924a/2012)FERENCZI, S. Perspectivas da psicanálise (1924a). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. (Obras completas. Psicanálise, 3). afirmaria até mesmo que, em contraste com a teoria, a técnica psicanalítica havia sido, de certo modo, negligenciada, e que tal fato se afiguraria, ainda, como o verdadeiro estímulo aos avanços conceituais. Por isso, sempre ressaltou a necessidade da revisão incessante da teoria, a partir dos novos conhecimentos constantemente revelados pela clínica.

Todavia, julgamos necessário esclarecer que o desenvolvimento teórico acerca dos determinantes psíquicos das doenças orgânicas, em Groddeck, se apoia essencialmente em uma tentativa de apreensão simbólica e representacional, a partir da interpretação, de seus sintomas. Neste aspecto, o autor aproximava suas formulações do modelo teórico proposto por Freud para a compreensão da histeria, o qual, como se sabe, concebia a ocorrência de uma conversão corporal a partir de alguma perturbação psíquica. Ocorre que, conforme o posicionamento que consolidou em Estudos psicanalíticos sobre psicossomática, Groddeck (1920/2011), em linhas gerais, sustentava que as doenças orgânicas seriam sempre capazes de “traduzir” algo dos processos psíquicos e, invariavelmente, teriam um “sentido”, posto que se encontravam associadas à necessidade do que denominava “Isso” se expressar. Logo, podemos inferir que, em última instância, o autor referendava, ainda que indiretamente, uma divisão suposta entre corpo e a mente, e a determinação desta última sobre o primeiro.

De forma semelhante, Ferenczi também insistia em enxergar o corpo, conforme salienta Mészáros (2009), como um sistema de símbolos, com linguagem própria para relatar conflitos inconscientes e, assim, estaria impregnado com mensagens escondidas que poderiam ser “decodificadas” pela Psicanálise. Apesar disso, Ferenczi não se colocava de maneira tão radical quanto Groddeck no que concernia à hipotética dimensão simbólica das doenças orgânicas. Ademais, com o transcorrer do tempo, passa a contemplar a temática a partir de uma perspectiva distinta, na medida em que se aproxima cada vez mais das questões relativas às relações objetais primárias e, ainda, avança nas postulações sobre o traumático e desprazeres arcaicos que escapariam a qualquer representação, como será discutido a seguir.

Psiconeuroses versus neuroses atuais: o corpo erógeno e o corpo biológico

De um ponto de vista histórico, os impasses ainda vigentes entre a Psicossomática Psicanalítica e a Psicanálise teriam sua origem mais remota em um primeiro momento do desenvolvimento teórico da Psicanálise, quando Freud passou a priorizar o estudo das psiconeuroses - rubrica sob a qual agrupava tanto as neuroses quanto as psicoses, das quais são exemplares, respectivamente, a histeria e a paranoia - e a se ocupar do corpo erógeno em detrimento do corpo biológico. Tal proposição se justifica porque o autor, nesse processo, deixou de lado as explanações que se voltavam às neuroses atuais, termo forjado para reunir, em um primeiro momento, a neurose de angústia e a neurastenia (FREUD, 1895/1996FREUD, S. Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada “neurose de angústia” (1895). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 3).) e, em um segundo momento, também a hipocondria (FREUD, 1914/1996FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 14).), condições nas quais, a exemplo do que ocorre na histeria, ocupariam lugar central na composição do quadro clínico sintomas orgânicos desvinculados de lesões fisiológicas.

Afinal, é a partir do trabalho com pacientes histéricas que Freud começa a configurar a Psicanálise tanto como teoria que se volta à compreensão dos processos mentais subjacentes às psiconeuroses quanto como prática clínica que prioriza esse tipo de demanda. Como consequência, a própria terminologia “neurose atual” e os textos que a discutiam diretamente começam a rarear dentre as produções freudianas já a partir da década de 1910. Conforme destaca Ferraz (1997FERRAZ, F. C. Das neuroses atuais à psicossomática. In: FERRAZ, F. C. ;VOLICH, R. M. (orgs.). Psicossoma: psicossomática psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.), tal fato está associado à ênfase cada vez maior dos estudos freudianos no recalque e na sexualidade infantil enquanto basais para a construção da Psicanálise. E isso porque as neuroses atuais, em contraste com a histeria, estariam diretamente relacionadas à vivência de perturbações na esfera da sexualidade adulta e seriam decorrentes de processos que não envolveriam mediação psíquica.

Em nosso entendimento, a diferenciação entre as psiconeuroses e as neuroses atuais levou à delimitação, na época, do que seria ou não objeto da Psicanálise. Até mesmo porque Freud afirmou, já após o estabelecimento de seus princípios básicos, que as neuroses atuais não ofereciam à análise qualquer “ponto de ataque” (1917/1996, p. 389). Entretanto, para Ferenczi, assim como para Freud anteriormente, os estudos que se voltavam à dimensão orgânica do corpo sempre foram considerados como extensão e expansão da Psicanálise, e não como algo próprio de outra disciplina científica alheia a seus preceitos. O autor, em última instância, pensava na Psicanálise como vasto campo de conhecimento - e, naquele contexto inicial, com muito ainda a explorar - passível de interlocuções multidisciplinares e voltado a toda prática clínica que visasse trabalhar com a saúde do sujeito tendo sempre, como referência central, a compreensão do aparelho psíquico a partir das formações do inconsciente, junto à historicidade e constituição subjetiva próprias de cada pessoa.

Na esteira de tal posicionamento ferencziano, podemos encontrar importantes contribuições à compreensão da interface mente-corpo - e, assim, aos avanços ulteriores no campo da Psicossomática Psicanalítica - quando nos debruçamos, justamente, sobre as formulações freudianas acerca das neuroses atuais. Nesse sentido, consideramos relevante salientar que o conceito de neurose atual - ainda que, de início, essencialmente relativo à neurastenia - aparece desde as correspondências trocadas por Freud com Wilhelm Fliess (1858-1928), sendo que, em suas publicações científicas, podemos encontrá-la pela primeira vez em A sexualidade na etiologia das neuroses (FREUD, 1898/1996). Nesta obra, o autor sustenta que a sexualidade estaria presente e seria atuante em toda psiconeurose, ainda que de diferentes formas. Na neurastenia, perturbações da sexualidade adulta desencadeariam sintomas diversos, o que poderia ser descoberto a partir de uma anamnese justamente por referirem-se a períodos mais atuais da vida do sujeito. Já nas psiconeuroses, a rememoração não seria tão simples, pois estaria em causa a sexualidade infantil permeada pelo recalque.

Para Ferraz (1997FERRAZ, F. C. Das neuroses atuais à psicossomática. In: FERRAZ, F. C. ;VOLICH, R. M. (orgs.). Psicossoma: psicossomática psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.), há certos elementos das neuroses atuais que estariam presentes também em certas doenças orgânicas, sobretudo crônicas e não transmissíveis, como poderíamos acrescentar. Dentre tais elementos, destacariam-se, mais especificamente, a ausência de mediação psíquica na formação dos sintomas - que não se apresentariam como um retorno do recalcado e estabeleceriam, assim, uma impossibilidade de representação - e a propriedade atual de seus fatores desencadeantes. Porém, é preciso esclarecer que, tanto em Freud quanto em Ferenczi, os sintomas nas neuroses atuais se refeririam invariavelmente a uma perturbação e/ou não-satisfação libidinal relacionada diretamente à sexualidade adulta, e não à sexualidade infantil. Posteriormente, esse entendimento foi ampliado pelos teóricos da Psicossomática Psicanalítica, e outros determinantes passaram a ser considerados, como, por exemplo, a repressão da agressividade (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.).

De qualquer forma, compreendidas à luz dos aportes freudianos sobre as neuroses atuais, determinadas doenças orgânicas se diferenciariam dos sintomas psiconeuróticos, em essência, devido à impossibilidade de representação psíquica subjacente àquelas, condição que permitiria um livre acesso das excitações diretamente para o plano somático. Afinal, o quadro clínico da histeria, destituído de base fisiológica, evidenciaria a influência de processos psíquicos inconscientes, sendo que, justamente por essa razão, permitia uma abordagem investigativa/interpretativa pela via das palavras. Em certas doenças orgânicas, em contraste, estaria em causa uma “falha” na função de para-excitação, cujo objetivo consistiria em conter as tensões às quais o aparelho psíquico se encontra submetido e integrá-las em uma cadeia de significação. É nesse aspecto que, como destacam Laplanche e Pontalis (2001), tanto a etiologia quanto a patogenia das neuroses atuais seria, basicamente, somática, e não psíquica.

A interação mente-corpo nas patoneuroses e neuroses de órgão

Ferenczi não chegou a eleger a interface mente-corpo como uma questão central de seu trabalho, de forma que não há, em sua obra como um todo, muitas publicações dedicadas diretamente à temática. Todavia, no primeiro texto que escreve abordando-a mais diretamente, intitulado As patoneuroses (FERENCZI, 1917a/2012FERENCZI, S. As patoneuroses (1917a). São Paulo: WMF Martins Fontes , 2012. (Obras completas. Psicanálise, 2).), o autor encontra inspiração para tal no modelo teórico da histeria. Apenas posteriormente Ferenczi coloca em relevo o papel de “falhas” representacionais e desprazeres voltados às relações mais arcaicas entre mãe e bebê como determinantes tanto do funcionamento mental quanto do funcionamento somático, e, assim, aproxima suas formulações sobre os fatores psíquicos das doenças orgânicas do modelo teórico das neuroses atuais, situando-as, portanto, para aquém da configuração representacional-simbólica.

Há de se estabelecer considerações contextuais que ajudam a compreender a situação da Psicanálise naquele momento de sua história e, portanto, justificam alguns dos caminhos trilhados por Ferenczi, ou mesmo Groddeck. Assim, julgamos relevante salientar que, quando da publicação de As patoneuroses, não havia condições de se estabelecer categoricamente um entendimento das doenças orgânicas como desprovidas de significado simbólico. Ocorre que, na época, pouco após as publicações dos artigos freudianos sobre a metapsicologia e alguns anos antes da formulação da segunda tópica, observava-se a definição de alguns pontos basais da Psicanálise, até mesmo em resposta aos primeiros dissidentes que esboçavam modelos teóricos que dela provinham, mas defendiam posicionamentos essencialmente diferentes daqueles propostos por Freud.

Nesse momento, em específico, a Psicanálise tinha pela frente um vasto percurso teórico ainda inabitado a ser desbravado. Os estudos acerca do desenvolvimento precoce infantil, pré-edípico, e suas relações mais arcaicas, por exemplo, não haviam alcançado resultados significativos. Até mesmo por conta disso, também era tido como premissa fundamental em Psicanálise o recurso à interpretação e à livre associação como os únicos meios de investigação do funcionamento mental, o que deixava implícitas a centralidade da linguagem e, ainda, a determinação representacional, de ordem simbólica, de todo sintoma psiconeurótico. Entendemos que, em grande parte por tal motivo, nestes primeiros textos dedicados a explorar o organismo como imbricado numa complexa unidade junto do psiquismo, tanto Ferenczi como Groddeck tendiam a preconizar a existência de uma significação simbólica inerente à interface mente-corpo.

Como já mencionado, no mesmo ano em que Ferenczi publicou As patoneuroses, Groddeck lança Die psychische Bedingtheit und psychoanalytische Behandlung organischer Leiden. Mas os dois textos possuem caracteres bem distintos: o de Groddeck já apresenta o essencial de suas propostas acerca das aplicações da Psicanálise à compreensão e ao tratamento dos fatores psíquicos das doenças orgânicas, ao passo que o de Ferenczi se propõe a pensar o funcionamento concomitante e mutuamente influente do corpo e da mente. O interesse pela dimensão orgânica do corpo e sua leitura psicanalítica, no entanto, é o que aproximará os dois teóricos.

Em As patoneuroses, Ferenczi (1917a/2012)FERENCZI, S. As patoneuroses (1917a). São Paulo: WMF Martins Fontes , 2012. (Obras completas. Psicanálise, 2). reporta alguns recortes de casos clínicos que acompanhou e que serviriam para ilustrar a existência de uma íntima relação psique-soma quando do surgimento de doenças orgânicas. O que desperta curiosidade é o fato de Ferenczi se propor a estudar uma direcionalidade contrária àquela que tipicamente é explorada em Psicossomática e, em específico neste texto, apresentar situações nas quais uma intervenção cirúrgica, ou mesmo um problema orgânico, desencadeariam, por associação, algum tipo de distúrbio psíquico. Para o autor, estas seriam, portanto, neuroses resultantes de uma condição corporal, e não o oposto: foram, assim, denominadas por Ferenczi como patoneuroses, ou, ainda, neuroses de doença.

A condição corporal do sujeito seria responsável pela retirada de libido investida até então no mundo externo, e por um retorno desta não ao eu, como no narcisismo secundário, mas, especificamente, ao órgão afetado, que se tornaria superinvestido e, como consequência, também objeto de satisfações secundárias. Ferenczi vai classificar, inclusive, o órgão afetado como “genitalizado”, ao afirmar que este também pode desencadear, no psiquismo, fantasias eróticas que seriam, por sua vez, associadas a uma regressão. O autor salienta, ainda, que essa “neurose narcísica” resultante de uma condição orgânica pertenceria aos casos em que a lesão ou doença ocorre em uma parte do corpo fortemente investida, e “com a qual o ego facilmente se identifica por inteiro” (FERENCZI, 1917a/2012FERENCZI, S. As patoneuroses (1917a). São Paulo: WMF Martins Fontes , 2012. (Obras completas. Psicanálise, 2)., p. 336). Essa parte do corpo, essencialmente uma zona erógena ou mesmo uma parte que desempenhe papel sexual - como Ferenczi exemplifica com o rosto -, poderia conduzir o paciente a regressões narcísicas.

Aqui, percebemos que a base da compreensão estabelecida por Ferenczi para este fenômeno é próxima àquela que também encontramos em Groddeck, referente a um sentido específico e subjetivo atribuído pelo sujeito tanto à lesão quanto ao órgão, de fato, simbolizado. Entendemos que, tomando como modelo referencial aquele proposto por Freud para as psiconeuroses e, mais especificamente, para a histeria, o que Ferenczi pretende é, em linhas gerais, demonstrar que uma condição orgânica primária pode vir a desencadear uma “perturbação” libidinal. O autor vai afirmar, ainda, que tal processo se refere, na maior parte dos casos, a um movimento regressivo, muitas vezes narcísico, por conta da condição orgânica.

Mesmo sem a intenção de construir uma “extensão” teórica que se propusesse a estudar as doenças orgânicas, Ferenczi, aos poucos, acaba por fazê-lo ao abordar temas que, até então, eram negligenciados pelas discussões vigentes em Psicanálise - como, por exemplo, as relações arcaicas entre mãe-bebê e o período narcisista, pré-simbólico, do desenvolvimento, ou mesmo a regressão, que, mais tarde, também irá aparecer em alguns dos seus textos mais polêmicos sobre a técnica psicanalítica. O intuito deste estudo, no entanto, não recai sobre os últimos textos de Ferenczi, que se referirão à teoria do trauma ou aos aspectos técnicos repensados na clínica daqueles pacientes ditos “difíceis” por apresentarem um funcionamento psíquico distinto dos pacientes neuróticos “clássicos”. Temos plena consciência de que estes escritos em muito dialogam com a Psicossomática Psicanalítica em seus avanços contemporâneos, mas nos parece que a exploração dos mesmos constitui um outro recorte do debate, a ser trabalhado posteriormente. Por ora, interessamo-nos em destacar os textos ferenczianos que se voltam de maneira direta à interface mente-corpo.

Dessa forma, faz-se necessário aqui aludir também ao texto As neuroses de órgão e seu tratamento, em que Ferenczi (1926/2012)FERENCZI, S. As neuroses de órgão e seu tratamento (1926). São Paulo: WMF Martins Fontes , 2012. (Obras completas. Psicanálise, 3). também aborda o assunto e nos apresenta uma tentativa mais elaborada de compreensão dos determinantes psíquicos das doenças orgânicas. Ele propõe, ainda, um novo conceito: neurose de órgão ou neurose orgânica. Logo na abertura de tal texto, o autor defende a ideia de que muitas doenças orgânicas teriam origem psíquica. No entanto, Ferenczi diferencia o processo que culminaria com a eclosão dessas doenças da dinâmica de conversão histérica e o associa ao modelo teórico das neuroses atuais - principalmente da neurastenia - conforme estabelecido por Freud.

Todavia, ainda há presente em seu pensamento a ideia de uma direcionalidade específica, mesmo que de maneira distinta da categórica defesa de Groddeck quanto à existência de determinismos unilaterais provindos do psiquismo e que incidiriam sobre o corpo. Ferenczi, assim, mantém, imbuída em seu discurso, a ideia da simbologia do órgão afetado, além de indiretamente se referir à origem das mesmas como consequência do funcionamento psíquico do sujeito. Ocorre que as neuroses de órgão aludidas por Ferenczi se refeririam a doenças orgânicas que procederiam de alguma desordem na sexualidade adulta. E é neste ponto, portanto, que podemos estabelecer uma íntima relação entre suas formulações e o modelo teórico das neuroses atuais.

Dentre as neuroses de órgão, o autor destaca como exemplo doenças respiratórias e cardíacas, as quais poderiam trazer consigo, atrelado ao seu surgimento, algo de ordem simbólica. Aqui, então, percebemos que Ferenczi também mantém, fundamentalmente, seus pontos de vista apresentados anteriormente ao defender, em As patoneuroses, que o adoecimento de um órgão se ligaria a um sobreinvestimento libidinal - ou “erotização”, relacionado à potencial obtenção de prazer - que viria a ocasionar sua disfunção. O autor, inclusive, vai sustentar que é somente nas neuroses de órgão que “esse funcionamento erótico ou lúdico de um órgão pode adquirir uma importância excessiva, a ponto de perturbar sua atividade útil propriamente dita” (FERENCZI, 1926/2012FERENCZI, S. As neuroses de órgão e seu tratamento (1926). São Paulo: WMF Martins Fontes , 2012. (Obras completas. Psicanálise, 3)., p. 417).

Ferenczi ainda apontaria para as possibilidades de tratamento referentes às neuroses de órgão. Nesse sentido, afirma, em um primeiro momento, que, em parte delas, e justamente por relacionarem-se à sexualidade adulta, intervenções que visem o que denomina “higiene sexual” e se voltem à tentativa de superar obstáculos que se colocam diante do desenvolvimento normal da sexualidade já poderiam mostrar-se eficazes. Mas Ferenczi não realiza uma leitura tão simplista: salienta que existem outros processos psíquicos, além destes físicos, que se relacionam com o adoecimento por perturbarem a sexualidade e que também mereceriam grande atenção.

Ao prosseguir nas explanações acerca da prática clínica, o autor reafirma que o curso das doenças orgânicas tende a ser afetado, positiva ou negativamente, por influências psíquicas, e relaciona esse tipo de averiguação ao recorte do tratamento que se refere ao fenômeno da transferência e, principalmente, à sugestionabilidade, ambos inerentes à relação terapêutica. Ferenczi menciona os êxitos obtidos pela Psicanálise no que tange ao tratamento das doenças orgânicas e defende que estes se devem ao restabelecimento da harmonia da vida afetiva e sexual do paciente, fazendo uso das forças provenientes “da energia sexual, como se a autoconservação, em caso de perigo muito grave (doença), tivesse de recorrer à conservação da espécie” (FERENCZI, 1926/2012FERENCZI, S. As neuroses de órgão e seu tratamento (1926). São Paulo: WMF Martins Fontes , 2012. (Obras completas. Psicanálise, 3)., p. 419).

Portanto, mesmo que em apenas poucos textos tenha abordado de uma forma direta os aspectos psíquicos das doenças orgânicas, Ferenczi acaba por ter grande influência nos progressos ulteriores concernentes ao assunto e, principalmente, no que se refere às suas propostas de reformulações relativas à técnica psicanalítica. Afinal, sustenta que esta, de modo geral, deveria ser compreendida como “elástica” e flexível, capaz de se ajustar de acordo com o caso, com a problemática e com a relação estabelecida entre o analista e o paciente, baseada na compreensão empática da situação, por parte do primeiro, e no uso do tato e do “sentir com” (FERENCZI, 1928/2012FERENCZI, S. As neuroses de órgão e seu tratamento (1926). São Paulo: WMF Martins Fontes , 2012. (Obras completas. Psicanálise, 3).). De um ponto de vista teórico, ainda viriam a complementar as propostas do psicanalista húngaro seus últimos textos que se debruçam sobre a análise de pacientes “difíceis”, priorizam as relações objetais arcaicas e propõem uma compreensão estendida acerca do trauma em um período precoce de desenvolvimento. Estes trabalhos ferenczianos, inclusive, viriam a servir como base para as formulações de outros autores no campo da Psicossomática Psicanalítica, ainda que tal fato, muitas vezes, não seja devidamente reconhecido.

Apenas a título de ilustração, julgamos pertinente esclarecer que, conforme Aisemberg (2010AISEMBERG, E. R. Psychosomatic conditions in contemporary psychoanalysis. In: AISENSTEIN, M.; AISEMBERG, E. R. (orgs.). Psychosomatics today: a psychoanalytic perspective. London: Karnac, 2010.), a obra Medicina psicossomática: seus princípios e aplicações, do também psicanalista húngaro Franz Alexander (1891-1964), pode ser apontada como o marco inaugural da Psicossomática Psicanalítica, ainda que tenha estabelecido princípios em relação aos quais outros autores, sobretudo aqueles associados à Escola Psicossomática de Paris, tenham se distanciado posteriormente. Publicada originalmente em 1950, cerca mais de duas décadas depois do texto As neuroses de órgão e seu tratamento, tal obra consolida o termo “neurose vegetativa” para nomear condições clínicas em que as funções corporais seriam desequilibradas devido à estimulação ou inibição crônicas de certas respostas fisiológicas disparadas por tensões emocionais (ALEXANDER, 1950/1989ALEXANDER, F. Medicina psicossomática: seus princípios e aplicações (1950). Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.). Ou seja, as referidas condições seriam determinadas pelo sistema nervoso autônomo, o qual não está relacionado diretamente aos processos de ideação, sendo que, justamente por essa razão, haveria uma diferença fundamental entre as mesmas e a histeria. A correspondência entre as noções de neurose de órgão e neurose vegetativa, portanto, é evidente, muito embora a segunda tenha atingido maior difusão do que a primeira.

Considerações finais

O intuito principal do presente estudo, tomando como ponto de partida um recorte contextual das produções psicanalíticas no começo do século passado, foi analisar alguns escritos de Ferenczi dedicados à interface mente-corpo e aos aspectos psíquicos das doenças orgânicas. É possível inferir que esta produção intelectual do autor acaba por servir como disparadora de questionamentos potencialmente progressistas no cerne do movimento psicanalítico e, ainda, como aporte à expansão da teoria e da técnica psicanalítica. Para tanto, fez-se necessário explorarmos também a relação de Ferenczi com Groddeck, a influência e inspiração deste último na consolidação dos escritos ulteriores do psicanalista húngaro e, ainda, delinearmos uma compreensão contextual dos avanços e propostas psicanalíticos e do desenvolvimento teórico-conceitual freudiano até então. Salientamos que Ferenczi recorre, de início, ao modelo teórico proposto por Freud para compreensão da histeria, na tentativa de estabelecer a origem de neuroses resultantes de intervenções cirúrgicas ou problemas orgânicos, as denominadas patoneuroses. Mas, posteriormente, Ferenczi alinha suas formulações àquelas estabelecidas por Freud no que se refere às neuroses atuais, por preconizar a existência de uma relação direta entre a eclosão de determinadas doenças orgânicas - enquadradas como neuroses de órgão - e a vivência de perturbações na esfera da sexualidade adulta. Dessa forma, sustentamos que as publicações de Ferenczi forneceram subsídios de grande relevância para aos progressos posteriores no campo da Psicossomática Psicanalítica.

Referências

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    Apoio: CAPES.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2015
  • Aceito
    03 Out 2015
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