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NOVOS PASSOS NA TESSITURA DAS REFLEXÕES PSICANALÍTICAS SOBRE AS SEXUALIDADES DE NOSSO TEMPO

Corpos, sexualidades, diversidade, organização deSilvia Leonor, Alonso; Danielle Melanie, Breyton; Helena M.F.M., Albuquerque; Luciana, Cartocci. . São Paulo: Editora Escuta, 2016, 423 p.

O livro Corpos, sexualidades, diversidade constitui a terceira importante publicação resultante das reflexões produzidas em eventos organizados ao longo dos últimos vinte anos, pelo grupo de trabalho e pesquisa criado em 1997 no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em torno da temática O feminino e o imaginário cultural contemporâneo.

Vale assim sublinhar que, se o próprio livro se insere no contexto de uma longa e densa história de pesquisa desenvolvida pelo grupo desde a última virada de século, é também a abordagem histórica da temática em questão, a sua articulação com o tempo em que vivemos, que define o propósito do trabalho do grupo. A relevância histórica, a atualidade do livro, marca-se desta forma duplamente.

Ao longo de suas duas décadas de funcionamento, o grupo não perdeu o foco da leitura histórico-cultural de sua temática, ou ainda da inscrição de sua investigação no contexto contemporâneo. Constituindo-se, ao mesmo tempo, como base metodológica e objetivo da pesquisa, esta modalidade de leitura se evidencia não apenas nos significantes escolhidos pelo grupo para nomear-se como também nos títulos de suas duas primeiras jornadas (2001 e 2007), que deram, por sua vez, lugar às publicações que têm por título Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo (publicação de 2002, com reedição revisada em 2014) e Interlocuções sobre o feminino na clínica, na teoria, na cultura (2008). Já nos significantes que compõem o título desta última publicação, resultante também de sua última jornada - Corpos, sexualidades, diversidades (2015) - encontram-se as pistas de alguns importantes rumos tomados pelas pesquisas mais recentes do grupo sobre o feminino, assim como daquilo que lhe pareceu necessário não deixar de sustentar.

Após uma breve apresentação da história do grupo de trabalho, o livro é aberto com a conferência de abertura da Jornada - proferida pela coordenadora do grupo, Silvia Leonor Alonso -, e concluído com o debate de encerramento sobre o filme De gravata e unhas vermelhas - que contou com as participações da psicanalista e diretora do filme, Miriam Chnaiderman, da jornalista Bia Abramo e do músico e ensaísta José Miguel Wisnik. Vale destacar alguns aspectos levantados na conferência e no debate, pois eles nos dão algumas importantes indicações a respeito do fio que tece os diversos artigos que compõem o livro.

Alonso parte, em sua conferência, da frase de Freud, enunciada em 1932: “A psicanálise {...} não pretende descrever o que é a mulher {...} mas indagar como advém, como se desenvolve a partir da criança polimorfa”. Freud enfatiza aqui, observa a autora, não a essência, mas o processo; não a anatomia - o que se dá a perceber -, mas aquilo que esta não poderá apreender. Seguindo estas pistas, poderíamos dizer: não o ser, mas o devir. E, além disso, não a descrição do que se percebe, mas a indagação sobre o inapreensível.

Ao longo da conferência, Alonso destaca duas noções fundamentais - o gênero e a alteridade - que marcaram o pensamento freudiano no decorrer de suas indagações sobre o inapreensível do feminino e da diferença sexual. Sublinha que a noção e as questões de gênero já tinham destaque nas formulações freudianas antes mesmo de John Money, em 1955, ter feito do gênero um conceito - construto social e subjetivo do binômio masculino/feminino distinto do sexo biológico, dado naturalmente (macho/fêmea) - e de Stoller, em 1968, ter introduzido o conceito no campo psicanalítico. Nos últimos anos, os estudos de gênero transformaram esta categoria no principal expoente das pesquisas sobre as sexualidades. Aqui, entretanto, a definição do termo não se sustenta e, principalmente, não pretende sustentar as oposições sexo natural/gênero cultural e gênero feminino/gênero masculino. Ao contrário, trata-se de criticar ambos os binômios, evidenciando em que medida eles são historicamente construídos de modo a produzir, por um lado, a naturalização e legitimação de determinadas práticas sexuais e, por outro, a patologização e exclusão de determinadas outras. Colocando em causa ambos os binarismos, os estudos do gênero reconfiguram o cenário das sexualidades: nele não se encontra a diferença sexual; encontram-se, sim, e tão somente, as diversas construções performativas de gênero. E estas podem servir tanto a construir e fortalecer as diferenças binárias sexo/gênero e homem/mulher, naturalizando-os quanto a desconstrui-los e a trazer à tona, sob a diferença, a diversidade. Da mesma forma, nele não se encontram causas, mas tão somente efeitos. Eis alguns dos principais pivôs que animam os debates contemporâneos entre as reflexões psicanalíticas e os estudos de gênero e que colocam aos psicanalistas do nosso tempo o duplo desafio de não fechar os olhos às novas práticas e discursos que se constroem hoje no campo das sexualidades e de não esquecer as noções que determinam a sua especificidade. Eis o desafio do qual não foge o livro.

No debate sobre o filme, que encerra o livro, Visnik observa que, a seu ver, a sílaba que condensa o filme é “trans”, prefixo que exprime o significado de transição, travessia. “Trans” carrega também o sentido de “para além de”, como em “transbordar”: ir para além da borda. Assim, o filme aborda o que transborda, o que transita, atravessa. Eis o que caracteriza o campo do erótico. Eros é trans. Nesse sentido, é a abertura para os transbordamentos e as travessias “trans” que mais têm hoje a nos ensinar a respeito de Eros. Como observa também Visnik, esta abertura supõe a possibilidade de atravessarmos da lógica identitária e dicotômica para a lógica da diferença, onde algo pode ser e não ser ao mesmo tempo. Algumas respostas à indagação freudiana acerca do feminino, situado por ele próprio como devir inapreensível, parecem se apresentar hoje para a psicanálise através, sobretudo, das novas transexualidades. Tecer os fios entre o discurso psicanalítico, fundado na virada do século XX para o XXI, e as teorias de gênero recém esboçadas, dar lugar ao debate entre diferentes discursos teóricos (dentro da própria psicanálise e entre ela e outros discursos) assim como entre discursos teóricos e artísticos, refletir sobre as articulações entre sexo e gênero, abordar o transbordamento; eis algumas pistas que o livro Corpos, sexualidades, diversidade nos aponta para podermos, em meio ao trânsito, reencontrar a psicanálise em seu lugar por excelência, o lugar erótico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2016
  • Aceito
    05 Abr 2017
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