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O INIMIGO NOSSO DE CADA DIA: UMA INTERLOCUÇÃO ENTRE PSICANÁLISE E DIREITO

Our daily enemy: a dialogue between psychoanalysis and law.

Resumo:

O artigo estabelece uma interlocução entre a psicanálise e o direito, tomando como recorte as teorizações freudianas acerca da segregação, pautada pela agressividade dirigida ao próximo e, também, da relação entre direito e violência, buscando articulá-las com a doutrina do direito penal do inimigo, formalizada pelo jurista alemão Gunther Jakobs. Para abordar essa temática e mostrar sua pertinência, os autores discutem as megaoperações policiais realizadas recentemente nas favelas do Rio de Janeiro. Depoimentos recolhidos a partir de uma pesquisa documental permitem afirmar que essa prática vem se revelando não apenas segregacionista, mas francamente intolerante e criminalizadora da pobreza.

Palavras-chave:
Sigmund Freud; Gunther Jakobs; segregação; direito penal do inimigo; laço social

Abstract:

This paper establishes a dialogue between psychoanalysis and law, taking as subject Freudian theories about segregation, characterized by the aggression directed to the neighbor, and also, the relations between law and violence, aiming to articulate them with the criminal law of the enemy’s doctrine, formalized by the German jurist Gunther Jakobs. In order to address this theme and show its relevance, the authors discuss the police mega-operations recently carried out in the slums of Rio de Janeiro. Testimonies collected from data research allow us to state that this practice has been revealing itself not just segregational, but frankly intolerant and criminalising of poverty.

Keywords:
Sigmund Freud; Gunther Jakobs; segregation; criminal law of the enemy; social bond

O tema aqui abordado favorece a interlocução entre a psicanálise e o direito, tomando como recorte uma situação regional específica, marcada pela violência. Não se pretende, contudo, esgotar as múltiplas possibilidades de articulação que a referida interlocução proporciona, ou mesmo subestimar a complexidade envolvida em uma leitura que coloca em causa as relações entre direito e violência. Com a abordagem que se propõe, privilegia-se, em atualidade que tanto questiona a psicanálise, a vivacidade das formalizações freudianas repercutindo no dia a dia de cada cidadão e os sujeitos implicados em sua realidade social.

Freud costumava utilizar a parábola schopenhaueriana dos porcos-espinhos para pensar os paradoxos inerentes ao laço social entre humanos, pautados por afetos de aversão e hostilidade. Em dia muito frio, porcos-espinhos buscaram se aconchegar para se esquentarem mutuamente e não morrerem de frio, mas logo sentiram os espinhos uns dos outros, fazendo-os recuarem. E esse movimento se repetia a cada necessidade de aquecimento, impelindo-os de um sofrimento ao outro, até acharem uma “distância média que lhes permitisse suportar o fato da melhor maneira” (FREUD, 1921FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921) São Paulo: Cia. das Letras, 2011. (Obras completas, 15)./2011, p. 56).

Em seu texto O mal-estar na civilização (1930/2010), Freud retoma essas reflexões reafirmando o pressuposto axiomático de que a disposição à agressividade é constitutiva do ser humano, e que o laço social só se constitui a partir de algo de renúncia a ela. Ele coloca sob escrutínio crítico o mandamento judaico-cristão que ordena amar o próximo como a si mesmo, convidando o leitor a refletir sobre o mesmo, como se o estivesse ouvindo pela primeira vez, de modo a ressaltar seu caráter de absurdo. A partir disso, o autor elenca uma série de objeções com relação ao amor incondicional ao próximo. Com efeito, como é possível direcionar meu amor a alguém que me é indiferente? Ou pior, como é possível amar alguém a quem eu suponho uma propensão às mais torpes crueldades? Afinal, o próximo não é simplesmente um desconhecido, mas um estranho sob suspeita, que não apenas não é digno do meu amor. Antes disso, dele devo esperar as piores ofensas: a humilhação, a calúnia, a zombaria, a exploração, a violação, a tortura e, eventualmente, a morte. (FREUD, 1930FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930) São Paulo: Cia. das Letras, 2010. (Obras completas, 18)./2010).

Para Freud, o amor é sempre condicional, sustentando-se nas coordenadas estabelecidas a partir do narcisismo. O que supõe, por exemplo, amar alguém se, “(...) em importantes aspectos semelha tanto a mim que posso amar a mim mesmo nele; ele o merece, se é tão mais perfeito do que eu que posso amar nele o meu ideal de mim” (ibidem, p. 74).

Há que se diferenciar, portanto, o semelhante, que me é familiar e no qual vejo minha própria imagem refletida, do próximo, que é potencialmente hostil. Em torno do primeiro, estabelecem-se as identificações que comandam as relações amorosas e o laço social; em torno do segundo, não há nada além de um vazio irrepresentável habitado pela pulsão de morte, gozo maligno e ameaçador.

Nem sempre, no entanto, os limiares que separam o próximo do semelhante são claramente distintos. Atesta-o um termo alemão sempre evocado por Freud, unheimlich, que designa a um só tempo o estranho e o familiar. Essa ambivalência, encravada na própria raiz da palavra, determina diferentes registros de alteridade que governam formas diversas de laço que os sujeitos tecem ao longo da vida.

Mesmo um laço pautado pelo amor incondicional, como é o caso daquele proposto pela religião cristã, não está isento de agressividade. E, ainda que ela seja reconhecida como uma religião do amor,

(...) tem de ser dura e sem amor para com aqueles que não pertencem a ela. No fundo, toda religião é uma religião de amor para aqueles que a abraçam, e tende à crueldade e à intolerância para com os não seguidores. (FREUD, 1921FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921) São Paulo: Cia. das Letras, 2011. (Obras completas, 15)./2011, p. 54)

A SEGREGAÇÃO E A MISÉRIA PSICOLÓGICA DA MASSA COMO REVERSO DOS IDEAIS DA ÉPOCA

O que precipita, a partir dessas reflexões, é a problemática da segregação, referida por Freud (1930/2010, p. 80) com a designação de narcisismo das pequenas diferenças. Ele considera que não é fácil, para os homens, renunciar à sua vocação pela agressividade; sentem-se mal ao fazê-lo, e é considerável a vantagem vivida por um grupamento cultural menor, ao permitir que ela escape na hostilização dos que não lhe pertencem. Assim sendo, o amor pode entrelaçar grande número de pessoas, contanto que sobrem aqueles a quem dirigir e exteriorizar a agressividade.

Vê-se, dessa forma, que a psicanálise destaca que o horror à diferença constitui característica estrutural das formações grupais. Elas acontecem em torno daquilo que estabelece e confirma suas identidades, opondo-se de forma violenta e intolerante contra aquilo que as contestam. Não é de outra maneira que o grupo produz a insígnia de sua própria identidade: “diferenciando-se e defendendo-se dessa alteridade, eliminando as diferenças internas, fabricando uma unidade fictícia com o objetivo de perpetuar sua dominação real” (FUKS, 2003FUKS, B. Freud; & a cultura. Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (Coleção Passo-a-passo, 19)., p. 45).

Mesmo que um determinado regime político seja bem sucedido na tarefa de regular a satisfação pulsional de seus membros, por meio da necessária segregação e hostilização dos componentes indesejáveis, nada garante que o laço social esteja imune a outros perigos. E daí Freud destaca a temida condição que nomeou como “miséria psicológica da massa”. Essa condição psicológica é caracterizada por uma degradação do vínculo diferenciador estabelecido com o líder, cuja contrapartida é o reforço das identificações horizontais estabelecidas com os semelhantes, e o repúdio ainda mais radical da diferença. Diz ele:

Tal perigo ameaça sobretudo quando a ligação social é estabelecida principalmente pela identificação dos membros entre si, e as individualidades que podem liderar não adquirem a importância que lhes deveria caber na formação da massa. O estado de civilização na América de hoje daria uma boa oportunidade para o estudo desse dano cultural que tememos. (FREUD, 1930FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930) São Paulo: Cia. das Letras, 2010. (Obras completas, 18)./2010, p. 83)

É revelador que, ao invés de mencionar algum dos regimes totalitários em ascensão na época, verdadeiras máquinas homogeneizadoras alimentadas pelo ódio e pela intolerância, Freud tenha evocado justamente os Estados Unidos, uma nação democrática marcada pela abundância e prosperidade, considerada o maior símbolo do capitalismo emergente. A miséria psicológica da massa não é, portanto, incompatível com o capitalismo democrático liberal, e assinala um problema político cujo contorno é ainda mais nítido na atualidade, regida pelo capitalismo globalizado: o declínio dos semblantes de autoridade. Essa questão foi objeto de reflexão por parte de Freud, em uma troca de correspondência com o físico alemão Albert Einstein, intitulada “Por que a guerra?”. Ali ele afirma:

A comunidade precisa ser mantida de forma permanente, precisa se organizar, criar preceitos que previnam as temidas rebeliões, estabelecer órgãos que velem pela obediência aos preceitos - às leis - e cuidem da execução dos atos de violência legítimos. (1932/2010, p. 421)

Quando a guerra e a violência ameaçam a ruptura do laço social, há muitas questões que constituem fonte de permanente preocupação. Conforme considera Freud (1932FREUD, S. Por que a guerra?”[Carta a Einstein](1932) São Paulo: Cia. das Letras , 2010. (Obras completas, 18)./2010), o abuso de autoridade é uma delas, podendo ser percebida na impostura de certos líderes que pretendem se colocar acima das leis vigentes, fazendo-as declinar para o domínio da violência. Em momentos de crise, deve-se contar com líderes de posicionamento firme e decidido, imunes à intimidação, que possam dirigir as massas sem instilar-lhes o pânico ou exortar-lhes ao sacrifício, evitando assim guerras desnecessárias. Tanto pior, assinala Freud (idem) com relação ao contexto de sua época, que os ideais nacionais que vigoram entre os povos têm efeitos contrários.

Nas sociedades ocidentais contemporâneas, conforme afirma Hannah Arendt, o efeito mais proeminente do declínio da autoridade é o domínio da violência bruta, que não se manifesta apenas em estados francamente totalitários ou ditaduras sanguinárias. Nas sociedades liberais e democráticas, o totalitarismo se manifesta de forma mais sutil, instaurando uma ordem hegemônica pautada pelas modernas tecnologias normalizadoras de gestão burocrática, que corrói o laço social e sua dimensão política. Ainda segundo essa filósofa, “a burocracia instaura um domínio do anonimato, estando na base da violência: quanto maior é a burocratização da vida pública, maior será a atração pela violência” (ARENDT, 1969ARENDT, H. Sobre a violência (1969). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011./2011, p. 101).

Essas indicações são pertinentes na atualidade, quando se constata que países com sólida tradição democrática e alegados defensores dos direitos humanos vêm, cada vez mais, endurecendo suas políticas de segurança à custa da restrição das liberdades individuais, mediante procedimentos de guerra e medidas extrajudiciais de emergência (ZAFFARONI, 2007ZAFFARONI, E. R. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.; AGAMBEN, 2007AGAMBEN, G. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2007.). Nesse contexto, os cidadãos são privados das garantias constitucionais, previstas em lei, e expostos à arbitrariedade e violência por parte do Estado.

A POLÍTICA DE SEGURANÇA ANTITERRORISTA E A GESTÃO DE VIDAS MATÁVEIS

A partir de uma pesquisa documental, realizada para compor tese doutoral1 1 CRUZ, A. D. G. (2016). Os paradoxos dos Nomes-do-Pai como fundamento da razão sacrificial: segregação e extermínio de vidas matáveis. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia - PUC Minas. Belo Horizonte. , reuniram-se declarações prestadas por algumas autoridades de Estado e testemunhos de indivíduos residentes em favelas invadidas pela polícia, na cidade do Rio de Janeiro, durante as chamadas megaoperações policiais2 2 Intervenção estatal pautada na incursão de tropas policiais e militares em favelas. Além das tropas, utilizam-se também aparatos militares de guerra, como helicópteros e tanques blindados, entre outros armamentos de combate, como fuzis e metralhadoras. . Por meio delas, pode-se constatar a pertinência das elaborações freudianas na atualidade, ao colocar em pauta algumas questões relativas às políticas de segurança pública adotadas no Brasil e, também, nos Estados Unidos. Ver-se-á que, nesse contexto, a construção do inimigo desempenha uma função fundamental.

Após os atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque, o então presidente americano George Bush fez um pronunciamento à nação, declarando guerra ao terror: “Cada nação, em cada região, tem agora uma decisão a tomar. Ou estão conosco, ou estão com os terroristas”3 3 No original: “Every nation, in every region, now has a decision to make. Either you are with us, or you are with the terrorists”. (BUSH, 2001BUSH, G. Address to a Joint Session of Congress and the American People. 20 ago. 2001. Disponível em: <Disponível em: http://georgewbush-whitehouse.archives.gov/news/releases/2001/09/20010920-8.html >. Acesso em: 14 mai. 2015.
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, tradução nossa). Ou seja, o inimigo não é apenas o terrorista, mas, também qualquer um que se oponha à política nacional de segurança americana. Dizendo de outra maneira, a oposição a essa política é, por princípio, considerada um ato de terrorismo.

Para combater um inimigo cujo estatuto é incerto, George Bush promulgou a Military Order (THE WHITE HOUSE, 2001THE WHITE HOUSE, U.S.A. Presidential Military Order: Detention, Treatment, and Trial of Certain Non-Citizens in the War Against Terrorism. 13 nov. 2001. Disponível em:<Disponível em:http://www.fas.org/irp/offdocs/eo/mo-111301.htm >. Acesso em: 27 jul. 2015.
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)4 4 Ordem militar de 13/11/2001. Detenção, tratamento e julgamento de certos não-cidadãos na guerra contra o terrorismo. O termo “não-cidadãos” se refere a indivíduos envolvidos com atividades terroristas. , que ordena a detenção por tempo indeterminado de todo e qualquer suspeito de envolvimento com o terrorismo. A partir dessa ordem, qualquer cidadão incluído nessa categoria torna-se juridicamente inominável: não é passível de reconhecimento como autor de um delito (nesse caso, estaria protegido pelos direitos civis), nem como prisioneiro de guerra (nessa condição, seria protegido pela Convenção de Genebra).

A concessão de poderes extraordinários ao poder Executivo autoriza e legitima não apenas detenção de suspeitos por tempo indeterminado, mas, também, sua imediata eliminação em qualquer parte do mundo, sem que isso caracterize um crime passível de sanção penal. Percebe-se, dessa forma, que os atentados de 11 de setembro de 2001 possibilitaram a nomeação do terrorista como novo inimigo, destinado a ocupar diante dos Estados Unidos o lugar deixado vazio pela derrocada da antiga União Soviética. Na guerra ao terror, o inimigo não tem rosto. Ele poderia ser qualquer um, sempre próximo, à espreita do próximo ataque.

A emergência desse novo inimigo rapidamente se disseminou pelo mundo, e seus efeitos podem ser detectados no contexto da realidade brasileira. Loic Wacquant (2003WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003.), sociólogo francês, afirma que a política antiterrorista, adotada pelos Estados Unidos após os atentados de 2001, tornou-se mais um produto do capitalismo globalizado exportado para outros países, a exemplo do Brasil. Essa política é caracterizada pela

(...) retórica militar da “guerra” ao crime e da “reconquista” do espaço público, que assimila os delinquentes (reais ou imaginários), sem-teto, mendigos e outros marginais a invasores estrangeiros. (WACQUANT, 1999WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999., p. 19)

Isso se torna patente nos discursos do presidente da República brasileira e das autoridades de Estado encarregadas das políticas de segurança em território nacional. Em seu pronunciamento à nação, em 2007, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que a onda de ataques violentos que ocorreram no Rio de Janeiro, perpetrados pelo narcotráfico como represália pela expansão das milícias em seus territórios, seria considerada ato terrorista: “Essa barbaridade que aconteceu no Rio de Janeiro não pode ser tratada como crime comum. Isso é terrorismo e tem que ser combatido com a política forte e mão forte do Estado brasileiro” (SILVA, 2007SILVA, L. I. L. Pronunciamento à nação do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de posse. Palácio do Planalto, 01 jan. 2007. Disponível em:<Disponível em:http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/luiz-inacio-lula-da-silva/discursos-de-posse/discurso-de-posse-2o-mandato >. Acesso em: 27 jul. 2015.
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).

Em consonância com o discurso do presidente, Sérgio Cabral, então governador do Rio de Janeiro, adotou um discurso belicista, decretando guerra ao tráfico de drogas em nome da segurança pública: “O nosso governo vai ganhar a guerra contra os criminosos. Nós vamos dar segurança para essa população e trabalhar de mãos dadas com o governo federal” (BAIMA; GRANCHI, 2007BAIMA, C.; GRANCHI, R. Cabral: Vamos ganhar a guerra contra criminosos. Portal G1, 01 jan. 2007. Disponível em:<Disponível em:http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,AA1405126-5606,00.html >. Acesso em: 18 mai. 2015.
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).

Ao nomear seus inimigos internos e declarar-lhes guerra, as autoridades de Estado cobram da sociedade um posicionamento. Na mesma época, o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, declarou:

O Rio chegou a um ponto que, infelizmente, exige sacrifícios. Sei que isso é difícil de aceitar, mas, para acabarmos com o poder de fogo dos bandidos, vidas vão ser dizimadas. (...) É uma guerra, e numa guerra há feridos e mortos. (...) Eu insisto em dizer que ela [a sociedade] tem de optar, definir de que lado está nessa guerra. (SOARES, 2007SOARES, R. Sem hipocrisia. Revista Veja, edição 2032, 31 out.2007. São Paulo: Abril, p. 11-15.)

Fica explicitado, dessa forma, que quem não está a favor da política de segurança adotada pelo Estado, está do lado do inimigo. Ao leitor atento, não passa despercebida a semelhança dessa declaração com a de George Bush, após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001BUSH, G. Address to a Joint Session of Congress and the American People. 20 ago. 2001. Disponível em: <Disponível em: http://georgewbush-whitehouse.archives.gov/news/releases/2001/09/20010920-8.html >. Acesso em: 14 mai. 2015.
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.

Através de tais declarações, as autoridades de Estado pretendiam justificar e legitimar a política de segurança adotada pelo governo federal, que consistia basicamente na disseminação de megaoperações policiais em favelas do Rio de Janeiro. Durante essas operações, conhecidas pela brutalidade e violência, os agentes de segurança não faziam distinção entre criminosos procurados pela justiça e moradores dos locais invadidos. O testemunho desses moradores foi muito importante para avaliar o impacto das operações policiais: eles denunciam roubos, torturas, extorsões, ameaças verbais e execuções sumárias, entre outras ações criminosas cometidas pelos agentes do Estado. Muitos deles temiam encaminhar suas denúncias aos órgãos competentes com o receio de represálias, não apenas por parte dos traficantes, mas também por parte dos agentes do Estado envolvidos com as milícias. Vale recordar que depoimentos, tais como os que são aqui apresentados, constituem transgressão à temida lei do silêncio, em vigor nas favelas dominadas pelo narcotráfico.

Em entrevista concedida à socióloga e pesquisadora Maria Helena Moreira Alves (2012ALVES, M. H. M. Vivendo no fogo cruzado: moradores de favela, traficantes de droga e violência policial no Rio de Janeiro. São Paulo: Unesp, 2012.), professores de uma escola localizada em área próxima ao Complexo do Alemão falaram do horror que tomava conta do local durante os confrontos armados. Segundo eles, a polícia invadia a escola e a utilizava como escudo durante esses confrontos: posicionados no telhado, os policiais trocavam tiros com os traficantes. Aparece em algumas falas, de acordo com Alves:

Eles [a Polícia Militar] não estão preocupados com as crianças aqui da escola. No pátio eles entram com o Caveirão5 5 Veículo blindado de combate utilizado pela força policial durante as megaoperações. e tudo. O Caveirão no tiroteio estaciona dentro do pátio, fechando a porta, e a gente tem de ir pedir para ele sair, para a gente fugir com as crianças.

A única forma de atuação do Estado aqui na comunidade é a guerra, o que vai permanecer enquanto tivermos essa ideia de, como diz o governador, que o Complexo [do Alemão] é um antro de marginais, é o “inimigo do Estado”. Me parece que é uma visão bem excludente, fascista mesmo, porque os pobres são todos inimigos e todos considerados bandidos. Então não importa se é na escola, se tem mil crianças lá dentro, porque todos são marginais. Você vê, é uma política completamente excludente, e a gente tem um tratamento puramente bélico, sem respeito algum. (ALVES, 2012ALVES, M. H. M. Vivendo no fogo cruzado: moradores de favela, traficantes de droga e violência policial no Rio de Janeiro. São Paulo: Unesp, 2012., p. 57-61)

Moradores, por sua vez, de acordo com Abreu, Liporoni e Jacob (2014ABREU, J. B.; LIPORONI, C.; JACOB, S. A mega-operação no complexo do alemão e seus reflexos. 2014. Disponível em:<Disponível em:http://www.uff.br/calese/banco_entrevista_operacao_alemao.htm >. Acesso em:18 mai. 2015.
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), denunciam que alguns policiais aproveitavam o momento das invasões para cometer uma série de irregularidades: “As coisas de valor que temos em casa, dinheiro, temos que esconder tudo, porque o PM [Policial Militar] pode entrar e levar. Acontece muito”. Segundo os moradores ouvidos por Alves (2012ALVES, M. H. M. Vivendo no fogo cruzado: moradores de favela, traficantes de droga e violência policial no Rio de Janeiro. São Paulo: Unesp, 2012., p. 158), a polícia estava cometendo muita arbitrariedade, agressão e violência, inclusive contra mulheres, idosos e crianças. Além disso, os policiais arrombavam as portas, entravam nas casas à força e efetuavam prisões irregularmente, simulando encontrar drogas.

Não é difícil afirmar, portanto, que essa abordagem policial ocorreu de forma claramente ilegal, desrespeitando direitos constitucionais fundamentais, como a inviolabilidade de domicílio. Constatou-se, também, que a presença ostensiva das forças invasoras acarretava uma cessão da liberdade de ir e vir, direito constitucional que os moradores desses locais já se habituaram a ver desrespeitado, com o toque de recolher imposto pelos traficantes locais. Durante o cerco policial, ninguém era autorizado a sair ou entrar na favela, para trabalhar, ir ao médico ou buscar os filhos na escola. Assim, Alves registra a fala de um morador: “Nós não temos mais direito de andar, de ir e vir, porque não tem mais direito não, não tem mais nada, a qualquer momento tem tiroteio, tem Caveirão, tem confronto” (ALVES, 2012ALVES, M. H. M. Vivendo no fogo cruzado: moradores de favela, traficantes de droga e violência policial no Rio de Janeiro. São Paulo: Unesp, 2012., p. 95).

Para os moradores, os abusos de autoridade cometidos durante as operações policiais podem ter consequências bem mais graves. Segundo Alves, dois deles dizem: “As pessoas tomam bala perdida aqui, morrem e são tidos como marginais”; “Lá dentro, para a polícia todo mundo é traficante. Não tem mais a distinção, não. Todo mundo para eles é bandido” (ibidem, p. 61-85).

Não havia, portanto, qualquer critério de diferenciação que permitisse distinguir o residente da localidade invadida do traficante procurado pela justiça: todos eram tratados como suspeitos de colaboração com o narcotráfico. Surge, assim, uma sucessão de categorias estigmatizantes aplicadas a esses sujeitos, que inviabilizam o reconhecimento do seu estatuto civil: “Se você não é bandido, para eles é um desocupado, vagabundo...” (ABREU et al., 2014ABREU, J. B.; LIPORONI, C.; JACOB, S. A mega-operação no complexo do alemão e seus reflexos. 2014. Disponível em:<Disponível em:http://www.uff.br/calese/banco_entrevista_operacao_alemao.htm >. Acesso em:18 mai. 2015.
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). Na ausência de critérios que permitiam designar de forma precisa o alvo das operações, a atuação policial se tornava imprevisível e arbitrária.

Ao proceder dessa forma, a polícia renega sua função investigativa, assumindo por princípio a premissa de que ninguém é inocente. Para aqueles que se detêm nesses depoimentos, e em reportagens de revistas e jornais de ampla circulação nacional que abordam esse assunto, não deixa de ser surpreendente uma mensagem subliminar, veiculando sub-repticiamente que o extermínio de inocentes é indigno e inaceitável, mas não o de bandidos e criminosos. Conforme afirma a psicóloga Cecília Coimbra (2001COIMBRA, C. Operação Rio: o mito das classes perigosas - um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Niterói: Oficina do autor, Intertexto, 2001.), essas práticas são amplamente aceitas, desde que aplicadas a certas categorias de marginalidade, como se pudessem ser justificadas por algum delito ou irregularidade cometida pela vítima.

Confirmada pelo adágio popular “bandido bom é bandido morto”, essa lógica é defendida abertamente pelo jornalismo popular e por alguns políticos, como o deputado estadual Túlio Isac (GO). Em uma declaração à rádio CBN Goiânia, o deputado prometia que “jogaria duro com bandido”, caso fosse eleito à prefeitura da capital:

Bandido bom, para mim, é bandido morto. Na minha opinião, eu não teria meio termo com eles. Não tem essa conversa de ficar achando que você tem que tratar o bandido como trata o cidadão. (ISAC, 2011ISAC, T. (2011). Bandido bom é bandido morto, diz deputado estadual de Goiás. O Globo, CBN Goiânia/TV Anhanguera, 06 dez 2011 Disponível em:<Disponível em:http://g1.globo.com/goias/noticia/2011/12/bandido-bom-e-bandido-morto-diz-deputado-estadual-de-goias.html >. Acesso em: 16 mai. 2015.
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)

A ampla popularidade desse ponto de vista pode ser constatada mediante breve consulta aos mais de 50 comentários adicionados por leitores na página do site G1, fonte para a obtenção dessa informação. Ali, há a existência de muitos comentários apoiando as opiniões do deputado e, inclusive, prometendo-lhe voto nas próximas eleições. As declarações de Túlio Isac são indicadores inequívocos da situação de indigência jurídica que caracteriza o estatuto civil de certos indivíduos, a quem são recusadas as garantias constitucionais próprias de um estado democrático de direito. Matá-los não constitui crime, pois sua morte é considerada um efeito inevitável decorrente da aplicação das medidas extraordinárias de segurança.

A partir dos testemunhos recolhidos, é evidente que a recente política de segurança adotada pelo governo do estado do Rio de Janeiro era, de fato, uma “política criminal com derramamento de sangue”, conforme os dizeres do jurista Nilo Batista (1997BATISTA, N. Politica criminal com derramamento de sangue. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 20. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 129-146.). Para ele, essa política adota critérios que, apesar de serem silenciados pelo discurso jurídico, são amplamente aceitos socialmente. Esse é o caso das frequentes execuções policiais, sempre acobertadas sob pretextos diversos: um confronto entre quadrilhas rivais, um acerto de contas entre traficantes, ou mesmo a legítima defesa do policial diante da reação do suspeito, o que era passível de enquadramento na categoria “auto de resistência”. Nesse último caso, o agente de segurança encontra respaldo legal para matar um suspeito que reaja à abordagem policial, sem que isso seja considerado um homicídio.

Segundo o relatório de Philip Alston (2008ALSTON, P. Relatório do Relator Especial de execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias. 2008. Disponível em:<Disponível em:http://www.abant.org.br/conteudo/000NOTICIAS/OutrasNoticias/portugues.PDF >. Acesso em: 17 jun. 2015.
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), relator especial de execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, dirigido ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, o recurso ao auto de resistência, que deveria valer apenas como medida extraordinária, tornou-se prática policial cotidiana. Dessa forma, esse recurso acabou servindo para acobertar a execução sumária de suspeitos rendidos ou desarmados, reforçando a impunidade dos agentes envolvidos nesses crimes.

Os meios de comunicação nacionais de ampla divulgação reverberaram com sensacionalismo o discurso belicista das autoridades de Estado, fazendo circular termos como guerra, ocupação, invasão, pacificação, retomada ou “reconquista de territórios”.

Em sua versão mais simplista, os meios de comunicação construíam uma narrativa segundo a qual essas comunidades estariam infestadas de criminosos e dominadas por bandidos bem armados, em contraste com o restante da sociedade, localizado na parte de baixo da cidade do Rio, que zelaria pelas leis. (LOUREIRO; TORRES; LEITE, 2010LOUREIRO, C.; TORRES, L.; LEITE, L. 'O Alemão era o coração do mal', afirma Beltrame. O Globo, RJTV. 28 nov. 2010. Disponível em: <Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/rio-contra-o-crime/noticia/2010/11/o-alemao-era-o-coracao-do-mal-afirma-beltrame.html >. Acesso em:27 mai. 2015.
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)

Isso repercutiu junto à opinião pública, reforçando a segregação e a estigmatização dos habitantes das favelas. Para legitimar o uso da violência policial e justificar o elevado índice de letalidade durante as megaoperações, as autoridades responsáveis pela elaboração e implementação das políticas de segurança pública, amparadas pelos meios de comunicação em massa, recorreram ao argumento de que o Rio de Janeiro encontrava-se em estado de guerra: “no plano da racionalidade governamental do estado do Rio de Janeiro, atualmente impera o uso oficial de um discurso que prega a necessidade de proteção da sociedade em situação de guerra.” (JUSTIÇA GLOBAL, 2007JUSTIÇA GLOBAL. Relatório da sociedade civil para o relator especial das Nações Unidas para execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: <Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/relatorios/a_pdf/r_soc_civil_br_relator_onu_philip_alston.pdf >. Acesso em: 14 mai. 2015.
http://www.dhnet.org.br/dados/relatorios...
, p. 2).

E, baseado nesse argumento, o Estado pôde legitimar o uso das forças militares para intervir no problema da criminalidade e do tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro. Ao tomar a guerra ao tráfico como justificativa,

(...) tem-se empreendido em larga escala a criminalização das populações excluídas que habitam as favelas, identificadas como principal foco do tráfico de drogas e difusoras da violência. (RIBEIRO; DIAS; CARVALHO, 2008RIBEIRO, C.; DIAS, R.; CARVALHO, S. Discursos e práticas na construção de uma política de segurança: O caso do governo Sérgio Cabral Filho (2007-2008). Segurança, tráfico e milícia no Rio de Janeiro. Justiça Global (org). Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2008. Disponível em: <Disponível em: http://www.boell-latinoamerica.org/downloads/Relatorio_Milicias_completo.pdf >. Acesso em: 27 jul. 2015.
http://www.boell-latinoamerica.org/downl...
, p. 08).

Dessa forma, ao nomear e combater seus inimigos, a política de segurança adotada pelo governo federal desconsidera a complexidade do problema do narcotráfico, que se estende para além das fronteiras das favelas, envolvendo a participação ativa de segmentos privilegiados da sociedade.

Conforme adverte o filósofo italiano Giorgio Agamben (2002AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002.), a política antiterrorismo, tão comum hoje em dia, implica um estado de emergência permanente, no qual os direitos constitucionais do cidadão são suspensos em nome da segurança nacional. As medidas de segurança decretadas pelas autoridades de Estado excedem as linhas do texto da legislação penal, própria do Estado de Direito, colocando em jogo elementos contraditórios com os seus princípios. Teoricamente, o estado de exceção é um recurso extraordinário, acionado em situações emergenciais que colocam o Estado em perigo. Mas, na atualidade, alerta Agamben, esse recurso extraordinário vem se tornando cada vez mais uma técnica ordinária de governo: “a declaração do estado de exceção é progressivamente substituída por uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo” (AGAMBEN, 2007AGAMBEN, G. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 27).

Ao recorrer às elaborações do filósofo político alemão Carl Schmitt (1922SCHMITT, C. Teologia Politica (1922). Madrid: Trotta, 2009./2009), Agamben subverte toda a tradição do pensamento político inaugurada por Thomas Hobbes, propondo que há uma ordem no estado de exceção, ainda que não se trate de uma ordem propriamente jurídica. Vê-se, assim, que a anomia provocada pela suspensão da lei não implica em caos ou desordem, corolários da temida guerra de todos contra todos, referida no Leviatã hobbesiano, mas, paradoxalmente, ela acarreta um recrudescimento da ordem veiculada sob a forma de medidas emergenciais de segurança, próprias do estado de exceção.

Dessa forma, há que se considerar, concordando com Agamben, que a suspensão da lei não implica em sua abolição. E, no contexto aqui abordado, observa-se que essa suspensão se configura como uma guerra civil legal, declarada contra inimigos internos, que autoriza a eliminação “de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político” (AGAMBEN, 2007AGAMBEN, G. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2007., p.13).

Nessas condições, o paradigma do estado de exceção culmina na despolitização do cidadão, reduzindo-o à vida matável do homo sacer. Na terminologia de Agamben, homo sacer é um termo que designa uma forma de existência absolutamente supérflua, marcada pela anomia jurídica. É lícito, e mesmo recomendável, exterminá-la sem que isso constitua crime.

A CONSTRUÇÃO DO INIMIGO E SUA LEGITIMAÇÃO JURÍDICA

Conforme afirma o jurista argentino Eugênio Raúl Zaffaroni (2007ZAFFARONI, E. R. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007., p. 65), apesar de o terrorismo ter tornado viável a nomeação de um “inimigo crível”, ele é uma categoria juridicamente obscura, abarcando as mais diversas modalidades de ação criminosa, cujo grau de periculosidade pode variar bastante. A partir dela, foi possível encontrar a justificativa necessária para decretar um estado de exceção permanente em território americano, declarar uma guerra preventiva contra certos países árabes suspeitos de envolvimento com o terrorismo, e intensificar as políticas segregacionistas com relação aos imigrantes ou a qualquer outro indivíduo de “etnia suspeita”.

Nos discursos sobre segurança pública, mencionados anteriormente, pode-se perceber um dos princípios fundamentais do direito penal do inimigo: a impossibilidade de imputação penal relativa a atos considerados ameaçadores para a ordem estabelecida. Distingue-se, nesse sentido, o criminoso do terrorista. O primeiro, apesar de seu ato transgressor, não perde seu estatuto de pessoa e a garantia dos seus direitos constitucionais se mantém: corresponde-lhe a sanção penal por parte do Estado. O terrorista, no entanto, perde sua condição de pessoa e, no mesmo ato, é alijado de seus direitos constitucionais. A resposta que o Estado lhe reserva é a medida de segurança, definida por seu caráter exclusivamente físico, puramente contentor, com vistas a neutralizar um perigo que coloca em risco a ordem social estabelecida. Vale dizer que, quando aplicada, a medida de segurança não incide sobre delitos efetivamente cometidos, mas, à presumida periculosidade do sujeito em questão. É lícito, portanto, detê-lo por prazo indeterminado, ainda que não haja nenhuma prova que o incrimine. Em casos extremos, conforme o contexto que aqui se apresenta, não está fora de questão a possibilidade de declarar uma guerra para exterminar de vez a ameaça.

Ao propor a doutrina do direito penal do inimigo, o jurista alemão Gunther Jakobs (JAKOBS, 2007JAKOBS, G. Prólogo (2007b). In: JAKOBS, G.; MELIÁ, M. C. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 09-11.b) adverte que, quando um sistema normativo torna-se inoperante, ele carece de efetividade simbólica, desconectando-se da realidade social e tornado-se alheio a ela. Jakobs não desconhece as implicações de sua arriscada empreitada: sustentar teoricamente a necessidade de reconhecimento jurídico de certas práticas cuja legalidade é, no mínimo, duvidosa, mas, apesar disso, têm vigorado nas entrelinhas da legislação penal. Custou-lhe duras críticas a desconstrução da “cômoda ilusão” (JAKOBS, 2007bJAKOBS, G. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo (2007a). In: JAKOBS, G.; MELIÁ, M. C. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 19-50., p. 9) de que todos os cidadãos estão incluídos no laço social e em condições de pleno usufruto de seus direitos constitucionais.

Teoricamente, não é difícil distinguir o direito penal do cidadão do direito penal do inimigo. Segundo Jakobs, “o Direito penal do cidadão é o Direito de todos, o Direito penal do inimigo é daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra” (JAKOBS, 2007JAKOBS, G. Prólogo (2007b). In: JAKOBS, G.; MELIÁ, M. C. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 09-11.a, p. 30). O primeiro interpela o cidadão, mantendo a vigência da lei, enquanto o segundo excede o texto da lei para combater perigos. Deve-se considerar, no entanto, que essas duas modalidades de direito constituem dois polos ideais que dificilmente subsistiriam em estado puro, de forma claramente discernível. Na prática, elas se interpenetram, compondo “duas tendências opostas em um só contexto jurídico-penal” (ibidem, p. 21).

A partir desse ponto, a simplicidade da formalização teórica esbarra com a complexidade da realidade social.

A finalidade da polêmica, proposta de Jakobs, não é advogar a favor da doutrina do direito penal do inimigo, como poderia parecer à primeira vista, mas nomeá-la e legitimá-la, ainda que parcialmente, de modo a deter seu insidioso avanço sobre a legislação penal em vigor. Conforme ele próprio afirma,

Um Direito penal do inimigo, claramente delimitado, é menos perigoso, desde a perspectiva do Estado de Direito, que entrelaçar todo o Direito penal com fragmentos de regulações próprias do Direito penal do inimigo. (JAKOBS, 2007JAKOBS, G. Prólogo (2007b). In: JAKOBS, G.; MELIÁ, M. C. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 09-11.a, p. 49)

Apesar de concordar com Jakobs no tocante à necessidade de conter o avanço do autoritarismo no direito penal, e mesmo reconhecer a boa fé de sua proposta, Zaffaroni contesta energicamente a legitimação do direito penal do inimigo. Ele argumenta que considerar certos cidadãos, ou certas classes de cidadãos, apenas como parasitas ou seres daninhos, é um procedimento que só é compatível com o estado absoluto, expressando preocupação com as implicações que daí decorrem:

Qualquer pessoa que lê um jornal (...) vai se inteirando dos passos que o poder mundial toma rumo aos genocídios, ou seja, rumo ao aniquilamento total daqueles a quem considera seus inimigos. (ZAFFARONI, 2007ZAFFARONI, E. R. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007., p. 17)

Recair-se-ia, assim, no paradoxo de que, para preservar a democracia e o Estado de Direito seria preciso revogá-los, o que é apanágio do estado de exceção. Nesse sentido, conclui Zaffaroni, o direito penal do inimigo, proposto por Jakobs, “não só acaba por ser inviável, como tem também efeitos paradoxais inevitáveis: é o remédio que mata o paciente” (ibidem, p. 167).

Para o conhecedor do texto freudiano, não há surpresa diante dessa íntima proximidade entre direito e violência. Freud já a havia assinalado, ao afirmar, por exemplo, que “o direito da comunidade se torna expressão das desiguais relações de poder em seu interior”, uma vez que suas leis são elaboradas por grupos dominantes, guiados por seus próprios interesses, “reservando poucos direitos para os dominados” (FREUD, 1932FREUD, S. Por que a guerra?”[Carta a Einstein](1932) São Paulo: Cia. das Letras , 2010. (Obras completas, 18)./2010, p. 422). Em suas palavras,

O direito é o poder de uma comunidade. É ainda violência, pronta a se voltar contra todo indivíduo que a ela se oponha; trabalha com idênticos meios, persegue os mesmos fins. A diferença está apenas em que não é mais a violência de um só indivíduo que se impõe, mas da comunidade. (FREUD, 1932FREUD, S. Por que a guerra?”[Carta a Einstein](1932) São Paulo: Cia. das Letras , 2010. (Obras completas, 18)./2010, p. 421)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir estas reflexões, pode-se dizer que as tentativas de solução para o mal-estar na civilização acarretam, muitas vezes, um agravo dele. Ao se globalizar, a miséria psicológica da massa, expressão freudiana que se aplica ao fenômeno típico das sociedades capitalistas tecnocientíficas que padecem com o declínio da autoridade, provoca hoje seus estragos em países como o Brasil e os Estados Unidos. Essa indicação vai ao encontro das observações de Hannah Arendt (1969ARENDT, H. Sobre a violência (1969). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011./2011), que advertem que o lugar da autoridade abalada é ocupado por expedientes burocráticos e medidas extrajudiciais de ocasião, que nunca se exercem sem violência.

No contexto da realidade brasileira, constatou-se que a política de segurança pública, adotada pelo estado do Rio de Janeiro, não ficou imune à criminalidade e à violência que pretende combater, mas as reforça e legitima. O que vale ser pensado para outros estados brasileiros. A flagrante ilegalidade dos procedimentos policiais e administrativos envolvidos nessa política assinala o declínio dos semblantes de autoridade e a inoperância da lei, enquanto instância reguladora do laço social e dos conflitos que daí emergem. Evidenciou-se, ainda, que essa política se tornou agenciadora de práticas autoritárias e segregacionistas, incompatíveis com o Estado de Direito, pois não respeita os direitos e a dignidade de certa classe de cidadãos.

A teorização freudiana acerca da questão do próximo permite esclarecer que ele é um elemento integrante e necessário do laço social, pois, ao polarizar o ódio e a intolerância, próprios da constituição das massas, viabiliza sua canalização fora delas. Em regimes políticos homogeneizantes e de índole totalitária, marcados pelo declínio da autoridade e pela miséria psicológica da massa, os excluídos dos ideais sociais são, também, excluídos da lei. Ao serem privados de seus direitos constitucionais, eles são transformados em inimigos a ser combatidos e, eventualmente, exterminados.

Parece, portanto, sábio o dizer de Nietzsche (1882NIETZSCHE, F. A gaia ciência (1882). São Paulo: Cia. das Letras, 2005./2005, p. 86), de que é erro grave estudar as leis penais de um povo pensando que elas são expressão de seu caráter. Na verdade, elas não revelam o que um povo é, mas o que lhes parece estranho, estrangeiro, singular, extraordinário. Referem-se às exceções e à moralidade dos costumes, com as penas mais duras atingindo “o que está conforme aos costumes do povo vizinho”. E naquilo que diz respeito à temática da construção do inimigo, poder-se-ia dizer, com Lacan: “Tu és aquele a quem odeias” (LACAN, 1957LACAN, J. As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O Seminário, 5).-58/1999, p. 504).

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  • 1
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  • 2
    Intervenção estatal pautada na incursão de tropas policiais e militares em favelas. Além das tropas, utilizam-se também aparatos militares de guerra, como helicópteros e tanques blindados, entre outros armamentos de combate, como fuzis e metralhadoras.
  • 3
    No original: “Every nation, in every region, now has a decision to make. Either you are with us, or you are with the terrorists”.
  • 4
    Ordem militar de 13/11/2001. Detenção, tratamento e julgamento de certos não-cidadãos na guerra contra o terrorismo. O termo “não-cidadãos” se refere a indivíduos envolvidos com atividades terroristas.
  • 5
    Veículo blindado de combate utilizado pela força policial durante as megaoperações.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2015
  • Aceito
    13 Abr 2016
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