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O CONCEITO, O DESEJO E A ÉTICA: O DESEJO COMO MÓBIL DO CONCEITO FUNDAMENTAL

The concept, the desire and ethics - desire as the source of the fundamental concept.

Resumo:

O presente artigo propõe traçar a relação não explícita entre a fundação do campo conceitual da psicanálise através do estabelecimento de seu conceito maior (Grundbegriff), o inconsciente (das Unbewusste), e o desejo como operador decisivo de uma formulação que, consolidada no âmbito do conceito, não dispensa a enunciação de seu fundador. Para tanto, acompanha as indicações fornecidas por Jacques Lacan (1964/1988) procurando desdobrar suas consequências, sobretudo éticas, tanto no que concerne ao psicanalista como ao sujeito.

Palavras-chave:
conceito; desejo. psicanalista; sujeito; ética

Abstract:

The paper discusses the non-explicit relation between the fundamental concept (Grundbegriff) of psychoanalysis, the unconscious (das Unbewusste), and desire. Despite its crucial importance regarding the establishment of psychoanalysis as a conceptual field, its very foundation is due to Freud’s desire. The bond between desire and the fundamental concept leads to its ethical consequences, as indicated by Lacan (1964).

Keywords:
concept; desire; psychoanalyst; subject; ethics

Transcorridos mais de cem anos da descoberta freudiana, afirmar que o campo psicanalítico foi fundado por Freud através da formulação do conceito de inconsciente (das Unbewusste) não deixa de ser um truísmo. Não obstante, sem pretender descurar o esforço de teorização empreendido pelo criador da psicanálise em sua obra inaugural, A interpretação de sonhos (1900FREUD, S. A interpretação de sonhos (1900). Rio de Janeiro: Imago , 1972. (Ed. standard brasileira das obras completas, 4).), propomos sustentar que, pari passu a esse esforço, o estabelecimento do conceito fundamental (Grundbegriff) deu-se a expensas da enunciação de seu fundador. Vale dizer, do desejo exercido em ato por Freud - donde seu substrato ético -, de acordo com a proposição de Lacan em sua retomada dos conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Trata-se de considerar o empreendimento freudiano à luz da teorização lacaniana, que tem por eixo a dimensão de linguagem constitutiva do inconsciente e o desejo como seu móbil, destacando o aspecto de falta e de perda, respectivamente, decorrentes dessa perspectiva, bem como a dimensão ética nela implicada. Dito de outro modo, o recorte aqui proposto pretende revisitar a démarche empreendida por Freud através da fundação do campo psicanalítico, recortando a dimensão ética do conceito fundamental da psicanálise, conforme abordado por Lacan na segunda década de seu ensino.

Almeja-se circunscrever a fundação do campo psicanalítico por Freud - cujo marco é a sistematização do conceito de inconsciente e seu correlato, o desejo (Wunsch) - naquela que se tornou conhecida como a primeira tópica freudiana - como sendo tributária do ato do fundador da psicanálise. Nessa perspectiva, é a dimensão ética que ressalta na fundação de um campo conceitual, pois é em relação à enunciação articulada no estabelecimento do próprio Grundbegriff que este deverá ser considerado. Freud (1933{1932}/1976bFREUD, S. A questão de uma Weltanschauung (1933{32}). In: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Rio de Janeiro: Imago , 1976b, p.193-194. (Ed. standard brasileira das obras completas, 22).) procurou alinhar a psicanálise à Weltanschauung científica, opondo-a à magia e à religião; tratava-se de considerar o caráter parcial de seus achados, em oposição à perspectiva totalizante das demais Weltanschauungen. Contudo, a démarche científica consiste justamente em eludir o ato que esteve na origem de sua própria constituição operando a partir da coerência interna de seus enunciados, visto que sua efetividade não depende da enunciação fundadora de seu campo próprio. O inconsciente freudiano, ao contrário, exige a contrapartida do psicanalista que deve comparecer com seu desejo enquanto um operador clínico, bem como do sujeito em ato e na dimensão de responsabilidade, de modo a garantir, a posteriori, a incidência disruptiva do inconsciente, a cada vez, conforme a máxima freudiana Wo Es war, soll Ich werden(FREUD, 1933FREUD, S. A questão de uma Weltanschauung (1933{32}). In: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Rio de Janeiro: Imago , 1976b, p.193-194. (Ed. standard brasileira das obras completas, 22).{1932}/1976aFREUD, S. A dissecção da personalidade psíquica (1933{32}). In: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1976a, p. 102. (Ed. standard brasileira das obras completas, 22)., p. 102). Cabe a ambos sustentar em ato a injunção advinda da Outra Cena (Anderer Schauplatz), em virtude do estatuto ético do conceito de inconsciente (LACAN, 1964LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1988. (O seminário, 11)./1988, p. 37), fundador do campo psicanalítico.

O CONCEITO

Qual é a implicação, tão fundamental para o campo próprio da psicanálise do estatuto conceitual do inconsciente, conforme retomado por Lacan? Trata-se, antes de tudo, de investigar o que é um conceito - desde o ponto de vista da psicanálise. Há, minimamente, duas vertentes através das quais a questão pode ser abordada.

Primeiramente, o conceito é um operador. Ele é um corte com o natural, uma vez que não existe conceito na natureza. Um conceito é de ordem puramente inteligível, em oposição ao sensível. Por exemplo, a ideia de cadeira - um objeto de quatro pés constituído de um assento e um encosto, cuja finalidade é a de que nele se possa sentar - é o que subsiste na diversidade dos objetos “cadeira” que o sensível oferece, assegurando estarmos na presença deste objeto, e não de outro (se lhe faltasse o encosto já não seria mais uma cadeira, mas um banco, talvez). Os objetos do mundo são apreendidos por intermédio da percepção (domínio sensível); já o conceito é aquilo que confere a possibilidade de conhecer (domínio inteligível), ou seja, trata-se da condição necessária para o conhecimento.

Assim, o conceito é o que torna possível constituir um saber sobre o objeto , constituindo-o propriamente: a percepção imediata (e sua descrição) da diversidade do campo sensível não permite que se possa constituir um saber, episteme, mas uma opinião (doxa) baseada na impressão sensível - apenas a definição conceitual o fará. O conceito, portanto, é um operador, uma vez que funda um campo de saber ou, minimamente, fornece as suas condições de possibilidade.

A segunda vertente pela qual o conceito pode ser abordado é a que nos interessa mais de perto, pois é a que concerne ao campo psicanalítico. É legítimo dizer que o conceito de inconsciente formulado por Freud funda um novo campo, a partir de então denominado psicanálise? A resposta a essa questão poderia ser afirmativa, se a abordássemos do lugar da epistemologia, por exemplo. Mas, tomando-a do ponto de vista estritamente psicanalítico, talvez não possa ser respondida de forma simples e/ou unívoca. Lacan a recoloca em toda a sua densidade em um de seus seminários (1964LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1988. (O seminário, 11).). Autor e obra são nossos guias nos possíveis desdobramentos da questão. Retomemo-la a partir do encaminhamento proposto por Lacan.

O que está em jogo na formulação de um conceito? O que significa dizer que o inconsciente é um conceito maior, um conceito fundamental (Grundbegriff), uma vez que é por meio deste que Freud funda o campo psicanalítico? O primeiro conceito que Lacan propõe como sendo o Grundbegriff da psicanálise é o conceito de inconsciente. Antes, porém, procuraremos cernir o modo próprio com que ele aborda a questão referente ao conceito tout court:

(...) nossa concepção do conceito implica ser este sempre estabelecido numa aproximação que não deixa de ter relação com o que nos impõe, como forma, o cálculo infinitesimal. Se o conceito se modela, com efeito, por uma aproximação da realidade que ele é feito para apreender, só por um salto, por uma passagem ao limite, é que ele chega a se realizar. Daí somos requisitados a dizer no que pode dar (...) a elaboração conceitual que se chama o inconsciente. (LACAN, 1964LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1988. (O seminário, 11)./1988, p. 25)

Deixemos de lado as implicações que concernem à problemática articulada pelo cálculo infinitesimal em relação ao campo da Física e procuremos apreender o que está em jogo em relação ao conceito de inconsciente e à própria concepção de conceito. Segundo os termos propostos por Lacan, o conceito é algo que advém em descontinuidade com o saber (digamos, instituído), uma vez que ele não se efetiva por meio de sucessivas aproximações, mas através de um descompasso com o que, doravante, será considerado como precedente ou anterior.

A noção de corte é central na abordagem que Lacan propõe em relação ao surgimento de um conceito, ou ainda do conceito maior, aquele que funda um novo campo. Este se efetiva por intermédio de um salto, através de um corte que acarreta uma perda que é, em si mesma, fundadora, pois instaura um hiato entre o campo que é fundado através de sua própria emergência (do conceito) e aquele que se constitui, a posteriori e por esse passo inaugural, como sendo-lhe anterior.

Nesse sentido, “conceito” é homólogo a “ruptura”. Essa proposição será levada ao paroxismo por Lacan ao afirmar o conceito de inconsciente a título de conceito da falta. Trataremos disso mais adiante. Por ora, acompanhemos seu encaminhamento acerca do conceito:

Há uma ligação entre esse campo {do inconsciente} e o momento, momento de Freud, em que ele se revela. É esta ligação que exprimo, aproximando-a das passadas de um Newton, de um Einstein, de um Planck, como uma marcha a-cosmológica, no sentido em que esses campos se caracterizam por traçar no real um sulco novo em relação ao conhecimento que se poderia atribuir, por toda a eternidade, a Deus. (LACAN, 1964LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1988. (O seminário, 11)./1988, p. 122, grifo nosso)

Vemos que Lacan estabelece, de modo inédito, uma relação entre a fundação de um novo campo - por meio da formulação de um conceito fundamental, Grundbegriff - e a enunciação do sujeito (fundador), isto é, com a dimensão do desejo interna ao campo psicanalítico. Um conceito, segundo ele, é aquilo que traça no real um sulco novo a expensas do desejo daquele que o formula - a rigor, é o desejo que traça o sulco no real através da formulação do conceito fundamental. Tomando a questão em sua radicalidade, apenas o desejo é capaz de formular um conceito maior, aquele que funda um novo campo, quer ele pertença ao domínio científico (por exemplo, na Física, com Newton, Einstein ou Planck) ou ainda ao campo psicanalítico.

Consideramos que o “sulco novo no real” refere-se, por um lado, ao surgimento de um novo significante (inconsciente, força, relatividade, et cetera), que, como tal, é apenas traço, marca, sulco - sendo que esse “apenas” é o que faz toda a diferença, já que o mundo não será mais o mesmo a partir da enunciação (no duplo sentido) deste conceito. Por outro lado, o “sulco novo” é a própria incidência do conceito compreendido como corte, aquele que funda um novo campo, posto que tributário de uma enunciação. Por essa razão, ele é um conceito fundamental, Grundbegriff, uma vez que seu caráter fundador deve-se ao fato de que, no limite, apenas o desejo, através de uma enunciação enquanto presença de um sujeito em ato, pode fundar um novo campo - naquilo que concerne a psicanálise, um campo em perda.

Se Lacan qualifica de a-cosmológica a marcha empreendida pela ciência, isto é, o encaminhamento levado a cabo por homens como Freud, Newton, Einstein e Planck, é porque esta (a marcha) se situa em antinomia com a visada privilegiada pelo cosmos aristotélico (portanto, pré-científico) que concebia a possibilidade de conhecer segundo uma escala de valor ascendente do menos ao mais perfeito - no caso, Deus.

De acordo com a concepção cosmológica, a ideia de corte implicada no conceito é absolutamente impensável, ou seja, a própria ciência (moderna) é fundada por intermédio de um corte com a ordem cosmológica. Sabemos que a concepção aristotélica de um cosmos hierarquicamente ordenado constituiu um obstáculo ao surgimento da Física moderna (KOYRÉ, 1943KOYRÉ, A. Galileu e Platão (1943). In: Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense Universitária, 1991, p. 152-180./1991, p. 154-155). O cosmos caracteriza uma totalidade finita e perfeita; por conseguinte, a marcha cosmológica se orienta no sentido da totalização, ao passo que o corte instaura uma perda e, por seu intermédio, uma incompletude doravante ineliminável. Assim, o conceito é o corte por meio do qual o real se modifica - melhor dizendo, se instaura. Formular um conceito é operar um corte fora da dimensão de mestria, uma vez que é enunciação. Nessa perspectiva, “conceito”, poderia ser considerado como o próprio nome do corte, sulco no real, perda em relação ao saber, uma vez que cinde ao invés de totalizar.

O DESEJO

De acordo com Lacan, uma ciência especifica-se por ter um objeto definido: a experiência. Se esta pode ser concebida enquanto o campo de uma práxis - definida como “uma ação realizada pelo homem, qualquer que ela seja, que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico” (LACAN, 1964/1988, p. 14). Não obstante, o autor faz a ressalva de que essa definição não é suficiente para caracterizar o domínio científico, uma vez que poderia perfeitamente ser aplicada à experiência mística, por exemplo, ou ainda à alquimia (ibidem, p. 15-16). Assim, a experiência não é, em si mesma, garantia de procedimento científico: “(...) submeter uma experiência a um exame científico, sempre se presta a deixar entender que a experiência tem por si mesma uma subsistência científica” (ibidem, p. 16).

Há, portanto, uma diferença fundamental entre experiência e démarche científica, sendo que não basta submeter a primeira ao segundo para autorizar sua cientificidade. Curiosamente, ao invés de estabelecer os critérios mediante os quais seria legítimo qualificar um procedimento como sendo estritamente científico, Lacan reafirma a importância da experiência articulando-a ao desejo, ao dizer que, em relação à experiência alquímica, o que de fato intervém na transmutação do metal é o desejo do experimentador (no caso, o alquimista): “Alguma coisa, a meus olhos, é decisiva, que é a pureza da alma do operador. (...) Esta indicação não é acessória (...) pois talvez vai-se levantar algo de análogo no que concerne à presença do analista” (ibidem, p. 16, grifos nossos).

Desse modo, é possível concluir que aquilo que é determinante na experiência é o desejo, que é seu operador efetivo. Não se trata apenas de afirmar que o desejo é o que impele o experimentador a realizar um determinado empreendimento (como, por exemplo, a curiosidade científica ou ainda um desejo de realização), mas de considerar, de modo inaudito, o desejo como um operador efetivo. E, indo ainda mais além, é afirmar a incidência do desejo no próprio resultado da experiência; é sustentar que ele opera efeitos no real da experiência.

No caso da alquimia, significa dizer que o desejo do alquimista não é um elemento anódino, mas, sim, decisivo na transformação de um elemento químico em outro, como, por exemplo, o chumbo em ouro (a rigor, a Química, enquanto campo de conhecimento científico, surge mais tarde, com Lavoisier). Isto é, é dizer que o desejo é o agente, o operador dessa transformação. Vemos, então, que Lacan coloca o desejo no cerne da experiência - tanto alquímica quanto psicanalítica - afirmando que ele opera efeitos no real.

Com efeito, se concebemos o campo da psicanálise como sendo o de uma experiência - a experiência analítica - esta se encontra apensa ao desejo do analista, operador clínico que não se confunde com os anseios daquele que encarna esta função. Avançando um pouco mais, se o desejo do analista é homólogo à pureza da alma do alquimista - considerando que “pureza da alma” equivale a “desejo” - podemos então arriscar a formular o caráter pré-científico, ou melhor, a-científico do desejo, em sua dimensão de causa.

Não obstante, é a própria dimensão do desejo que a ciência pretende eliminar: malgrado a tentativa, o desejo insiste em se fazer presente (o inconsciente insiste), ainda que a título de elemento perturbador. A ciência busca sua efetividade na elisão do sujeito e, por conseguinte, do desejo (LACAN, 1965LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1988. (O seminário, 11)./1998); no entanto, é apenas o desejo - pedra filosofal - que pode operar efeitos no real. Esse ponto é crucial para o campo psicanalítico, e é também aquele que é eludido pelo discurso da ciência - vale lembrar que a questão de fundo é a de se a psicanálise pode ser considerada uma ciência. Quanto a este problema, Lacan interroga:

“Pode esta questão {a do desejo} ser deixada de fora dos limites do nosso campo, como o é de fato nas ciências?” Respondendo de imediato: “O desejo do analista (...) não pode de modo algum ser deixado de fora de nossa questão (...)”. (LACAN, 1964LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1988. (O seminário, 11)./1988, p. 17)

Vemos que a questão do desejo é aquela que a ciência “deixa de fora”, a rigor, foraclui - vale lembrar que o inconsciente, enquanto discurso do Outro, se situa “do lado de fora” (ibidem, p. 126), tomado numa dimensão moebiana. Em relação ao campo da psicanálise, a questão do desejo - mais ainda, o desejo do analista como operador desse campo - não é acessória, mas constituinte, devendo ser incluída no próprio campo.

Com efeito, a problemática do desejo é interna ao campo da psicanálise, pois veremos, em seguida, que ele é o móbil do conceito fundador do próprio campo; de forma homóloga, o desejo do analista é o elemento que opera no real da experiência analítica. Este operador garante a “realização” do conceito de inconsciente em sua função de corte, garantindo o campo psicanalítico enquanto um campo que não se constitui de uma vez por todas, mas a cada vez, em perda. Isso nos leva a pensar que o desejo do analista - uma vez que é desejo - também pode ser considerado móbil do conceito de inconsciente, pois refunda, por sua incidência, o campo psicanalítico. Deste modo, ele é homólogo ao conceito de inconsciente, está incluído neste. O psicanalista, afirma Lacan de forma surpreendente, “(...) deve ser integrado no conceito de inconsciente” (LACAN, 1964LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1988. (O seminário, 11)./1988, p. 121).

Se o campo do inconsciente é, no dizer de Lacan (ibidem, p. 27), uma ferida sempre pronta a cicatrizar (a neurose é a sua cicatriz), o desejo do analista deve operar como a lâmina que mantém aberta a chaga do inconsciente: “A presença do analista é ela própria uma manifestação do inconsciente” (ibidem, p. 121). Este é um aspecto da questão.

Mas há ainda outro aspecto a não ser descurado, pois, se o inconsciente comparece como pulsação, abertura e fechamento, Lacan (ibidem, p. 125) articula a transferência - em sua vertente de resistência, isto é amorosa - ao fechamento do inconsciente. Assim, ao amor de transferência, o psicanalista deve responder com o desejo do analista, o operador analítico por excelência; ao apelo amoroso de fazer um, o desejo corta, cinde, disjunta. À oferta de amor, o analista propõe trabalho. Se a transferência é em si mesma uma neurose (Freud se referia à neurose de transferência), cicatriz do inconsciente, o desejo do analista é o operador que, na cura analítica, reabre a chaga e não permite à ferida (inconsciente é o seu nome) cicatrizar.

A ÉTICA

Retomando a problemática do conceito em sua função de corte, este, como vimos, é tributário de uma enunciação, isto é, da própria dimensão do desejo, assim como do ato de um sujeito. Desse modo, um conceito fundamental (Grundbegriff) é, em si mesmo, o franqueamento de um limite e, como tal, situa-se para além da coerência interna dos enunciados que o formulam enquanto tal.

Lacan adverte que, em seu campo próprio, a ciência elide a enunciação pela qual foi fundada, isto é, ela não se remete à enunciação, ao passo dado por um sujeito (no caso, o cientista) que, por intermédio de sua própria perda (de si mesmo) - já que o conceito se realiza em perda - formula o conceito fundamental. O Grundbegriff é fundador porque advém a expensas do sujeito, isto é, por intermédio de uma enunciação - e não apenas porque a sua fundamentação possibilita a articulação de uma trama conceitual. O que é fundante é a dimensão de verdade, elidida pela ciência. Um conceito fundamental é fundador de um campo porque o encaminhamento que lhe deu origem é de ordem ética, ou seja, remete ao desejo como móbil da enunciação do cientista. A esse respeito, Lacan é assaz eloquente:

(...) a ciência, se a examinarmos de perto, não tem memória. Ela esquece as peripécias em que nasceu uma vez constituída, ou seja, uma dimensão de verdade, que é exercida em alto grau pela psicanálise. (...) Existe o drama, o drama subjetivo que cada uma dessas crises custa. Esse drama é o drama do cientista. Tem suas vítimas (...) J.R. Mayer, Cantor, não vou fazer a lista de laureados desses dramas que às vezes chegam à loucura (...). (LACAN, 1965LACAN, J. A ciência e a verdade (1965). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 869-892./1998, p. 884)

Vimos que, na origem do conceito fundamental, encontra-se o desejo como seu móbil inconsciente. Em seguida, a marcha da ciência, vale dizer, a correta articulação do conceito em enunciados válidos, vem constituir e fazer consistir o campo científico propriamente dito, dispensando a enunciação que constitui sua origem. Paradoxalmente, os passos subsequentes à emergência do conceito maior (Grundbegriff) tendem a elidir a enunciação que fundou o próprio campo, apagando a marca fundadora de sua própria constituição.

Contudo, sem memória, não pode haver história. Assim, seria impossível fazer uma história da ciência sem recuperar a dimensão de enunciação presente na fundação de seu campo - de outro modo, restaria apenas uma compilação de fatos, que, como é de conhecimento geral, não constitui uma história. Sem menção a uma origem, isto é, sem filiação simbólica e sua respectiva dívida, resta à ciência apenas a referência ao “pitoresco” dos dramas particulares e suas vítimas, o registro de seu romance familiar.

Por conseguinte, o que se encontra na origem do conceito é o desejo, e não o saber. É sempre em ruptura com o saber que um novo conceito, aquele que funda um campo (Grundbegriff), pode surgir. Conforme mencionado por Lacan (1965)LACAN, J. A ciência e a verdade (1965). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 869-892., sua enunciação pode custar a sanidade ou ainda a vida de alguns. Se “a dimensão da verdade é exercida em alto grau pela psicanálise”, conforme afirma Lacan (1965LACAN, J. A ciência e a verdade (1965). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 869-892./1998, p. 884), podemos compreender esta afirmação no sentido de que a psicanálise, contrariando a démarche científica, não promove o esquecimento do passo fundador que lhe deu origem. Antes, ela tem com essa enunciação fundadora uma dívida ineliminável, e, por isso, cada psicanalista deve se remeter ao nome e à enunciação de Freud e também de Lacan: a isso, chama-se transferência. Eis porque a psicanálise é algo que se transmite, cuja condição de possibilidade de seu campo próprio encontra-se articulada a uma cadeia de transmissão. Esta, por sua vez, opera em perda - e não em acumulação - e não constituiu apenas um corpo articulado de conceitos que poderia ser ensinado integralmente.

Assim, podemos dizer com Lacan que o desejo é o móbil do conceito (Begriff), ao menos no que concerne ao conceito fundamental (Grundbegriff), uma vez que o conceito, em seu momento inaugural, é tributário de uma enunciação. O conceito funda um novo campo ao instaurar, por intermédio de seu advento, um corte com o saber (anterior e constituído); em outras palavras, ele é o próprio corte. Desse modo, é possível considerar que o desejo de Freud - vale dizer, o sujeito Freud e não o neurologista ou ainda o homem de ciência - funda o conceito de inconsciente, e, por conseguinte, o campo da psicanálise.

A questão é levada às últimas consequências por Lacan, ao afirmar que o campo fundado por Freud é um campo que se perde (LACAN, 1964LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1988. (O seminário, 11)./1988, p. 122). Vale dizer, o conceito fundador da psicanálise, o inconsciente (das Unbewusste), justamente por incidir como corte, não constitui um campo positivo, instaurado de uma vez por todas. De um lado, depende do desejo do analista enquanto o operador que permite que a hiância do inconsciente - que se abre apenas para tornar a se fechar - não seja obturada. De outro, convoca o sujeito a se responsabilizar por aquilo que, advindo de Outra cena, é-lhe, no entanto, o mais íntimo e dissemelhante (Lacan cunhou o neologismo êxtimo para designar esta condição).

Há duas dimensões importantes a destacar: a primeira delas é a de que é apenas o desejo que pode fundar um novo campo, através da emergência do conceito maior que advém em ruptura com o saber constituído (ou seja, a própria fundação de um campo está submetida ao desejo, e não à correta ou apropriada articulação de conceitos, trabalho de fundamentação conceitual que é posterior ao ato de fundação). A segunda dimensão, e ainda mais radical, é aquela que concerne ao campo psicanalítico: é o desejo de Freud que funda o campo da psicanálise com o conceito de inconsciente. Este é um campo que se perde, visto que o seu conceito fundamental (Grundbegriff) não caracteriza uma consistência, mas uma falta: opera como corte, descontinuidade, evanescência.

De uma parte, se o conceito fundamental é tributário do desejo, e mais, se o conceito de inconsciente funda - a expensas do desejo de Freud - um campo que se perde, então o conceito de inconsciente depende do desejo de cada um (sujeito e também psicanalista) para sustentá-lo a cada vez - portanto, seu estatuto é ético. De outra, se “conceito” pode ser compreendido no sentido de “corte”, o conceito de inconsciente radicaliza a questão do próprio conceito, já que ele é o próprio corte a título de conceito da falta (LACAN, 1964LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1988. (O seminário, 11)./1988, p. 30). Desse modo, o campo psicanalítico se funda não apenas a partir de uma perda (por exemplo, a perda da hegemonia da consciência), mas em uma perda. Tomando a questão de forma rigorosa, esse campo é constituído em pura perda - perda de saber, de ser, de consistência.

Utilizando os elementos fornecidos pela Linguística como ferramentas conceituais para formular a estrutura de linguagem do inconsciente, Lacan afirma que o inconsciente freudiano não é redutível ao jogo combinatório que opera de maneira pré-subjetiva: “O caso da lingüística é mais sutil, uma vez que ela tem que integrar a diferença entre o enunciado e a enunciação, o que é efetivamente a incidência, desta vez, do sujeito falante como tal (e não do sujeito da ciência)” (LACAN, 1965LACAN, J. A ciência e a verdade (1965). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 869-892./1998, p. 874).

Com efeito, o inconsciente, estruturado como uma linguagem, não é uma engrenagem operando às cegas, mas, no hiato entre enunciado e enunciação, um sujeito poderá advir, responsabilizando-se por aquilo que o causa (LACAN, 1964LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1988. (O seminário, 11)./1988, p. 26). O conceito de inconsciente, uma vez formulado por Freud, não vai por si mesmo. Se o campo do inconsciente se funda em perda, trata-se, por um lado, em garantir essa perda, ou seja, em sustentá-la enquanto tal (para que a perda não se perca). Por outro, para que essa perda se efetive (isto é, não seja nada), para que essa negatividade chamada inconsciente seja operativa, produza efeitos, é preciso que cada um, a cada vez, funde-o com “seu” desejo, que é do Outro (LACAN, 1964LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1988. (O seminário, 11)./1988, p. 223) - submetendo-se a ele, às suas injunções. Assim, cabe a cada um fazer valer esse campo que, por não ser inefável, é radicalmente pontual - vale dizer, não constitui uma extensão, seja ela espacial ou ainda temporal (contrariando a formulação kantiana de tempo e espaço enquanto formas apriorísticas da intuição sensível). Nessa aporia constitutiva se situa tanto o desejo do analista enquanto operador, como a responsabilidade do sujeito. Vejamos o que diz Lacan:

Paradoxalmente, a diferença que garante a mais segura subsistência do campo de Freud, é que o campo freudiano é um campo que, por sua natureza, se perde. É aqui que a presença do analista é irredutível, como testemunha dessa perda. (...) é uma perda seca, que não salda nenhum ganho, se não é retomada em sua função de pulsação. (...) portanto, a presença do psicanalista (...) deve ser incluída no conceito de inconsciente. (LACAN, 1964LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1988. (O seminário, 11)./1988, p. 122-123, grifos nossos).

É surpreendente constatar que aquilo que garante a subsistência do inconsciente é sua dimensão de perda, ou seja, que é pelo fato de se perder que o campo subsiste. Assim, o inconsciente existe (“ex-siste”) apenas enquanto perda. O analista, a título de presença (e não a sua pessoa), encontra-se incluído no conceito de inconsciente. Levando em conta que o próprio conceito é perda, corte, fenda, então a sua presença - ou ainda o desejo do analista enquanto operador - (re)funda, a cada vez, o campo do inconsciente.

Lacan assevera que a presença do analista é, em si mesma, uma manifestação do inconsciente, já que este faz parte do próprio conceito (ibidem, p. 121-123). Note-se que ele não diz que o analista faz parte do inconsciente - isso só seria possível se o inconsciente fosse uma consistência, ou ainda da ordem do ser, isto é, se o estatuto do inconsciente fosse ontológico -, mas que ele faz parte do conceito de inconsciente.

Se o Unbewusste não é o “inconceito”, mas o conceito da falta (ibidem, p. 30), e se o conceito é algo que se atinge por intermédio de uma ruptura (e não em solução de continuidade), é nesta fenda, no corte, que Lacan parece situar o analista. Assim, a presença do analista é de ordem ética e não ontológica, menos ainda factual. O psicanalista não comparece com seu “ser” (humano, por exemplo), mas opera como corte, incluindo-se no conceito de inconsciente, ou seja, fazendo valer o estatuto de corte do inconsciente, que se apresenta como hiância, descontinuidade.

Portanto, se Lacan menciona o analista a título de uma presença, incluindo-o no conceito de inconsciente, isso deve ser compreendido no sentido de que cabe ao analista incidir como escansão, como corte. Homologamente, pode-se dizer o mesmo do sujeito: se inconsciente e sujeito situam-se, conforme afirma Lacan, numa homologia de estrutura, ambos têm uma mesma dimensão de corte.

Apenas no instante fugaz de emergência do inconsciente (em outras palavras, no relâmpago mesmo de sua fundação, a cada vez, já que este só “existe” como perda), é que um sujeito poderá advir. Tomando a questão por outro viés, só terá havido inconsciente se o sujeito vier a se responsabilizar por ele, fazendo valer aquilo o ultrapassa: Wo Es war, soll, Ich werden. O estatuto ético do inconsciente exige tanto o analista em presença, quanto o sujeito em sua dimensão de responsabilidade.

REFERÊNCIAS

  • FREUD, S. A dissecção da personalidade psíquica (1933{32}). In: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise Rio de Janeiro: Imago, 1976a, p. 102. (Ed. standard brasileira das obras completas, 22).
  • FREUD, S. A interpretação de sonhos (1900). Rio de Janeiro: Imago , 1972. (Ed. standard brasileira das obras completas, 4).
  • FREUD, S. A questão de uma Weltanschauung (1933{32}). In: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise Rio de Janeiro: Imago , 1976b, p.193-194. (Ed. standard brasileira das obras completas, 22).
  • KOYRÉ, A. Galileu e Platão (1943). In: Estudos de história do pensamento científico Rio de Janeiro/São Paulo: Forense Universitária, 1991, p. 152-180.
  • LACAN, J. A ciência e a verdade (1965). In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 869-892.
  • LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1988. (O seminário, 11).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2015
  • Aceito
    12 Jan 2016
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