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Do “limbo feliz” de Herculine ao “tecnogênero” de Preciado: um novo cenário para a abordagem psicanalítica da sexuação

Resumo:

Partindo das formulações de Birman e Hoffmann, Claude Allouch e Geneviève Morel, busca-se, na primeira parte deste artigo, destacar a importância de o campo psicanalítico dar continuidade à verdadeira interlocução que Lacan estabeleceu com Foucault, empreendendo agora uma interlocução entre a teoria lacaniana da sexuação e as práticas e teorias provenientes do movimento queer. Na segunda parte, serão abordados O diário de Herculine, publicado por Foucault, e Testo junkie, de Paul B. Preciado, indicando-se algumas das semelhanças e das diferenças entre os regimes disciplinar e “farmacopornográfico” teorizados por estes dois autores, assim como entre as duas modalidades de resistência que eles colocam em cena.

Palavras-chave:
sexo; gênero; sexuação; psicanálise; teoria queer

Abstract:

Based on formulations by Birman & Hoffmann, Claude Allouch and Geneviève Morel, the first part of this paper attempts to highlight the importance of continuing, in the psychoanalytic field, the true interlocution Lacan established with Foucault, now establishing an interlocution between Lacan’s sexuation theory and the practices and theories coming from the queer movement. In the second part, the paper will approach Foucault’s Herculine Barbin: Being the Recently Discovered Memoirs of a Nineteenth-century French Hermaphrodite and Paul B. Preciado’s Testo Junkie, indicating some similarities and differences between the disciplinary and “pharmapornographic” regimes theorized by both authors, as well as between the two modalities for resistance they bring forth.

Keywords:
sex; gender; sexuation; psychoanalysis; queer theory

Psicanalista, nós mesmos, e por muito tempo confinados em nossa experiência, vimos que ela se esclarece ao fazer dos termos em que Freud a definiu o uso que lhe convém, não como preceitos, mas como conceitos.

Lacan

O livro Lacan e Foucault. Conjunções, disjunções e impasses traça uma história do “verdadeiro diálogo” (BIRMAN; HOFFMANN, 2017BIRMAN, J; HOFFMANN, C. Lacan e Foucault. São Paulo: Instituto Langage, 2017., p. 17) estabelecido entre Lacan e de Foucault. Ao destacar os momentos cruciais desta história e os importantes ecos que eles produziram tanto no filósofo quanto no psicanalista, Birman e Hoffman buscam combater a resistência que uma parcela significativa da comunidade psicanalítica manifesta em relação ao filósofo e à continuidade deste diálogo. Na base desta resistência, encontram-se, seja a ingênua identificação de suas pontuações críticas ao propósito de promover a destruição da psicanálise, seja o capcioso argumento que as referem a uma suposta resistência do filósofo à experiência do inconsciente. Mas, como sustentam os autores, este argumento

deve ser inteiramente banido do cenário psicanalítico, pois a comunidade psicanalítica de todas as colorações deve não apenas aprender a conviver com as críticas ao discurso psicanalítico, como também se valer delas para poder avançar e tornar mais complexo e rico o seu discurso teórico, no contexto epistemológico e histórico do campo interdisciplinar. (idem).

Nas primeiras décadas de nosso século, são traçadas as primeiras linhas para que possamos circunscrever um novo “momento crucial” na história deste “verdadeiro diálogo”. Trata-se agora das interlocuções a que nós, psicanalistas, somos convidados a empreender com o campo definido como queer1 1 Como observa Louro (2001), o movimento queer engloba um conjunto diversificado de proposições teóricas e políticas que, ao redor dos anos 1990, passa a utilizar este termo para descrever as perspectivas de seu trabalho. Cabe destacar que, se o movimento é, por um lado, herdeiro das proposições desenvolvidas no contexto dos movimentos feministas (desde os anos 50), assim como “lésbicos e gays” e transgêneros (desde os anos 70), por outro lado, ele se define justamente pela problematização, em grande medida a partir das contribuições de Foucault, da categoria central, assim como das classificações identitárias e oposições de gênero (mulher/homem, lésbica/gay, trans/cis) nas quais estes movimentos se fundamentam. Esta nota visa não apenas esclarecer o leitor a respeito das divergências entre os movimentos, mas também indicar que, devido ao fato desta distinção terminológica ser bastante recente e demarcar uma fronteira às vezes bastante sutil, as referências às perspectivas do movimento queer poderão aparecer ao longo deste artigo em outros termos, tal como “estudos gays e lésbicos” ou “estudos de gênero”. . A configuração deste novo momento depende, entretanto, da possibilidade de o campo psicanalítico banir a resistência que opõe a estes estudos. Resistência essa baseada, em grande medida, na mesma identificação de suas formulações críticas ao propósito de derrubar suas categorias essenciais e no mesmo argumento que localiza nelas uma resistência ao discurso psicanalítico e à verdade que ele comportaria, hoje colocada em termos da irredutível diferença sexual, da intransponível diferença entre homens e mulheres imposta aos seres falantes pela lógica da sexuação. Depende também do campo psicanalítico não localizar, muitas vezes apressadamente, no campo queer - em suas práticas e discursos - as referências constituintes ou reforçadoras de uma política comunitarista identitária.

Como destaca Allouch, referindo-se a alguns trabalhos articulados no campo queer, seus autores estão “perfeitamente advertidos dos impasses, armadilhas e outras derrotas libidinais que toda posição identitária rígida comporta” (ALLOUCH, 2002ALLOUCH, J. Horizontalités du sexe (2002a). Intervenção no colóquio Y a-t-il du nouveau dans le sexuel? organizado pelo Espace Analytique e Cercle Freudien, 19 de janeiro de 2002. Disponível em: <Disponível em: http://jeanallouch.com/document/84/2002-horizontalita-s-du-sexe.html >. Acesso em:/03/04/2017.
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, p. 13), de modo que não precisaríamos “temer dar caução a um combate comunitarista identitário que não seria o nosso” (idem). Ao contrário, sugere o autor: poderíamos toma-los como “uma ocasião oferecida à psicanálise para melhor se definir” (ibidem, p. 2). Com efeito, desde 1998, antes mesmo de serem referidos e definidos como queer2 2 É Teresa de Lauretis quem propõe pela primeira vez, em artigo de 1990, o uso do termo queer em lugar da expressão lésbica e gay, então habitualmente usada para denominar as práticas e teorias desenvolvidas nestes dois campos. Como esclarece a autora, com o termo, ela buscava “marcar uma distância crítica” (LAURETIS, 2007, p. 98) em relação ao uso da expressão “politicamente correta ‘lésbica e gay’” (ibidem, p. 101), e isto na medida em que as diferenças entre estes dois campos eram, a seu ver, menos representados pelo “acoplamento discursivo” de seus termos do que, de fato, elididas pela partícula ‘e’ que ligava seus dois termos. Vale observar que, com esta nota, visamos não apenas situar historicamente a emergência do termo queer, mas também insinuar, mesmo que de forma bastante vaga, algumas aproximações possíveis entre as problemáticas aqui levantadas por Lauretis e aquelas levantadas por Lacan em sua teoria da sexuação. , o psicanalista já sublinhava a importância de o campo freudiano acolher os chamados estudos gays e lésbicos, e particularmente a contestação das disciplinas universitárias3 3 Estes dois termos devem ser aqui referidos aos sentidos que respectivamente comportam em Foucault (regime disciplinar) e Lacan (discurso universitário). por eles veiculada, contestação em relação à qual a psicanálise parece situar-se hoje menos no lugar de agente e mais naquele de objeto.

Se, por um lado, o autor atribui a estranha “mudança de campo” da psicanálise - de “contestadora de preconceitos veiculados” à “contestada pelos preconceitos que veicula” - ao fato de ela ter em grande parte se convertido em mais uma disciplina normalizadora (ALLOUCH, 2003ALLOUCH, J. Lacan et les minorités sexuelles. Cités, n. 16, 2003, p. 71-77. Disponível em:/<Disponível em:/https://www.cairn.info/revue-cites >. Acesso em:/03/04/2017.
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, p. 75), por outro lado, ele destaca que foi justamente onde a psicanálise adaptativa proliferou - os Estados Unidos - que os estudos queer apareceram. Da mesma forma, observa, foi ao dirigir sua reflexão para o campo de práticas sexuais amplamente desertados pelas indagações psicanalíticas - aquele da sexualidade fora da família, da fidelidade e do amor (campo que tem também seus códigos, seus ritos, seus limites), como, por exemplo, as práticas violentas S/M ou as práticas navire-nights, anônimas, múltiplas, diversificadas - que estes mesmos estudos se desenvolveram. A partir destas observações, Allouch formula as seguintes questões: “O campo dos estudos gays e lésbicos não é (também) uma criação da psicanálise? Do que ela fez, do que ela não fez, do que ela deveria ter se abstido de fazer?” (ALLOUCH, 1998ALLOUCH, J. Accueillir les gay and lesbian studies. L’unebévue, n. 11, 1998, p. 145-154., p. 145). Talvez a reflexão sobre o lugar que ocupa em relação ao campo de estudos e práticas queer se mostre hoje uma via privilegiada para a psicanálise melhor definir seus termos. Ou ainda, para ela melhor se esclarecer, fazendo dos termos em que Freud a definiu “o uso que lhes convém, não como preceitos, mas como conceitos”, como sugeriu Lacan na ocasião de celebração do centenário de nascimento do fundador da psicanálise (LACAN, 1956LACAN, J. Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956/(1956). In: LACAN, J. Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1998, p. 461-495./1991, p. 461).

Apesar de seus esforços no sentido de banir a disciplinarização da psicanálise, Lacan não conseguiu impedir que uma parcela significativa de seus próprios herdeiros fizesse de suas categorias o mesmo uso prescritivo que os herdeiros de Freud haviam feito de seus conceitos. Este uso mostrou-se particularmente presente na ocasião das discussões sobre o PaCS4 4 O PaCS (pacto civil de solidariedade) é um contrato pelo qual é reconhecida uma união civil entre duas pessoas de sexos diferentes ou do mesmo sexo. Sua lei foi votada em 1999 e, embora tenha sido amplamente propagada entre os casais heterossexuais, sua proposta visava sobretudo permitir um reconhecimento civil das uniões homossexuais. - ocorridas na França na virada do último século para o atual - e, mais precisamente, nos discursos que, em nome de categorias lacanianas, sustentaram posições contrárias ao reconhecimento civil das uniões homossexuais. Com efeito, como observa a psicanalista Geneviève Morel, estes discursos foram baseados em uma interpretação ideologicamente dirigida da categoria lacaniana de Nome-do-Pai, que se transforma, então, em “uma norma para a família, a diferença dos sexos e a saúde mental” (MOREL, 2004MOREL, G. Ambiguités sexuelles: sexuation et psychose. Paris: Anthropos, 2004., p. 13). Assim,

com esse único significante e a significação fálica que o acompanha, pretendeu-se definir de forma definitiva a psicose em sua diferença com a neurose, repartir os verdadeiros homens e as verdadeiras mulheres e, enfim, dizer o que eram as formas psicanalíticas aceitáveis de família e casamento. (idem)5 5 Estas formulações se encontram no post-scriptum escrito pela autora em 2004, na ocasião da publicação da segunda edição de seu primeiro livro, publicado originalmente em 2000. .

Em decorrência desta transformação em preceitos de determinados conceitos forjados por Lacan, um grande vazio conceitual e clínico, observa Morel, “se manifestou no campo da psicanálise contemporânea, particularmente na França, em relação às questões da identidade sexual” (idem). Daí a vital importância de a psicanálise empreender um esforço para “melhor definir” aquilo que Lacan articulou como sexuação, em cujas fórmulas se encontrariam, a seu ver, as “únicas definições possíveis da parte dita homem ou bem mulher para o que quer que se encontre na posição de habitar a linguagem” (LACAN, 1972-73/1982, p. 107). Donde também a importância de o campo psicanalítico extrair destas definições condições para sustentar, como formula Morel, um discurso ao mesmo tempo conectado aos grandes problemas da atualidade e destacado dos preconceitos de sua época. Destacamos, ainda, o valor de não perdermos a ocasião que os estudos queer nos oferecem de interrogarmo-nos sobre “o que fizemos, o que não fizemos e o que deveríamos ter nos abstido de fazer”, teórica e praticamente, com aquilo que Lacan nos legou sob o termo de sexuação.

Guardadas as diferenças que marcam as suas especificidades, as produções teóricas empreendidas por Geneviève Morel e Jean Allouch no campo das sexualidades (ou da erótica, como prefere Allouch) destacam-se na cena psicanalítica contemporânea pela originalidade e pelo rigor com que empreendem suas leituras e articulações das categorias conceituais lacanianas, fornecendo-nos preciosos subsídios para lidarmos com as novas formas a partir das quais se articulam hoje os sujeitos, os corpos, os sexos e os nomes que lhes são dados. Cabe observar que, enquanto as teorizações desenvolvidas por Allouch são fortemente fundamentadas no pensamento de Foucault, assim como, em boa medida, instigadas pelas formulações teóricas queer e pelas práticas sexuais para as quais se voltam seus estudos, as formulações de Morel, ao contrário, são essencialmente norteadas pelos seus casos clínicos e subsidiadas pelas ferramentas conceituais psicanalíticas. Mas se, no primeiro livro da psicanalista (2004), nem o pensamento de Foucault nem os estudos queer estão presentes entre suas teorizações, no segundo, ao contrário, a interlocução da autora com ambos já se faz claramente notar.

Com efeito, em 2000, onde identifica a gender theory às teorias da identidade de gênero e tem em mente sobretudo a noção stolleriana de núcleo de identidade de gênero, a psicanalista se restringe a sublinhar enfaticamente a insuficiência das identificações de gênero (imaginárias e/ou simbólicas) para a determinação da sexuação - no que ela comporta de real ou de gozo - assim como a insuficiência conceitual das teorias do gênero para abordar as suas diversas e complexas ambiguidades. Os termos abaixo resumem a argumentação da autora.

Há um além das identificações, que é talvez também um aquém, algo de mais primordial, apreensível apenas pelo discurso psicanalítico. Isso não significa que possamos descartá-las, mas o gênero, que consideramos como o equivalente de um sistema de identificações imaginárias e significantes, não esgota a relação do sujeito com o seu sexo e ao sexo dos outros. Pois essa relação é também real. (MOREL, 2004MOREL, G. Ambiguités sexuelles: sexuation et psychose. Paris: Anthropos, 2004., p. 141).

Em 2008, entretanto, embora Morel não deixe de insistir na diferença entre as teorizações psicanalíticas sobre a sexuação e as gender theories, suas referências a estes estudos atestam que a psicanalista ampliou sua aproximação com este campo, incluindo nele as teorizações queer, fundamentadas em outras concepções de gênero que não aquelas marcadas pela categoria de identidade. Como exemplos desta nova aproximação, destacam-se as referências da psicanalista a Judith Butler e, mais particularmente, à convergência que aponta existir entre a tese butleriana do gênero como performativo e a tese lacaniana da máscara como segredo do desejo. Destaca-se também o recurso à teoria da homoeudade (homoité) de Leo Bersani6 6 Importante discípulo de Foucault e interlocutor crítico das teses de Butler. para subsidiar suas argumentações sobre o sinthoma de Gide. Da mesma forma, mesmo que não deixe de sublinhar a diferença entre as concepções psicanalítica e foucaultiana do sexo, a autora não deixa de destacar em que medida suas próprias formulações se alinham à denúncia da síndrome identitária e da injunção de identificação à sexualidade e às suas diferentes formas conforme empreendidas por Foucault.

Como vimos, entre os dois livros destacam-se algumas diferenças quanto à aproximação da autora com o campo queer. No primeiro livro, as suas referências ao campo se restringem às teorizações nas quais a categoria de gênero é concebida em termos de identidade (subjetiva ou culturalmente construída). É nessa medida que são contrapostas as formulações psicanalíticas sobre a sexuação e as formulações articuladas pelas teorias do gênero. No segundo livro, as suas referências se ampliam, dando então lugar a um “verdadeiro diálogo”.

Junto com estas transformações concernentes à abordagem do campo queer, observamos também uma importante inflexão teórica (e política) nas proposições da autora sobre a temática da sexuação nestes dois momentos. É possível ilustrarmos esta inflexão referindo-nos aos diferentes termos com os quais Morel formula e aborda, em cada um destes dois livros, uma mesma questão. Aliás, das mais espinhosas entre aquelas que as novas práticas e teorias no campo do sexo colocam hoje à psicanálise: “Podemos falar do sexo em psicanálise sem fazer referência à diferença sexual?” (MOREL, 2008MOREL, G. La loi de la mère: essai sur le sinthome sexuel. Paris: Anthropos /, 2008., p. 321). E, mais ainda, sem referir esta diferença a um binarismo, quaisquer que sejam seus termos?

No primeiro livro, o próprio modo como a questão é formulada - “Por que dois sexos?” (MOREL, 2004MOREL, G. Ambiguités sexuelles: sexuation et psychose. Paris: Anthropos, 2004., p. 148) - já indica que a autora não coloca em questão a pertinência do binarismo, mas visa, antes, esclarecê-lo, respondendo que “se há apenas uma única função de gozo universal, a função fálica, há dois modos de se inscrever na função, os quais correspondem a dois modos diferentes de gozo fálico, portanto, dois sexos” (idem), isto é, “duas ‘opções de identificação sexuada’, homem ou mulher” (ibidem, p. 150). Destaca-se, portanto, deste esclarecimento, a ênfase no necessário binarismo da sexuação.

Cabe, agora, explicitarmos que o contexto no qual se insere esta ênfase - isto é, o campo de discursos e práticas em referência ao qual parece necessário à autora sustentar esta posição - é aquele dos discursos e práticas que postulam a existência de um terceiro sexo. Como precisa a autora, esta postulação teria sido fundamentada, ao longo da história, primeiramente em teorizações e tratamentos da homossexualidade baseados em uma equivalência entre escolha objetal e identificação sexual e, mais recentemente, em teorizações e tratamentos da transexualidade baseados na ideia de erro de natureza. É, então, visando reiterar as objeções que Freud e Lacan dirigiram respectivamente a estas duas abordagens que Morel é levada a enfatizar a existência de dois e somente dois sexos.

No segundo livro, a questão é retomada. Desta vez, entretanto, ela é formulada em outros termos e inserida em um contexto radicalmente diferentes. Eis os termos nos quais Morel nos interroga: “Será que ‘ter um sexo’ se reduz, ou mesmo se silencia sob o dimorfismo das aparências corporais ou sobre uma dicotomia dualista do gozo em sua relação ao falo?” (MOREL, 2008MOREL, G. La loi de la mère: essai sur le sinthome sexuel. Paris: Anthropos /, 2008., p. 326). O contexto no qual se insere esta questão é agora aquele das inúmeras possibilidades de modificações corporais disponibilizadas hoje no mercado, através das quais são veiculadas tanto a promessa de “recolocar nas normas” o sexo e o gênero quanto aquela de “contestar estas mesmas normas”. E, a este respeito, formula a autora:

A psicanálise de Lacan traz uma contribuição muito mais original do que aquela que é habitualmente evocada hoje para sustentar uma ordem sexual rigorosamente bipolar, supostamente apta a nos defender do eventual perigo de uma disponibilidade-invenção de si e de sua sexualidade concebida como ameaçadora. (Ibidem, p. 326).

Vemos que, ao retomar em 2008, isto é, no contexto de seus esforços para extrair das ferramentas conceituais de Lacan a possibilidade de sustentar um outro discurso que não aquele que fez do Nome-do-Pai “uma norma para a família, a diferença dos sexos e a saúde mental”; ao retomar, então, em 2008, a mesma questão primeiramente formulada em 2000, uma outra contraposição parece nortear os avanços teóricos da autora. Ousamos afirmar que neste momento não importa mais tanto à autora contrapor os discursos sustentados, por um lado, pela psicanálise e, por outro, pelos estudos de gênero, mas, sim, elaborar um discurso psicanalítico capaz de se contrapor a determinados discursos articulados no interior mesmo do campo psicanalítico desde as discussões sobre o PaCS e, particularmente, “em relação às questões de identidade sexual” (MOREL, 2004MOREL, G. Ambiguités sexuelles: sexuation et psychose. Paris: Anthropos, 2004., p. 13). Ousamos também afirmar que o êxito da autora em elaborar este discurso se deveu (ao menos, em parte), primeiramente, a um acolhimento, rechaçado em um primeiro momento, das elaborações de Foucault e dos estudos de gênero e, em segundo lugar, a um olhar voltado para as práticas de construções e desconstruções dos sexo e do gênero que não são mais necessariamente norteadas pelas noções de “identidade de gênero” ou de “erro da natureza”, mas, sim, por outros “códigos, ritos e limites”, trazendo para a cena contemporânea problemáticas que vão além daquelas que foram colocadas, em seus respectivos tempos, para Freud e Lacan.

Com as formulações até aqui encaminhadas, e particularmente com o destaque conferido à inflexão percebida nos desenvolvimentos teóricos de Morel, buscamos destacar em que medida o pensamento de Foucault e os estudos queer, assim como as novas práticas de construções e desconstruções do sexo e do gênero, podem se revelar como ocasiões oferecidas à psicanálise para melhor se definir. Ou, mais precisamente, para fazer com os termos com que Lacan define a sexuação o mesmo uso que ele próprio sugeriu que fizéssemos dos termos com os quais Freud definiu a psicanálise: “Não como preceitos, mas como conceitos” (LACAN, 1956LACAN, J. Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956/(1956). In: LACAN, J. Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1998, p. 461-495./1991, p. 461)./

É possível destacarmos dois importantes momentos em que esta ocasião foi oferecida à psicanálise. O primeiro foi em 1978, com a publicação por Foucault do livro Herculine Barbin. O diário de um hermafrodita, e o segundo se deu mais recentemente, com a publicação em 2008 (2018 no Brasil) do livro de Paul B. Preciado, Testo junkie. Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. Julgamos que uma abordagem conjunta destes livros pode nos auxiliar a dar alguns tímidos passos na via de uma interlocução - cujo traçado se mostra hoje tão difícil quanto necessário - da psicanálise com as novas práticas e discursos sobre o sexo e o gênero que povoam as cenas dos sujeitos, das culturas e das políticas contemporâneas. É, portanto, para esta abordagem que vamos agora nos voltar.

Herculine e o “verdadeiro sexo”

Vai, maldito, cumpre o teu destino! O mundo que invocas não foi feito para ti. Não foste feito para ele também. Neste vasto universo onde todas as dores têm lugar, tu procurarás em vão um canto para abrigar a tua. Mas a esse canto tua dor macularia. Ela inverte todas as leis da natureza e da humanidade.

Herculine Barbin

O manuscrito que contém as memórias de Herculine Barbin foi encontrado em 1868, junto ao corpo de seu/sua autor/a, “hermafrodita” que viveu como moça até o início da juventude, quando, tendo sido “reconhecida” pela medicina como um “verdadeiro rapaz”, foi obrigada a mudar legalmente de sexo. A partir daí, escreve Herculine, “tudo estava feito: o estado civil me obrigaria a fazer parte daquela metade da raça humana a que chamamos de sexo forte” (FOUCAULT, 1978FOUCAULT, M. Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita/(1978). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983./1983, p. 85). Impossibilitada/o de adaptar-se à nova identidade, vê-se então sobre “um abismo cada vez mais profundo, no qual não [pode] mergulhar o olhar sem sentir uma horrível vertigem” (ibidem, p. 95). Aos vinte e cinco anos, é levada/o ao suicídio, anunciado como destino certo já nas primeiras palavras do diário. Como observa Foucault, em sua breve introdução, o diário narra a história de “um desses heróis infelizes” (ibidem, p. 5) cujo corpo foi arrancado dos prazeres experimentados no “limbo feliz de uma não identidade” (ibidem, p. 6)7 7 No livro Problemas de gênero (2003, p 140-155), Butler problematiza esta leitura de Foucault, tributária, a seu ver, de um ideal emancipatório incompatível com as próprias formulações que o filósofo desenvolve no primeiro volume da História da sexualidade. Não nos deteremos aqui na análise desta crítica, visto que ela fugiria do escopo de nosso artigo. Julgamos, entretanto, necessário fazer-lhe aqui menção. para que dele pudesse ser extraído, pelos dispositivos médicos e jurídicos então vigentes, o único, verdadeiro e indubitável sexo a que pertenceria.

Foucault encontra neste diário um raro arquivo, e mesmo um pivô, da “estranha história do verdadeiro sexo” (ibidem, p. 4). E isto porque os anos ao longo dos quais, como diz Herculine, “tudo se fez” - os anos 1860-70 - foram não apenas intensamente dominados pelo tema do hermafroditismo, como foram também aqueles nos quais a obstinada interrogação médica e jurídica sobre a verdadeira identidade sexual dos indivíduos foi mais teimosamente praticada. Mas Herculine é também um pivô desta história na medida que ela/ele “se localiza exatamente no ponto de ruptura de duas epistemes da sexualidade” (PRECIADO, 2018PRECIADO, P. B. Testo junkie, Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 400). Ou, nos termos de Lacqueur, de dois regimes de inteligibilidade do sexo: o regime da similaridade (modelo do sexo único ou monismo sexual), dominante até a idade clássica - regime que admitia tanto a mistura dos sexos em um mesmo corpo quanto a passagem de um sexo ao outro -, e o regime da oposição (modelo da diferença sexual ou binarismo sexual), hegemônico a partir do século XVIII, no qual a mistura é concebida como enganosa, ilusória e encobridora de um verdadeiro e único sexo, de modo que um indivíduo não poderia passar ao, mas apenas se fazer passar por outro sexo. É neste último modelo que passa a caber à medicina examinar cuidadosamente os corpos, para revelar os verdadeiros sexos que se escondem sob os disfarces da natureza, e ao direito reconhecer aquilo que a natureza determinou e fazer com que seja cumprida a sua lei: para cada corpo, um, e somente um, verdadeiro sexo.

No início da juventude, Herculine é retirada, pela episteme dimórfica moderna, do mundo antigo, monossexual, no qual vivia. Não podendo mais habitar o mundo antigo e não sendo tampouco capaz de viver no mundo moderno, é cortada/o de ambos, lançada/o em um vazio mortal. Nos termos de Preciado:

Herculine existe em um vazio entre dois quadros da representação do sexo, como se seu corpo tivesse caído na brecha que separa duas ficções divergentes do eu. Herculine não é um homem preso no corpo de uma mulher, tampouco uma mulher presa no corpo de um homem, e, sim, muito mais um corpo preso entre discursos discordantes de sexualidade. (PRECIADO, 2018PRECIADO, P. B. Testo junkie, Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 400).

Testo junkie: sobre o gozo e o corte

Este livro é a marca deixada por este corte.

Preciado

Como vimos, o diário de Herculine coloca em palavras as dores vividas por seu/sua autor/a no século XIX quando, em decorrência do reconhecimento médico de seu “verdadeiro sexo” e da imposição legal de mudança de nome e de identidade sexual, vê seu corpo ser jogado em um abismo que o/a leva à morte. As dores deste corpo e o modo como elas se fizeram palavras no diário se encontram na base das formulações teóricas foucaultianas, através das quais o autor elucida em que medida as categorias de “verdadeiro sexo” e de “diferença sexual” operavam estrategicamente no dispositivo moderno de poder: o dispositivo da sexualidade.

Transcorridos exatos trinta anos da publicação por Foucault do Diário de um hermafrodita, Paul B. Preciado publica seu próprio “diário”, Testo junkie, o qual revela ser, em diversos e importantes aspectos, um exato contraponto do primeiro diário.

Nas páginas de Testo junkie (2018), encontramos o relato, ou ainda, a “marca” do “experimento político” que Preciado, seguindo o princípio da auto-cobaia (isto é, sendo ao mesmo tempo o rato do laboratório e o sujeito que teoriza a seu respeito) e entrecruzando “teorias, moléculas e afetos”, realizou durante os 236 dias e noites em que aplicou em seu próprio corpo e por sua própria conta (fora de um protocolo médico) doses de testosterona, filmou cada uma das aplicações e enviou anonimamente os filmes a uma página da internet. Como observa o autor: “Nessa rede audiovisual, meu rosto é indiferente, meu nome é insignificante. Apenas a estrita relação entre meu corpo e a substância é objeto de culto e vigilância” (PRECIADO, 2018PRECIADO, P. B. Testo junkie, Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 22-23).

Antes de penetrarmos no conteúdo de livro, cabem alguns comentários introdutórios. Primeiramente, no que concerne ao nome de seu autor. Paul B. Preciado é o nome que o/a filósofo/a - até há pouco conhecido como Beatriz Preciado - passa, desde 2014, a adotar. Como esclarece, ao adotar coletivamente o nome masculino Paul, lhe é aberta a possibilidade de “habitar a masculinidade e o gozo político que isso implica” (PRECIADO; CURIA, 2015PRECIADO, P. B.; CURIA, D. A importância de chamar-se Paul. Entrevista concedida a Dolores Curia. 2015. Disponível em: <Disponível em: https://medium.com/@bryan_axt/a-import%C3%A2ncia-de-chamar-se-paul-a4bfaa1e21f6 >. Acesso em: 03/04/2017.
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). Por outro lado, através da permanência em seu novo nome da letra ‘B’, extraída de seu anterior nome feminino, guarda um “rastro da sua história pessoal que inclui o compromisso com os feminismos” (idem). Ainda a respeito desta mudança, Preciado esclarece que leva o seu novo nome como mais uma máscara e que, mais do que nomear uma nova identidade, ele representa a possibilidade de experimentar ser chamada por um nome no qual não se reconhece. Serve, portanto, segundo seus termos, como um “exercício para desidentificar-me” (idem).

Cabem também alguns esclarecimentos referentes ao nosso recurso ao termo “diário” para nos referirmos ao livro. Com efeito, se recorremos a este termo é para indicar a proximidade entre aquilo que interessa a Preciado na escrita de seu “diário” e aquilo que interessou a Foucault na leitura do “diário” de Herculine. Em primeiro lugar, tal qual Foucault, Preciado precisa que não lhe interessa registrar seus sentimentos individuais, mas, sim, o modo como eles são atravessados pelo que não é seu, “ou seja, por aquilo que emana da história de nosso planeta” (PRECIADO, 2018PRECIADO, P. B. Testo junkie, Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 13). Em segundo lugar, tal como Foucault encontrou no diário de Herculine os traços de um tempo esvaído sob a imposição do regime de poder da ciência moderna (fim do qual a morte de Herculine seria um rastro), Preciado afirma: “A mudança que acontece em mim é a mudança de uma época” (ibidem, p. 23). A esse respeito, não deixa de ser interessante observar que, nos dois diários, a figura da morte aparece entre as primeiras palavras. Entretanto, enquanto no diário de Herculine ela é prenunciada como seu destino inelutável, no diário de Preciado, ela remete a uma outra morte, que não a do autor8 8 No caso, a do escritor e militante gay Guillaume Dustan. ; morte esta referida como “a destilação humana de uma época” (ibidem, p. 13) marcada por uma forma de insurreição sexual que se esvai. É para vingar esta morte que Preciado busca experimentar, através da intoxicação voluntária de testosterona, uma nova modalidade de insurreição.

Com seu experimento, Preciado não visa transformar-se em um homem. Segundo seus termos: “Não quero o gênero feminino que me foi atribuído. Tampouco quero o gênero masculino que a medicina transexual me promete e que o Estado acabará me outorgando se eu bem me comportar” (PRECIADO; CURIA, 2015PRECIADO, P. B.; CURIA, D. A importância de chamar-se Paul. Entrevista concedida a Dolores Curia. 2015. Disponível em: <Disponível em: https://medium.com/@bryan_axt/a-import%C3%A2ncia-de-chamar-se-paul-a4bfaa1e21f6 >. Acesso em: 03/04/2017.
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). O que visa com a administração do testogel é, como diz, infectar-se com um significante químico culturalmente marcado como masculino, de modo a “contaminar as bases moleculares da produção da diferença sexual” (PRECIADO, 2018PRECIADO, P. B. Testo junkie, Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 153). Explica: o testogel, que acrescenta como prótese à sua “identidade transgênero low-tech feita de dildos, textos e imagens em movimento” (ibidem, p. 18) não é senão a materialização de uma cadeia de significantes sob a forma de uma molécula assimilável pelo seu corpo. Ele é “uma droga política, uma arma química com o potencial de fazer explodir o sistema sexo/gênero de dentro para fora” (PRECIADO; CURIA, 2015PRECIADO, P. B.; CURIA, D. A importância de chamar-se Paul. Entrevista concedida a Dolores Curia. 2015. Disponível em: <Disponível em: https://medium.com/@bryan_axt/a-import%C3%A2ncia-de-chamar-se-paul-a4bfaa1e21f6 >. Acesso em: 03/04/2017.
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). Nessa medida, sugere: o diário - onde são registradas as “micromutações fisiológicas e políticas” (PRECIADO, 2018PRECIADO, P. B.; CURIA, D. A importância de chamar-se Paul. Entrevista concedida a Dolores Curia. 2015. Disponível em: <Disponível em: https://medium.com/@bryan_axt/a-import%C3%A2ncia-de-chamar-se-paul-a4bfaa1e21f6 >. Acesso em: 03/04/2017.
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, p. 13) suscitadas pela testosterona em seu corpo - pode ser lido como um “manual de bioterrorismo de gênero em escala molecular” (ibidem, p. 14).

Seu corpo aparece, assim, no ensaio, como o espaço político de resistência por excelência. Mas isto em um sentido bastante preciso, cuja compreensão implica em situá-lo em um novo regime de poder. Retomando as formulações de Foucault e LaqueurLAQUEUR, T. La fabrique du sexe: essai sur le corps et le genre en Occident. Paris: Gallimard, 1992., Preciado indica que, a partir do século XVIII, a ciência operou como peça-chave do regime disciplinar para a legitimação de uma nova organização política do campo social através do estabelecimento de um binarismo sexual referido a uma verdade anatômica, fixado na diferença natural e imutável entre os corpos. Ao longo do século XX, entretanto, com a invenção da noção bioquímica de hormônio e o desenvolvimento farmacêutico de moléculas sintéticas para uso comercial, um novo regime de produção e governo dos sexos ganha forma. Trata-se do regime farmacopornográfico, constituído pela aliança entre o dimorfismo naturalista do século XXI e o hiperconstrutivismo da indústria biotécnica do século XXI. Regime a cujo poder “não se obedece, mas se traga. Em forma de cápsulas, pela boca ou se absorve pelos poros. É líquido, viscoso, aspirável e injetável. Às vezes, transparente. Sempre disposto a fluir” (PRECIADO; CURIA, 2015PRECIADO, P. B.; CURIA, D. A importância de chamar-se Paul. Entrevista concedida a Dolores Curia. 2015. Disponível em: <Disponível em: https://medium.com/@bryan_axt/a-import%C3%A2ncia-de-chamar-se-paul-a4bfaa1e21f6 >. Acesso em: 03/04/2017.
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).

Preciado apresenta uma história deste regime, que teria sua origem no início da década de 1940, com a obtenção das primeiras moléculas de progesterona e estrogênio e a posterior comercialização de hormônios sintéticos. Nos anos 1950, em decorrência das possibilidades de transformação corporal abertas pela administração de hormônios, junto com a flexibilização das identidades por conta da invenção sociológica da categoria de gênero, “a epistemologia do dimorfismo e da diferença sexual estava simplesmente em ruínas (PRECIADO, 2018PRECIADO, P. B. Testo junkie, Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 114). Entretanto, ao invés de produzir uma epistemologia alternativa (multifórmica), os discursos político-científicos decidiram fazer uso destas mesmas descobertas e práticas para “intervir diretamente nas estruturas dos seres vivos para construir artificialmente dimorfismo sexual” (ibidem, p. 115). O regime farmacopornográfico estabelece assim sua autoridade, transformando os conceitos de feminilidade e masculinidade em realidades materiais que se manifestam em substâncias químicas, hormônios sintéticos, moléculas comercializáveis. O novo regime não se opõe, portanto, ao anterior: ele o reproduz, o reitera, mas não deixa de introduzir nele importantes modificações. Vamos a elas.

Contrariamente ao modelo disciplinar, cujas tecnologias controlam o corpo a partir do exterior e concebem o sexo como a verdade que se oculta por trás do artifício, como aquilo que pode permanecer invisível sob uma aparência dissimuladora, o novo modelo - nos quais as tecnologias se tornam parte do corpo, diluem-se nele, tornam-se somatotécnicas - constrói artificialmente o sexo, o qual vai se revelar como verdade na superfície visível dos corpos. Nos termos de Preciado:

Enquanto o regime disciplinar do século XIX considerou o sexo natural, definitivo, imutável e transcendental, o gênero farmacopornográfico parece ser sintético, maleável, variável, aberto à transformação e imitável, assim como possível de ser tecnicamente produzido e reproduzido. (Ibidem, p. 116).

O resultado paradoxal deste regime de “tecnologias gelatinosas” (ibidem, p. 85) - no qual a característica distintiva do sexo está no gel; em que “o ser não é substância e sim gel” (ibidem, p. 429) - é que ele leva natureza e identidade ao nível de uma “paródia somática” (ibidem, p. 116). E é neste sentido que ele abre pontos de fuga para a resistência. Assim, por um lado, os aparelhos biotecnológicos que hoje operam sobre os corpos e as identidades sexuais reconfiguram os dispositivos de sujeição e controle, transformando-os em um “gigantesco e viscoso circuito integrado” (ibidem, p. 54) de “tecnologias biomoleculares, digitais e de transmissão de informação em alta velocidade” (ibidem, p 85): o corpo aqui vira “tecnovida nua” (ibidem, p. 52). Por outro lado, é por meio da reapropriação estratégica desses aparelhos biotecnológicos, da autoexperimentação destas “tecnologias suaves, ligeiras, viscosas e gelatinosas, que podem ser injetadas, inaladas, ‘incorporadas’” (ibidem, p. 85), que se torna possível inventar uma resistência, empreender uma micropolítica da desidentificação.

Os corpos, as redes farmacológicas, as redes de comunicação constituem, assim, os laboratórios políticos de construção e desconstrução do eu. Quem quiser ser um sujeito político, escreve Preciado, “que comece por ser rato de seu próprio laboratório” (ibidem, p. 370). Ou ainda, hacker de seu próprio corpo, hacker de gêneros, hacker sexual. Afinal de contas, observa, o corpo é “uma plataforma viva ainda mais facilmente acessível do que a internet” (ibidem, p. 411).

Conclusão

Tratamos, nas últimas páginas, de dois livros: o Diário de Herculine, referência fundamental dos estudos queer e Testo junkie, a mais recente produção destes estudos publicada no Brasil. Cabe agora indicar em que medida nos parece que dispor lado a lado estes dois livros pode nos ajudar a avançar alguns passos na via de articulação entre as formulações psicanalíticas sobre a sexuação, articuladas por Lacan nos primeiros anos da década de 1970, e as práticas e discursos queer colocados em cena a partir dos anos 1990.

Em primeiro lugar, parece-nos possível tomar estes dois livros como dois arquivo fundamentais - ou dois momentos cruciais - da história da produção política dos corpos sexuados. Em cada um deles, revela-se uma modalidade (ou um regime) específico de poder, intervindo, cada uma delas, por meio de um conjunto de tecnologias médicas de investimento dos corpos e de dispositivos jurídicos de controle de seus registros civis. Em cada um deles, destaca-se uma racionalidade própria por meio da qual os corpos poderão se reconhecer e ser reconhecidos em termos de homem ou mulher ou de outros termos. No Diário de Herculine, trata-se do regime disciplinar, cujas tecnologias controlam o corpo a partir do exterior para extrair dele seu verdadeiro sexo. Em Testo junkie, trata-se do regime farmacopornográfico: nele, as tecnologias diluem-se no corpo e tanto podem servir para reproduzir as normas disciplinares da sexualidade de produção e nomeação dos corpos masculinos e femininos quanto para apontar os limites destas normas, subverter os seus termos ou ainda, para o sujeito gozar deles e com eles.

Ao mesmo tempo, cada um destes livros narra a história de uma resistência. Herculine resiste a abandonar o “limbo feliz de uma não identidade” e a se adaptar à nova identidade que lhe é imposta. Sua resistência, aliás, a conduz ao ponto extremo do suicídio. A resistência experimentada em Testo junkie, por sua vez, não culmina, mas, ao contrário, parte da morte. Enfim, se as memórias de Herculine trazem as marcas de uma resistência que se traduziu em dor, a “ficção autopolítica” de Preciado se refere a uma experiência que se traduz, segundo seus próprios termos, em gozo político.

Ao debruçarmo-nos sobre estes dois “diários”, visamos apresentar ou, mais modestamente, sugerir, algumas das notáveis semelhanças e diferenças entre o cenário no qual foram, primeiramente encenadas as interlocuções críticas entre Foucault e Lacan, e entre Lacan e os estudos do gênero, e aquele no qual somos convidados hoje a encenar com os discursos e práticas queer, os quais articulam, em torno de novas normas (e em termos de outros nós), corpo e palavra, sexo e discurso, gozo e política.

Em sua introdução às memórias de Herculine, Foucault dirige uma crítica à participação da psicanálise na história do verdadeiro sexo, na medida em que ela integraria o conjunto de discursos que veiculam “a ideia de que entre sexo e verdade existem relações complexas, obscuras e essenciais” (FOULCAULT, 1978FOUCAULT, M. Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita/(1978). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983./1983, p. 3), prometendo-nos “nosso verdadeiro sexo e a verdade de nós mesmos que vela secretamente nele” (ibidem, p. 4). De fato, a depender da leitura que se empreende das formulações de Lacan sobre a sexuação, podemos, sim, integrá-la à história dos discursos que, chegando às raias da teimosia, afirmam a existência de um verdadeiro sexo, necessariamente homem ou mulher. Diríamos que, hoje, participam desta história diversas teorizações que encontram nas fórmulas lacanianas da sexuação subsídios para sustentar - para além de, e até mesmo contrariamente ao que é conferido naturalmente pela anatomia, construído artificialmente pelos dispositivos médicos e jurídicos como imagem corporal e nome civil e inscrito simbolicamente pelas normas da comunidade - uma real e inelutável diferença entre os sexos, entre os homens e as mulheres, referidos cada um deles a uma modalidade de gozo específica. Diríamos também que estas teorizações se baseiam hoje em grande medida em uma contraposição entre o que a experiência clínica e o corpo conceitual psicanalítico sustentam e aquilo que seria afirmado nas práticas e estudos queer, os quais são tomados como fortemente referidos à categoria identitária de gênero e considerados como insuficientes para apreender as “complexas, obscuras e essenciais” diferenças entre as diferentes posições de gozo e a repartição dos falantes entre homens e mulheres.

É, entretanto, também inquestionável que podemos encontrar - nas mesmas formulações de Lacan sobre a sexuação - subsídios, não tanto para sustentar uma real e incontornável bipartição dos falantes entre uma parte homem e uma parte mulher, mas, antes, para ler esta bipartição como uma resposta sintomática, comum9 9 “Comum” tanto no sentido de habitual quanto do que faz comunidade. , porém contingente, à real impossibilidade da relação sexual. Em seu tempo, Lacan foi levado a articular e sublinhar os termos desta impossibilidade não apenas através de uma rigorosa argumentação lógica, como também a partir de uma interlocução crítica com aquilo que algumas práticas e discursos fortemente sustentados na categoria identitária de gênero então sustentavam. Tanto a definição do transexual enquanto “aomenozum” (LACAN, 1971-72/2011LACAN, J. ... ou pior/(1971-1972). Rio de Janeiro: Zahar Editores , 2011. (O seminário, 19)., p. 15), que não sustenta no semblante a naturalidade da diferença, quanto a célebre formulação de que “a mulher não existe” (ibidem, lição de 12 de jan. de 1972) podem ser tomadas como exemplos desta interlocução. Se, no primeiro caso, a formulação se contrapõe explicitamente à noção de “núcleo de identidade de gênero” de Stoller, no segundo caso, aventuramo-nos à hipótese de que, com ela, Lacan estava se contrapondo aos contornos universalizantes que o movimento feminista de sua época estava conferindo à então nascente categoria identitária de “gênero feminino”. Talvez, nos tempos de hoje, elaborações como a de Preciado nos auxiliem a sublinhar o impossível da relação sexual em novos termos. Para destacarmos apenas dois pontos. Paul B. Preciado nos faz ver em que medida o “B” que porta em seu nome traz os vestígios de um feminismo e de uma concepção de gênero bastante diferentes daqueles que Lacan conheceu e que dificilmente poderiam ser categorizados como estudos que se detêm apenas na análise das dimensões imaginárias e simbólicas da identificação e dos quais a problemática do gozo estaria excluída. Faz-nos ver também em que medida o “tecnogênero” se apresenta como uma possível nova forma de habitar o lugar de aomenozum, lugar que, como destaca Fink, não é, nas obras de Lacan, “apenas a exceção que prova a regra, porém, mais radicalmente, aquilo que nos força a redefinir as regras” (FINK, 1998FINK, B. O sujeito lacaniano entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998., p. 155).

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    » https://medium.com/@bryan_axt/a-import%C3%A2ncia-de-chamar-se-paul-a4bfaa1e21f6
  • 1
    Como observa Louro (2001)LOURO, G. L. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. In: Estudos Feministas, 2001/2, UFSC, p. 541-553., o movimento queer engloba um conjunto diversificado de proposições teóricas e políticas que, ao redor dos anos 1990, passa a utilizar este termo para descrever as perspectivas de seu trabalho. Cabe destacar que, se o movimento é, por um lado, herdeiro das proposições desenvolvidas no contexto dos movimentos feministas (desde os anos 50), assim como “lésbicos e gays” e transgêneros (desde os anos 70), por outro lado, ele se define justamente pela problematização, em grande medida a partir das contribuições de Foucault, da categoria central, assim como das classificações identitárias e oposições de gênero (mulher/homem, lésbica/gay, trans/cis) nas quais estes movimentos se fundamentam. Esta nota visa não apenas esclarecer o leitor a respeito das divergências entre os movimentos, mas também indicar que, devido ao fato desta distinção terminológica ser bastante recente e demarcar uma fronteira às vezes bastante sutil, as referências às perspectivas do movimento queer poderão aparecer ao longo deste artigo em outros termos, tal como “estudos gays e lésbicos” ou “estudos de gênero”.
  • 2
    É Teresa de Lauretis quem propõe pela primeira vez, em artigo de 1990, o uso do termo queer em lugar da expressão lésbica e gay, então habitualmente usada para denominar as práticas e teorias desenvolvidas nestes dois campos. Como esclarece a autora, com o termo, ela buscava “marcar uma distância crítica” (LAURETIS, 2007LAURETIS, T. de. Queer theory and popular cultures: from Foucault to Cronemberg. Paris: La Dispute/Snédit, 2007., p. 98) em relação ao uso da expressão “politicamente correta ‘lésbica e gay’” (ibidem, p. 101), e isto na medida em que as diferenças entre estes dois campos eram, a seu ver, menos representados pelo “acoplamento discursivo” de seus termos do que, de fato, elididas pela partícula ‘e’ que ligava seus dois termos. Vale observar que, com esta nota, visamos não apenas situar historicamente a emergência do termo queer, mas também insinuar, mesmo que de forma bastante vaga, algumas aproximações possíveis entre as problemáticas aqui levantadas por Lauretis e aquelas levantadas por Lacan em sua teoria da sexuação.
  • 3
    Estes dois termos devem ser aqui referidos aos sentidos que respectivamente comportam em Foucault (regime disciplinar) e Lacan (discurso universitário).
  • 4
    O PaCS (pacto civil de solidariedade) é um contrato pelo qual é reconhecida uma união civil entre duas pessoas de sexos diferentes ou do mesmo sexo. Sua lei foi votada em 1999 e, embora tenha sido amplamente propagada entre os casais heterossexuais, sua proposta visava sobretudo permitir um reconhecimento civil das uniões homossexuais.
  • 5
    Estas formulações se encontram no post-scriptum escrito pela autora em 2004, na ocasião da publicação da segunda edição de seu primeiro livro, publicado originalmente em 2000.
  • 6
    Importante discípulo de Foucault e interlocutor crítico das teses de Butler.
  • 7
    No livro Problemas de gênero (2003BUTLER, J. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p 140-155), Butler problematiza esta leitura de Foucault, tributária, a seu ver, de um ideal emancipatório incompatível com as próprias formulações que o filósofo desenvolve no primeiro volume da História da sexualidade. Não nos deteremos aqui na análise desta crítica, visto que ela fugiria do escopo de nosso artigo. Julgamos, entretanto, necessário fazer-lhe aqui menção.
  • 8
    No caso, a do escritor e militante gay Guillaume Dustan.
  • 9
    “Comum” tanto no sentido de habitual quanto do que faz comunidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    18 Abr 2017
  • Aceito
    10 Out 2017
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