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O pai: uma questão sempre atual para a psicanálise1 1 O artigo se refere a parte da pesquisa da tese de doutorado intitulada Psicanálise, estrutura e laço social: por uma clínica do sujeito, defendida em 2012, na UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob orientação da profa. Dra. Sônia Altoé, com auxílio da FAPERJ - Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. Bolsista: FAPERJ - Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.

The father: an ever-present matter for psychoanalysis.

Resumo:

O objetivo do artigo é discutir a função paterna, investigando no texto lacaniano formulações fundamentais sobre a função do pai e sua relação com o sujeito do inconsciente, a fim de situar a diferença dessa função com a apresentação situacional do pai na realidade social. Defende-se a leitura de que o papel social do pai e a função paterna, tal como proposta pela psicanálise e trabalhada por Lacan, são campos diferentes de constituição do problema, que, embora possam estar relacionados, não se determinam. Podemos dizer que confundir esses diferentes modos de análise acarreta conclusões equivocadas sobre o sujeito da psicanálise e sobre a clínica, como sugere Lebrun na sua proposta de “neossujeitos”.

Palavras-chave:
Psicanálise; pai; sujeito; atualidade

Abstract:

The aim of this article is to discuss the paternal function, inquiring in the lacanian literature, fundamental formulations about the father and its relationship with the subject of the unconscious, for the purpose of situate the difference of this function with the father situational presentation in the social reality. It stands up for that the father social role and the paternal function, as proposed by psychoanalysis and worked by Lacan, are different fields of constitution of the problem, although may be related, do not determine each other. We can state that confusing these different modes of analysis leads to misleading conclusions about the subject of psychoanalysis and the clinic, as Lebrun indicates in his proposal of “neo-subjects”.

Keywords:
Psychoanalysis; father; subject; actuality

Introdução

Atualmente, produções sobre a especificidade e a novidade da clínica são abundantes no cenário psicanalítico. Elas abordam especialmente os impasses do diagnóstico e da condução do tratamento em face de novas configurações subjetivas. Nesse contexto, a questão do pai como categoria operacional para a constituição do sujeito é constantemente colocada, discutindo-se em especial se ainda seria uma categoria válida para a clínica contemporânea. Para verificar a pertinência deste debate, este artigo objetiva investigar no texto lacaniano formulações fundamentais sobre a função do pai e a sua relação com o sujeito.

Procuramos trabalhar a questão do pai a partir de dois pontos na obra de Jacques Lacan: o Nome-do-pai como metáfora paterna e o Nome-do-pai como quarto elo do nó que une e faz consistir real, simbólico e imaginário. O primeiro ponto refere-se à consideração “estrutural” que Lacan procura dar ao Édipo freudiano, em especial no seminário de 1957-1958, em que a metáfora paterna figura como uma metáfora especial, na qual o Nome-do-pai substitui o desejo da mãe, fazendo consistir para o sujeito a possibilidade de metaforização. A noção de Nome-do-pai como quarto elo que enlaça real, simbólico e imaginário, por sua vez, permite pensar o Nome-do-pai como um operador para a psicose. Aqui, não se trata do pai como metáfora, mas do pai como possibilidade singular de nomeação. Nossa referência para esta discussão é o seminário R.S.I., de 1974-1975.

Esperamos que, ao percorrer essas duas referências básicas das formulações lacanianas sobre o pai, possamos nos posicionar melhor em relação à ideia muito difundida da carência do Nome-do-pai na contemporaneidade devido a mudanças na configuração familiar e à diminuição da autoridade do pai na família, como nos parece apontar equivocadamente Jean-Pierre Lebrun (2004LEBRUN, J.-P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.). Além do risco moralista inerente a essa concepção, consideramos que são maneiras diferentes de considerar o problema: o pai como operador de estrutura e o pai como agente social na instituição família, conforme buscaremos mostrar no desenvolvimento deste artigo.

A metáfora paterna

No seminário sobre as formações do inconsciente, Lacan (1957-1958/1999) chamou de Nome-do-pai a inscrição da lei do pai que circunscreve a falta e possibilita ao sujeito desejar, ultrapassando a posição de objeto do desejo, confrontando-o com a vertente da castração e permitindo que ele opere com ela. Nesse contexto, o pai é o pai simbólico, é uma metáfora, um significante que substitui outro significante, que substitui precisamente o significante materno.

Na relação da criança com o Outro primordial - aquele que oferece os cuidados necessários para a sobrevivência da criança e porta para esta as leis da linguagem por sua própria inserção -, um terceiro já está, de saída, incluído, uma vez que é pela mediação que essa relação se dá. A mãe deseja o falo, lugar que a criança pode ocupar para ela, mas que se constitui por representar a organização do objeto como faltante - um objeto não ocupa completamente esse lugar. A criança, por sua vez, identifica-se com o falo, com esse objeto faltante que modela o desejo. Trata-se da posição da mãe como mulher, como sexuada, do irredutível da ordem do sexual, que se apresenta e impossibilita estruturalmente o encontro pleno com o objeto. A mãe se situa na partilha dos sexos, é desejante, dirige-se ao Outro. Há, portanto, desde sempre, uma alteridade presentificada para a mãe e para a criança, que é a própria estrutura da linguagem, mas, nesse primeiro tempo de constituição do sujeito, esse terceiro aparece velado.

A relação mãe/criança, portanto, só se apresenta como dual e completa no registro imaginário porque o simbólico e o real estão presentes aí, desde sempre, descompletando-a. Entretanto, essa suposição imaginária da relação com a mãe implica um sujeitamento aos caprichos do Outro. É preciso que a mãe funde o pai como mediador da lei, como aquilo que está para além dela e de seu capricho, instituindo um terceiro, para que o sujeito em constituição ultrapasse essa posição inicial de sujeição ao Outro. O terceiro está por relação à mãe em sua condição sexuada. É por sua condição sexuada que ela se refere a ele. Assim, é preciso que essa alteridade descompletante, que, num primeiro momento, aparece como velada, se apresente como uma falta constitutiva, atuando sobre a mãe e sobre a criança.

O pai aparece, então, como aquele que inscreve uma possibilidade para o sujeito em constituição, figurando como quem priva a mãe do objeto de seu desejo, ao mesmo tempo em que retira a criança desse lugar de objeto. O pai funciona como esse terceiro, presente desde o início, mas que intervém em determinado ponto reafirmando sua alteridade, ponto irredutível de diferença, indicação da incompletude constitutiva do sujeito e do Outro, e a possibilidade de operar a partir dela. Conforme articula Lacan, (1957-1958/1999LACAN, J. As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 5).) é como se enunciasse duas proibições: “Não te deitarás com tua mãe”, endereçada à criança, e “Não reintegrarás o teu produto”, endereçada à mãe. Isso que é enunciado no campo da fantasia como proibição expressa a transmissão mesma da estrutura da linguagem em sua impossibilidade de completude.

A metáfora paterna representa a operação em que o Nome-do-pai (NP) substitui o Desejo da Mãe (DM). O Desejo da Mãe corresponde às simbolizações da criança diante da ausência da mãe ou, mais especificamente, ao questionamento da criança (do sujeito em constituição) diante da alternância entre a presença e a ausência da mãe. Pergunta que podemos formular, forçando uma simplificação imaginária: “Onde está a mãe quando não está comigo?” ou, mais nomeadamente, um questionamento sobre para onde aponta o desejo da mãe. Desse modo, esse Outro primordial é vivido pelo sujeito em constituição como extremamente caprichoso: ora presente, ora ausente a seu bel-prazer.

É importante deixar claro que a metáfora paterna não é a resposta ao enigma do Desejo da Mãe, mas a sustentação da questão sobre o que a mãe deseja, uma vez que oferece o falo como resposta. O significado é, de saída, desconhecido para o sujeito e a metáfora paterna é a operação que produz o falo no lugar desse desconhecido. Entretanto, o falo como significante do desejo é o significante mesmo da movimentação desejante, de modo que a resposta que representa é um reenvio ao deslocamento do desejo sempre em defasagem com relação ao seu objeto. O significante fálico significa que o significante, ao contrário do signo, não está fixado a um significado, mas se liga a outros significantes produzindo significados pontuais para um sujeito. A resposta que o falo fornece é uma resposta não toda que, ao mesmo tempo em que possibilita a significação, mantém o sem sentido do significante. Assim, a metáfora paterna opera uma mudança no modo como o Outro é constituído para o sujeito, de um Outro absoluto e caprichoso para um Outro desejante e enigmático.

Lacan (1957-1958/1999LACAN, J. As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 5).) apresenta na metáfora paterna a função normatizante do pai no complexo de Édipo. Não se trata, todavia, de uma proposta moralizante no sentido de que não propõe modos ou normas preferenciais de funcionamento. A metáfora paterna seria uma operação normativa no sentido de possibilitar a produção de normas. Operação esta que permite ao sujeito um manejo da falta que o atravessa, consentindo inscrevê-la e operar a partir dela.

A invocação da metáfora paterna

A metáfora paterna funda o sujeito como efeito do significante, mas numa lógica muito particular em que o efeito deve responder de seu lugar como operador ativo de sua constituição. Isso implica, conforme destaca Luciano Elia (1999ELIA, L. A invocação do significante. In: JIMEZ, S.; MOTTA, M. B. (orgs.). O desejo é o diabo: as formações do inconsciente em Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria, 1999.), que o significante Nome-do-pai deve ser invocado para que seja efetivamente operante. Nesse sentido, Lacan afirma que “é preciso ter o Nome-do-pai, mas é preciso também que saibamos servir-nos dele. É disso que o destino e o resultado de toda a história podem depender muito” (LACAN, 1957-1958/1999LACAN, J. As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 5)., p. 163).

A metáfora paterna instaura a possibilidade de significação, mas, nesse mesmo processo, constitui toda significação como parcial. Ela inscreve para o sujeito que todo sentido é produzido e parcial, mas é preciso que o sujeito endosse essa operação. Trata-se, segundo Elia, de uma evocação, ato em que o sujeito faz valer a ordem do significante: “Isto significa que o ‘puro’ significante, o significante, na sua ‘estúpida e inefável’ existência, não serve para nada se não for invocado pelo sujeito” (ELIA, 1999ELIA, L. A invocação do significante. In: JIMEZ, S.; MOTTA, M. B. (orgs.). O desejo é o diabo: as formações do inconsciente em Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria, 1999., p. 146). Isso também implica que só podemos falar do Nome-do-pai numa análise a partir do modo como se verifica que ele opera para um sujeito.

A fim de que o Nome-do-pai se faça para um sujeito, é necessário que o sujeito consinta a castração que ele evoca, é imprescindível que o sujeito diga sim. É a partir desse ato de convocação que o Nome-do-pai pode funcionar como ordenador da estrutura do sujeito. Dessa maneira, o sujeito é sempre responsável por sua própria condição de sujeito, como afirmou Lacan. Não se trata de uma pura e simples subordinação ao Nome-do-pai, mas de um modo de servir-se desse operador. O sujeito deve consentir o Nome-do-pai para que este opere. Trata-se, no entanto, de uma lógica peculiar. O sujeito é a resposta à convocação à Lei, mas no sentido de que não arbitra conscientemente esse ato. É responsável por seu ato de constituir-se sujeito, mas essa responsabilidade é uma questão de estrutura, não de julgamento, conforme Elia (2007ELIA, L. O conceito de sujeito. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.).

O pai idealizado do neurótico

Ao trabalhar o discurso da histérica, em seu seminário de 1969-1970, Lacan traz o caso Dora e critica os limites do trabalho de Freud, por este considerar o complexo de Édipo um saber com pretensão de verdade. O discurso histérico engendra um pai ao qual é preciso atribuir mestria, mas a histérica sabe que o saber por ela atribuído ao pai é atribuição, verdade de gozo que ela vela na própria divisão subjetiva. O pai figura, então, como mestre idealizado, como consequência do desejo da histérica. Ao escutar as histéricas e encontrar em suas falas o correlato do complexo de Édipo, Freud (1913/1996FREUD, S. Totem e tabu (1913) Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 13).) escuta o mito, verdade revelada; mas, para a própria histérica (e Freud nota isso), trata-se de uma idealização. O pai é, de saída, castrado. É na idealização da histérica que ele aparece como portador do falo, que ele, de fato, não tem. Como define Lacan posteriormente: “O mito é isso, a tentativa de dar forma épica ao que se opera pela estrutura” (LACAN, 1973/2003LACAN, J. Televisão (1973). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003. P. 508-543. , p. 531).

Lacan considera, desse modo, o mito freudiano do pai ao qual o gozo não era limitado, chefe da horda que conheceria o gozo pleno e o toma como estrutural; posição de exceção que permite pensar a universalidade da castração. O gozo pleno é uma impossibilidade de estrutura. A proibição é uma via para criar a fantasia de sua possibilidade. Não há encontro pleno com o objeto, das Ding falta desde sempre. As construções psíquicas tentam circunscrever esse impossível. O gozo suposto ao pai da horda primitiva, gozo pleno e irrestrito, é mítico, barrado aos seres falantes. O sistema totêmico, instituído pelos membros do clã, erigiria proibições que viriam a regular as relações entre os irmãos, circunscrevendo essa impossibilidade num conjunto de proibições e regulações e, assim, possibilitando um manejo dessa impossibilidade estrutural. O pai idealizado da histérica, em relação ao qual ela considera seu pai sempre aquém, mostra como esse pai é um sonho neurótico. Vidal (2005VIDAL, P. Freud e a nostalgia do pai. In: BERNARDES, A. (org.). 10 x Freud. Rio de Janeiro: Azougue, 2005.) trabalha a ideia do pai em Freud como uma nostalgia do neurótico, que ele considera a partir do mito da horda primitiva, trazido por Freud em Totem e tabu, de 1913. Nostalgia de um gozo pleno que não teve lugar senão na construção mítica da neurose.

O pai da horda possuía gozo ilimitado sobre todas as mulheres, gozo que era negado aos filhos. Estes, revoltosos, se unem, matam o pai e celebram um banquete com sua carne. Nenhum deles, entretanto, poderá ocupar o lugar do pai primitivo, sob pena de ter o mesmo destino. Em seu lugar, erigem um conjunto de regulações da relação entre eles encarnado no Totem. No entanto, essa substituição, vivida como uma substituição, traz para os irmãos a nostalgia do pai perdido. Esse ato parricida, ato mítico, inaugura a história para o homem, através da instauração de um furo: o gozo pleno não é possível a ninguém.

Freud (1913FREUD, S. Totem e tabu (1913) Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 13)./1996) procurou dar conta dessa perda de gozo por meio do complexo de Édipo, no qual o pai aparece como uma função normatizante que prescreve uma limitação para o gozo, mas também um modo possível de acesso a ele. O pai interdita o objeto incestuoso, mas abre a via de acesso aos demais objetos. O assassinato do pai, como parece figurar no mito de Édipo, não é condição de acesso ao gozo da mãe. Pelo contrário, é a morte do pai, como Freud traz em Totem e tabu, que edifica a interdição do gozo. O próprio Freud destaca isso ao indicar que o pai da horda parece ter mais força depois de morto, ao encarnar-se simbolicamente no totem. Do mesmo modo, em Édipo, a morte do pai parece abrir as vias para o gozo da mãe. Porém, quando essa morte se constitui para Édipo, esse gozo é interditado - Jocasta se mata, Édipo fura os próprios olhos. De qualquer forma, o mito traz esta dupla via de relação com o gozo: sua regulação e interdição e, ao mesmo tempo, a possibilidade ou suposição de um ultrapassamento dessa interdição. O pai morto seria, assim, uma forma de manter o pai todo poderoso.

Lacan considera que, além da dimensão do assassinato e do gozo (assassinato do pai e gozo da mãe), é necessário considerar a dimensão da verdade no mito de Édipo. Foi por ter libertado o povo da Esfinge, ultrapassando seu enigma, que Édipo teve acesso ao gozo da mãe. Ao responder ao enigma da Esfinge, um semidizer expresso em seu duplo corpo, Édipo suprime o suspense que a questão da verdade introduz ao povo tebano. Essa verdade como semidizer, que Édipo afasta ao decifrar o enigma da Esfinge, ressurge para ele ao longo da história de maneira tão intensa que é preciso cegar-se. Ao gozo, sobrevém a castração. É a castração que se transmite de pai para filho; e Freud mesmo o destaca. É a castração que se transmite, castração essencialmente simbólica, concebida na articulação significante. No Édipo, é o pai, já morto, que funciona como um operador estrutural que interdita o gozo ao filho, ao mesmo tempo estabelecendo um modo de gozar. Também, é a morte, como incognoscível, como real, como impossível, que funciona como ponto de interdição, situando o gozo total, pleno, absoluto, de saída, como impossível.

Para falar do pai, Freud (1913FREUD, S. Totem e tabu (1913) Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 13)./1996) parte daquilo que a histérica lhe fala, por isso ele trata de um pai idealizado, mestre suposto. Mas, como o próprio desejo da histérica revela, é um pai que, de saída, é castrado: não há mestria absoluta. Partir da histérica para falar do pai implica que Freud aborda, desde seus trabalhos iniciais, o pai como uma construção neurótica, um artifício da estrutura neurótica, a fim de dar conta da castração. Discutindo essa posição de Freud, LacanLACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. (O seminário, 17).(1968-1969/2008) traz o Nome-do-pai como um significante mestre eleito pelo neurótico acatado por Freud. O destaque de Lacan aqui é o pai como Nome; nesse sentido, como amarração simbólica, como eixo que ordena o discurso e permite ao sujeito um enquadre para o real. Por isso, ele pode afirmar que, de saída, o pai está morto, e é por estar morto que seu nome pode efetuar uma operação estruturante para o sujeito que o evoca. A essência da função do pai como nome, e como tal, como eixo do discurso, decorre de que o pai é uma questão de fé, nunca se pode saber quem é o pai. O Nome-do-pai é o eixo em torno do qual gira o campo do sujeito porque se mantém como simbólico (LACAN, 1968-1969/2008LACAN, J . De um outro ao Outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. (O seminário, 16).).

O pai e a lógica dos nós

No seminário R.S.I., Lacan (1974-1975LACAN, J.R.S.I. ( 19741975). Seminário inédito. Versão da Escola Brasileira de Psicanálise. (O seminário, 22)., inédito) desenvolve essa função nomeante do pai ao propor, com o recurso à topologia, sua função como quarto elo no nó que enlaça o real, o simbólico e o imaginário. O Nome-do-pai, em sua função nomeante, refere-se à estruturação de um furo, ao mesmo tempo em que constitui um enodamento e um furo, conferindo consistência ao real, ao simbólico e ao imaginário em sua ex-sistência (uma consistência não imaginária). Conforme Lacan mesmo enuncia:

Colocarei, se posso assim dizer, este ano a questão de saber se, quanto àquilo de que se trata, a saber, o atamento do Imaginário, do Simbólico e do Real, é preciso essa ação suplementar, em suma, de um toro a mais, aquele cuja consistência seria de referir-se à função dita do Pai. (LACANLACAN, J. Confererência A terceira (1974). Cadernos Lacanianos. Porto Alegre, APPOA, 2002, v.2. Disponível em <Disponível em http://www.appoa.com.br/livros/cadernos-de-lacan-2-deg-parte/779 >. Acesso em 02 ago. 2018.
http://www.appoa.com.br/livros/cadernos-...
, 1974-1975, aula de 11 fev. 1975).

É como se o quarto elo explicitasse a função do Nome-do-pai implícita ao enodamento dos três, destacando sua função nomeante.

O Nome-do-pai pode ser entendido neste contexto como um mínimo de inscrição simbólica que não pode ser eliminado. Um nó que enlaça, simultaneamente, o real, o simbólico e o imaginário, pois um nó nada mais é do que um furo e uma modulação em torno que dá consistência a esse furo, como analisa Guimarães (2008GUIMARÃES, B. A. Os paradoxos do Outro: inexistência ou incompletude? Revista Estudos Lacanianos, v. 1, n. 1, Belo Horizonte, jan./jun. 2008, p.105-112.).

Tendo em vista essa nova alçada do Nome-do-pai, Lacan (1974-75) retoma de uma nova maneira o Édipo freudiano, considerando-o uma operação que constitui uma amarração para o sujeito, ou, talvez pudéssemos mesmo dizer, como um dos nomes do pai. Afirma que, para que Freud abordasse, a seu modo, o enodamento real, simbólico e imaginário, foi-lhe necessário lançar mão do conceito de realidade psíquica - estenografia da constituição para o sujeito desse enodamento. O Édipo, criticado por Lacan como um sonho neurótico tomado por Freud como verdade, figura como uma possibilidade de amarração, para o neurótico, dos registros, constituindo o campo que o neurótico reconhece como realidade. Assim, Édipo e realidade psíquica figurariam para Freud como Nomes-do-pai. Podemos dizer que, ao pluralizar as possibilidades de amarração, Lacan realça a impossibilidade em que o sujeito se funda (castração) e também a precariedade dos manejos dessa impossibilidade (Nomes-do-pai). Há, assim, uma destituição do lugar imaginário do pai como resposta ao enigma da castração, mas, vale lembrar, lugar que só possuía completude no imaginário do neurótico.

Real, simbólico, imaginário e o nó que os ata - maneira de fazê-los consistir para um sujeito - constituem, para Lacan, os Nomes-do-pai. O nó evoca, dessa forma, um posicionamento singular dos registros. O nó com três elos não permitiria uma orientação dos registros. É o quarto elo que imprime essa função. Mas o quarto elo não é uma representação fixa; é o suporte de uma função de nominação, já que “o nó não é um modelo. E mais, o que faz nó não é imaginário, não é representação, mas sua característica é justamente isso, é com o que escapa a uma representação” (LACAN, 1974-75, lição de 15 abr. 1975LACAN, J.R.S.I. ( 19741975). Seminário inédito. Versão da Escola Brasileira de Psicanálise. (O seminário, 22).).

O Nome-do-pai é uma operação de nominação que estabelece para o sujeito essa relação, possibilitando para este a constituição de um lugar no campo do Outro e de um posicionamento em relação ao gozo. Esse operador viria constituir modos de produção de sentido e de gozo. Modos esses plurais e não totalizantes, mas, ainda assim, uma operação que permite ao sujeito constituir uma posição no campo do Outro. O Nome-do-pai, como quarto elo, faz consistir em Real, Simbólico e Imaginário, imprimindo, para um sujeito, um modo de relação entre eles. A essência do pai como nome é fornecer uma ficção estabilizadora. É a própria estrutura da linguagem, agenciada por um furo, que se funda para o sujeito com o recurso ao Nome-do-pai. Cada sujeito pode constituir para si um modo singular desse operador, um número indefinido, como indica LacanLACAN, J.R.S.I. ( 19741975). Seminário inédito. Versão da Escola Brasileira de Psicanálise. (O seminário, 22). (1974-75) Mas o Nome-do-pai, a fim de se constituir como tal para um sujeito, precisa funcionar como esse operador, que ordena os registros e permite ao sujeito lidar com o insuportável da falta do Outro.

Defende-se, aqui, a leitura de que a retomada lacaniana da questão do pai sob a vertente dos nós não significa o abandono dos princípios em que se baseava anteriormente, mas a retomada desses princípios sob outro viés. Esse movimento não implica uma superação da função paterna, mas, sim, uma variação da função, que produz efeitos diferenciados, ampliando as possibilidades de trabalhar a clínica do sujeito a partir desse operador.

Sustentamos, então, a atualidade da questão do pai para a clínica psicanalítica contemporânea. Gostaríamos de destacar a função do Nome-do-pai, ou melhor, dos Nomes-do-pai, como resposta singular à questão estrutural e insuportável para o sujeito da inconsistência do Outro. Trata-se de uma falha inerente ao Outro, falha radical que diz respeito à sua incompletude, quer pensemos em termos de significações ou de gozo. A própria estrutura não toda do significante, estenografada por Lacan em S (Ⱥ), significante do Outro como faltoso, presentifica essa falta estrutural em que se fundam os seres falantes. Isso implica que o sujeito não encontra no Outro um referente que lhe permita construir um sentido inequívoco, nem uma resposta ao enigma do seu gozo. A metáfora paterna se apresenta na neurose como uma resposta a essa impossibilidade de totalização no campo significante, forjando para o sujeito uma amarração metafórica para o sentido e para o gozo. Na psicose, uma vez que essa amarração não se dá para o sujeito, é preciso recorrer a outras formas de lidar com a incompletude do Outro, outras formas de constituir uma amarração. A consideração do Nome-do-pai como quarto elo - que amarra e faz consistir real, simbólico e imaginário a partir de um furo, a, que implica a pluralização dos Nomes-do-pai - é um recurso de Lacan para dar conta da singularidade das respostas subjetivas.

Temos, aqui, dois níveis de problema: a estrutura não toda da linguagem e as estruturas clínicas. As estruturas clínicas nomeiam modalidades de resposta à estrutura não toda da linguagem. A constituição de uma estrutura clínica marca uma resposta do sujeito à falha inerente à condição de subordinação à linguagem. A metáfora paterna funciona como um operador que permite pensar a diferença da resposta neurótica com a resposta psicótica. Na psicose, como a metáfora paterna não se constitui para o sujeito como uma amarração, ele necessita lançar mão de outras possibilidades de nomeação para esse real insuportável que emerge da falta do Outro, de outros Nomes-do-pai. A função do pai, quer pensada na perspectiva de uma resposta única, quer pensada como respostas plurais, implica, entretanto, um fracasso, uma vez que não pode responder à falta que é convocada a responder. Trata-se da constituição de possibilidades de manejo desse hiato intransponível, que, como tal, implica ao mesmo tempo um sucesso e um fracasso, ou melhor, um sucesso que só pode se apresentar na categoria do não todo. O trabalho de análise viria na tentativa de possibilitar outro manejo dessa alternativa singular que não sua subordinação ao sintoma, um “saber fazer aí” com o sintoma, um sinthome, como articula Lacan.

Considerar a questão do pai como apresentamos torna estranho pensar que, na atualidade, há uma carência do Nome-do-pai ou da lei simbólica, de tal forma que esse operador, e, com ele, a diferença estrutural, não serviriam mais para a clínica. Não faz sentido porque o pai, como resposta a um impossível, sempre falha. Freud (1913FREUD, S. Totem e tabu (1913) Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 13)./1996) já trazia o pai como um recurso neurótico, mas um recurso que não dá conta de resolver o problema, tendo como efeito o sintoma neurótico. Assim, o questionamento da autoridade e dos ideais não corresponde a uma não funcionalidade do pai como nome para um sujeito. Ou seja, é diferente considerarmos a função do pai como um operador na estrutura ou como um agente social histórico.

Alguns comentários sobre a carência do pai

Após a retomada desses fundamentos a respeito da leitura lacaniana da função do Nome-do-pai como metáfora e como possibilidade nomeante, podemos retomar a proposição de Lebrun (2004LEBRUN, J.-P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.) de que o pai não se apresenta como operador para os sujeitos na contemporaneidade. Consideramos, de saída, que a construção dessa tese é problemática, pois supõe que o pai tenha sido um operador funcional que teria perdido sua funcionalidade devido a mudanças sociais; ou seja, supõe o pai idealizado do neurótico. Além disso, supõe uma relação direta e determinista entre eventos sociais e o sujeito do inconsciente.

Vamos nos limitar a comentar o livro de Lebrun, Um mundo sem limite (2004LEBRUN, J.-P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.), devido à importância que suas ideias ganharam com a grande divulgação que ocorreu no meio psicanalítico e fora dele. O autor busca, como ponto central para suas análises, caracterizar a constituição psíquica na contemporaneidade decretando sua precariedade. Na introdução, já é colocada a discussão a respeito da diminuição da autoridade paterna e, como consequência dessa mudança social, a derrocada do sujeito, que, segundo Lebrun (2004), não pode mais ser pensado pela clínica tradicional, uma vez que esta o considera essencialmente dividido e, hoje, ele não se constituiria mais a partir dessa divisão. O autor propõe, então, que os fenômenos clínicos atuais expressam o que ele nomeia como neossujeito, sujeito não atravessado por uma divisão constitutiva.

Insistimos em afirmar que não é a mesma coisa falar em falta da função do pai na estrutura e perda da autoridade do pai em seu papel familiar, como parece fazer esse autor (LEBRUN, 2004LEBRUN, J.-P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.). O pai trazido por Freud para o seio da psicanálise é o pai de uma cena trágica, o pai cuja autoridade declina, o pai construído pelo neurótico como um lamento. Será que, atualmente, diante do que se considera como uma crescente diminuição da autoridade do pai na família, este se configuraria para o sujeito de modo diverso ou, ainda, faltaria em seu lugar? Pode-se considerar que há similaridade entre a perda ou diminuição da autoridade do pai na família e a falta de sua função para o sujeito? Alguns, como Lebrun (2004LEBRUN, J.-P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.), sugerem que há similaridade direta, o que nos parece equivocado.

A família freudiana é a família da cena inconsciente, povoada por personagens que agem como heróis trágicos, como aponta Roudinesco (2003ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003). É a família trazida pela fala de um paciente em análise, família construída fantasmaticamente no discurso da histérica. Que nessa Outra cena apareçam elementos da cena social, não quer dizer que esta determina aquela, mas que esta oferece elementos com os quais aquela opera o manejo das questões estruturais que lhe são próprias.

Lebrun (2004LEBRUN, J.-P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.) não faz essa leitura. De acordo com esse autor, para que a função paterna se dê, é preciso que o meio social legitime essa função e sustente a intervenção do pai, homologando-a. Segundo ele, na sociedade ocidental contemporânea, esse lugar do pai como Nome-do-pai, como função que inscreve um terceiro, circunscrevendo a dimensão da falta para o sujeito ao mesmo tempo em que possibilita um manejo dessa dimensão, não é legitimada. Ao contrário, para ele, presenciamos um maior envolvimento dos pais com a função materna: função de cuidado, maternagem, por exemplo. Desse modo, a assimetria parental não poderia se inscrever e o processo de constituição subjetiva ficaria comprometido, surgindo, então, o que ele denomina como os neossujeitos aquém de uma posição de sujeito, aquém de sua divisão essencial.

De fato, temos que levar em conta que os acontecimentos que vêm ocorrendo em ritmo acelerado desde 1960 - como o crescente aumento da igualdade de direitos entre os sexos, a possibilidade de intervenção do Estado sobre o pátrio poder, os exames de DNA que tomam a questão da paternidade pela via da determinação biológica, e as novas e multifacetadas formas de organização familiar - colocam um novo panorama para os atores da cena familiar. É imprescindível questionarmos, entretanto, que lugar essas mudanças sociais, que determinam diferentes papéis para os pais e mães de nosso tempo, encontram junto às funções materna e paterna, como operadores, que permitem a constituição do sujeito do inconsciente. Ou seja, será que podemos considerar como problemas de um mesmo campo? E, nessa mesma linha de raciocínio, podemos dizer que modificações na configuração familiar responderiam por modificações na constituição do sujeito?

A tese de Lebrun (2004LEBRUN, J.-P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.) se fundamenta na premissa de que não existe corte entre o campo social e a cena familiar. A isso, poderíamos acrescentar que o autor parece não considerar também que existam cortes entre a configuração social da família e a Outra cena, o inconsciente como palco das elaborações do sujeito. Seguindo esse ponto de consideração do problema, que torna correlatas as questões do inconsciente e do social, Lebrun afirma que “o lugar para o pai está atualmente abalado e que, assim, é todo o equilíbrio de forças presentes que se verifica ameaçado” (LEBRUN, 2004LEBRUN, J.-P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004., p. 97). Na perspectiva do autor, para que a função paterna se dê, primeiro é fundamental que a mãe sustente o lugar desse pai em seu discurso, “depois é preciso que aquele que sustentará para a criança ser o pai real intervenha em carne e osso para atualizar concretamente essa terceiridade, e é o fato de efetivamente sustentar a criança em seu trajeto que assegura o que habitualmente se entende por papel do pai” (ibidem, p. 42). E ainda é necessário que o meio social legitime essa intervenção do pai, o que não acontece em nossa época, conforme Lebrun.

A tese com a qual trabalha Lebrun (2004LEBRUN, J.-P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.) é a de que as consequências da ciência no campo social foram responsáveis pela não funcionalidade do pai como operador para o sujeito na constituição de uma resposta à castração. Isso se dá uma vez que a ciência visa a um discurso sem enunciação e, aliando-se à técnica, oferece objetos para que os homens não tenham que se haver com o hiato em que a própria condição humana se funda, pois,

assim, passamos de um mundo limitado para um mundo que se pode mostrar sem limite. De um mundo orientado pela referência ao Pai, a um grande Outro que tinha o encargo de lembrar o limite, migramos para um mundo em que é a inexistência de um Outro que é a regra. (LEBRUN, 2004LEBRUN, J.-P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004., p. 161).

Nesse contexto, o sujeito não se constituiria como tal, pois não há Outro, nem terceiro, nem significante ou inconsciente, mas significado, imaginário e gozo. Embora Lebrun (2004LEBRUN, J.-P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.) proponha a insistência da psicanálise mesmo nessas condições, que, segundo ele, não propiciam a constituição do sujeito do inconsciente, poderíamos acrescentar que essas conclusões apontam um contexto em que a psicanálise não se faz necessária, sendo o tratamento medicamentoso e as terapias cognitivo-comportamentais as intervenções mais adequadas para reaver a ilusão de tamponamento do sujeito sem falta.

Diante desse quadro, a solução de Lebrun (2004LEBRUN, J.-P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.) é propor uma clínica do social, na qual caberia ao psicanalista restabelecer a categoria do pai. Podemos dizer, após a leitura deste trabalho, que caberia ao psicanalista ser o restaurador de uma ordem sonhada em tempos outros, o que nos parece uma nostalgia tipicamente neurótica.

Considerações finais

Após a retomada de elaborações lacanianas fundamentais sobre a constituição do sujeito e a função do pai, não podemos concordar com essas elaborações de Lebrun (2004LEBRUN, J.-P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.), pois parecem apresentar uma aproximação indevida de diferentes ordens de consideração do problema. Assim, é fundamental situar que a cena inconsciente se entrelaça à cena social, mas é imprescindível discerni-las. Com Lacan, a questão do pai recebe um tratamento que ultrapassa o nível da família, embora sem prescindir dele; um tratamento mais formal, referente ao nível da linguagem. Como bem argumentam Lustoza e Calazans, em trabalho que tece interessantes considerações sobre o Nome-do-Pai e o nosso contexto histórico:

A carência do pai real não significa a ausência de instalação do Nome-do-Pai como função psíquica. De fato, o pai em psicanálise, é mais a nomeação do que sua capacidade geradora ou sua mera presença. A função do pai é a de uma palavra que exerce autoridade sobre a mãe. Façamos a contraposição pelo absurdo: será que foi realmente necessário esperar pelo advento da reprodução assistida, pela legalização, em alguns países, da relação homossexual ou pelo feminismo, que produziu uma série de mães solteiras, para que a questão se colocasse? Já não tínhamos casos em que o sujeito viveu sem saber a presença do pai e sua origem? (LUSTOZA; CALAZANS, 2010LUSTOZA, R. Z.; CALAZANS, R. Alcance e valor do Nome-do-pai atualmente: algumas considerações. Psicologia em Estudo, v. 15, n. 3, Maringá, jul./set., 2010. p. 557-565., p. 562).

É preciso, com firmeza, destacar desta discussão a noção de que não há relação direta entre a carência ou não autoridade do pai nas famílias e a ausência ou não operacionalidade do pai como função psíquica para um sujeito. São duas proposições de ordens diversas.

Lacan, na terceira lição do seu seminário sobre a angústia, retoma a proposição freudiana apresentada em A interpretação dos sonhos, de que o inconsciente é uma Outra cena, para nos lembrar de que esta deve ser o foco de uma análise. Mesmo que nessa Outra cena se diga sobre os eventos da história, o interesse da análise é suas leis de elaboração, as próprias regras de montagem da cena. Nas palavras de Lacan:

A dimensão da cena, em sua separação do local - mundano ou não, cósmico ou não -, em que está o espectador, está aí para ilustrar a nossos olhos a distinção radical entre o mundo e esse lugar onde as coisas, mesmo que sejam as coisas do mundo, vêm a se dizer. Todas as coisas do mundo vêm colocar-se em cena segundo as leis do significante, leis que de modo algum podemos tomar de imediato como homogêneas às do mundo. (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O seminário, 10)., p. 42-43).

É essencial considerar, portanto, que, na narrativa que o analisando traz para uma análise, uma história é encenada. A análise se volta para o processo de montagem desta cena: onde e como está montado o espetáculo, a que posição responde o sujeito nessa cena. A fantasia fundamental seria uma estrutura mínima de montagem da cena, que está estruturada pelas leis do significante e que engendra um lugar para o sujeito e para o objeto. A fantasia compõe, então, o campo da realidade psíquica para o qual o pai é um recurso que o sujeito lança mão. Assim, se o pai da cena social aparece no discurso do paciente, é ao pai da Outra cena que nos reportamos. O primeiro pode portar a função do segundo para um sujeito, mas é necessário ter clareza de que eles não coincidem.

Essa diferenciação de campos, entretanto, não põe fim à discussão. Ao contrário, situa todo um campo de problemas a serem trabalhados. São campos diferentes, mas fica a pergunta sobre como podemos estabelecer a relação entre eles. Ou, ainda, é preciso analisar como trabalhar as consequências para o sujeito do inconsciente das contingências sociais contemporâneas; isto é, quais operadores teóricos clínicos são mais frutíferos e coerentes para essa aproximação do que a leitura da carência do pai como operador para o sujeito. A proposta lacaniana dos discursos e o intercâmbio entre eles nos parecem uma ferramenta rica para essas investigações. Os discursos são definidos por Lacan como laços sociais, de forma que cada discurso descreve um modo como o sujeito se situa no laço social, como uma posição subjetiva se exerce. A ação de um discurso promove a fixação de um semblante de relação coletiva para um sujeito, funcionando como um aparelho de gozo, que limita o gozo ao mesmo tempo em que o engendra. O discurso funciona, assim, como o agenciamento de possibilidades coletivas, limitadas e restritas, de movimentação no laço social, a partir da irredutível singularidade do sujeito. Essas elaborações sobre os discursos fazem parte de outro trabalho nosso (SILVA, 2018SILVA, M. M. O discurso universitário e a clínica contemporânea. Cadernos de Psicanálise. (CPRJ), v. 40, n. 38, Rio de Janeiro, jan./jun. 2018. p. 161-182. Disponível em <Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/pdf/cadpsi/v40n38/v40n38a10.pdf >. Acesso em 02 ago. 2018.
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/cadpsi/v40...
).

No escopo deste artigo, limitamo-nos a estabelecer esta distinção que nos parece basal aos estudos sobre os efeitos da contemporaneidade para o sujeito do inconsciente, mesmo assim algumas vezes negligenciada.

Enfim, para concluir, vale lembrarmos a proposição de Lacan (1956-1957/1995) de que a questão “o que é um pai” é permanentemente colocada no cerne da experiência analítica, mas se sustenta como uma questão sempre não respondida. Ao longo de sua obra, vemos diferentes maneiras de colocar e de encaminhar respostas a essa questão; maneiras que não são excludentes embora também não possamos dizer que sejam complementares. A discussão sobre o pai refere-se a uma questão que, ao invés de ser excluída como inoperante, precisa ser sustentada pela psicanálise.

Referências

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  • VIDAL, P. Freud e a nostalgia do pai. In: BERNARDES, A. (org.). 10 x Freud Rio de Janeiro: Azougue, 2005.
  • 1
    O artigo se refere a parte da pesquisa da tese de doutorado intitulada Psicanálise, estrutura e laço social: por uma clínica do sujeito, defendida em 2012, na UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob orientação da profa. Dra. Sônia Altoé, com auxílio da FAPERJ - Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. Bolsista: FAPERJ - Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    12 Ago 2013
  • Aceito
    18 Mar 2018
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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