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Simulacro e Ideia de Platão à psicanálise

Simulacrum and Ideia from Plato to Psychoanalysis

Resumo:

Buscamos desenvolver a questão acerca da filiação platônica da psicanálise freudiana e lacaniana. Desta maneira, nossa primeira tarefa é questionar a imagem de Platão como filósofo dogmático, preocupado com a transcendência da Ideia e desprezando a singularidade sensível. Pelo contrário, veremos como é através de uma contradição imanente à filosofia platônica que podemos compreender como a psicanálise pode ser filiada ao projeto platônico, mas apenas se admitirmos que a verdade do discurso de Platão aparece em suas falhas inerentes. Procuraremos delinear o espaço da verdade na psicanálise como sendo causado pelo encontro com o que Lacan chamou de real, buscando compreender as relações do real com o platonismo.

Palavras-chave:
Platão; psicanálise; verdade; real

Abstract:

We seek to develop, in this paper, the question of the Platonic alliance of Freudian and Lacanian psychoanalysis. Thus, our first task is to question the image of Plato as a dogmatic philosopher, concerned about the transcendence of the Ideia and ignoring sensitive singularity. On the contrary, we'll look that is through an immanent contradiction in the Platonic philosophy that we can understand how psychoanalysis can be affiliated with the Platonic project, but only if we admit that the truth of Plato's discourse appears in its inherent flaws. We will seek to delineate the space of truth in psychoanalysis as being caused by the encounter with what Lacan called the real, trying to understand the relationship between the concept of real and platonic philosophy.

Keywords:
Plato; psychoanalysis; truth; real

Uma das formas de compreendermos o século XX é constatando a rejeição quase unânime ao platonismo e à metafísica que o caracteriza, isto independente das oposições entre escolas de pensamento, movimentos políticos e artísticos etc. Ao lado de Platão, talvez seja apenas em Hegel que encontramos um autor repudiado por todas as correntes filosóficas do século XX.

De fato, desde ao menos Nietzsche (1992)NIETSZCHE, F. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.e Heidegger (1995HEIDEGGER, M. Ser e tempo (parte I). Petrópolis: Vozes, 1995.), a filosofia moderna buscou, explicitamente, uma saída à metafísica platônica, que seria também uma saída para a consumação do platonismo na filosofia de Hegel (BADIOU, 1992BADIOU, A. Manifesto for philosophy. New York: State University of New York Press, 1992., p. 97). Não apenas a chamada filosofia continental, mas também as filosofias analíticas e o pragmatismo elegeram a metafísica platônica e o idealismo hegeliano como os adversários a serem combatidos. E, finalmente, no dicionário filosófico encomendado por Stalin, no verbete Platão, podemos ler “ideólogo dos proprietários de escravos” (BADIOU, 1992BADIOU, A. Manifesto for philosophy. New York: State University of New York Press, 1992., p. 98). Mas, segundo Badiou, talvez um dos únicos filósofos hoje que pede um retorno a Platão, “ser curado do platonismo é ser curado da verdade” (BADIOU, 1992BADIOU, A. Manifesto for philosophy. New York: State University of New York Press, 1992., p. 100).

Qual a posição de Lacan em relação ao antiplatonismo? Independente da declaração de Lacan, feita no contexto preciso da análise do Parmênides (2009PLATÃO. Diálogos IV. Parmênides (ou Das formas), Político (ou da Realeza), Filebo (ou do Prazer), Lísis (ou da Amizade). Bauru: Edipro, 2009.) no Seminário XIX, de que “Platão era lacaniano” (LACAN, 1971-1972), há outros fortes indícios de que a psicanálise, tal como esta é inventada por Freud, se filia ao projeto platônico. A simples questão colocada por Lacan aos analistas no Escrito A ciência e a verdade pode nos colocar na pista: “(...) sim ou não (...) a verdade do sofrimento neurótico é ter a verdade como causa?” (LACANLACAN, J. A ciência e a verdade (1966). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998., 1966/1998LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu (1949). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998., p. 885). De fato, em seu livro sobre a metapsicologia freudiana, Garcia-Roza argumenta que Freud seria herdeiro da perspectiva platônica, no sentido da repartição da realidade entre cópia e modelo, essência e aparência que, na psicanálise, se colocaria através da oposição entre verdade e fantasia:

O Mundo das Ideias foi substituído pela Subjetividade, o Cogito substituiu o Topos Uranos, mas em ambos os casos trata-se de determinar o lugar onde as cópias encontram os seus modelos e de onde os simulacros devem ser expulsos. (...) Por maiores que sejam as diferenças entre Descartes e Freud ou entre Locke e Hegel, todos são platônicos (GARCIA-ROZA, 2009GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009., p. 10).

Procuraremos argumentar, neste artigo, que a psicanálise, ao menos em Freud e Lacan, pode ser pensada como herdeira do projeto platônico, compreendido fundamentalmente como o projeto de dissolução do fantasma e do encontro com o real, e que tal conclusão traz algumas consequências importantes para a compreensão não apenas da crítica psicanalítica ao poder contemporâneo, como também da clínica.

Em torno de Platão

Em seu nível manifesto, a filosofia platônica parte de uma adesão incondicional à transcendência como princípio racional, uma decisão pela plena inteligibilidade do mundo. Os seres sensíveis são distribuídos hierarquicamente conforme a sua participação no Modelo, a Ideia (Eidos) como paradigma perfeito. A empiria é o efeito distanciado, imperfeito, de uma Causa agente do universo, o Summun Bonum. A ideia de Platão é a de que o sujeito pode rememorar a Ideia, e que tal trabalho de rememoração já é a ação do princípio racional na alma. A ascese filosófica, a vida conforme a filosofia, consiste na reapropriação racional da Ideia (PLATÃO, 2003PLATÃO. Mênon. São Paulo: Loyola, 2003.).

Entretanto, um paradoxo acomete a filosofia platônica, plenamente articulado em seus diálogos do meio período como o Sofista (2007PLATÃO. Diálogos I: Teeteto (ou do conhecimento), Sofista (ou do ser), Protágoras (ou sofistas). Bauru: Edipro, 2007.) e o Parmênides (2009PLATÃO. Diálogos IV. Parmênides (ou Das formas), Político (ou da Realeza), Filebo (ou do Prazer), Lísis (ou da Amizade). Bauru: Edipro, 2009.): quanto mais o sujeito se purifica, aproximando-se das regiões ontológicas supremas, mais aquilo que ele combate - o simulacro, a cópia, o acidente sensível - parece torna-se estranhamente próximo da própria Ideia. A Ideia, como a exceção que cria a totalidade racional e permite ordenar o conjunto dos entes sensíveis, torna-se ela mesma excessiva. Se o caminho da purificação racional é manchado pela impureza, não se trata, como veremos, de mera incapacidade subjetiva em se aproximar da Ideia, ou da tentação exercida pelo mundo dos sentidos. Pois é justamente quando o sujeito é bem sucedido na ascese filosófica que o acidente, a cópia e o simulacro parecem reaparecer, dentro do próprio Universal.

Em Platão, a Ideia como princípio coloca-se do lado da participação (BADIOU, 1988BADIOU, A. O ser e o evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.). Ela permite a participação, a elevação das cópias, mas não se compreende como ela mesma, a Ideia, se constitui. Como mostra Badiou, isto acarreta em uma divisão interior à Ideia, entre o Uno e o Ser. Se definirmos a Ideia através do Ser, seu caráter como Una termina por escapar; ela perde-se nos múltiplos sensíveis que são. Se, pelo contrário, a apreendermos como Una, perdemos o Ser, a Ideia torna-se infinitamente distante do mundo sensível, afastada do Outro, das cópias imperfeitas às quais ela deveria se “aplicar”. Ao mesmo tempo em que conserva a unidade da Ideia como o princípio primeiro, é principalmente ao lado de sua operação, de seu ser, que esta aparece na dialética platônica. A Ideia produz as distinções que operam a distribuição dos seres, mas nunca apreendemos a Ideia como tal, não contaminada por aquilo sobre o qual ela opera. Como dizia Antístenes em sua crítica cínica de Platão, vemos cavalos, mas não vemos a “cavalidade”, a Ideia eterna de cavalo (SAFATLE, 2008SAFATLE, V. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 155).

Ora, esta disjunção interior à Ideia, entre Ser e ser Um implica que abordemos a filosofia platônica em dois níveis: o da participação, na qual ela é o Modelo que se aplica às cópias, e o da transcendência, na qual o Modelo apenas contempla a si mesmo. A questão, então, é perguntar qual seria a conexão entre estes dois níveis, estas duas regiões ontológicas distintas: a primeira relacionada ao devir heraclitiano da matéria sensível, e a segunda, à imobilidade inteligível do ser. De fato, o objetivo manifesto da filosofia platônica é reconhecer a necessidade de construir uma conexão racional entre o mundo sensível do devir ilimitado, tal como o encontramos em Heráclito, e o mundo inteligível do Ser, tal como proposto pela escola eleata. Ao contrário dos eleatas, deve-se pensar a Ideia como operando no mundo sensível. Mas, em oposição a Heráclito, deve-se pensar o mundo sensível como submetido a um princípio racional, sob o risco de se perder a condição mesma do discurso no devir ilimitado dos simulacros.

É neste sentido, então, que o conceito platônico de Ideia expressa, fundamentalmente, uma mediação, uma operação, que busca reunir, curar o intervalo entre estes dois níveis ontológicos. Se o papel da Ideia como fundamento da mediação falha, se a síntese entre o sensível e o inteligível não puder ser pensada, o projeto platônico fracassa. Ora, é para tal fracasso que Badiou aponta quando, em O ser e o evento, chama atenção para a tensão irredutível que acomete a Ideia, entre Um e Ser:

É na própria ideia que encontramos o descompasso entre a suposição de seu ser (o lugar inteligível) e a constatação de um efeito de um que ela suporta (a participação), puro “há” excedente de seu ser, em relação à apresentação sensível e às situações mundanas. (...) A ideia é - e por outro lado, “há um” a partir dela e fora dela mesma. Ela é seu ser, e também o não ser de sua operação (...). O um está somente no princípio de toda ideia, compreendido do lado de sua operação - de participação - e não de seu ser. (BADIOU, 1988BADIOU, A. O ser e o evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988., p. 39).

Sendo assim, existe uma impossibilidade de definição das Ideias supremas. Elas constituem uma pura operação de conta, aquilo que Lacan chama, no Seminário 19 (LACAN, 1971-1972, p. 110) de Yad`lun, um “há um” que não sobrevive fora de sua existência nos múltiplos seres que elas determinam como unos, que elas estruturam. A essência do Um, então, é posterior à sua existência nos múltiplos que ele estrutura. Ela é um foco virtual, sempre suposto, reconstruído no a posteriori do “há um” (Yad`lun) como operação, nunca verdadeiramente encontrada como pura abstração, mas sempre já contaminada por aquilo que ela deveria purificar. De maneira que podemos lançar uma pergunta psicanalítica à filosofia de Platão, pergunta cuja natureza procuraremos explicitar mais adiante: seu objetivo inconsciente não seria, justamente, a recusa do encontro com a Ideia, isto é, o inverso de sua intenção manifesta?

Mas por que, então, Platão fugiria do encontro com a Ideia? E por que tal fuga se daria pela forma de seu oposto, pela elevação do Uno a princípio primeiro e transcendente, mais real que o fantasma do mundo sensível? Para responder a estas questões será preciso, antes, aprofundarmos a relação entre psicanálise e o platonismo.

Significante e gozo

Zizek (2013ZIZEK, S. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 42) afirma que a disjunção entre Um e Ser, em Platão, pode ser relacionada à disjunção que Lacan opera entre significante e gozo. A ideia de “Um sem ser” nos oferece uma das definições lacanianas do significante, que opera a castração simbólica do ser, compreendida como o esvaziamento operado pelo simbólico do gozo substancial do corpo. Este se torna perdido, faltoso, sendo contabilizado como uma dívida que nunca poderá ser plenamente restituída ao simbólico. E a ideia do “ser sem Um” relaciona-se, então, ao que Lacan chama de gozo. Do gozo das pulsões parciais freudianas (ânus, boca, voz, olhar) ao gozo ilimitado da jouissance feminine (“gozo feminino”), trata-se do que Lacan buscou pensar quando relativiza a centralidade do significante na análise, a partir dos anos 70, identificando o gozo a uma distorção na pureza transcendental da rede simbólica (LACANLACAN, J. Ou pior... (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012. (O seminário, 19)., 1972-1973).

De fato, se Lacan alguma vez procurasse identificar estes termos, o ser e o Um, eliminando o papel negativo, de disjunção, que um impõe sobre o outro e operando a síntese entre o discurso e o ser, poderíamos dizer que o projeto lacaniano é platônico. Entretanto, isto é justamente o que Lacan não realiza. A verdade da relação entre o Um e o Ser é, para Lacan, a de uma “não relação”, uma dissimetria, como no enunciado a respeito da impossibilidade da relação sexual (“não há relação sexual”) (LACANLACAN, J. Ou pior... (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012. (O seminário, 19)., 1972-1973). A aposta de Lacan é a de que o “ser sem Um” e o “Um sem ser” são duas expressões distintas de uma mesma operação, aquela da não reunião, da não relação entre o significante e o gozo.

Na ideia de “Um sem ser”, o significante implica a anulação do gozo, como colocou o Lacan “estruturalista” dos anos 50 (LACAN, 1954-1955LACAN, J. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. (O seminário, 2).): a partir do momento em que o sujeito fala, a referência externa é abolida e a linguagem passa a girar em torno de si própria. Por outro lado, a ideia do “ser sem Um” exprime a resistência do gozo em ser enquadrado pelo simbólico. Pois este próprio movimento auto-referencial da língua, que abole a exterioridade do ser, acarreta em um prazer a mais, relacionado à inconsistência do simbólico: dos chistes, atos falhos e sintomas àquilo que Lacan chamou de “lalangue”, a fala como forma de gozo (LACAN, 1973LACAN, J. O aturdito (1973). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.). A ideia de Lacan, portanto, é que tal tensão, tal dissimetria, é irredutível. A resolução desta antinomia é idêntica à sua formulação, à sua repetição, mas sem a ideia de que haveria uma síntese ou reconciliação entre gozo e significante, discurso e ser.

Podemos recolocar a questão, então: a psicanálise é platônica? A análise move-se dentro do espaço da verdade tal como este é fundado no platonismo? E, agora, podemos ver como a resposta a esta questão não é linear. Obviamente, Lacan não é platônico se o associamos ao projeto explícito de Platão: o de pensar o não ser do simulacro através da categoria do Ser, o sensível através do Inteligível, realizando a síntese entre o devir de Heráclito e o Ser de Parmênides. Por outro lado, ele é platônico exatamente onde Platão fracassa, isto é, quando a disparidade entre o não ser do múltiplo sensível e o Ser da Ideia torna-se interior à própria Ideia; ou, segundo a linguagem lacaniana, quando a disparidade entre o gozo e o simbólico torna-se interior ao próprio simbólico, como sua inconsistência interna.

De fato, o antagonismo entre gozo e significante, discurso e pulsão, marca o próprio pensamento de Freud e de Lacan. Na interpretação de suas obras, uma das leituras que nos parece dever ser evitada é a de buscar um Freud ou um Lacan “verdadeiros”. Seriam estes aqueles da primeira tópica freudiana e da aposta lacaniana no simbólico, da elaboração psíquica do trauma e da dialética do reconhecimento? Ou, antes, deveremos buscar a verdade da psicanálise na segunda tópica freudiana e na aposta lacaniana no real, onde ambos buscaram reconhecer um limite para a elaboração psíquica, na forma do gozo da pulsão? Ora, a única resposta possível não nos parece ser escolher entre um ou outro, mas, sim, afirmar tal antinomia entre ambos os momentos das obras, transpondo a ruptura teórica como já sendo imanente à própria teoria.

Então, em resposta à pergunta “a psicanálise é platônica?”, podemos dizer que sim, mas no momento preciso em que Platão fracassa. É que tal fracasso de Platão não é apenas negativo, posto que, de certa forma, trata-se de fracasso que continua sendo interior ao espaço aberto por sua filosofia, o da aposta pela inteligibilidade do real. “O real é racional, o racional é real”, como coloca Hegel no Prefácio à filosofia do direito (1997HEGEL, G-W-F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.), em um movimento que talvez tenha seu início quando Platão buscou trazer à razão aquilo que o Ser dos eleatas havia negligenciado, o não ser do simulacro ou das cópias. É apenas a partir deste impulso de universalização que surge a exceção - ou deveríamos dizer, o sintoma? - platônico. Exceção que retorna dentro da Ideia e que, da Ideia como exceção que estrutura a representação do mundo sensível, nos leva ao excesso inerente à própria Ideia.

É o caráter produtivo da não relação entre gozo e discurso que não pode aparecer, ainda, na filosofia platônica, ou ao menos no discurso manifesto de sua filosofia. Certamente, não se trata da ideia do senso comum de que o erro é parte fundamental no caminho da verdade, mas que, uma vez tendo feito sua parte, ele deveria em seguida desaparecer. Pois não lidamos aqui apenas com fracassos particulares, com limites relativos, mas, sim, com um fracasso elevado ao estatuto da verdade, o fracasso na constituição da própria verdade, que nasce não por alguma deficiência da razão, mas sim por sua universalização.

Se, como coloca Deleuze, “o mundo heraclitiano” do devir “freme sob o platonismo” (DELEUZE, 1968DELEUZE, G. Diferença e repetição (1968). Rio de janeiro: Graal, 2006., p. 97), é porque tal mundo, aparentemente domesticado pelo postulado da Ideia, retorna triunfante nas aporias internas do conceito platônico central. E a verdade de tal retorno se enuncia, à revelia do discurso manifesto, nas tentativas de Platão de excluir as inconsistências de sua teoria. Ele aparece em suas soluções de compromisso e na persistência do fantasma, no recurso ao mito em momentos cruciais de sua filosofia, como na alegoria da caverna e no mito de Er em A república (PLATÃO, 1993PLATÃO. A república. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.). Ora, tais aporias, longe de atestarem a incapacidade de Platão, nos parecem constituir a prova de que seu discurso, de fato, aproxima-se da verdade.

Ainda nos resta desenvolver, agora, qual a natureza deste excesso inerente à Ideia, que encontramos no fracasso platônico em conceituá-la.

Porque Platão era lacaniano?

Conforme vimos anteriormente, podemos dizer que, na filosofia platônica, o verdadeiro alvo do combate aos simulacros é a recusa da Ideia. A Ideia mantém uma distância fantasmática, patente no recurso platônico ao mito sempre que se trata compreendê-la para além da maneira através da qual ela age no mundo sensível. Como se Platão precisasse fixar-se nas “preliminares”, isto é, na operação da Ideia, justamente para evitar o encontro com a dificuldade intrínseca a sua definição.

Como coloca Deleuze, em Diferença e repetição (1968), tudo se passa como se o objetivo real da filosofia platônica fosse polêmico, mundano: o combate ao sofista, à cópia sem semelhança, aquilo que o autor chama de a “seleção dos pretendentes” (DELEUZE, 1968DELEUZE, G. Diferença e repetição (1968). Rio de janeiro: Graal, 2006., p. 98). Deleuze não tira, em sua filosofia, as mesmas consequências que Lacan buscaria retirar, para a psicanálise, das inconsistências do discurso platônico. Enquanto Lacan preocupa-se em enxergar na contradição do discurso o índice mesmo de sua verdade, Deleuze coloca-se como tarefa denunciar no platonismo a fundação de uma filosofia da representação preocupada em domesticar a singularidade ou diferença. Entretanto, para a discussão que propomos aqui, podemos dizer que, ao comentar o texto platônico, Deleuze observa argutamente que o problema maior do platonismo não é aquele de definir o conceito de Ideia, mas sim o de operar a seleção dos pretendentes.

O que importa, afinal, o Um ou a Ideia? Se tal fixação nos pretendentes tem por tarefa excluir o encontro com a Ideia é porque Platão recua, não aceita enxergar que a Ideia já é nela mesma dividida por aquilo que ela deveria mediar. Se a exclusão dos simulacros e a seleção das boas cópias que guardam semelhança com a Ideia constituem o motivo manifesto de sua filosofia, o verdadeiro motivo, latente, inconsciente, que se realiza inteiramente na imanência do discurso platônico, através de suas inconsistências internas, é impedir o encontro com a impossibilidade de se dizer o próprio ser do Um. Ou, em termos lacanianos, com a impossibilidade de se relacionar o significante e o gozo.

Platão precisa do simulacro para combatê-lo, assim como precisa do sofista como seu Outro constitutivo, deslocando o conflito interior à Ideia para um conflito entre a Ideia e seu Outro exterior; o antagonismo interior ao próprio Um em um conflito entre o Um e a multiplicidade pura do simulacro. Pois é a impossibilidade de dizer o ser do Uno que o torna próximo do não ser atribuído por Platão aos simulacros. A invenção da ideia de cópia, então, pode ser pensada como sendo uma “solução de compromisso” platônica, no sentido da descrição freudiana do sintoma como uma tentativa de reconciliar forças opostas (FREUDFREUD, S. O recalque (1915). In: FREUD, S. A história do movimento psicanalítico - artigos sobre a metapsicologia: outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, 14)., 1915/2006) e evitar o encontro com o trauma psíquico.

De fato, a cópia é o operador da passagem entre as duas regiões ontológicas que Platão distingue, o não ser dos simulacros e o Ser da Ideia. Como tal, ela constitui uma síntese de ser e não ser, um híbrido de diferença e identidade, uma ponte, ou ascese, que reconstrói a hierarquia ontológica, permitindo curar o hiato entre simulacro e Ideia. Neste sentido, a função da cópia é a de impedir que o simulacro se torne interior ao próprio Um. Ao invés de ser salva pelo Um, de receber dele sua razão, é a cópia que termina por salvá-lo, impedindo que a própria exceção se universalize.

De fato, há um momento em sua filosofia no qual Platão antevê a possibilidade de que o não ser do simulacro afete diretamente a Ideia: trata-se da famosa hipótese do Parmênides, de que o “um não é”, descrita como a do “assassinato do pai Parmênides”, isto é, a destituição do Ser inteligível da Ideia. Platão afirma, nesta hipótese extravagante, que se o um não é, nada é. Ou seja, o que a hipótese antevê não é a mera negação exterior da Ideia, mas, sim, que o não ser do simulacro seja interior à própria Ideia. A hipótese deve ser lida, desta forma, como a afirmação de que o nada (o não ser dos simulacros), é.

Podemos compreender agora porque Lacan afirma, em seu Seminário 19, que “Platão era lacaniano” (LACAN, 1971-1972, p. 127). Ao apresentar a hipótese de que o Um não seja, o Parmênides revela como é inerente ao Um ser Outro, o Outro do não ser, do “não Um”. Como coloca Lacan, “o Um começa no nível em que há um faltando” (ibidem, p. 140), constituindo, assim, uma “pura e simples diferença” (ibidem, p. 139). Não se trata de uma diferença externa, mas uma diferença inerente ao próprio Um. Pois, se o Outro que divide o Um é ele mesmo enquanto faltante, o Um não é nada mais que o nome de sua falta (BADIOU, 1988BADIOU, A. O ser e o evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.).

Mesmo que apresentada como uma hipótese extravagante em um de seus diálogos do meio período, podemos ver como ideia de que “O um não é” é estruturalmente inscrita na filosofia platônica. Ela encontra-se implícita na decisão primeira de sua filosofia, que é aquela que, rompendo com o discurso mítico, decide pela racionalidade integral do real. Trata-se, então, de seguir até o fim esta decisão.

Devemos argumentar que, em relação ao anti-platonismo espontâneo de nossos tempos criticado por Badiou, não se trata de dizer que Platão confere poderes exagerados à razão, mas, pelo contrário, que ele erige um limite arbitrário a seu poder, fundando a razão através da exclusão de seu oposto, do não ser do simulacro. Este passa a ser interpretado como uma privação do Ser, não como uma negatividade determinada por sua relação com o próprio Ser, mas como um negativo apenas relativo, uma simples insuficiência contraposta à onipotência do Ser.

Desta forma, naquilo que Deleuze chama de “subversão do platonismo” (DELEUZE, 1968DELEUZE, G. Diferença e repetição (1968). Rio de janeiro: Graal, 2006.), e que, de fato, encontra-se como um programa comum a toda filosofia do século XX, não se trata de pensar a simples destituição do Um a favor da multiplicidade ou do simulacro, simplesmente invertendo o projeto platônico. Trata-se, antes, de mostrar como tal projeto já é, nele próprio, torcido, atravessado por uma contradição que, é verdade, é sistematicamente evitada pelo próprio Platão, mas que apenas nasce no espaço criado por sua filosofia. A subversão do Um já é imanente ao próprio platonismo, sendo aberta pelo espaço que Platão ajudou a pensar, aquele da relação entre o real e o racional.

O não encontro do Um consigo mesmo - seu auto-exílio, o tornar-se simulacro do Um e do tornar-se Um do simulacro - constitui a verdade da filosofia platônica. E, como coloca Badiou, esta é a razão pela qual é fundamental, hoje - em uma época marcada pela vitória da sofística, pelo culto à finitude e à relatividade dos modos de vida -, retornar a Platão. Trata-se, então, de retornar à decisão platônica, como àquilo que permanece inconcluso em seu projeto, mas que pode ser reabilitado: a decisão pela inteligibilidade do real e pela recusa do mito.

Ficção e realidade

A psicanálise, neste sentido, é de fato herdeira do impulso platônico da verdade e de recusa da ilusão que, com Freud, é nomeada de “fantasma” (FREUDFREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, 3)., 1900/2006). Entretanto, tal recusa do fantasma não será mais, como em Platão, a tentativa de eliminar a inconsistência inerente ao discurso, sua falha interna, mas, sim, a tentativa de articulá-la, de reconhecê-la plenamente. Ou, como coloca Lacan, “é a partir do discurso em que se funda a realidade da fantasia que aquilo que há de real nessa realidade se acha inscrito” (LACAN, 1973, p. 478).

O real aparece, então, quando a realidade é enquadrada, arrancada de sua inércia para entrar no moinho da linguagem e esta, abolindo a referência natural ou exterior, começa a circular em torno de si mesma, repetindo sua própria impossibilidade. Por isto a eficácia de uma análise repousa inteiramente na aposta de que a narração ou historicização significante, longe de excluir o real, é condição de sua emergência.

Uma forma de compreender tal ideia é através da regra fundamental da psicanálise proposta por Freud, a da “associação livre” (FREUDFREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, 3)., 1900/2006). Ela significa que as interdições que estruturam a circulação de palavras no laço social serão suspensas dentro do espaço da análise. Entretanto, a ideia de Freud não é que a suspensão das interdições possa livrar o sujeito de seus constrangimentos, possibilitando que ele se desfaça do peso da moral e finalmente reconheça seus desejos enquanto individualidade livre.1 1 Aqui podemos observar uma mudança social e política na função do analista. Este, anteriormente tido como suposto saber, como mestre que detém a verdade do sujeito, agora passa a ser cada vez mais associado àquilo que Lacan chama de “pequeno outro”, o parceiro imaginário que permitirá ao sujeito gozar (LACAN, 1949/1998). O analista, então, aproxima-se da perspectiva “liberal” que permite que tudo seja dito e nada proíbe no que diz respeito à liberdade de expressão, permitindo a relativização das proibições simbólicas que constrangem o autodesenvolvimento pessoal. Ora, o papel do analista é, para Freud, justamente o inverso: certamente, trata-se de relativizar as interdições simbólicas, mas para se atingir o ponto em que a interdição e a Lei dão lugar à impossibilidade. Pelo contrário, o que tal suspensão busca é atingir o ponto de impossibilidade imanente ao discurso do sujeito, a passagem de uma interdição meramente “ôntica”, vivenciada no plano do conflito entre o indivíduo e as regras sociais que lhe constrangem, para uma impossibilidade ontológica, isto é, uma impossibilidade que concerne ao próprio ser do sujeito.

A partir do momento em que o analista pede ao sujeito que diga tudo o que lhe vier à cabeça, o que se busca não é mera abolição do recalque, mas, sim, sua radicalização. Trata-se de chegar àquilo que FreudFREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, 3). (1915/2006) chamou de recalque original, a exclusão inaugural que incide sobre a própria relação entre o sujeito e o Outro, e que retorna através dos sintomas2 2 Aquilo que Freud chama de “recalque propriamente dito”, aquele que estrutura os sintomas é, então, uma defesa contra o recalque original. Sua função principal não é proibir o prazer, mas manter a crença de que, para além da proibição, haveria um prazer não mediado pela linguagem. É deste prazer a mais, proibido ou perdido, que o sujeito goza. . O sujeito necessariamente descumpre a regra fundamental da análise, aquela de tudo dizer, descobrindo que nem tudo pode ser dito, que há um limite para as palavras. Tal descumprimento, entretanto, não podendo mais ser imputável a uma interdição qualquer (já que, na análise, tudo é permitido falar), torna-se imanente ao próprio discurso.

É porque “não há metalinguagem” ou, segundo outro axioma de Lacan, porque “não há Outro do Outro” (LACAN, 1973), que a tentativa de tudo dizer esbarra em um ponto intrínseco de impossibilidade, em uma aporia estrutural. Ora, esta aporia, esta impossibilidade, constitui, para Lacan, o núcleo do desejo, a causa que descentra o sujeito e o faz desejar. E esta passagem da repetição enquanto ato para a repetição simbólica na análise busca atingir tal ponto de impossibilidade, tornando a repetição “em si”, vivida na dimensão da ação na realidade (suportada pelo fantasma), em uma repetição “para si”, na qual o real para além do fantasma é assumido simbolicamente pelo sujeito.

A suspensão analítica da proibição concerne somente ao dizer, buscando transpor para a linguagem, para a ficção, aquilo que o sujeito vive na forma do ato, da repetição insensata. Na análise, tudo poderá ser dito. Entretanto, tal desinflação do ato não significa que o sujeito passa a reconhecer, no meio bem temperado das palavras, aquilo que ele vivia como ação insensata, violenta. A palavra não constitui um meio capaz de aliviar a violência inerente à ação, contribuindo à homeostase dos excessos aos quais o sujeito se entrega. Pelo contrário, é a violência da realidade que constitui, antes, aquilo que Lacan chama de “passagem ao ato” (LACAN, 1962-1963): a fúria destrutiva que mascara a impotência do sujeito, sua tentativa de destruir o Outro como a consequência do reconhecimento da onipotência do Outro.

É na ficção, no simbólico, que o sujeito se depara com uma violência muito mais aterradora do que a da realidade, a violência de seu desejo. Ao sair da repetição na forma do ato e repetir simbolicamente, o real da situação aparece, e o sujeito é capaz de assumir aquilo que se repete necessariamente como impossibilidade.

O abismo da tolice

Vimos como resultado da metafísica platônica que o próprio princípio racional torna-se inconsistente, e que devemos ver nesta inconsistência seu desejo inconsciente. Ao distanciar o Uno e suas exemplificações empíricas, suas cópias imperfeitas, Platão imobiliza a Ideia, mantendo-a a uma distância suficiente para que ela não produza efeitos “catastróficos” na realidade material. A metafísica platônica constitui, desta forma, o esforço para se salvar o mundo do encontro com aquilo que ela mesma inventa: a Ideia. Se seu objetivo manifesto é a tentativa de subordinar o mundo sensível ao Um abstrato, a consequência latente de seu discurso é a destituição do próprio Absoluto.

Obviamente, o objetivo manifesto da instituição do Absoluto metafísico não é sua destituição. Como aparece, então, o motivo “oculto”, inconsciente, isto é, como podemos interpretar psicanaliticamente este fracasso do discurso platônico? Ora, o motivo oculto não se encontra em alguma intenção profunda, secreta, mas na forma mesma do discurso. Ela aparece nas falhas imanentes do discurso platônico: a regressão infinita implicada no postulado platônico da Ideia - existe a Ideia da Ideia? -, mas também devido ao próprio caráter totalizante da Ideia, o escândalo que consiste em seu admitir que, se tudo é Ideia, o próprio não ser - o sofista, o simulacro - deve ser, também, uma Ideia. E que, portanto, a Ideia é ela mesma e seu inverso. Isto é, ela é contraditória ou, na terminologia de Lacan, “impossível”.

É o que vemos, no Parmênides, em trechos nos quais o efeito cômico deve ser relacionado a esta inversão de lugares entre o mais alto e o mais baixo, a Ideia e o simulacro, que, como temos visto, assombra a filosofia platônica. Trata-se da questão dirigida por Parmênides a Sócrates, sobre se haveria a Ideia de coisas como pelos, lama ou sujeira. Se a Ideia é universal, deveríamos admitir, então, que há a Ideia de não ser?

“E estarias indeciso com respeito a outras coisas, que poderias taxar de ridículas, tais como pelos, lama, sujeira, ou qualquer outra coisa especialmente indigna e insignificante? (...).”

“De modo algum”, disse Sócrates. “Penso que essas coisas são apenas o que vemos, e seria inteiramente absurdo crer que há uma forma delas. E, no entanto, às vezes sinto-me perturbado pelo pensamento de que talvez o que se aplica a uma coisa, se aplica a todas. A consequência é que, assumida essa posição, fujo receoso de me precipitar em algum abismo de tolice e me arruinar.” (PLATÃO, 2009PLATÃO. Diálogos IV. Parmênides (ou Das formas), Político (ou da Realeza), Filebo (ou do Prazer), Lísis (ou da Amizade). Bauru: Edipro, 2009., p. 37).

Ora, para a psicanálise, a resposta à questão de Parmênides deve ser que sim, que há a Ideia de pelo, lama e sujeira, de objetos parciais e excrementos, do sexo e do gozo que divide o sujeito. Como coloca Lacan a respeito daquilo que chama A coisa freudiana, a prosopopeia da verdade, quando é a própria verdade que fala:

[Eu, a verdade] vagabundeio pelo que julgais como sendo o menos verdadeiro por essência: pelo sonho, pelo desafio ao sentido da piadinha mais gongórica e pelo nonsense do mais grotesco trocadilho, pelo acaso, e não por sua lei, mas por sua contingência (...). (LACANLACAN, J. A coisa freudiana (1956). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998., 1956/1998, p. 411).

Este é o sentido, então, da universalização da razão que faz Sócrates se confrontar com este “abismo da tolice” e recuar. Platão já enxergara o problema, entretanto, quando faz Sócrates falar que, “talvez, o que se aplica a uma coisa, se aplica a todas” (PLATÃO, 2009PLATÃO. Diálogos IV. Parmênides (ou Das formas), Político (ou da Realeza), Filebo (ou do Prazer), Lísis (ou da Amizade). Bauru: Edipro, 2009., p. 37). Pois é apenas levando até as últimas consequências o postulado platônico da universalidade da razão, da igualdade racional do mundo, aquilo que o filósofo Jacques Rancière chama através do termo apropriado de “o axioma da igualdade” (2007RANCIÉRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.), que a verdade deixa de ser a transcendência profunda de uma Ideia que subjuga a superfície, para se deixar atravessar pelo excesso do simulacro.

É desta maneira que o axioma platônico da igualdade, longe de significar a identidade abstrata dos entes sensíveis perante uma Forma externa, passa a significar a coincidência entre igualdade e diferença que faz de dois entes iguais somente através sua diferença. A Forma ou a Ideia, ao invés de subsumir um conjunto de elementos a partir de uma categoria abstrata, torna-se nela mesma deformada. Os seres que nela se refletem apenas recebem de volta seu sentido distorcido, excessivo, mas - e por isto mesmo - consistente.

Quando atingimos o ponto mais alto da hierarquia ontológica, o ser se despedaça e aquilo que ele deveria excluir retorna: o não ser do simulacro. Em termos psicanalíticos, o fracasso da metafísica platônica torna-se, entretanto, a razão de seu sucesso. Para a psicanálise, a verdade de um discurso não está na intenção, mas no resultado, na imanência do dizer. Tal subversão imanente de um enunciado constitui uma das premissas do método psicanalítico. O inconsciente não é o núcleo profundo, o sentido oculto de um enunciado manifesto, mas a maneira como o enunciado subverte a si próprio no ato de sua enunciação (ZIZEK, 2013ZIZEK, S. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.; FREUDFREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, 3)., 1900/2006). Um enunciado não é subvertido devido a uma verdade mais elevada, sendo a tarefa do psicanalista justamente a de apagar a dimensão da verdade como elevação e fazer aparecer a contradição que se desdobra na imanência da enunciação3 3 O que pode aproximar a psicanálise de Hegel. Basta lembrar de asserções como esta, em que Hegel explicita a contradição como desdobramento interior da coisa em seu avesso: “Em tal determinação está presente em si e para si o oposto dela mesma e, sem voltar para a natureza da questão e apelar para ela, aquela determinação de reflexão tem de ser confundida nela mesma, pelo fato de que é tomada tal como se oferece, e seu outro é nela mesma demonstrado. Seria um esforço inútil querer, por assim dizer, captar todas as nuances e os caprichos da reflexão e de seu modo de raciocinar, a fim de subtrair-lhes e tornar impossível seus impasses e desvios, mediante os quais ela oculta sua contradição diante de si mesma” ([xref ref-type="bibr" rid="r7"]HEGEL, 2011[/xref], p. 84). . Por isto, para Lacan (1954-1955), o sujeito é necessariamente divido entre enunciado e enunciação, entre o conteúdo intencional de sua fala e a maneira como esta é inscrita no Outro.

Desta forma, podemos dizer que o mundo dionisíaco da tragédia grega, o mundo dos conflitos irreconciliáveis entre deuses e homens que a tragédia buscou expressar, não é exatamente abolido em Platão, como argumentam Nietzsche (1992)NIETSZCHE, F. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. e Deleuze (1968)DELEUZE, G. Diferença e repetição (1968). Rio de janeiro: Graal, 2006., mas, sim, que ele ganha uma nova determinação. Ele torna-se, antes, drama do conceito, das relações entre o símbolo e o ser, e da impossibilidade de se reunir a ambos.

O interesse, o sucesso da filosofia platônica reside no ponto em que, segundo seus próprios critérios explícitos, ela fracassa. Pois ainda subsiste um resquício de irracionalidade no empreendimento platônico de tornar a razão imanente ao real. Isto é, Platão ainda reserva um lugar, no edifício ontológico, para aquilo que não é racional, aquilo que deve ser purgado do conceito de razão como imanência entre o Um e o Ser. O nome deste resto de realidade que emperra a transcendência da Ideia, é claro: é “simulacro”. E o recuo de Platão frente à força do conceito pode ser relacionado à impotência da Ideia não apenas em mediar, mas também em deixar-se mediar, pelo não ser do simulacro. Por isto, as inversões, as impossibilidades que permeiam o discurso platônico, ainda são “trágicas”. Elas atingem seu discurso como que vindas de fora, de um Outro ainda não imanente ao próprio Um do conceito.

Ora, não era esta a ideia freudiana a respeito do sintoma, a de algo que, não reconhecido simbolicamente, termina por retornar no próprio simbólico? O escândalo ontológico da correlação entre o Um e o não ser atinge a filosofia platônica como um estranho, um intruso que invade o palco, estragando o espetáculo quando, à revelia de suas melhores intenções, Platão se confronta com a monstruosidade de sua própria criação. O simulacro, o não ser, é o Um, não na forma de uma participação imperfeita, de um não ser apenas relativo ao Ser, mas no coração mesmo do Um, dividindo-o. É tal espanto que aparece, então, nos diálogos do meio período, no Parmênides (2009PLATÃO. Diálogos IV. Parmênides (ou Das formas), Político (ou da Realeza), Filebo (ou do Prazer), Lísis (ou da Amizade). Bauru: Edipro, 2009.) e no Sofista (2007PLATÃO. Diálogos I: Teeteto (ou do conhecimento), Sofista (ou do ser), Protágoras (ou sofistas). Bauru: Edipro, 2007.), embora a título de uma hipótese extravagante sobre o não ser do Um.

Se Édipo realiza o crime, a hybris, a despeito de suas melhores intenções e fugindo da predição do oráculo de Delfos, no Parmênides Platão descobre que, ao colocar o Um no centro de sua ontologia, ele termina por assassiná-lo, mas sem saber que, com isto, lhe fornecia outra vida. Se, no caso do drama de Sófocles, trata-se do conflito entre a ação humana de Édipo e a Lei divina representada pelo oráculo de Delfos, no segundo já se trata do conflito imanente à própria razão, do conflito substancial à universalidade da razão como forma pura do ser. É que, ao se universalizar, a forma gera um conteúdo “patológico”, uma exceção que, permanecendo excessiva, é também interna. Assim como, em Lacan (1973)LACAN, J. O aturdito (1973). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003., é a universalidade da ordem simbólica que gera o objeto pequeno a e o real como encarnações da impossibilidade lógica do todo, o gozo nascido da impossibilidade da forma.

Referências

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  • PLATÃO. Diálogos IV. Parmênides (ou Das formas), Político (ou da Realeza), Filebo (ou do Prazer), Lísis (ou da Amizade) Bauru: Edipro, 2009.
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  • ZIZEK, S. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • 1
    Aqui podemos observar uma mudança social e política na função do analista. Este, anteriormente tido como suposto saber, como mestre que detém a verdade do sujeito, agora passa a ser cada vez mais associado àquilo que Lacan chama de “pequeno outro”, o parceiro imaginário que permitirá ao sujeito gozar (LACAN, 1949/1998). O analista, então, aproxima-se da perspectiva “liberal” que permite que tudo seja dito e nada proíbe no que diz respeito à liberdade de expressão, permitindo a relativização das proibições simbólicas que constrangem o autodesenvolvimento pessoal. Ora, o papel do analista é, para Freud, justamente o inverso: certamente, trata-se de relativizar as interdições simbólicas, mas para se atingir o ponto em que a interdição e a Lei dão lugar à impossibilidade.
  • 2
    Aquilo que Freud chama de “recalque propriamente dito”, aquele que estrutura os sintomas é, então, uma defesa contra o recalque original. Sua função principal não é proibir o prazer, mas manter a crença de que, para além da proibição, haveria um prazer não mediado pela linguagem. É deste prazer a mais, proibido ou perdido, que o sujeito goza.
  • 3
    O que pode aproximar a psicanálise de Hegel. Basta lembrar de asserções como esta, em que Hegel explicita a contradição como desdobramento interior da coisa em seu avesso: “Em tal determinação está presente em si e para si o oposto dela mesma e, sem voltar para a natureza da questão e apelar para ela, aquela determinação de reflexão tem de ser confundida nela mesma, pelo fato de que é tomada tal como se oferece, e seu outro é nela mesma demonstrado. Seria um esforço inútil querer, por assim dizer, captar todas as nuances e os caprichos da reflexão e de seu modo de raciocinar, a fim de subtrair-lhes e tornar impossível seus impasses e desvios, mediante os quais ela oculta sua contradição diante de si mesma” ([xref ref-type="bibr" rid="r7"]HEGEL, 2011[/xref], p. 84).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2016
  • Aceito
    08 Fev 2017
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