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Verdades e verdades: uma análise a partir do filme “A caça”

Truths and truths: an analysis from the film “The hunt”

Resumo:

Este artigo tem como objetivo discutir a noção de verdade para a psicanálise em sua interface com o direito, para o qual a verdade é buscada nos fatos através de investigação; a psicanálise, por seu turno, busca desvelar a verdade nos ditos do sujeito. Tomaremos o filme A caça (Jagten), pois sua trama é tecida a partir da busca de comprovação de um fato supostamente ocorrido e baseado na fala de uma criança, tomada inicialmente como verdade. Assim, interrogamos a prática do Depoimento Sem Dano, que consiste em um inquérito feito com crianças, visando estabelecer a verdade dos fatos.

Palavras-chave:
psicanálise; verdade; Depoimento Sem Dano; direito

Abstract:

This article aims to discuss the notion of truth to psychoanalysis in its interface with the law, for which the truth is sought in the facts through research; psychoanalysis, in turn, seeks to reveal the truth in the said subject. We will take the film The hunt (Jagten) because its plot is woven from the search for evidence of a fact allegedly occurred and based on the speech of a child, initially taken as truth. Thus, we question the practice of Testimony Without Damage, which consists of a survey with children, to establish the truth of the facts.

Keywords:
psychoanalysis; truth; Testimony Without Damage; law

Introdução

Este artigo tem como objetivo discutir a noção de verdade para a psicanálise em sua interface com o campo jurídico, para o qual a verdade é buscada nos fatos através de procedimentos de investigação; a psicanálise, por seu turno, busca desvelar a verdade nos ditos do sujeito. Assim, tomaremos o filme dinamarquês A caça (Jagten), de 2012, dirigido por Thomas Vinterberg, bem como o procedimento jurídico conhecido como Depoimento Sem Dano (DSD), ambos como mote da investigação acerca da noção de verdade para a psicanálise e para o direito, confrontando os modos de interrogar a verdade para cada um dos campos considerados.

Inicialmente, a escolha por este filme se dá em função de o mesmo tratar uma questão que interessa a esta investigação acerca da verdade, sendo uma trama que conta a história de um protagonista que foi acusado de praticar crimes sexuais com crianças de uma escola. Nele, a busca pela comprovação de um fato supostamente ocorrido e denunciado se dá inteiramente baseada na fala de uma criança, a partir de um procedimento de entrevista com a mesma, o qual chama atenção pelo modo como o mesmo foi conduzido. Assim, perguntamo-nos: como se deu a extração daquilo que foi tomado como verdade pelo contexto social e jurídico? É a mesma verdade à qual a psicanálise se refere?

Partimos igualmente da prática do Depoimento Sem Dano (DSD), que consiste em um inquérito feito com crianças, por profissionais de uma equipe constituída de psicólogos e assistentes sociais, visando estabelecer a verdade de acontecimentos sob suspeita. Esta prática ocorre desde 2003, a partir da iniciativa de José Antônio Daltoé Cezar, Juiz da 2° Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre/RS, tendo como fundamento garantir a proteção da criança em procedimentos de oitiva1 1 No campo jurídico, este termo se refere à audição de uma testemunha envolvida em um processo. . A partir desse procedimento, bem como o do filme, nos interessa interrogar sobre a verdade que daí surge, visando confrontá-la com a verdade para a psicanálise.

No campo jurídico, desde a Idade Média, a verdade, tal como nos mostra Foucault (2013FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de janeiro: Nau, 2013.), é buscada pela via do inquérito, da constatação e da comprovação pelo saber da ciência. Para discutir como a verdade era extraída no campo do Direito Grego, o autor examinou duas ilustrações: a tragédia de Édipo e o jogo de provas entre Menelau e Antíloco, de Homero.

Para a psicanálise, ao contrário, não há um saber que dê conta da verdade, sendo esta sempre pontual e evanescente, não se sustentando em um saber acumulado. Conforme nos ensina FreudFREUD, S. O inconsciente (1915) Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 14). (1915/2006), a verdade é enunciada pela fala e se situa no campo do inconsciente, em relação direta com a fantasia. Por sua vez, LacanFREIRE, A. B. Descartes e o cogito. In: A ciência e a verdade: um comentário. Rio de Janeiro: Editora Revinter , 1996a. (1974/1993) situa a verdade no campo do real, sendo, portanto, impossível dizê-la toda.

Desta forma, este artigo será tecido a partir da seguinte questão: na interface entre psicanálise e direito, como cada campo concebe a noção de verdade?

Um dia da caça, outro do caçador

Lucas era professor em uma escola infantil e havia recentemente se divorciado, encontrando-se em divergência com a ex-esposa pela guarda de seu filho, Marcus. Bem relacionado, mantinha laços afetivos com todos os membros da pequena comunidade em que vivia. Seu grande amigo, Theo, logo nas cenas iniciais do filme, diz a ele que poderia ver em seus olhos quando estava mentindo, anunciando a questão da verdade como um tema proposto pelo enredo da trama.

Klara, filha de Theo, desenvolve um afeto por Lucas, a ponto de endereçar-lhe uma carta e dar-lhe um beijo em seus lábios. Lucas, aparentemente desconcertado com tal demonstração de afeto, chama-a em uma conversa para dizer-lhe que a pequena garotinha podia apenas beijar seu pai e sua mãe; e que a carta que ela havia deixado no bolso de seu casaco deveria ser entregue a um de seus colegas da escola, não a ele. Klara, em resposta, nega que foi ela.

Após tal episódio, queixosa, Klara confessou à diretora da escola, Grethe, que “odiava Lucas; ele era feio e idiota; tinha um pipi; seu pipi apontava para cima como uma vara”. Tal construção acerca do órgão masculino surgiu para Klara a partir de uma das cenas iniciais em que alguns garotos mostram para ela uma foto de uma mulher diante de um pênis ereto, o que nos sugere o encontro de Klara com uma cena sexual para a qual não possuía ainda recursos psíquicos para simbolizar.

Seu relato provocou em Grethe uma suspeita acerca da conduta de Lucas. Assim, a mesma convoca o personagem Ole, com quem se aconselha, engajando-o no que podemos chamar de inquérito em busca de uma verdade já presumida, o que se pode observar a partir das perguntas feitas à pequena Klara: “Tente me contar como Lucas fez”; “Foi aqui na escola que ele mostrou o pipi para você?”; “Era o pipi dele apontando para cima?”; “Você o tocou?”; “Você lembra se saiu algo branco dele?”, entre outras. Inquérito que fora interrompido por Grethe, que se angustiou tanto quanto Klara, ao vomitar seu mal estar.

Esta cena nos remete à questão da inquirição com crianças quanto às questões de ordem sexual, e o quanto elas convocam angústias e incômodos aos envolvidos. A prática do DSD é uma tentativa de operar nos casos em que há suspeita de violação dos direitos das crianças, bem como de abuso sexual. No entanto, é uma prática questionável, que se encontra em debate entre os especialistas, pois não é possível afirmar que ela é sem consequências para o sujeito, tampouco é possível supor que ela revele a verdade dos acontecimentos de forma segura, objetiva e mensurável.

Trata-se de uma audiência de instrução, onde, a partir do depoimento da criança, seria possível a constituição de prova, principal objetivo desta prática; isto porque crimes de cunho sexual com crianças possuem um elevado nível de impunidade, exatamente pela dificuldade de constituição de provas. Desta forma, o depoimento da criança seria uma prova relevante - em muitos casos, a única. Outro argumento em defesa do DSD é o de que este procedimento evitaria a revitimização da criança, porquanto seu depoimento estaria gravado, não sendo mais necessário fazê-la depor inúmeras vezes no decorrer do processo (BRITO, 2008BRITO, L. M. T. Diga-me agora... O depoimento sem dano em análise. Psicologia Clínica, v. 20, n. 2, Rio de Janeiro, 2008, p. 113-125.).

Embora encontremos diversos autores, tanto do campo do Direito quanto do campo da Psicologia, que se posicionam favoráveis a este procedimento e que lancem mão dos argumentos citados acima (DALTOÉ CEZAR, 2007DALTOÉ CEZAR, J. A. Depoimento sem dano: uma alternativa para inquirir crianças e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.; DIAS, 2006DIAS, M. B. Incesto: um pacto de silêncio. 2006. Disponível em:<Disponível em:http://www.ibdfam.org.br/?artigo&artigo=223 >. Acesso em: 01 dez. 2015.
http://www.ibdfam.org.br/?artigo&artigo=...
; TABAJASKI, 2009TABAJASKI, B. O depoimento especial de crianças/adolescentes vítimas de violência: um encontro entre direitos humanos, o saber jurídico e a ciência psicológica. In: PAULO, B. M. (org.). Psicologia na prática jurídica: a criança em foco. Niterói: Impetus, 2009, p. 199-302. ), este é passível de muitas críticas, sendo possível problematizá-la. Autores que se opõem ao DSD (ARANTES, 2009ARANTES, E. M. M. Proteção integral à criança e ao adolescente: proteção versus autonomia? Psicologia Clínica, v. 21, n. 2, 2009, p. 431-450.; FÁVERO, 2008FÁVERO, E. T. () Parecer técnico: metodologia “Depoimento sem dano” ou “Depoimento com redução de dano”. 2008. Disponível em:<Disponível em:http://www.cresspr.org.br/downloadphp?conta=14968arquivo=parecerefessdsd.pdf >. Acesso em: 02 fev. 2016.
http://www.cresspr.org.br/downloadphp?co...
) afirmam que não é da competência de psicólogos e assistentes sociais a inquirição de crianças visando constituição de prova; e que estas crianças não têm apenas o direito, mas o dever de serem ouvidas.

O filme faz referência a uma cena de inquérito, em que Klara vacilou em seu relato sobre o acontecimento, ora confirmando, ora deixando dúvidas a respeito. Apesar disso, Grethe concluiu que crianças não mentem e, por acreditar nesta convicção, formalizou acusação policial contra Lucas. A investigação policial nem mesmo fora iniciada e a comunidade já começara a reagir repulsivamente contra Lucas. Embora a menina posteriormente tenha confessado a sua mãe Kirsten que Lucas não havia feito nada e que ela havia falado “bobagens”, Klara é logo por ela interrompida. Com um discurso reiterativo quanto à veracidade do fato, afirmando que Klara estaria negando-o por ter sido algo desprazeroso, Kirsten oferece-lhe um sentido, uma suposta verdade acerca de sua filha.

Esta verdade, sustentada pela conclusão do inquérito, resultou no fato de que Lucas passou a sofrer diversas retaliações: o rompimento de sua relação com Theo, seu melhor amigo; a perda de seu trabalho; a perda da oportunidade de seu filho Marcus vir a residir com ele; o rompimento de uma nova relação amorosa com Nadja; etc.

Outras crianças foram envolvidas no processo e apresentavam o mesmo discurso de que o abuso sexual havia ocorrido dentro do porão da casa de Lucas. Entretanto, quando a polícia fez uma busca em sua casa, constatou que não havia nenhum porão. Lucas chegou a ser preso, mas foi solto, tendo sido sua insistência em se manter presente naquela comunidade que levou Theo a duvidar da verdade sustentada até então.

Assim, a comunidade abre espaço para a presença de Lucas e de seu filho, não sem hostilizá-lo nos lugares públicos, a ponto de, em uma das cenas finais da trama, ao ser convidado a participar de uma caçada, prática comum àquela cultura, ter sido alvo de um tiro, sendo aparentemente colocado no lugar da caça.

A verdade jurídica

Foucault (2013FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de janeiro: Nau, 2013., p. 18) investigou como se formaram os domínios de saber a partir de práticas sociais. Para desenvolver tal questão, ele tomou a evolução das práticas judiciárias no campo do Direito Penal e a origem de certas formas de verdades. Segundo o autor, “a própria verdade tem uma história” que se divide em duas partes:

A primeira é uma espécie de história interna da verdade, a história de uma verdade que se corrige a partir de seus próprios princípios de regulação: é a história da verdade tal como se faz na ou a partir da história das ciências. Por outro lado, parece-me que existem, na sociedade, ou pelo menos em nossas sociedades, vários outros lugares onde a verdade se forma, onde um certo número de regras de jogo são definidas - regras de jogo a partir das quais vemos nascer certas formas de subjetividade, certos domínios de objeto, certos tipos de saber - e por conseguinte podemos, a partir daí fazer uma história externa, exterior, da verdade. (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de janeiro: Nau, 2013., p. 20-21).

No intuito de investigar a história da verdade, Foucault (2013FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de janeiro: Nau, 2013.) levantou a questão da origem do inquérito como uma forma de pesquisa de verdade, realizada desde os filósofos do século XV. O autor examinou duas ilustrações para discutir como a verdade era extraída no campo do Direito Grego.

A primeira ilustração das práticas jurídicas gregas em busca de uma verdade foi a tragédia de Édipo. Foucault (2013FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de janeiro: Nau, 2013.) afirma que nesta trama envolvendo um litígio criminal - o assassinato de Laio - o encontro com a verdade se deu por meio de metades que se encaixavam, propiciando a descoberta da verdade. Essa prática era chamada de jogo da lei das metades.

Tais metades foram se constituindo inicialmente pelos ditos do deus Apolo e do profeta Tirésias; posteriormente, pelas lembranças de Jocasta; e, finalmente, pelos testemunhos do escravo Corinto e do pastor Citerão. Eis que uma verdade foi desvelada - Édipo matara seu próprio pai Laio - através do encaixe de várias metades de uma verdade. Tal como disse Foucault:

Temos aí um dos traços mais fundamentais da tragédia de Édipo: a comunicação entre os pastores e os deuses, entre a lembrança dos homens e as profecias divinas. Esta correspondência define a tragédia e estabelece um mundo simbólico em que a lembrança e o discurso dos homens são como que uma imagem empírica da grande profecia dos deuses. (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de janeiro: Nau, 2013., p. 47).

Outra ilustração trazida por Foucault (2013FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de janeiro: Nau, 2013.) refere-se à busca por uma verdade mediante um jogo de provas entre Menelau e Antíloco, proveniente do texto grego de Homero.

Trata-se da história da contestação entre Antíloco e Menelau durante os jogos que se realizaram na ocasião da morte de Pátroclo. Entre esses jogos houve uma corrida de carros, que, como de costume, se desenrolava em um circuito com ida e volta, passando por um marco que era preciso contornar o mais próximo possível. Os organizadores dos jogos tinham colocado neste lugar alguém que deveria ser o responsável pela regularidade da corrida que Homero, sem o nomear pessoalmente, diz ser uma testemunha, aquele que está lá para ver. A corrida se desenrola e os dois primeiros que estão na frente no momento da curva são Antíloco e Menelau. Ocorre uma irregularidade e, quando Antíloco chega primeiro, Menelau introduz uma contestação e diz ao juiz ou júri que deve dar o prêmio, que Antíloco cometeu uma irregularidade. (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de janeiro: Nau, 2013., p. 39-40).

Neste caso, deu-se uma contestação, na qual Menelau lançou um desafio a Antíloco, dizendo-lhe: “Põe tua mão direita na testa do teu cavalo; segura com a mão esquerda teu chicote e jura diante de Zeus que não cometeste irregularidade” (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de janeiro: Nau, 2013., p. 40). Diante de tal desafio, Antíloco renuncia e assume sua irregularidade. Desta forma, a verdade foi extraída a partir de um temor ao mundo divino.

Vimos nesta ilustração que a busca por uma verdade foi atrelada a um jogo de provas diante dos deuses. Não estava em jogo uma constatação, uma testemunha, um inquérito. A sociedade grega arcaica se baseava no uso da prova. Assim também o era no velho Direito Germânico que se constituiu antes da invasão do Império Romano, onde o inquérito igualmente não existia e a verdade era regulamentada pelo jogo da prova de estrutura binária. (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de janeiro: Nau, 2013.).

No Direito Germânico não havia ação pública; ou seja, quando um indivíduo reclamava algum dano a outrem, este conflito era resolvido através de uma série de provas aceitas por ambos os lados, tais como provas verbais, provas mágico-religiosas do juramento, provas corporais, físicas, entre outras. Devido a duas razões, somente na segunda metade da Idade Média que tais práticas foram se transformando a ponto do inquérito ter sido introduzido no campo do Direito: o surgimento do Estado durante o Império Carolíngio e o movimento religioso e eclesiástico que predominava à época (idem). Diz-nos o autor:

Não foi racionalizando os procedimentos judiciários que se chegou ao procedimento do inquérito. Foi toda uma transformação política, uma nova estrutura política que tornou não só possível, mas necessária a utilização desse procedimento no domínio judiciário. O inquérito na Europa Medieval é sobretudo um processo de governo, uma técnica de administração, uma modalidade de gestão; em outras palavras, o inquérito é uma determinada maneira do poder se exercer. (Ibidem, p. 74).

Assim, Foucault definiu o inquérito:

O inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício do poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir. O inquérito é uma forma de saber-poder. (Ibidem, p. 79).

Desta forma, Foucault (ibidem, p. 34) afirmou que “a relação do sujeito com a verdade ou simplesmente a relação de conhecimento é perturbada, obscurecida, velada pelas condições de existência, por relações sociais ou por formas políticas que se impõem do exterior ao sujeito do conhecimento”. Conclui o autor que “nenhuma referência a um sujeito de conhecimento e sua história interna daria conta deste fenômeno”. (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de janeiro: Nau, 2013., p.75). Portanto, para analisarmos as formas de extração de uma verdade no campo jurídico, faz-se necessário considerar as transformações políticas e sociais.

Podemos igualmente considerar que os métodos ou estratégias que o judiciário dispôs como via de estabelecimento de uma verdade jurídica ao longo da história estiveram enlaçados a concepções morais e religiosas, implicadas com aquilo que se constitui como saber e poder. Atualmente, assistimos ao enlaçamento dos procedimentos jurídicos com o discurso da ciência, a sustentar com seu saber as verdades encontradas.

No filme, podemos observar que as ações investigativas partiram de uma verdade proposta por Grethe: a de que crianças não mentem. Todas estas ações se deram na direção de comprovar tal postulado enquanto uma verdade e não de constatar indícios de um crime sexual, não oferecendo inclusive ao acusado a oportunidade de ter ciência dos fatos ou mesmo de defesa, sendo impedido de apresentar sua versão sobre os acontecimentos. Quando as autoridades foram convocadas a participar dos fatos, o acusado já havia sido julgado na concepção moral daquela comunidade.

Ao que parece, ao longo do filme, a verdade foi construída a partir de um conhecimento pautado na moral; contudo, o que o filme revela é a verdade sobre a face fantasmática do sexual. Isso é uma questão que, desde sua descoberta por Freud, concerne à psicanálise. A verdade que está em causa nas neuroses é a sexual, que sobrevive no campo da fantasia, marcada pelo recalque desde a descoberta da sexualidade infantil por Freud.

A verdade para a psicanálise

Acerca do enunciado crianças não mentem, feito pela personagem Grethe - para quem isso é uma verdade inquestionável -, tomemos o que diz Freud. A respeito de assuntos envolvendo a sexualidade, ao tratar da atitude do adulto acerca da vida sexual da criança, ele afirmou que, “não lhes atribuindo nenhuma atividade sexual, o adulto não se esforça por observar seus indícios, suprimindo, por outro lado, qualquer manifestação dessa atividade que lhe chame a atenção” (FREUDFREUD, S. Sobre as teorias sexuais das crianças (1908)Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 9)., 1908/1996, p. 191).

Isso remete ao grande postulado da sexualidade infantil enunciado por Freud após abandonar a teoria da sedução, que sustentava a ideia de que as crianças eram abusadas pelos adultos. FreudFREUD, S. Estudos sobre a histeria (1893-1895) Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Ed. standard brasileira das obras completas, 2). (1893-1895/1996) passou a duvidar de que todas as suas pacientes histéricas pudessem mesmo ter sofrido abusos sexuais por parte de seus pais, dúvida que o leva à constatação de que a cena do abuso sexual poderia estar no plano de outra realidade psíquica: a do campo dos desejos edípicos do inconsciente. Eis que surge então o conceito de fantasia, que comporta uma verdade: a verdade singular do desejo. É justamente com esta verdade que o psicanalista trabalha, com a verdade do inconsciente.

Tal como no filme, a garotinha Klara enamora-se do seu professor e afirma que ele “tem um pipi que aponta para cima”, insinuando uma cena sexual diante da diretora Grethe. Esta inferiu dos enunciados de Klara que havia ocorrido um crime, sugerindo a verdade de um delito sexual. Diferentemente de Freud, em momento algum Grethe duvidou de ter ocorrido de fato um abuso por parte do professor. Podemos sustentar que a verdade em jogo nesta trama é a do desejo sexual presente na fantasia de Klara, que, como mencionado acima, é alvo de recalque na neurose, permanecendo, entretanto, no campo da fantasia.

Mas o que vem a ser a fantasia para a psicanálise? Seguindo Freud, Jorge afirma que a fantasia é a articulação entre a pulsão e o inconsciente, e que ela “possui uma conexão muito íntima com a vida sexual do sujeito” (JORGE, 2010JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan: a clínica da fantasia. V. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010., p. 49), sugerindo uma intrínseca relação com a verdade do inconsciente, que aponta para a lei do desejo. Isto é, o campo da fantasia comporta uma verdade, a sexual. Vejamos o que diz Jorge:

A fantasia é uma saída que, por si só, concilia duas exigências altamente imperiosas: a pulsional, que exige a satisfação a qualquer custo, e a renúncia exigida pela realidade, que coloca obstáculos continuamente para a obtenção dessa mesma satisfação pulsional. A fantasia pode ser, assim, comparada à válvula de uma verdadeira panela de pressão: com a pressão da pulsão aumentando constantemente, a fantasia também entra em jogo para diminuir a pressão interna e preservar o mínimo de equilíbrio psíquico e de homeostase. (Ibidem, p. 60-61).

A fantasia mantém uma relação com a pulsão, que exige imperiosamente sua satisfação. Tal satisfação ocorre no enlaçamento entre os dois princípios do funcionamento psíquico: prazer e realidade. Segundo o autor, a fantasia é estruturada a partir de uma dialética entre o princípio do prazer e o de realidade, considerando que o segundo é um emissário do primeiro, e não um rival. Isto é, o princípio da realidade introduz um limite, uma espécie de adiamento de uma ação que visa um prazer, mas que precisa de um momento adequado para se concretizar. Desta forma, o princípio de realidade está mais ligado ao princípio do prazer do que ao mundo externo, sendo a fantasia, portanto, uma realidade psíquica que não necessariamente impede o acesso à realidade externa, mas que também está ligada a ela. (JORGE, 2010JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan: a clínica da fantasia. V. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010., p. 60-61).

Retomando a questão levantada anteriormente, sobre Freud ter duvidado de suas histéricas, LacanLACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. P. 238-324. (1953/1998, p. 257) afirmou que elas não eram mentirosas; pelo contrário, promoveram o nascimento da verdade, a qual Freud extraiu através de suas falas. Segundo Lacan, é naquilo que escapa da fala que a verdade pode ser revelada. Vejamos o trecho a seguir:

Pois a verdade dessa revelação é a fala presente, que a atesta na realidade atual e que funda essa verdade em nome dessa realidade. Ora, nessa realidade, somente a fala testemunha a parcela de poderes do passado que foi atestada a cada encruzilhada em que o acontecimento fez uma escolha. (LACANLACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. P. 238-324., 1953/1998, p. 257).

Foi, portanto, a dúvida de Freud em relação às revelações histéricas que veio inaugurar o lugar da verdade: o inconsciente. Assim, LacanLACAN, J. A coisa freudiana ou sentido do retorno a Freud em psicanálise (1955). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. P. 402-437. (1953/1998) aposta que a verdade pode ser resgatada de outros lugares em que ela já se inscreveu, tais como o corpo, as lembranças da infância, a linguagem, as lendas da história do sujeito e os seus vestígios.

A dimensão da verdade em Lacan foi trabalhada em diversos momentos, e nela podemos encontrar vários aforismos: “não há verdade da verdade”; “eu, a verdade, falo”; “a verdade é semidita”; “a verdade como causa”; “a verdade e o saber”. O que querem dizer estes aforismos? Vejamos quais as consequências dessas afirmativas de Lacan e como podemos delas extrair a dimensão de verdade que está em causa para a psicanálise.

De acordo com Iannini (2012IANNINI, G. Estilo e verdade em Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2012.), o tema da verdade na teoria lacaniana pode ser dividido em dois eixos: o primeiro seria a partir do postulado de Lacan de que a verdade fala sempre ; e o segundo de que não há verdade da verdade . A partir de ambos estes eixos podemos afirmar que a verdade é sem o apoio de uma metalinguagem2 2 Segundo Iannini, entende-se por metalinguagem “o sistema de conceitos, a terminologia empregada para descrever a língua” (IANNINI, 2012, p. 115). que lhe ofereça condições de verdade.

Lacan rejeita a possibilidade de uma metalinguagem; portanto, não há Outro do Outro, pois o Outro é sem garantias. Dito de outra forma, não há sentido do sentido, visto que há o non sense. Afirmar que não há metalinguagem é reconhecer o ponto de não sentido dentro do campo da linguagem; é reconhecer que a linguagem tem um furo e que ela não é isenta de equívocos. Isto é, não há um primeiro discurso que legitime os demais (IANNINI, 2012IANNINI, G. Estilo e verdade em Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2012.).

Para Iannini, “o que está em questão na crítica lacaniana da noção de metalinguagem é que, ao falar da linguagem, não saímos da linguagem, não nos desembaraçamos de suas armadilhas” (ibidem, p. 88). Outro argumento que sustenta a hipótese lacaniana de que não há metalinguagem, é que, ainda que o funcionamento de uma cadeia de significantes remeta um significante a outro, nem tudo é simbólico. Desta forma, a crítica de Lacan se endereça à concepção de linguagem como sistema representativo que se apoia na positividade do significado, excluindo qualquer possibilidade de um não sentido, pois é justamente neste lugar de não sentido que a verdade pode emergir. Não há, portanto, um fiador para a verdade (IANNINI, 2012IANNINI, G. Estilo e verdade em Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2012.).

Em seu percurso, LacanLACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. (O seminário, 17). (1969-1970/1992) também problematizou a questão do estatuto da verdade e de suas relações com o saber , apontando para a irredutibilidade entre ambos, pois é na irrupção de um dizer que escapa ao saber, de um equívoco, que a verdade pode ali emergir. Quando o saber vacila, a verdade surge.

Sendo assim, Iannini afirma que: “a verdade em psicanálise depende de ‘confirmações indiretas’, derivadas da capacidade que uma intervenção tem de produzir efeitos, como rememorações, sonhos, mudanças na posição subjetiva diante do sintoma, da fantasia, do gozo etc.” (IANNINI, 2012IANNINI, G. Estilo e verdade em Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2012., p. 60). O autor acrescenta que “[...] a verdade aparece na experiência analítica como um processo ordenado segundo uma certa lógica e uma certa dialética. Essa lógica ficou conhecida como lógica do significante, e essa dialética, como dialética do desejo” (ibidem, p. 47, grifo do autor).

Acerca do aforismo lacaniano “Eu, a verdade, falo”, pronunciado em A coisa freudiana, é importante contextualizar que, neste texto, LacanLACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. P. 238-324. (1955/1998) está se referindo ao seu retorno a Freud, afirmando que a descoberta freudiana é de que o isso fala. Neste sentido, o autor endereça sua crítica às psicanálises ditas do ego, as quais visam o trabalho analítico essencialmente em função das resistências do eu. Para Lacan (idem), tal como o isso freudiano, a verdade fala por si própria nos tropeços e nas arestas da linguagem. Diz-nos o autor acerca da verdade: “Vagabundeio pelo que considerais como o menos verdadeiro em essência: pelo sonho, pelo desafio ao sentido da piadinha mais gongórica e pelo nonsense do mais grosseiro trocadilho, pelo acaso, e não por sua lei, mas por sua contingência” (LACANLACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. P. 238-324., 1955/1998, p. 411).

Para Porge, o que está em jogo nesta afirmativa de Lacan é a “[...] inversão que transforma a verdade falada, ou escrita, em verdade falante, ou literante” (PORGE, 2009PORGE, E. Transmitir a clínica psicanalítica. Cam pinas-SP: Editora da Unicamp, 2009., p. 99). Continua o autor: “Isso não significa que não se possa mais falar de ou sobre a verdade, mas que se possa, além do mais, falar com ela ou escrever para ela, endereçar-se a ela e também procurar entendê-la. Ela fala naquilo que acreditamos ser o menos verdadeiro por essência” (idem).

Em A ciência e a verdade,LacanLACAN, J. A ciência e a verdade (1965-1966). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. P. 869-892. (1965-1966/1998) discute “a verdade como causa”, nos quatro modos de sua refração, inspirados na metafísica de Aristóteles (eficiente, final, formal e material) e discorre acerca do funcionamento da verdade como causa na magia, na religião, na ciência e na psicanálise. “Causa” é um conceito importante à teoria de Lacan, pois remete ao objeto a causa de desejo; é considerada como invenção única do autor.

De acordo com Souza, a causa da psicanálise “conjuga-se, necessariamente, com o sujeito responsável” (SOUZA, 1996SOUZA, N. S. O conceito de causa em Lacan. In: FREIRE, A. B.; FERNANDES, F. L. (orgs.). A ciência e a verdade: um comentário. Rio de Janeiro: Editora Revinter, 1996., p. 69-70); já na ciência, “a pesquisa da causa exclui o sujeito e sua divisão” (idem). A verdade como causa se refere à verdade velada e excluída pela ciência, causa perdida, resgatada pela psicanálise e que opera no campo do real a título de objeto perdido.

Lacan igualmente abordou a questão da verdade ao falar sobre a concepção de sujeito enquanto tomado por uma divisão constitutiva entre “saber e verdade”. Disse-nos o autor: “É por isso mesmo que o inconsciente que o diz, o verdadeiro sobre o verdadeiro, é estruturado como uma linguagem, e é por isso que eu, quando ensino isso, digo o verdadeiro sobre Freud, que soube deixar, sob o nome de inconsciente, que a verdade falasse” (LACANLACAN, J. A ciência e a verdade (1965-1966). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. P. 869-892., 1965-1966/1998, p. 882).

Esta verdade, localizada no campo do inconsciente, implica em um saber não sabido, incompleto. Disse Lacan: “Digo sempre a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam as palavras. É justamente por esse impossível que a verdade provém do real” (LACANLACAN, J. Televisão (1974). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993., 1974/1993, p. 11).

Freire (1996aFREIRE, A. B. Descartes e o cogito. In: A ciência e a verdade: um comentário. Rio de Janeiro: Editora Revinter , 1996a.) propõe que entendamos a relação entre saber e verdade a partir do cogito cartesiano “penso, logo existo”. O projeto de Descartes era, através do método da dúvida, encontrar a razão. Com isso, convoca um ser pensante, que, por admitir a insuficiência de seu pensamento, recorre a algo da exterioridade para garanti-lo. Em relação a isso, a autora comenta:

Nesta distância entre a certeza própria do pensar e a verdade como supostamente pertencente a uma instância fora do pensamento, Descartes introduz, pela primeira vez, no campo do pensamento, a dicotomia, tão cara à psicanálise, entre saber e verdade. Enquanto o saber se constitui na própria articulação significante, a verdade vai além da linguagem na medida em que concerne à relação desta com o objeto. Em relação a Descartes, como ele vai procurar essa verdade em um saber, mesmo que seja em um Outro fora do pensar do sujeito, vemos que ele acaba, em última instância, por reduzir a verdade, que ele mesmo havia distinguido da certeza, a certeza de um saber Outro, o saber divino. (FREIRE, 1996aFREIRE, A. B. Descartes e o cogito. In: A ciência e a verdade: um comentário. Rio de Janeiro: Editora Revinter , 1996a., p. 41).

Para Freire (1996aFREIRE, A. B. Descartes e o cogito. In: A ciência e a verdade: um comentário. Rio de Janeiro: Editora Revinter , 1996a.), esse “esvaziamento subjetivo” proposto por Descartes e próprio da psicanálise se refere exatamente à divisão do sujeito entre saber e verdade, divisão esta que opera na constituição do ser da fala. A autora igualmente estabelece uma relação entre saber e linguagem, afirmando que, na teoria lacaniana, só há saber pela via da linguagem. Quanto a isso, diz-nos a autora: “Se identificarmos saber e linguagem, podemos afirmar que o saber tem, pela mesma razão, um ponto de não saber, verdade que lhe escapa. Neste sentido, a verdade a que Lacan se refere é aquela que não diz de forma completa, ou, em sua própria expressão, é aquela que surge como meio dizer” (FREIRE, 1996bFREIRE, A. B. A verdade como causa. In: A ciência e a verdade: um comentário. Rio de Janeiro: Editora Revinter, 1996b., p. 28).

Acerca desta “verdade semidita”, Lacan afirmou que “toda a verdade, é o que não se pode dizer. É o que só se pode dizer com a condição de não levá-la até o fim, de só se fazer semidizê-la” (LACANLACAN, J. Mais ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. (O seminário, 20)., 1972-1973/2008, p. 98-99).

Segundo Porge, uma forma de pensarmos a verdade como semidita diz respeito ao fato de que “a divisão do saber e da verdade constitui uma razão dessa redução de metade. É uma verdade fracionada pela barra que a separa de sua relação com o saber” (PORGE, 2009PORGE, E. Transmitir a clínica psicanalítica. Cam pinas-SP: Editora da Unicamp, 2009., p. 122).

O enlaçamento entre verdade e responsabilidade

O percurso que nos orientou acerca da verdade para o campo do direito e da psicanálise nos leva a entender que a dimensão da verdade é um tema que não pode ser desenvolvido sem estar enlaçado ao conceito de responsabilidade, visto que, tanto no campo do direito quanto no da psicanálise, ambos os conceitos parecem relacionados.

Pela vertente do direito, um indivíduo será responsabilizado juridicamente por um ato após ser constatada uma verdade factual acerca deste ato. No campo do direito, devemos nos responsabilizar por nossos atos jurídicos. Portanto, ao longo da trama do filme A caça, buscou-se o responsável legal pelo suposto crime sexual inferido ao discurso de Klara.

Já no campo da psicanálise, tal como nos afirmou LacanLACAN, J. A ciência e a verdade (1965-1966). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. P. 869-892. (1965-1966/1998)3 3 Nas palavras de Lacan: “Por nossa posição de sujeito, somos sempre responsáveis” (LACAN, 1965-66/1998, p. 873). , o sujeito será responsabilizado pela verdade de seu desejo, que retorna nos tropeços da fala.

Para Nietzsche (2009NIETZSCHE, F. A genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.), a história do conceito de responsabilidade está atrelada ao fato de o homem ser capaz de fazer promessas pelas quais tem o dever de responsabilizar-se. Logo, se é responsável na medida em que se cumpre as promessas.

Segundo Nietzsche (2009NIETZSCHE, F. A genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.), o homem se diferencia dos demais animais porque ele é o único animal capaz de fazer promessas. Uma promessa implica em uma dívida para consigo mesmo e para com o outro; e seu cumprimento implica em um tempo futuro que ainda está por vir. Desta forma, a lembrança de uma promessa comporta uma dimensão passada e futura; e o preço que o homem paga por poder fazer promessas é o ressentimento, tendo em vista que tais promessas podem ou não ser cumpridas.

Sendo assim, o homem é responsável a partir de e em função de uma verdade; uma verdade jurídica que implica em uma responsabilidade legal, bem como uma verdade psíquica que implica na responsabilidade sobre o próprio desejo.

Conclusão

Após o percurso de confrontar a verdade para o campo jurídico e a verdade para a psicanálise, vimos que o direito busca a verdade pela via do inquérito, da constatação e comprovação.

Na história da Grécia Antiga, tais métodos se deram de forma variada e receberam influências dos campos da religião e da moral. Nos dias atuais, vimos que, quanto à inquirição de crianças, a extração da verdade no contexto jurídico conta com a prática do DSD. Por outro lado, em psicanálise, a verdade se insinua, fala por si mesma e possui relação com a fantasia.

O filme em pauta reúne elementos que nos possibilitam articulações quanto à busca por essa verdade e questionamentos acerca de que verdade se fala. No aspecto jurídico, a condução desta busca se deu em função de uma moral existente no discurso de uma comunidade - ao preço da verdade do sujeito, que se viu esmagada e em segundo plano.

Os acontecimentos do filme demonstram que há uma relação entre fantasia e realidade. Tomou-se a fantasia como realidade. Do ponto de vista jurídico, desconsiderou-se o campo da fantasia, pertinente à sexualidade infantil; diferentemente do campo da psicanálise, onde a fantasia é acolhida, pois se entende que esta comporta uma verdade decisiva: a do desejo. Neste sentido, a psicanálise pode ser de grande contribuição ao campo jurídico ao sinalizar a importância de se considerar esta outra realidade que se insinua no plano da fantasia, para além da realidade factual.

Mesmo levando em consideração a materialidade dos fatos, devemos nos atentar que a verdade jurídica pode se equivocar. Assim, ainda que imperem no campo jurídico as leis universais e totalizadoras, a psicanálise pode igualmente contribuir, ao apontar para a necessidade de se escutar a verdade, uma a uma.

Assim, concluímos que a busca pela verdade não pode seguir sempre a mesma trilha, visto que há verdades e verdades no universo dos discursos. Tal postulado se justifica através da fala de Lacan de que “a verdade revela-se complexa por essência, humilde em seus préstimos e estranha à realidade” (LACANLACAN, J. A ciência e a verdade (1965-1966). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. P. 869-892., 1955/1998, p. 437).

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  • 1
    No campo jurídico, este termo se refere à audição de uma testemunha envolvida em um processo.
  • 2
    Segundo Iannini, entende-se por metalinguagem “o sistema de conceitos, a terminologia empregada para descrever a língua” (IANNINI, 2012, p. 115).
  • 3
    Nas palavras de Lacan: “Por nossa posição de sujeito, somos sempre responsáveis” (LACAN, 1965-66/1998, p. 873).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2016
  • Aceito
    01 Fev 2017
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