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A EXPERIÊNCIA ESQUIZOIDE SEGUNDO FAIRBAIRN E GUNTRIP

The schizoid experience according to Fairbairn and Guntrip

RESUMO:

O presente artigo tem por objetivo promover uma investigação acerca das contribuições de Ronald Fairbairn e Harry Guntrip a respeito da esquizoidia a partir da ótica da teoria das relações objetais. Com esta finalidade, faremos uma exposição sobre a constituição da subjetividade segundo esses autores e discutiremos as falhas no percurso desenvolvimental que proporcionam o surgimento das tendências e características esquizoides, considerando as divergências teóricas presentes entre as obras de Fairbairn e Guntrip.

Palavras-chave:
esquizoidia; relações objetais; retraimento; desenvolvimento

ABSTRACT:

This article aims to conduct a research about the contributions of Ronald Fairbairn and Harry Guntrip on schizoidism from the perspective of object relations theory. To this end, we will hold an exhibition on the constitution of subjectivity according to these authors and discuss the flaws in the developmental pathway that allows the emergence of schizoid characteristics, noting the existing theoretical differences in Fairbairn and Guntrip’s works.

Keywords:
schizoidism; object relations; withdrawal; development

O princípio dos anos de 1940 teve uma imensa importância para o desenvolvimento do pensamento psicanalítico. Após a ocupação nazista de Viena, iniciada em 1938, e a consequente fuga da família Freud para Londres no mesmo ano, a capital britânica tornou-se um dos principais centros psicanalíticos da Europa. A Sociedade Britânica de Psicanálise fervilhava com as famosas discussões entre dois grupos liderados, cada um, por Melanie Klein e Anna Freud - esta considerada herdeira da proposta teórica e clínica de seu pai, Sigmund Freud. À parte disso, um terceiro grupo se formou - o chamado middle group - dedicando-se ao estudo das relações objetais. Alguns de seus membros incluíam nomes como Sylvia Payne, Ella Sharpe, Donald Winnicott e Michael Balint.

Enquanto isso, na cidade de Edimburgo, a cerca de 600 quilômetros da sede londrina da Sociedade Britânica, residia e trabalhava o Dr. W. Ronald D. Fairbairn, médico e psicanalista escocês. O afastamento geográfico acabou por refletir na distância da teoria de Fairbairn em relação ao movimento psicanalítico da época - o autor escocês não comparecia às reuniões da Sociedade Britânica, ocupando-se unicamente de seu trabalho clínico e do desenvolvimento de sua teoria. Ainda assim, atraía pacientes de todo o Reino Unido - entre eles, o também psicanalista Harry Guntrip, que se tornaria seu principal discípulo e grande responsável pela posterior divulgação da teoria fairbairniana. Segundo Bleichmar e Bleichmar (1989BLEICHMAR, N. M; BLEICHMAR, C. L. A psicanálise depois de Freud: teoria e clínica (1989). Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.), é possível, a partir da ótica de Guntrip, identificar as diferentes fases teóricas atravessadas por Fairbairn como teórico da psicanálise. Primeiramente, um período inicial durante o qual Fairbairn teve bastante contato com a obra freudiana, sofrendo grande influência da teoria pulsional (a qual viria a objetar-se posteriormente). Em seguida, um contato próximo com a teoria kleiniana, influência que pode ser percebida ao longo de toda a sua obra, principalmente no que tange à questão dos objetos maus e às posições paranoide e depressiva.

Contudo, a grande preocupação de Fairbairn (como seria, futuramente, a de Guntrip) era o estudo da problemática esquizoide no desenvolvimento emocional, o que marcaria profundamente o terceiro e mais original momento de seus escritos. Esta é a questão que esse artigo se propõe a analisar, observando as aproximações e os distanciamentos teóricos entre os dois autores. No entanto, se a esquizoidia constitui o núcleo destas teorias, devemos antes compreender melhor sua fundamentação, isto é, a ideia das relações objetais tal como formulada primeiramente por Fairbairn.

Fairbairn propõe um significativo rompimento com o modelo pulsional de Freud. No sistema freudiano avaliado por Fairbairn, a regulação da tensão pulsional (o princípio do prazer) assume protagonismo, constituindo o objetivo último de todos os impulsos a redução da tensão corporal. A partir dessa concepção, tais impulsos não possuiriam um alvo determinado: “O impulso original não tem direção - é um quantum de tensão esperando para ser reduzido. [...] Os impulsos tornam-se dirigidos a objetos externos só quando estes objetos se apresentam e provam ser úteis em reduzir a tensão” (GREENBERG; MITCHELL, 1983GREENBERG, J. R.; MITCHELL, S. A. Relações objetais na teoria psicanalítica (1983)., 1994., p. 113). Fairbairn, no entanto, entende essa questão de forma diferente e baseia sua discordância com Freud em dois pontos essenciais: primeiramente, o fim da libido não é o prazer, mas o objeto em si; em segundo lugar, a energia psíquica é inseparável da estrutura, o que invalidaria o conceito freudiano de Id.

Dessa forma, a tensão libidinal, responsável pela motivação básica do indivíduo, seria justamente a tensão ligada à necessidade de busca de objetos (FAIRBAIRN, 1946FAIRBAIRN, W. R. D. Relações objetais e estrutura dinâmica (1946). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana , 1980.). O objeto deixa de ser apenas um meio para a obtenção de prazer, sendo percebido como a própria finalidade da libido. Isso decorre da natureza relacional do ego, o qual simplesmente perde o sentido caso não esteja ligado a algum objeto, correndo inclusive o risco de deixar de existir. De acordo com a análise desenvolvida por Greenberg e Mitchell (1983GREENBERG, J. R.; MITCHELL, S. A. Relações objetais na teoria psicanalítica (1983)., 1994.) acerca da revisão fairbairniana do modelo pulsional, a ordem da teoria clássica se inverte: ao invés de se buscar o objeto para obter prazer, este passa a ser um meio para a real finalidade do impulso, a relação com um outro.

Assim, as relações objetais assumem um papel crucial na obra de Fairbairn. Apenas através de relações objetais externas satisfatórias, que cumpram um papel estruturante para a personalidade a partir dos objetos bons, é possível o amadurecimento emocional do ego. Em um cenário ideal, o ego infantil culminaria em um ego unitário, integral, dotado de energia própria (o que representa mais um afastamento da teoria freudiana, segundo a qual o id representaria o repositório de energia psíquica do indivíduo), buscando, a todo tempo, relações com objetos externos, totais, reais. No entanto, quando o sujeito se depara com relações insatisfatórias, o desenvolvimento é perturbado, o que resulta na criação dos objetos internos, de caráter compensatório.

Ao analisarmos a obra de Fairbairn, podemos perceber que a grande questão da esquizoidia reside em um conflito que ocorre em um dos momentos mais primitivos do percurso do desenvolvimento emocional. Este é dividido pelo autor em três momentos: a dependência infantil, a fase de transição e a dependência madura.

A dependência madura é a etapa ideal, na qual o indivíduo conseguiu alcançar um razoável nível de desenvolvimento através de relações satisfatórias com objetos reais, externos. Trata-se de laços cooperativos entre dois sujeitos diferenciados. Neste caso, há uma confiança maior de parte do indivíduo no ambiente, uma ampla gama de objetos disponíveis, não existe apenas um objeto do qual se depende inteiramente. É interessante destacar a opção de Fairbairn ao denominar essa fase como “dependência madura” ao invés de simplesmente chamá-la independência - como o ego depende de objetos para existir, não faria sentido considerar a independência de forma absoluta.

A fim de atingir tal estágio no qual as relações sejam estabelecidas principalmente com objetos externos, o indivíduo precisa resolver duas importantes situações: (1) o conflito referente à separação do objeto com o qual estava identificado no início da vida - embora se anseie pela independência, há um temor quanto ao que pode ocorrer com essa mudança; e (2) chegar a um acordo com os objetos que já haviam sido internalizados em um momento mais primitivo. Para isso, o sujeito se vale de diversas técnicas defensivas, das quais Fairbairn destaca quatro: fóbica, obsessiva, histérica e paranoide, cada uma definida pela forma como o indivíduo lida com os objetos internos e externos. É a ocorrência desses conflitos aquilo que define a etapa de transição para a dependência madura. Guntrip, conforme citado por Bleichmar e Bleichmar (1989BLEICHMAR, N. M; BLEICHMAR, C. L. A psicanálise depois de Freud: teoria e clínica (1989). Porto Alegre: Artes Médicas, 1992., p. 201), resume esta etapa da seguinte forma:

O obsessivo retém ambos os objetos como internos, e procura dominá-los, o fóbico trata-os como externalizados e procura fugir do objeto mau e se refugiar no objeto bom. O paranoide externaliza o objeto mau para odiá-lo e atacá-lo, mas aceita o objeto bom como internalizado, permanecendo identificado com ele, chegando assim a se convencer de que ele tem toda a razão. O histérico faz o oposto: externaliza o objeto bom e se aferra a ele, em seu mundo externo, ao mesmo tempo em que internaliza e rechaça seu objeto mau, em seu mundo interno. (GUNTRIP, 1961GUNTRIP, H. Você e os seus nervos (1951). Rio de Janeiro: Editora Científica, 1961., p. 264-265).

O momento inicial do desenvolvimento emocional é chamado por Fairbairn de dependência infantil. Foi a esta fase que o autor dedicou a maior parte de sua pesquisa, justamente por representar o berço da problemática esquizoide, derivada do conflito relacionado à fase oral primária tal como ele o compreendia. Uma das mais importantes características da dependência infantil é o tipo de relação objetal que o sujeito estabelece: sua sobrevivência depende absolutamente de um único objeto - a mãe. Por essa razão, a relação baseada em identificação - uma reminiscência da vida intrauterina - assume um caráter ainda mais intenso. O autor destaca essa carga em comparação à forma que a relação objetal assume na dependência madura:

Também percebemos que, ao passo que no adulto a relação de objeto tem uma amplitude considerável, na criança tende a estar concentrada sobre um só objeto. De maneira que, nesta, a perda do objeto é muito mais desoladora. Se um indivíduo maduro perde um objeto, não importa quão importante seja para ele, restam-lhe ainda outros objetos. Tem muitas outras possibilidades. Mais ainda, possui uma série de objetos e pode abandonar um pelo outro. Pelo contrário, a criança não pode escolher. (FAIRBAIRN, 1941FAIRBAIRN, W. R. D. Uma revisão da psicopatologia das psicoses e psiconeuroses (1941). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana , 1980., p. 37).

Para Fairbairn, “a dependência infantil é equivalente à dependência oral” (1941, p. 37), devendo ser destacado que isso não quer dizer que a criança nesta etapa seja essencialmente oral - uma vez que o seio da mãe é o objeto biologicamente adequado, ela utiliza a boca porque é o único instrumento de que dispõe para relacionar-se com o seio e se alimentar, assegurando sua sobrevivência. Ao mesmo tempo, o autor declara o narcisismo uma das características mais proeminentes da dependência infantil, por representar um estado que surge essencialmente da identificação com o objeto; no caso do narcisismo primário, o estado de identificação com o objeto, enquanto que, no secundário, o estado de identificação com o objeto internalizado. Tendo isso em vista, Fairbairn apoia-se nas teorias de Abraham ao dividir a dependência infantil em dois momentos: a fase oral primária e a fase oral secundária, que acompanham as respectivas etapas do narcisismo.

A transição da fase oral primária para a secundária é caracterizada ainda pelo surgimento da tendência a morder, a qual comporta “um propósito essencialmente destrutivo, e [...] [deve ser considerada] protótipo de toda agressão diferenciada” (FAIRBAIRN, 1941FAIRBAIRN, W. R. D. Uma revisão da psicopatologia das psicoses e psiconeuroses (1941). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana , 1980., p. 38). Esta se encontra ausente na primeira fase, na qual a atitude em relação ao objeto é dominada pelo sugar. Entretanto, com o aparecimento do morder, a atitude incorporativa da fase oral primária não é abandonada: ambas as tendências passam a coexistir. Dessa forma, a fase oral secundária pode ser descrita como uma etapa de grande ambivalência emocional em relação ao objeto, enquanto que a fase oral primária pode ser considerada, segundo Fairbairn (1941FAIRBAIRN, W. R. D. Uma revisão da psicopatologia das psicoses e psiconeuroses (1941). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana , 1980.), como pré-ambivalente. Todavia, devemos destacar que a rejeição ou recusa do objeto que se apresenta como mau faz parte da fase oral primária; o que está ausente é o caráter destrutivo (para o autor, o maior indicador da ambivalência) de tal atitude. Dessa forma, a ambivalência a que Fairbairn se refere na fase oral secundária está relacionada ao conflito entre amar e odiar o mesmo objeto. Devemos destacar que o surgimento do morder indica que alguma agressividade está sendo direcionada ao objeto; e que a agressividade, segundo Fairbairn, surge a partir da frustração oriunda de uma relação objetal insatisfatória. Assim, a experiência de que a mesma mãe que satisfaz é também a que frustra é o que leva o bebê a experimentar essa ambivalência em relação ao objeto.

Quando o objeto não sobrevive, o sujeito se convence de que seu ódio foi o responsável pela destruição do objeto (durante a dependência infantil, o único objeto que há) e, portanto, encerra qualquer tendência destrutiva dentro de si, não se permitindo vivenciá-la de forma alguma - sua agressividade poderia, em uma ilusão onipotente, destruir o ambiente. Para Fairbairn (1946FAIRBAIRN, W. R. D. Relações objetais e estrutura dinâmica (1946). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana , 1980.), essa dinâmica caracteriza a posição depressiva, que eclode a partir da ambivalência do sujeito em relação ao objeto durante a fase oral secundária. Posteriormente, Guntrip (1951GUNTRIP, H. Você e os seus nervos (1951). Rio de Janeiro: Editora Científica, 1961.) destacaria dois sentimentos intrínsecos à posição depressiva, que somente podem surgir a partir desse momento: o ódio e a culpa. É notável alguma semelhança entre a posição depressiva descrita por Fairbairn e aquela elaborada por Klein nos anos 30. O temor relativo ao dano causado ao objeto pelo ódio se faz presente no discurso de ambos os autores. No entanto, podemos considerar que as diferenças quanto à forma com que o sujeito tolera tal angústia são bastante emblemáticas. Enquanto, para Klein, é o mecanismo de reparação que permite a superação da posição depressiva, Fairbairn dá a entender que não há muito o que o sujeito possa fazer nesse momento - é a mãe quem deve resistir ao ataque do bebê. Assim, torna-se claro o quanto Klein privilegiava as questões pulsionais internas e a fantasia, enquanto Fairbairn atribuía maior importância ao papel desempenhado pelo ambiente.

Todavia, em um momento ainda mais primitivo (a fase oral primária), o sujeito pode vivenciar a ambivalência do objeto em relação a ele. De acordo com o autor escocês (1944), experienciar os aspectos bons e maus do mesmo objeto é algo intolerável para o bebê. Não lhe é aceitável que o mesmo objeto que o satisfaz e garante sua sobrevivência seja também responsável por suas frustrações. Um objeto com tamanha falha perde sua confiabilidade, o que evoca no jovem indivíduo uma imensa angústia de que ele seja perdido - devemos frisar novamente a enorme importância que tem o objeto para a sobrevivência do ego, especialmente no contexto da dependência infantil. Para lidar com essa relação não apenas insatisfatória, mas também ameaçadora, a criança cinde o objeto em dois: a mãe gratificante, baseada nos aspectos bons do objeto; e a mãe não gratificante, que representa o objeto mau. Por constituir um risco à sobrevivência do ego, o objeto mau precisa ser controlado de alguma forma - por isso, é internalizado.

Embora, à primeira vista, a cisão e a internalização de um objeto mau possam parecer um problema tão grande quanto “convidar um visitante indesejável”, a teoria de Fairbairn se baseia na estratégia militar tão utilizada por Júlio César e Napoleão: dividir para conquistar. Um objeto real, total, do qual se depende integralmente, pode ser perigoso quando possui também uma faceta má. Por outro lado, um objeto mau interno, sobre o qual o indivíduo exerce seu controle, pode ser tolerado, enquanto que uma relação satisfatória é mantida com seu lado gratificante. Guntrip (1952GUNTRIP, H. The schizoid personality and the external world (1952) . In: Schizoid phenomena, object relations and the self. Nova York: International Universities Press, 1969.) acrescenta que o objeto mau é mantido no mundo interno devido ao esforço do indivíduo em alterá-lo a ponto que se transforme em um objeto bom na realidade interna (embora tal objeto nunca realmente mude). Podemos perceber, assim, um ponto de discordância entre Fairbairn e Klein. Enquanto esta acreditava que a criação do mundo interno consistia em um fenômeno natural e primário, Fairbairn o percebia como fruto de uma reação, uma compensação para as relações insatisfatórias com os objetos reais: internaliza-se um objeto apenas quando o controle de seus intoleráveis aspectos maus se faz necessário.

Ademais, a mãe não gratificante possui ainda duas perspectivas: é percebida tanto como uma mãe sedutora, que tenta e atrai o bebê, quanto como uma mãe privadora, que o frustra. Assim, o objeto mau é dividido, novamente, entre o objeto excitante e o objeto rejeitante. Segundo Fairbairn (1944FAIRBAIRN, W. R. D. As estruturas endopsíquicas consideradas em termos de relações de objeto (1944). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980.), é justamente nessa duplicidade que reside a “maldade” do objeto, o que torna a relação insatisfatória. Assim, chegamos a uma situação em que existem três objetos com os quais o ego deve se relacionar: o objeto excitante, o objeto rejeitante (oriundos do objeto mau, e assim, internos) e o objeto ideal (derivado do objeto bom, possuindo, portanto, natureza externa).

Com a finalidade de manter a relação com esses dois objetos internos, o ego desenvolve pseudópodes, o que permite a manutenção da ligação libidinal com os objetos reprimidos. Entretanto, devido às relações que esses pseudópodes estabelecem com os objetos internos (percebidos como maus), a porção central do ego dirige sua agressividade a eles, também os reprimindo. Assim, surgem dois egos subsidiários, separados do ego central, que mantêm o laço com os objetos reprimidos, a saber: o ego libidinal (ligado ao objeto excitante) e o sabotador interno (conectado ao objeto rejeitante). Este último foi posteriormente renomeado por Fairbairn (1946FAIRBAIRN, W. R. D. Relações objetais e estrutura dinâmica (1946). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana , 1980.) como ego antilibidinal. Dessa forma, segundo o autor, “a repressão não se exerce primariamente contra os impulsos que se tornaram dolorosos ou ‘maus’ [...] ou contra as recordações dolorosas [...], e sim contra os objetos internalizados que passaram a ser tratados como maus” (FAIRBAIRN, 1944FAIRBAIRN, W. R. D. As estruturas endopsíquicas consideradas em termos de relações de objeto (1944). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980., p. 71, grifado no original). O autor ainda acrescenta que a repressão não somente se exerce contra objetos internalizados (que devem ser considerados estruturas endopsíquicas, embora não como estruturas do ego), mas também contra aquelas partes do ego que buscam estabelecer relações com objetos internos (FAIRBAIRN, 1944FAIRBAIRN, W. R. D. As estruturas endopsíquicas consideradas em termos de relações de objeto (1944). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980., p. 71).

Não se trata, portanto, de uma auto-repressão do ego (tendo em vista que esta é uma função exercida pelo próprio ego), mas da repressão de certas porções do ego (neste caso, do ego libidinal e do ego antilibidinal). Assim, Fairbairn (1944FAIRBAIRN, W. R. D. As estruturas endopsíquicas consideradas em termos de relações de objeto (1944). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980.) define a situação endopsíquica básica, que, embora possa ser grosseiramente aproximada ao aparelho psíquico de Freud, difere desse modelo principalmente pela ideia de que os egos da situação endopsíquica básica constituem “estruturas egoicas intrinsecamente dinâmicas” (FAIRBAIRN, 1949FAIRBAIRN, W. R. D. Etapas no desenvolvimento de uma teoria das relações objetais da personalidade (1949/). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980., p. 126), isto é, são dotadas de estrutura e energia próprias.

A situação endopsíquica básica é ilustrada na Figura 1, segundo esquema proposto pelo próprio autor (1944FAIRBAIRN, W. R. D. As estruturas endopsíquicas consideradas em termos de relações de objeto (1944). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980., p. 83).

Figura 1
Situação endopsíquica básica.

Esse modelo psíquico corresponde a uma das mais importantes contribuições de Fairbairn à psicanálise, uma vez que sua ideia sobre a multiplicidade de egos e objetos que povoam o self oferece uma nova luz ao fenômeno das personalidades múltiplas e à utilização do alter ego (GROTSTEIN, 1994GROTSTEIN, J. S. Endopsychic structure and the cartography of the internal world: six endopsychic characters in search of an author. In: Fairbairn and the origins of object relations. Londres: Free Association Books, 1994.). Ademais, Fairbairn considera esse fenômeno universal, tendo em vista que não haveria maternagem que fosse impecável a ponto de evitar tal ruptura ou reintegrar os egos inteiramente. Como um prato quebrado não pode ser colado com perfeição a ponto de que suas fissuras não mais existam, os egos nunca mais se reintegram completamente.

Dessa forma, a partir do momento em que o ego se torna irremediavelmente cindido devido aos conflitos originados na fase oral primária, Fairbairn define que a posição esquizoide se estabelece. Nesse momento, a agressividade ainda não foi "descoberta" pelo bebê e suas únicas opções resumem-se a aceitar (incorporar) ou não o objeto, através de seu amor. Caso o objeto (externo) seja perdido nesse momento ou a relação com ele seja perturbada a um nível mais intenso, a sensação para o indivíduo é de que seu amor foi o responsável pela destruição do objeto, tendo em vista que era essa a única forma que tinha de expressão. Então, para se resguardar de um destino insuportável (a ausência de qualquer objeto, o que representaria a morte psíquica), o sujeito enclausura seu amor, impedindo-se até mesmo de relacionar-se com qualquer um.

Assim, é a intensidade dessa angústia que determina quão emocionalmente retraído é o paciente esquizoide. Fairbairn (1940FAIRBAIRN, W. R. D. Fatores esquizóides na personalidade (1940). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980.) não entende a esquizoidia como um rótulo fixo, objetivo. Trata-se de um espectro, uma escala polarizada pelo fracasso completo na integração e a ausência completa de dissociação, ambas possibilidades apenas teóricas, já que, da mesma forma que nenhuma maternagem é tão ruim que não permita qualquer resquício de integração, não há cuidado infalível a ponto de prevenir totalmente a dissociação do ego ou mesmo reintegrá-lo plenamente. Um dado importante lembrado pelo autor se refere às manifestações esquizoides apresentadas por esses grupos: quanto mais próximo da base da escala o indivíduo se encontra, mais frequentemente sofrerá com estas manifestações. Em contrapartida, quanto mais satisfatoriamente o sujeito tiver se desenvolvido (e reintegrado seu ego), mais raros serão os momentos de manifestações esquizoides. Devemos destacar que todos estão suscetíveis a desenvolver episódios esquizoides em momentos extremos, como diante de uma perda, porém, dada uma integração mais sólida, mais extremas devem ser estas situações para propiciar tais episódios.

Entre os esquizoides, Fairbairn (1940FAIRBAIRN, W. R. D. Fatores esquizóides na personalidade (1940). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980.) identifica três características, que não são necessariamente manifestas - podem estar conscientes ou inconscientes. Primeiramente, há uma atitude de onipotência, de arrogância em relação aos demais: “o desdém do intelectual pela burguesia e o desprezo do artista esotérico pelo filisteu podem ser considerados como manifestações menores de uma natureza esquizoide” (FAIRBAIRN, 1940FAIRBAIRN, W. R. D. Fatores esquizóides na personalidade (1940). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980., p. 5). A atração que as ocupações intelectuais (literárias, artísticas, acadêmicas e científicas) oferecem aos indivíduos esquizoides parece reforçar essa atitude, conferindo o material do qual o esquizoide se utiliza para distanciar os “ignorantes”. A atitude de superioridade do esquizoide é uma consequência de sua tendência a orientar-se para objetos parciais, já que, não atingindo o nível de desenvolvimento relativo à fase oral secundária, não consegue relacionar-se com objetos totais - assim, trata as pessoas simplesmente como meio de satisfazer suas próprias necessidades, como o bebê faz com o seio. Fairbairn (1940FAIRBAIRN, W. R. D. Fatores esquizóides na personalidade (1940). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980.) utiliza um caso clínico como ilustração para essa característica, ao discutir sobre um paciente seu que tratava as pessoas como se fossem animais inferiores - sua própria esposa era percebida como um objeto parcial, algo de onde extrair satisfação. Esta atitude de superioridade pode até mesmo ser mascarada por falsa modéstia em uma esfera de atuação, algo valorizado como um segredo precioso, o que evidencia um segundo traço esquizoide: a preocupação com a realidade interna.

Tal preocupação, segundo o autor, deve ser considerada como a mais importante característica esquizoide, devido ao predomínio do tomar sobre o dar na atitude libidinal. O indivíduo esquizoide possui uma grande dificuldade em relação à atitude de “dar” (que equivaleria às atividades de excreção, associadas por Fairbairn à criatividade), permanecendo preso ao “tomar”, uma atitude oral, incorporativa. O autor destaca que existe uma supervalorização dos conteúdos mentais, o que se reflete na dificuldade do esquizoide em expressar emoções em um contexto social - “dar” significa perder conteúdos, o que faz com que o esquizoide perceba o contato social como algo esgotante. Para lidar com essa dificuldade, o esquizoide emprega técnicas defensivas, como a representação de papéis, que permite ao indivíduo expressar emoções de forma segura, já que sua verdadeira personalidade está preservada; e a técnica exibicionista, na qual o indivíduo substitui o “dar” pelo “mostrar”. Isso poderia ser observado em muitos artistas esquizoides, que são atraídos por tais atividades justamente por oferecerem um meio de expressão sem um contato pessoal direto. Entretanto, quando o mostrar assume um caráter de mostrar-se, a situação exibicionista pode tornar-se dolorosa demais, fazendo com que o indivíduo se isole. Tal isolamento constitui a terceira característica esquizoide a que Fairbairn se refere, uma das mais marcantes para os que convivem com um indivíduo deste tipo, justamente por ser tão flagrante: o sujeito dificilmente é visto como alguém aberto a experiências relacionais, mantendo-se distante tanto espacialmente quanto afetivamente. Esse traço poderia até mesmo gerar uma confusão entre os termos “esquizoide” e “introvertido”; Fairbairn (1940FAIRBAIRN, W. R. D. Fatores esquizóides na personalidade (1940). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980.) prefere o emprego do primeiro por não ser apenas descritivo, mas também psicogenético.

Considerando a dinâmica esquizoide como um todo, é importante destacar o fator incorporativo da atitude da fase oral primária, já que esta é a única ferramenta ao dispor do sujeito para relacionar-se com o mundo durante esse momento. Como já foi discutido anteriormente, o momento de privação, em seguida à incorporação, provoca a sensação de que seu amor incorporativo foi também responsável pela destruição do objeto amado. Para Fairbairn, isso provoca uma situação em que a criança sente: “(a) que a mãe não a quer realmente como pessoa; e (b) que seu próprio amor pela mãe não é realmente valorizado e aceito por esta” (FAIRBAIRN, 1940FAIRBAIRN, W. R. D. Fatores esquizóides na personalidade (1940). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980., p. 15). No mesmo texto, o autor destaca que isso faz com que a criança considere (1) que a mãe é um objeto mau, na medida em que não a ama; (2) que suas próprias expressões amorosas são más, fazendo com que ela retenha seu amor dentro de si para preservar o objeto; e (3) que as relações externas são arriscadas, podendo destruir o objeto e, consequentemente, ela mesma. Por isso, o infante na posição esquizoide se apegaria aos objetos internos, renunciando ao mundo externo - “como sente que o próprio amor é mau, está disposto a interpretar o amor dos outros em termos similares” (FAIRBAIRN, 1940FAIRBAIRN, W. R. D. Fatores esquizóides na personalidade (1940). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980., p. 21).

Este mundo interno do esquizoide, com o intuito de preservar tanto o ego quanto o objeto, torna-se altamente intelectualizado, já que o afeto é perigoso. Assim, os sentimentos são transformados em ideias, os valores intelectuais substituem os afetivos, o que torna difícil para o esquizoide se expressar. Esta característica de intelectualização dos conteúdos se faz muito presente, segundo Fairbairn (1940FAIRBAIRN, W. R. D. Fatores esquizóides na personalidade (1940). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980.), nos pacientes esquizoides que buscam atendimento psicanalítico. Ao serem indagados sobre a causa que os motivou a buscar o atendimento, esses pacientes costumam responder que não sabem, que acham que pode ser interessante ou até mesmo abrem a sessão com uma citação de Freud. Algumas queixas comuns (manifestadas pelos pacientes nos momentos adequados) correspondem a “perturbações tais como inibições sociais, incapacidade de se concentrar no trabalho, problemas de caráter, tendências sexuais perversas e dificuldades psicossexuais, como impotência e masturbação compulsiva” (FAIRBAIRN, 1940FAIRBAIRN, W. R. D. Fatores esquizóides na personalidade (1940). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980., p. 5). Os fenômenos esquizoides que esses pacientes costumam apresentar podem ser mais significativos, como despersonalização e sensação de irrealidade, ou mais pontuais, como sensações de artificialidade, fragilidade ou estranheza diante do familiar. Entretanto, os sintomas esquizoides mais claros são os fenômenos dissociativos, como sonambulismo ou personalidade múltipla.

A teoria proposta por Fairbairn e apresentada até aqui a respeito da esquizoidia, embora não tenha tido uma grande repercussão imediatamente, foi bastante trabalhada tempos depois por diversos psicanalistas, algo que é bastante evidente ao considerarmos o número de autores que se dedicaram a comentar os escritos de Fairbairn (SUTHERLAND, 1989SUTHERLAND, J. D. Fairbairn’s journey into the interior. Londres: Free Association Books, 1989.; GROTSTEIN, 1994GROTSTEIN, J. S. Endopsychic structure and the cartography of the internal world: six endopsychic characters in search of an author. In: Fairbairn and the origins of object relations. Londres: Free Association Books, 1994.; CELANI, 2010CELANI, D. P. Fairbairn’s object relations theory in the clinical setting. Nova York: Columbia University Press, 2010.; OGDEN, 2012OGDEN, T. H. Why read Fairbairn? In: Creative readings. Londres: Routledge, 2012.). Outro psicanalista, contemporâneo a Fairbairn e que esteve em contato muito próximo com o autor escocês, seria um dos maiores responsáveis pela popularização da teoria de Fairbairn ao longo dos anos. Harry Guntrip foi paciente de Fairbairn durante alguns anos, dedicando-se sempre à discussão e refinamento da teoria que seu mentor havia desenvolvido.

Embora seja bastante evidente a influência que Guntrip sofreu dos principais psicanalistas da época, especialmente Freud, Klein e Winnicott, foi a obra de Fairbairn que serviu de fundamentação para seu desenvolvimento teórico original. Guntrip utilizou como ponto de partida a visão fairbairniana sobre a importância das relações objetais, a crítica ao modelo pulsional freudiano e a cisão do ego que Fairbairn propusera visando uma elaboração sobre o tema pelo qual possuía profundo interesse, a esquizoidia.

Apesar de a compreensão de Guntrip sobre a esquizoidia se aproximar muito daquela proposta por Fairbairn, a essência da questão se altera a partir de um problema central: enquanto que, para Fairbairn, a esquizoidia implicaria em um isolamento do mundo externo através da supervalorização dos objetos internos, aos quais o indivíduo esquizoide estaria ferrenhamente conectado, Guntrip sugere que existiria uma tendência esquizoide a um estado anobjetal, através da renúncia total às relações objetais. Seguindo o pensamento fairbairniano, isso não faria qualquer sentido, uma vez que o ego só faz sentido estando ligado a objetos, ainda que internos. Por outro lado, Guntrip propõe um elemento motivador ao qual a ausência de objetos ainda seria preferível: o medo primário.

Segundo o autor, é o medo primário que deflagra todo o desenvolvimento emocional do indivíduo e o dinamismo que o acompanha, representando, assim, um movimento de defesa contra um estado aterrorizante. O próprio estado esquizoide, uma configuração tão primitiva, constituiria uma defesa contra a regressão ao estado caracterizado pelo medo primário, que assume um papel de enorme importância no desenvolvimento das psicopatologias, função que teria sido ignorada pelo modelo pulsional.

Todos esses fenômenos [esquizoides], tão diferentes dos conflitos geradores de culpa, têm suas raízes no medo: não medo de desaprovação como um resultado secundário de dificuldades a respeito de maus impulsos, mas medo numa acepção primária, o medo da pequena e desamparada criança humana, à mercê̂ de um mau ambiente. (GUNTRIP, 1964GUNTRIP, H. A cura da mente enferma (1964). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967., p. 80, grifado no original).

Podemos perceber que o medo primário descrito por Guntrip refere-se a um estado excessivamente primitivo, representado pela fragilidade, no qual o indivíduo se encontra sem defesas, completamente à mercê do ambiente. O autor (1961) caracteriza esse tipo de medo como um temor referente ao colapso do ego. Como um castelo de cartas, qualquer movimento inadequado do ambiente pode fazer o indivíduo desmoronar.

Por medo, não entendo aqui os medos realistas da vida adulta que seriam enfrentados, normalmente, de um modo adulto. Entendo o legado de medos profundamente radicados na infância e que podem minar o íntimo do indivíduo mais capaz. Uma vez que o medo tenha lançado suas garras sobre a frágil criança, em seus anos mais impressionáveis e moldáveis; uma vez que ela tenha recuado mentalmente do seu meio ambiente, antes de ser suficientemente crescida para enfrentá-lo, por lhe parecer hostil e ameaçador, não há capacidade natural e inata que possa daí em diante funcionar e desenvolver-se normalmente. (GUNTRIP, 1964GUNTRIP, H. A cura da mente enferma (1964). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967., p. 83-84, grifado no original).

Torna-se claro, no fragmento acima, que a perpetuação do medo primário não é algo intrínseco à natureza humana. Esse medo cria raízes na psique quando, no momento de fragilidade inicial da vida emocional, o ambiente, que seria incumbido de zelar pela criança, deixa-a desamparada. Ao sofrer um ataque ou mesmo sentir a ameaça de uma investida de parte do mundo externo (que provavelmente ainda nem é percebido como tal pelo bebê), o medo que o sujeito vivenciou deixa uma cicatriz que o incomodará para sempre. Para preservar sua própria existência frente ao mundo hostil que o rodeia, o ego infantil se retira do mundo objetal. O resultado dessa experiência é a introversão da parte mais infantil e espontânea da personalidade, que é sobrepujada por uma faceta ríspida, prática e agressiva.

Esta porção infantil do ego que é retraída é chamada por Guntrip (1969GUNTRIP, H. The regressed ego, the lost heart of the self and the inability to love. In: Schizoid phenomena, object relations and the self. Nova York: International Universities Press, 1969.) de ego regredido, uma parte do ego libidinal cuja única esperança de sobrevivência reside na retirada total do mundo objetal. O ego regredido fica encerrado em uma concha em um estado de animação suspensa, como que em uma câmara frigorífica, à espera de um momento mais propício (isto é, um ambiente mais adequado) para retomar a vida objetal. Greenberg e Mitchell (1983GREENBERG, J. R.; MITCHELL, S. A. Relações objetais na teoria psicanalítica (1983)., 1994.) destacam duas importantes propriedades do ego regredido: (1) a fuga, para um estágio sem objetos, que se assemelha à segurança do ventre materno; e (2) o anseio por renovação, colocado por Guntrip (1969GUNTRIP, H. The schizoid problem, regression and the struggle to preserve an ego (1961). In: Schizoid phenomena, object relations and the self. Nova York: International Universities Press, 1969.) como uma espera pela chance de renascer, de reemergir do estágio intrauterino ao qual se regrediu. O distanciamento emocional que resulta do retraimento é considerado, por Fairbairn (1940FAIRBAIRN, W. R. D. Fatores esquizóides na personalidade (1940). In: FAIRBAIRN, W. R. D. Estudos Psicanalíticos da Personalidade. Tradução de Eva Nick. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980.) e Guntrip (1964GUNTRIP, H. A cura da mente enferma (1964). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.e 1961GUNTRIP, H. Você e os seus nervos (1951). Rio de Janeiro: Editora Científica, 1961.), uma das características mais marcantes do sujeito esquizoide, a qual, em um grau extremo, levaria a uma cisão tamanha que o indivíduo renunciaria de forma absoluta à relação com o mundo externo.

Um grau tão intenso de esquizoidia seria equivalente à esquizofrenia. Entretanto, para o autor, esta cisão final, considerada em seus diferentes níveis, e que se caracteriza pelo surgimento do ego regredido, representa um dos maiores determinantes do estado esquizoide:

A divisão é sempre a mesma, sejam quais forem os sintomas que transpareçam: de uma parte, um [eu] assustado ou infantil, sentindo-se pequeno, frágil, inadequado e incapaz de enfrentar a vida; de outra parte, um eu consciente da vida cotidiana, lutando para enfrentá-la pelos métodos que são de esperar da vida adulta. (GUNTRIP, 1964GUNTRIP, H. A cura da mente enferma (1964). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967., p. 94).

O reflexo desta cisão nas relações de objeto que o sujeito estabelece pode ser percebido através do que Guntrip (1964) chama de relações meio dentro e meio fora. Devido ao temor quanto a envolver-se demais com um objeto externo (percebido pelo esquizoide como algo potencialmente hostil e danoso), o indivíduo participa apenas parcialmente da relação com o mundo. Trata-se de um elo superficial: embora possa parecer uma relação normal, não há qualquer sentimento de profundidade a ser experimentado pelo sujeito. Uma paciente de Guntrip, embora tivesse uma vida social aparentemente bastante ativa, sendo considerada a grande atração das festas de que participava, lhe relatou: “Sou uma não-aderente crônica. Vivo num estado de mutismo de sentimentos, à margem da vida e não sou capaz de me entregar plenamente a coisa alguma” (GUNTRIP, 1964, p. 100). Esta falta de entrega aos relacionamentos é o ponto chave aqui. O indivíduo cria um compromisso com o mundo interno que o impede de dedicar-se às relações externas, sustentando os seus vínculos de maneira frágil. Ele precisa manter-se ligado a ambos os mundos, ainda que a consequência dessa atitude seja não estar verdadeiramente conectado com qualquer um deles.

Essa dificuldade em estabelecer laços significativos com objetos externos leva a outra importante questão. Devemos nos recordar que, seguindo a teoria de Fairbairn e de Guntrip, o desenvolvimento emocional somente é possível através das relações satisfatórias com objetos externos. Dessa forma, ao abdicar das relações objetais, o ego regredido sentencia-se a permanecer congelado, paralisado em termos de desenvolvimento emocional. Enquanto um ego automático mantém o indivíduo em funcionamento na sociedade, ainda que de forma superficial, a porção original, espontânea do self, continua como parou: a criança assustada frente ao ambiente hostil que a rodeia. Não há um desenvolvimento da personalidade a nível global, apenas um amadurecimento prematuro que resulta, segundo Guntrip, em um self pseudoadulto.

O fato é que quanto mais a criança for protegida do medo, em seus primeiros anos, tanto mais forte ela será quando chegar, mais tarde, à altura de enfrentar o complexo mundo adulto. O endurecimento prematuro não constitui um substitutivo salutar para o desenvolvimento de um sentimento básico e genuíno de segurança que promove a forca intima; o que realmente consegue é fazer que a criança cresça mais vulnerável do que nunca, dividindo-a contra si mesma e impedindo a resolução de seus primeiros medos. (GUNTRIP, 1964GUNTRIP, H. A cura da mente enferma (1964). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967., p. 101, grifado no original)

Guntrip chama esta configuração de fraqueza do ego. A constituição do sujeito, neste caso, é extremamente delicada, podendo sucumbir a qualquer momento. A defesa utilizada para evitar que tal situação se concretize é o distanciamento afetivo, um esforço intenso para negar e enterrar a criança frágil que se escondeu profundamente no self. De acordo com o autor, tal atitude representa um grande risco psíquico ao sujeito: “O esforço para forçar um ego fraco a encarar a vida ou, ainda mais fundamentalmente, o esforço em preservar um ego é a raiz da causa de tensões e doenças psicóticas, psicossomáticas e psiconeuróticas” (GUNTRIP, 1960GUNTRIP, H. Ego-weakness, the core of the problem of psychotherapy (1960). In: Schizoid phenomena, object relations and the self. Nova York: International Universities Press, 1969., p. 177).

Dessa forma, grande parte dos indivíduos esquizoides sofre de um intenso sentimento de não pertencer ao meio em que vive, de irrealidade e inadequação (características que já haviam sido sugeridas por Fairbairn, como visto no início deste artigo). Segundo Guntrip, esse sentimento tem suas raízes justamente na imaturidade do ego fraco. Por ter sido paralisado no tempo, o ego não conseguiu amadurecer ao ponto de desempenhar as atividades do mundo adulto externo: “Há um maior ou menor grau de imaturidade na estrutura da personalidade de todos os seres humanos, e esta imaturidade é vivida como definida fraqueza e inadequação do ego frente às tarefas adultas da vida” (GUNTRIP, 1960, p. 177).

Este ego fraco acaba por tornar-se um entrave na relação do indivíduo com o mundo externo. Deixá-lo transparecer pode significar a exposição de uma parte de si que deveria permanecer oculta, o que deixaria o indivíduo à mercê do mundo hostil que o rodeia e que já tivera sido responsável pelo processo de isolamento que resultou na fragilidade do ego. A fim de resguardar seu self como um todo e a camada mais íntima de sua psique, o indivíduo vive em um esforço para direcionar o ego fraco a uma camada ainda mais profunda - cujo preço remete à renúncia às relações satisfatórias com objetos externos. Segundo Guntrip, “o conflito básico na mente enferma é a luta para negar, abater e dominar uma criança fraca e assustada no íntimo de cada um” (GUNTRIP, 1964GUNTRIP, H. A cura da mente enferma (1964). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967., p. 110).

Podemos perceber agora, com mais clareza, por que Guntrip e Fairbairn atribuem tamanha importância às relações objetais satisfatórias, considerando-se o seu papel no desenvolvimento. Na ausência destas, é impossível para o indivíduo atingir um nível adequado de maturidade em que se sinta íntegro, real, de posse de um ego forte e sólido, o que contribui para o estabelecimento de um dos mais marcantes traços esquizoides: o sentimento de irrealidade. Guntrip refere-se à famosa frase de um paciente de Fairbairn, utilizada por este para desenvolver sua teoria sobre as relações objetais:

Nossa necessidade por relações objetais reside no fato de que, sem elas, é impossível desenvolver um ego que é sadio, forte e estável: e isto é tudo de que o ser humano fundamentalmente necessita. Fairbairn cita um paciente que disse: ‘Você está sempre falando sobre eu querer que este ou aquele desejo seja satisfeito, mas o que eu realmente quero é um pai’ (1952). Agora, entretanto, nós devemos dar um passo além e dizer que a razão pela qual o paciente quer um pai (e precisa de um analista) é que, sem uma relação satisfatória com outra pessoa, ele não pode tornar-se um ego em desenvolvimento, não pode encontrar a si mesmo. É por isso que pacientes frequentemente são encontrados queixando-se: ‘não sei quem ou o que sou; não consigo ter um pensamento próprio; não me sinto uma pessoa de verdade’. Suas relações objetais precoces foram tais que eles são incapazes de se encontrarem de qualquer maneira. (GUNTRIP, 1960GUNTRIP, H. Ego-weakness, the core of the problem of psychotherapy (1960). In: Schizoid phenomena, object relations and the self. Nova York: International Universities Press, 1969., p. 174).

Percebemos, assim, que Guntrip acrescenta uma importante dimensão à teoria fairbairniana ao conceber uma dimensão regressiva para a esquizoidia. Ao sugerir a ideia de ego regredido, segundo a qual uma parte do ego original mantém-se encapsulada, aguardando que surja um ambiente mais adequado, isto é, um objeto externo mais confiável, Guntrip oferece uma importante via terapêutica para as personalidades esquizoides através da figura do analista.

Sendo assim, somente através de relações objetais significativas com objetos totais do mundo externo é possível manter o curso de desenvolvimento que permite um sentimento maior de independência (embora ela nunca seja alcançada totalmente) e de uma vida mais plena. A tragédia esquizoide, segundo ambos os autores, é a de que o sujeito mantém-se preso a um ciclo calcificado por um ambiente não estruturante, que não proporcionou uma integração egóica a nível satisfatório. Caberia então ao analista oferecer um ambiente mais adequado e seguro para que o sujeito pudesse estabelecer novas relações de objeto (sem que a ameaça do colapso psíquico esteja presente), e, enfim, retomar o desenvolvimento do ego.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    05 Dez 2016
  • Aceito
    08 Out 2017
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