Acessibilidade / Reportar erro

Monogamia e identidade: considerações psicanalíticas

Monogamy and Identity: psychoanalytic considerations

Resumo:

Entendendo a monogamia como dispositivo contingencial, analisa-se sua capacidade de influenciar os processos de constituição da identidade e as formas de identificação dos sujeitos. A partir das elaborações de Heinz Lichtenstein sobre as origens da identidade humana, incluímos a monogamia, ou alguns traços presentes neste arranjo, na unidade mãe-bebê, supondo que o estatuto hegemônico da monogamia revela algo de sua ligação com a situação antropológica fundamental descrita por Laplanche. Assim, traços do arranjo monogâmico seriam transmitidos à criança em seu estado de “órgão” da mãe e, enquanto pontos constitutivos da identidade, seriam compulsivamente repetidos com o objetivo de manter a coesão desta identidade.

Palavras-chave:
monogamia; identidade; repetição; Lichtenstein; Laplanche

Abstract:

With the understanding that monogamy is a contingent device, the paper intends to analyze its ability to influence the processes of identity constitution of the subjects. From Heinz Lichtenstein's elaborations on the origins of human identity, we include monogamy, or some traits present in this arrangement, in the mother-infant unit, supposing that the hegemonic status of monogamy reveals some of its connection with the fundamental anthropological situation described by Laplanche. Thus, traces of the monogamous arrangement would be transmitted to the child in its "organ" state and would be compulsively repeated as constitutive points of identity, in order to maintain the cohesion of this identity.

Keywords:
monogamy; identity; repetition; Lichtenstein; Laplanche

Introdução

As relações amorosas, assim como suas implicações na vida dos indivíduos, tais como os sintomas produzidos primária ou tardiamente, as formulações e traduções produzidas e que daí advêm, entre outras questões relativas têm sido temas de algumas pesquisas no campo da Psicanálise assim como em outros campos do saber. Uma das questões concernentes ao tema que podemos tomar como exemplo é o ciúme, afeto frequentemente presente nas relações afetivo-sexuais e suas implicações habitualmente negativas na vida das pessoas, que aparecem nos artigos publicados no livro Os ciúmes dos homens (BELO, 2015AMORIM, P. M.; BELO, F. R. R. A monogamia na obra de Freud. Cadernos de Psicanálise, v. 39, n. 36, 2017, p. 199-219.), como resultado de uma extensa pesquisa sobre o tema no campo da Psicanálise. Outro tema que, assim como o ciúme, tem ganhado espaço de discussão em diferentes campos é a monogamia, que, neste trabalho, se torna objeto da Psicanálise a ser pensado como uma instituição que pode influenciar no processo de constituição e das formações psíquicas. Apesar de não ser um conceito propriamente psicanalítico, a monogamia foi tratada por Freud em diferentes momentos de sua obra (1912FREUD, S. Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor. (1912). In: FREUD, S. “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 9), 1913FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: FREUD, S. Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 13), 1917FREUD, S. O tabu da virgindade (1917). In: FREUD, S. Cinco lições de Psicanálise, Leonardo Da Vinci e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 11), 1922FREUD, S. Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo (1922). In: FREUD, S. Além do princípio do prazer, Psicologia de grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18), entre outros).

Este trabalho se propõe a pensar a relação entre a instituição da monogamia e a identificação ou os processos identificatórios, além ainda de suas consequências na construção da identidade dos sujeitos na sociedade contemporânea. Sendo assim, a monogamia e a identidade são os dois operadores que darão corpo às elucubrações a seguir a respeito do que propomos pensar. Cada um destes operadores possui seu corpo teórico próprio; a identidade, tema discutido na metapsicologia psicanalítica a partir de sua relação com as identificações, estudada por vários autores; e a monogamia fora da Psicanálise, e amplamente discutida por outros campos de saber, como as ciências sociais e políticas, o Direito, entre outros. Ao longo do texto, não somente estes conceitos serão trabalhados, mas servirão de base e, paralelamente, outros aparecerão como coadjuvantes para se compreender a relação entre estes dois centrais citados acima.

Nessa perspectiva, nos propomos especificamente a analisar a relação entre monogamia e identificação a partir de dois pontos de vista diferentes: (i) partindo das proposições de Heinz Lichtenstein (1977LICHTENSTEIN, H. Identity and sexuality. Nova Iorque: Jason Aronson, 1977.) acerca da constituição da identidade, nos propomos a analisar como a instituição monogâmica pode ser concebida como uma via facilitada para os processos de formação de identidade; e (ii) partindo do conceito de repetição, também propomos pensar na monogamia como uma atuação, ou seja, o fazer-se monogâmico como possibilidade tradutiva de atualização das vivências relativas à sexualidade infantil, na busca por uma identidade mais ou menos autêntica.

Sendo assim alguns esclarecimentos são necessários sobre de que maneira iremos abordar tanto a monogamia, como a identidade e as identificações, do ponto de vista conceitual, seja a partir da Psicanálise ou de outros campos teóricos.

Identidade e repetição

Considerando a diversidade concitual dentro do campo psicanalítico em relação aos conceitos de identificação e identidade, pensamos ser necessário um esclarecimento em relação à inscrição de nossa análise. Ao buscarmos interpretar as origens latentes e históricas da monogamia, parece-nos interessante resgatar um autor, pouco conhecido na psicanálise brasileira, que teoriza sobre as formações das identidades desde seus primórdios, pensando a transição do ser humano biológico ao cultural e suas implicações.

Heinz Lichtenstein foi um proeminente psicanalista de origem alemã, mas que teve a maior parcela de seu trabalho desenvolvida nos Estados Unidos, para onde mudou-se em 1939 devido à perseguição nazista durante a Segunda Guerra (HOLLAND, 1990HOLLAND, N. H. Obituary Heinz Lichtenstein (1904-1990). Int. J. Psycho-Anal., v. 71, p. 527-529, 1990.). Tendo dedicado grande parte de seu trabalho em psicanálise aos processos de formação da identidade e de identificações que ocorrem no início da vida do sujeito, Lichtenstein obteve insights importantes que dizem respeito à influência da sexualidade inconsciente do adulto cuidador no psiquismo em formação da criança (LICHTENSTEIN, 1935, 1961, 1977LICHTENSTEIN, H. Identity and sexuality. Nova Iorque: Jason Aronson, 1977.). Sobre essas contribuições, Holland (1990HOLLAND, N. H. Obituary Heinz Lichtenstein (1904-1990). Int. J. Psycho-Anal., v. 71, p. 527-529, 1990.) observa que:

Esses dois maiores insights, o tema de identidade e o princípio de identidade, inauguraram duas séries de trabalhos corolários. Em ambos Lichtenstein repensa conceitos psicanalíticos básicos, uma série no contexto do trabalho clínico em psicanálise, e o outro em resposta à turbulência social dos anos sessenta e setenta. Lichtenstein argumentou que o verdadeiro sentido do narcisismo primário infantil era a manutenção da identidade através da mãe refletindo o bebê para o bebê. Ela o faz, com toda certeza, através de suas próprias necessidades inconscientes. (HOLLAND, 1990HOLLAND, N. H. Obituary Heinz Lichtenstein (1904-1990). Int. J. Psycho-Anal., v. 71, p. 527-529, 1990., p. 528, tradução nossa).

Lichtenstein, no livro Identity and sexuality (LICHTENSTEIN, 1977LICHTENSTEIN, H. Identity and sexuality. Nova Iorque: Jason Aronson, 1977.), apresenta suas hipóteses acerca da constituição da identidade nos seres humanos, partindo das pesquisas psicanalíticas realizadas até então. O autor recupera observações de importantes teóricos da área, como Greenacre,1 1 Apud LICHTENSTEIN, H. Identity and sexuality. Nova Iorque: Jason Aronson, 1977. no desenvolvimento de suas formulações, aproximando a emergência da identidade do desenvolvimento das relações objetais. Como, usualmente, estas relações são concebidas em termos de variados estágios de identificações, o autor, no entanto, considera de suma importância a diferenciação entre os conceitos de identificação e identidade para o desenvolvimento de sua teoria.

Tema amplamente discutido no campo psicanalítico, a primazia das identificações em relação à identidade ressurgiu nos seminários de Lacan na década de 60, no qual o autor reforça a dimensão afetiva, ou melhor, o significante da constituição das características da personalidade do sujeito (LACAN, 2003LACAN, J. A identificação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (O seminário, 9)). Entretanto, acreditamos que uma abordagem que enfatiza a relação entre sujeito e ambiente, na medida em que o ambiente se corporifica em outro sujeito, seja a chave para que compreendamos a forma como as normas de algumas instituições como a monogamia se impõem de maneira quase natural em nossa sociedade.

Lichtenstein concebe a identificação como um conceito que visa tornar inteligível como o “interior” (sujeito) torna-se capaz de conectar-se com o que está no “exterior” (objeto). No entanto, diferentemente de outros autores, como Mahler e Lacan, Lichtenstein localiza a emergência da identidade no estado de indiferenciação da unidade mãe-bebê, e não nos processos de separação e individuação. Dessa forma, “os conceitos de sujeito-objeto, dentro-fora/interior-exterior não apenas não são úteis para descrever esses fenômenos, como fazem deles inacessíveis à observação” (LICHTENSTEIN, 1977LICHTENSTEIN, H. Identity and sexuality. Nova Iorque: Jason Aronson, 1977., p. 200).

De acordo com o autor, o surgimento de padrões sociais e culturais só é possível porque os seres humanos, diferentemente dos animais, devem definir suas próprias identidades, as quais são, por sua vez, reflexo de sua forma simbiótica originária. A mãe, durante os cuidados com a criança, implanta nela um tema de identidade, o qual é irreversível, mas que é capaz de inúmeras variações.

Este tema de identidade seria constituído a partir de “mensagens” que a mãe envia ao bebê, pelo toque, cheiro, gosto, e que carregam o desejo inconsciente da mãe em relação à prole. De forma semelhante, Laplanche (2006bLAPLANCHE, J. Castração e Édipo como códigos e esquemas narrativos. In: LAPLANCHE, J. Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano. Porto Alegre: Dublinense, 2006b, p. 281-287.) afirma que sua descrição da situação antropológica fundamental, na qual o bebê humano nasce,

[...] confronta, num diálogo simétrico/assimétrico, um adulto que possui um inconsciente sexual (essencialmente pré-genital) e um infans que ainda não tem um inconsciente constituído, nem a oposição inconsciente/pré-consciente. O inconsciente sexual do adulto é reativado na relação com o recém-nascido, o infans. As mensagens do adulto são mensagens pré-conscientes-conscientes, necessariamente "comprometidas" (no sentido do recalcado) pela presença da "névoa" inconsciente. Essas mensagens são, portanto, enigmáticas, tanto para o emissor adulto, quanto para o receptor infans. (LAPLANCHE, 2006LAPLANCHE, J. Castração e Édipo como códigos e esquemas narrativos. In: LAPLANCHE, J. Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano. Porto Alegre: Dublinense, 2006b, p. 281-287., p. 208, tradução nossa)

O bebê, então, é transformado em instrumento de satisfação das necessidades inconscientes de seu cuidador. Dessa forma, se concebemos que o ser humano não possui, mesmo em sua primeiríssima infância, um esquema instintual no qual possa apoiar sua identidade, seria justamente em sua longa dependência da mãe ou seu primeiro cuidador que se encontraria a fonte de sua identidade humana. Logo, se tampouco ele é equipado com uma representação inata de objeto, poderíamos pensar que pode haver uma Umwelt2 2 Conceito de Von Uexkull que indica, não um ambiente externo, mas um leque de experiências dentro do qual certas identidades se tornam reconhecíveis, como a identidade da presa do animal, de seus pares, de seus predadores. , mesmo sem a maturação suficiente para que seja possível diferenciar o eu do não-eu.

Assim sendo, a Umwelt corresponderia ao organismo total que circunda a unidade mãe-bebê, sendo o bebê um órgão dessa totalidade, expressando dessa forma tanto uma dimensão de separação quanto de simbiose. De acordo com Lichtenstein:

Esse universo simbiótico não pode ser descrito em termos cartesianos de sujeito e objeto, mas pode ser descrito como organizado: o órgão de um organismo tem uma identidade em termos de sua função dentro dele; assim, a Umwelt materna (que inclui o seu inconsciente) atribui uma função-órgão à criança, e é esta a função primária em que vejo os núcleos de onde emerge a identidade humana. (LICHTENSTEIN, 1977LICHTENSTEIN, H. Identity and sexuality. Nova Iorque: Jason Aronson, 1977., p. 202)

Seria, portanto, nesta maneira única de dar início à vida que o ser humano possui, que residiria sua também única maneira de constituir sua identidade. Logo, a expressão do senso de identidade sempre se dará em relação ao que o sujeito é para outra pessoa, o que costuma ser atribuído ao papel social, sendo uma evidência de que a identidade humana só pode ser definida segundo um padrão cultural. Lichtenstein, no entanto, inverte esta relação, propondo que a identidade não é consequência de um padrão cultural, mas que a emergência de padrões sociais e culturais só é possível porque o homem, diferente do animal, deve definir sua identidade. Esta definição, por sua vez, reflete seu modo fundamentalmente simbiótico de existir. O ser humano, dessa forma, define-se enquanto instrumento, um órgão que serve a uma função. Esta proposição é fundamental para a interpretação que faremos mais adiante no que diz respeito à monogamia.

Antes, porém, é interessante ressaltar que este tema de identidade se vincula ao que Lichtenstein chamou de princípio da identidade, que seria um fenômeno biológico fundamental, mais básico do que o princípio de prazer, próximo de um princípio de realidade em sentido amplo, que funcionaria como o pré-requisito para o princípio de prazer. Segundo o autor, a identidade seria o pré-requisito para o estabelecimento de qualquer impulso, uma vez que o próprio conceito de impulso pressupõe a continuidade de uma organização viva. Logo, tanto os impulsos como as funções egóicas parecem ser funções do princípio de identidade.

Tal conceito surge a partir da insuficiência teórica, denunciada pelo próprio autor, do conceito de pulsão de morte, introduzido por Freud em 1920, em Além do princípio do prazer. A pulsão de morte, de acordo com Lichtenstein, foi elaborada devido a manifestações da mente humana que apontavam para algo que não podia ser explicado pelo princípio do prazer, mais precisamente, as compulsões à repetição.

No entanto, ao não perceber a compulsão à repetição como forma de manutenção da identidade, como Lichtenstein (1977LICHTENSTEIN, H. Identity and sexuality. Nova Iorque: Jason Aronson, 1977.) propõe, Freud sucumbe à influência cartesiana, presumindo que, onde há ego, há continuidade de identidade. Mesmo que os impulsos agressivos e a repetição sejam importantes na compreensão de muitos fenômenos clínicos, a introdução da pulsão de morte comprometeu a coesão interna da teoria, que, nesse aspecto, não mais obedecia à ordem evolutiva do princípio de adaptação. Lichtenstein ainda coloca que:

A compulsão à repetição é uma manifestação da necessidade de manutenção do “tema da identidade”. A identidade, nos seres humanos, requer uma “ação repetitiva” para proteger o “imutável dentro da mudança” que acredito ser o aspecto fundamental da identidade humana. [...] A manutenção do tema da identidade parece ter prioridade sobre outros princípios, inclusive o princípio do prazer. Eu acredito que Freud, em Além do princípio do prazer, estava consciente de que lidava com problemas de identidade (LICHTENSTEIN, 1977LICHTENSTEIN, H. Identity and sexuality. Nova Iorque: Jason Aronson, 1977., p. 103, tradução nossa).

Laplanche (1992aLAPLANCHE, J. La position originaire du masochisme dans le champ de la pulsion sexuelle. In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Aubier,1992a, p. 37-58., 1992bLAPLANCHE, J. Castração e Édipo como códigos e esquemas narrativos. In: LAPLANCHE, J. Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano. Porto Alegre: Dublinense, 2006b, p. 281-287., 2006aLAPLANCHE, J. Vie et mort en psychanalyse. Paris: Flammarion, 2006a.) também critica profundamente o conceito de pulsão de morte apresentado por Freud a partir de 1920, concordando com Lichtenstein que o mesmo obnubilou o pensamento freudiano e provocou alguns desvios em sua teorização. Laplanche (1992b)LAPLANCHE, J. Castração e Édipo como códigos e esquemas narrativos. In: LAPLANCHE, J. Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano. Porto Alegre: Dublinense, 2006b, p. 281-287.faz importantes observações sobre o termo Todestrieb utilizado por Freud para dizer deste conceito, apontando três questões a serem consideradas: (i) na prioridade do tempo auto que implica as mesmas exigências do auto-erotismo, levando a pensar na pulsão de morte como pulsão de auto destruição, ou ainda pulsão de sua própria morte como destaca Laplanche; (ii) a pulsão de morte no pensamento freudiano está estreitamente ligada à repetição evidente na clínica e na cura, que busca a descarga completa, ou seja, o Princípio de Zero e de Nirvana (ideias estas que, apesar do movimento do pensamento freudiano, sempre retornam, como por exemplo, em Além do princípio do prazer); e (iii) a teorização freudiana mostra que algumas ideias estariam ausentes no inconsciente, como a negação, a contradição e a morte. Sendo assim, considerar a existência de uma pulsão de morte no nível mais profundo do Isso inconsciente seria algo metapsicologicamente incompatível. Na visão de Lichtenstein, quando um impulso aparece como libidinal ou agressivo, tal expressão pode ser reflexo do processo do indivíduo ao lidar com a manutenção de sua identidade. Dessa forma, seria desnecessária a ideia de uma pulsão de morte para explicar fenômenos agressivos-destrutivos. Já no pensamento freudiano, a morte em questão é primeiramente a morte do próprio indivíduo, sobretudo se considerarmos que Freud sempre se recusou cogitar a noção de pulsão de agressão, que foi proposta por alguns de seus discípulos3 3 Edoardo Weiss foi o caso mais emblemático, quando propôs a noção de destrudo. .

Laplanche (1992bLAPLANCHE, J. La pulsion de mort dans la théorie de la pulsion sexuelle. In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: PUF, 1992b, p. 273-286.) apresenta uma solução metapsicológica para essas questões que tem como base uma formulação simples: somente a sexualidade pode ser nomeada como pulsão. Sendo assim, e tomando também a ideia de que a sexualidade não é anterior ao recalque, que surge somente a partir do apoio, ou seja, da relação com outro por meio da intromissão da sexualidade na criança através das mensagens enigmáticas transmitidas pelo adulto, Laplanche conclui que a pulsão é sexual, e pode ela mesma ter caráter de ligação, sendo sexual de vida; ou caráter de desligante, sendo sexual de morte4 4 Apesar de Laplanche sempre estender uma longa crítica a determinados desvios biologizantes na teorização freudiana, ele mesmo ainda conserva alguns elementos dessa teorização, como, neste caso, os termos vida e morte que inevitavelmente não deixam de se referir à vida e morte do organismo. . É este conceito de pulsão que temos em mente neste trabalho, a partir do qual pensamos as questões que aqui tratamos sobre a construção e manutenção da identidade em relação à monogamia.

Ao invés de um ópio biológico para aplacar as angústias humanas, a Psicanálise mostra que o caráter compulsivo da sexualidade humana está mais inclinado a promover situações angustiantes do que anestesiar os sujeitos. Desse modo, em contraste com o ser humano, o animal, que não possui a sexualidade ampliada no sentido freudiano, tem o que poderíamos chamar de identidade fixa, ou seja, restrita a limites relativamente estreitos de comportamentos típicos. A identidade, portanto, pode ser considerada como a performance de automatismos estruturais. Com a perda de genuínos automatismos estruturais, o ser humano perde, paralelamente, a identidade de comportamento fixo tanto para o indivíduo como para a espécie. Por ser capaz de assumir uma quase infinita variedade de identidades baseadas em comportamentos, o que o permite se adaptar a uma variedade de contextos, o ser humano, ao mesmo tempo, fica à mercê da ameaça desconhecida pelo animal menos evoluído: a perda da identidade.

Veremos agora algumas consequências do caráter repetitivo da identidade no que diz respeito aos relacionamentos amorosos em nossa sociedade.

Em uma variedade de exemplos clínicos e sociais, Lichtenstein foi capaz de demonstrar como utilizamos o amor, a sexualidade, a agressão, o trabalho e todos os nossos símbolos culturais para manter nossas identidades (1965, 1970). Ao contrário, governos totalitários e relacionamentos patológicos impõem um ‘não maligno’ para a confirmação do self (1971). (HOLLAND, 1990HOLLAND, N. H. Obituary Heinz Lichtenstein (1904-1990). Int. J. Psycho-Anal., v. 71, p. 527-529, 1990., p. 528, tradução nossa).

A monogamia nas fronteiras da Psicanálise

A monogamia, como colocado anteriormente, não se configura exatamente como um conceito psicanalítico. No entanto, como já abordado em outro artigo por uma das autoras deste trabalho (AMORIM; BELO, 2017AMORIM, P. M.; BELO, F. R. R. A monogamia na obra de Freud. Cadernos de Psicanálise, v. 39, n. 36, 2017, p. 199-219.), Freud abordou o tema por diversas vezes ao longo de sua obra, alternando sua percepção da instituição, ora como resultante natural do complexo de Édipo (FREUD, 2006FREUD, S. Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo (1922). In: FREUD, S. Além do princípio do prazer, Psicologia de grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18)[1922]), ora concebendo sua dimensão contingencial, recalcante do pulsional (FREUD, 2006[1912FREUD, S. Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor. (1912). In: FREUD, S. “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 9)]).

Ao compreendermos o complexo edípico como um código narrativo, uma das inúmeras traduções possíveis à situação primária do bebê humano, tal como Laplanche (2015[2006bLAPLANCHE, J. Castração e Édipo como códigos e esquemas narrativos. In: LAPLANCHE, J. Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano. Porto Alegre: Dublinense, 2006b, p. 281-287.]) propõe a concepção da monogamia como arranjo natural, por isso hegemônico , se desfaz. Desta forma, no presente trabalho, partiremos do princípio de que esta instituição se sustenta também enquanto possibilidade tradutiva, ponto que será desenvolvido mais adiante.

Colocar a hegemonia dos arranjos monogâmicos em questão implica, portanto, em oferecer uma interpretação a partir da análise de seus elementos constitutivos. Partiremos, assim, das formações manifestas da monogamia, fazendo o caminho inverso até atingirmos uma dimensão mais profunda do tema, a qual entendemos como latente.

Num primeiro olhar, a hegemonia da monogamia se faz notar de maneira óbvia através da letra da lei, na maior parte das sociedades ocidentais modernas. Utilizamos aqui o termo “hegemonia” no sentido gramsciano para descrever a face discursiva do poder, a qual estabelece o “senso comum” ou a doxa de uma sociedade. A instituição monogâmica, portanto, pode ser entendida como o pano de fundo de descrições auto-evidentes da realidade social que normalmente não são questionadas, configurando-se como a expressão de determinada dominação.

A tese, desenvolvida por Engels (1997ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884). São Paulo: Escala, 1997.[1884]), de que a monogamia surge como dispositivo associado à gestão da propriedade privada, tem sido aceita por pesquisadores e pesquisadoras que visam discutir as dimensões do poder associadas a esta instituição5 5 Ver: BARBOSA, M. Poliamor e relações livres: do amor à militância contra a monogamia compulsória. Multifoco, Rio de Janeiro, 2015. . Um dos pontos centrais desta discussão implica no reconhecimento da disparidade da obrigação de fidelidade entre homens e mulheres. De acordo com Engels, o primeiro tipo de opressão na história ocidental seria a opressão das mulheres pelos homens, a fim de garantir o acúmulo de bens dentro de uma linhagem patrilinear.

Claude Lévi-Strauss e outros antropólogos forneceram material o suficiente para entendermos que as mulheres, historicamente, foram objetos de troca, o que aponta para um lugar social construído em bases biológicas. Lévi-Strauss (1976b[1967LEVI-STRAUSS, C.. A troca matrimonial (1976b[1967]). In: LEVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 173-184.]) enfatiza, no entanto, o caráter social da troca, fruto, segundo ele, da proibição universal do incesto, a qual implica em casamentos fora de determinados grupos. A troca estabelece, portanto, uma estrutura de reciprocidade, a qual independe do que é trocado efetivamente, e inaugura vínculos entre os que cedem e os que recebem. De acordo com Lévi-Strauss:

O casamento não aparece somente nas peças de operetas como uma instituição a três [...]. Desde que as mulheres constituem um valor essencial à vida do grupo, em todo casamento o grupo intervém necessariamente em dupla forma: a do ‘rival’, que, por intermédio do grupo, afirma que possuía um direito de acesso igual ao do cônjuge [...], e a do grupo enquanto grupo, o qual afirma que a relação que torna possível o casamento deve ser social. (LÉVI-STRAUSS, 1976a[1967LEVI-STRAUSS, C. Endogamia e exogamia (1976a[1967]). In: LEVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 80-90.], p. 81).

Os sujeitos do par matrimonial estabelecem, assim, uma relação, não só entre si, mas com o grupo de onde advêm. O casamento, portanto, do ponto de vista lévi-straussiano, ocupa uma função social, por excelência; seja ele monogâmico ou poligâmico, pouco importa, o que está em jogo é a estrutura de reciprocidade estabelecida a partir dele, a qual permite que as famílias não se fechem em si mesmas.

Temos aqui, portanto, duas dimensões que se intercruzam na constituição deste vínculo social, essencialmente monogâmico, nas nossas sociedades ocidentais: a exclusividade, garantidora do patrimônio e a exogamia, que sustenta o tabu do incesto e a função social do casamento.

Essas ideias nos fazem lembrar de Totem e tabu, escrito por Freud (1996FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: FREUD, S. Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 13)[1913]), e, portanto, das origens dessas formulações sobre a monogamia e a exclusividade das mulheres em relação aos parceiros. Neste texto, Freud baseia suas formulações na teoria darwinista da horda primeva, que consistiria nas primeiras formações sociais humanas a partir das quais teriam surgido inúmeras normas de condutas, tais como o tabu do incesto, a monogamia e o luto, entre outros6 6 É importante ressaltar aqui que tomamos este texto antes como um marco historiográfico da Psicanálise do que em sua literalidade teórica. Nos parece que, neste texto Freud, comete um grande desvio biologizante. Desvio este cometido não somente neste texto, ou relativo a estes conceitos, mas presente em vários momentos de sua obra. . Freud defende a ideia de que o apego desses grupos primevos aos totens e todas as regras oriundas da relação do grupo com o totem geram inúmeras proibições relativas à vida sexual desses sujeitos; proibições estas que teriam sido transmitidas transgeracionalmente ao longo da história até os dias atuais. Segundo essa perspectiva, tais proibições inicialmente estariam restritas aos clãs, cujos membros estariam ligados, não por laços de sangue, mas pela relação que tinham com o totem que representava tal clã. Então, ao longo da história, a subjugação às proibições sexuais se restringiram ainda mais e a consanguinidade teria passado a ser o fator primordial que determinaria quem está dentro dos limites proibitivos dessa lógica. Um exemplo claro citado por Freud no texto é o da relação de identificação profunda de uma mãe com sua filha que pode levar ao enamoramento desta com seu genro. Apesar de não haver laços consanguíneos nessa situação, judicialmente7 7 É interessante notar que, mesmo com a dissolução do casamento, a afinidade em linha reta com sogro, sogra, nora e genro não se extingue. Ver: Art. 1.595 do Código Civil. já existe a premissa de que a relação genro/sogra tem o mesmo peso da consanguinidade e, portanto, está limitada pelas mesmas proibições.

Uma das questões interessantes apontadas por Freud (1996FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: FREUD, S. Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 13)[1913]) diz respeito à necessidade da proibição diretamente ligada à existência do desejo, ou seja, se existe uma proibição com relação ao incesto, ou uma norma monogâmica, é porque existe um movimento pulsional de satisfação da sexualidade relativa à situação incestuosa e à situação não-monogâmica. Sendo assim, consideramos que a monogamia só existe a partir da possibilidade da traição, ou seja, da quebra de um contrato monogâmico por um ou pelos dois sujeitos envolvidos numa relação afetivo-sexual. Mas, quais as implicações desta constatação na vida dos sujeitos?

A pulsão existe. Portanto, consideramos que existe um desejo e uma necessidade de satisfação. O que isso implicaria no campo dos relacionamentos? Repetir a monogamia e continuar transmitindo-a transgeracionalmente, ou romper com ela na tentativa de construir identidades mais autênticas no que diz respeito ao psíquico que é sexual - sobretudo se pensarmos no inconsciente e na afirmação de Freud sobre não sermos senhores em nossa própria casa? Pensamos que nem um nem outro caminho são as respostas para esta pergunta, o que nos coloca diante de várias questões sobre a identidade dos sujeitos em relação à pulsão, em relação às necessidades de satisfação da pulsão. É inegável, portanto, que a norma aponte para o rompimento dela mesma. Nesse sentido, como podemos pensar na formação da identidade em relação à monogamia?

Como colocado acima, o estatuto de lei da monogamia8 8 É sabido que o Direito da Família se baseia no princípio da monogamia. Indica-se conferir o Art. 1.566 do Código Civil. contribui para sua manutenção enquanto arranjo hegemônico de relacionamento. Mas também nos dá pistas em relação à sua origem pulsional. Como coloca o jurista Rodrigo Cunha Pereira (2004PEREIRA, R. C. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da família. Tese de doutorado. Curitiba: Universidade Federal do Paraná. 2004.), especialista em Direito da Família:

A fidelidade, com certeza, só tornou-se lei jurídica, isto é, um dos deveres do casamento, porque o “impulso” da infidelidade existe. Para determinadas pessoas a fidelidade é intrínseca à sua personalidade e funciona como um pressuposto natural de respeito e para elas não haveria a menor necessidade de colocá-la como um dever, já que ele é inerente a essas pessoas. Para outros, ela torna-se necessária como um dever legal, pois não são naturalmente fiéis ao parceiro, ou têm uma propensão natural à infidelidade e, portanto, precisam sofrer um interdito proibitório, que tem também a função de barrar ou conter os excessos daquilo que extrapola o convencionado no campo social. (PEREIRA, 2004PEREIRA, R. C. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da família. Tese de doutorado. Curitiba: Universidade Federal do Paraná. 2004., p. 80).

Percebe-se, no entanto, que as formas de relacionamento têm se transformado de maneira estonteante em nossa sociedade, obrigando os juristas a lidar com esses “excessos” e formatações antes inimagináveis em termos de constituição familiar. As modificações nos modelos de relações que nem sempre estão mais subjugados às regras monogâmicas ou compactuam com os formatos padrão de família completa9 9 O uso do termo completo aqui se refere à dobra ideológica relativa às discussões atuais que determinam a família como um modelo tradicional instituído pela igreja que deve respeitar a formatação pai, mãe e filho(a) ou filhos(as). causam uma mudança não somente nas formatações familiares produzindo famílias homoparentais, monoparentais etc. , mas também modificam a lógica de identificação na qual os sujeitos se produzem. Precisamos entender, portanto, do que se trata a identificação, como ela se dá, ao que é relativa, para então podermos pensar nos pontos que ressaltamos mais acima neste artigo.

Monogamia: possibilidades tradutivas

Considerando, como Lichtenstein (1977LICHTENSTEIN, H. Identity and sexuality. Nova Iorque: Jason Aronson, 1977.), a identidade como uma performance de automatismos estruturais, poderíamos supor a monogamia como um dos automatismos criados a partir do tema de identidade, implantado durante o que Laplanche (2006bLAPLANCHE, J. Castração e Édipo como códigos e esquemas narrativos. In: LAPLANCHE, J. Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano. Porto Alegre: Dublinense, 2006b, p. 281-287.) considera a situação antropológica fundamental, com a função de recalcamento, sem os quais sofreríamos uma perda paralela de identidade. De acordo com Lichtenstein:

Ao reintroduzir um princípio evolutivo no pensamento psicanalítico, o princípio da identidade pode nos fazer entender o processo pelo qual, a partir das necessidades inerentes, o equipamento biológico do homem força-o a tornar-se o criador de um mundo feito por homens dentro de um mundo natural. Não é, em última instância, um novo princípio ou mesmo um novo termo. É a compulsão à repetição, o “além do princípio do prazer”, visto em uma outra perspectiva. (LICHTENSTEIN, 1977LICHTENSTEIN, H. Identity and sexuality. Nova Iorque: Jason Aronson, 1977., p. 119, tradução nossa).

A quase infinita variedade de identidades baseadas em comportamentos, leis, normas, ideologias etc., permite ao ser humano se adaptar a uma variedade imensa de contextos, mas também o coloca à mercê da ameaça da perda da identidade. Sendo assim, esta ameaça é o que força o ser humano a constantemente tentar se definir a partir das variações do tema da identidade nele implantados. Está claro que a implantação deste tema, mesmo sendo irreversível como colocado acima, não é unívoca e nem pode ser compreendida de uma uma maneira simplista. Ao aproximarmos a noção de implantação do desejo materno no bebê de Lichtenstein ao conceito de mensagens enigmáticas proposto por Laplanche, notamos que tais experiências funcionam como o objeto fonte da pulsão. Ou seja, seriam estas mensagens que fariam o bebê inserir-se no mundo social em que a sexualidade, em seu sentido ampliado, opera e faz com que busquemos continuamente a satisfação de seus impulsos.

Propomos que tal busca se torna manifesta como atividades criativas que levam à constituição de papéis sociais. Neste sentido, os papéis de marido, ou esposa, poderiam inserir-se neste contexto. Consideramos, portanto, que o princípio de identidade atua no ser humano de tal forma que: (i) não há como adquirir ou manter uma identidade fora do contexto social e cultural; (ii) mas que também não há como haver cultura a não ser que haja um ser vivente cujo equilíbrio biológico fundamental só pode ser estabelecido através de um eterno processo de trabalho que garanta o reforço e manutenção da identidade. Assim sendo, poderíamos compreender que os estabelecimentos de determinados padrões de comportamento, como a monogamia, têm a função de auxiliar o sujeito nesta manutenção da identidade dentro do grupo social.

A maneira como os bebês são cuidados em nossa sociedade e a instituição legal da monogamia atuariam, simultaneamente, de forma que mensagens não articuladas como comandos explícitos, mas com estatuto de norma fossem inseridas no psiquismo do infante, sendo ele então responsável por traduzi-las. Por esse motivo, podemos pensar que a forma compulsiva e compulsória como a monogamia é imposta em nossa sociedade possa ser interpretada como uma das traduções à pulsão sexual na formação de identidade.

A repetição de determinados padrões seria, assim, uma maneira de manter “o imutável dentro da mudança” (LICHTENSTEIN, 1977LICHTENSTEIN, H. Identity and sexuality. Nova Iorque: Jason Aronson, 1977., p. 103), pois um sistema biológico como o do homem, desprovido de adaptação instintiva e, logo, de identidade inata, só pode existir ao preservar sua identidade na existência histórica criativa que se mostra visível no “trabalho” da cultura. Ter de nos haver com a satisfação de nossos desejos, desejos estes que são fruto do meio onde habitamos, faz com que determinadas opções de tradução sejam mais facilitadas pela cultura do que outras. Dessa forma, o peso histórico da monogamia também produziria uma via facilitada para sua execução, na medida em que atua como regulador das relações sociais e, simultaneamente, no psiquismo dos sujeitos que lhe estão submetidos.

Isto, no entanto, não significa dizer que a monogamia seria a forma mais desejável de relacionamento ou a única possível em nossa sociedade. Apenas supõe as origens psíquicas e sociais para a manutenção de sua hegemonia, que pode ser questionada e revertida a qualquer momento.

Considerações finais

Investigar exaustivamente as origens psíquicas da monogamia não é, nem poderia ser, o objetivo final deste trabalho. No entanto, a diversidade de áreas do conhecimento e de métodos empregados para abordar o tema nos ajuda a compreender diferentes aspectos deste comportamento e desta instituição que se faz hegemônica em nossa sociedade. Questionar o estatuto desta hegemonia nos parece importante na contemporaneidade, na medida em que, tanto a psicanálise quanto outros campos do conhecimento científico, são interrogados pelas novas formas de amor e de constituição de núcleos familiares.

Assim sendo, apesar de compreender que a monogamia, enquanto comportamento humano, pode ser uma das traduções às mensagens transmitidas por desejos inconscientes na situação de indiferenciação entre mãe-bebê, consideramos importante ressaltar que, mesmo nas repetições mais constitutivas da identidade, mudanças são e podem ser feitas. Atribuir o estatuto de natureza/destino às experiências primordiais nos parece exercer o mesmo efeito limitante e reducionista que os desvios biologizantes ora provocaram na teoria psicanalítica.

Parece-nos mais interessante deixar o campo interpretativo aberto para que continuamente novas formas de antigas repetições façam com que nos interroguemos e reformulemos nossos antigos pressupostos.

REFERÊNCIAS

  • AMORIM, P. M.; BELO, F. R. R. A monogamia na obra de Freud. Cadernos de Psicanálise, v. 39, n. 36, 2017, p. 199-219.
  • BARBOSA, M. Poliamor e relações livres: do amor à militância contra a monogamia compulsória. Rio de Janeiro: Multifoco, 2015.
  • ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884). São Paulo: Escala, 1997.
  • FREUD, S. Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor. (1912). In: FREUD, S. “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 9)
  • FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: FREUD, S. Totem e tabu e outros trabalhos Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 13)
  • FREUD, S. O tabu da virgindade (1917). In: FREUD, S. Cinco lições de Psicanálise, Leonardo Da Vinci e outros trabalhos Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 11)
  • FREUD, S. Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo (1922). In: FREUD, S. Além do princípio do prazer, Psicologia de grupo e outros trabalhos Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18)
  • GRAMSCI, A. Selections from the prison notebooks of Antonio Gramsci New York: International Publishers, 1972.
  • HOLLAND, N. H. Obituary Heinz Lichtenstein (1904-1990). Int. J. Psycho-Anal, v. 71, p. 527-529, 1990.
  • LACAN, J. A identificação Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (O seminário, 9)
  • LAPLANCHE, J. Castração e Édipo como códigos e esquemas narrativos. In: LAPLANCHE, J. Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano. Porto Alegre: Dublinense, 2006b, p. 281-287.
  • LAPLANCHE, J. La position originaire du masochisme dans le champ de la pulsion sexuelle. In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée Paris: Aubier,1992a, p. 37-58.
  • LAPLANCHE, J. La pulsion de mort dans la théorie de la pulsion sexuelle. In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée Paris: PUF, 1992b, p. 273-286.
  • LAPLANCHE, J. Vie et mort en psychanalyse Paris: Flammarion, 2006a.
  • LEVI-STRAUSS, C. Endogamia e exogamia (1976a[1967]). In: LEVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco Petrópolis: Vozes, 2009, p. 80-90.
  • LEVI-STRAUSS, C.. A troca matrimonial (1976b[1967]). In: LEVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco Petrópolis: Vozes, 2009, p. 173-184.
  • LICHTENSTEIN, H. Identity and sexuality Nova Iorque: Jason Aronson, 1977.
  • PEREIRA, R. C. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da família. Tese de doutorado. Curitiba: Universidade Federal do Paraná. 2004.
  • 1
    Apud LICHTENSTEIN, H. Identity and sexuality. Nova Iorque: Jason Aronson, 1977.
  • 2
    Conceito de Von Uexkull que indica, não um ambiente externo, mas um leque de experiências dentro do qual certas identidades se tornam reconhecíveis, como a identidade da presa do animal, de seus pares, de seus predadores.
  • 3
    Edoardo Weiss foi o caso mais emblemático, quando propôs a noção de destrudo.
  • 4
    Apesar de Laplanche sempre estender uma longa crítica a determinados desvios biologizantes na teorização freudiana, ele mesmo ainda conserva alguns elementos dessa teorização, como, neste caso, os termos vida e morte que inevitavelmente não deixam de se referir à vida e morte do organismo.
  • 5
    Ver: BARBOSA, M. Poliamor e relações livres: do amor à militância contra a monogamia compulsória. Multifoco, Rio de Janeiro, 2015BARBOSA, M. Poliamor e relações livres: do amor à militância contra a monogamia compulsória. Rio de Janeiro: Multifoco, 2015..
  • 6
    É importante ressaltar aqui que tomamos este texto antes como um marco historiográfico da Psicanálise do que em sua literalidade teórica. Nos parece que, neste texto Freud, comete um grande desvio biologizante. Desvio este cometido não somente neste texto, ou relativo a estes conceitos, mas presente em vários momentos de sua obra.
  • 7
    É interessante notar que, mesmo com a dissolução do casamento, a afinidade em linha reta com sogro, sogra, nora e genro não se extingue. Ver: Art. 1.595 do Código Civil.
  • 8
    É sabido que o Direito da Família se baseia no princípio da monogamia. Indica-se conferir o Art. 1.566 do Código Civil.
  • 9
    O uso do termo completo aqui se refere à dobra ideológica relativa às discussões atuais que determinam a família como um modelo tradicional instituído pela igreja que deve respeitar a formatação pai, mãe e filho(a) ou filhos(as).
  • *
    Bolsista CAPES.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    18 Mar 2018
  • Aceito
    07 Abr 2020
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistaagoraufrj@gmail.com