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Wittgenstein por Lacan: considerações sobre a concepção de fato

Wittgenstein by Lacan: remarks on the conception of fact

Resumo:

Examinamos a abordagem lacaniana do conceito de fato a partir de um ponto que nos parece estratégico: as considerações feitas pelo psicanalista sobre o tratamento dado por Wittgenstein a este conceito em seu Tractatus Logico-Philosophicus. Por um lado, o trabalho explora o caráter promissor que Lacan enxerga nesse tratamento (afirmando que a metalinguagem almejada pela filosofia é impossível e que não há outro acesso ao fato senão via linguagem), mas, por outro lado, as elucidações acerca desse ponto nos conduzirão às divergências que há entre filósofo e psicanalista no que concerne à verdade e ao que pode e ser dito verdadeiramente.

Palavras-chave:
fato; linguagem; Wittgenstein; real

Abstract:

We examine the Lacanian approach to the concept of fact departing from a point that we repute as being a strategic one: the psychoanalyst’s considerations on Wittgenstein’s treatment of this concept in the Tractatus Logico-Philosophicus. On the one hand, our work explores the promising character that Lacan finds in this treatment (claiming that the meta-language longed for by philosophy is impossible and that there is no other access to fact except via language), whereas, on the other hand, the elucidations concerning this point lead us to the differences between philosopher and psychoanalyst with regard to truth and to what can be said truthfully.

Keywords:
fact; language; Wittgenstein; real

Introdução

Em Langage et psychanalyse, linguistique et inconscient, Arrivé (2001ARRIVÉ, M. Linguística e psicanálise: Freud, Saussure, Hjelmslev, Lacan e outros (1986). São Paulo: Edusp, 2001.) faz menção a uma intrigante notícia policial publicada pelo jornal Le Monde do dia 26 de abril de 1984. A notícia trata de um acidente de carro, ocorrido na cidade de Joanesburgo, do qual um homem saiu gravemente ferido. A caminho do hospital, no calor dos acontecimentos, sua carteira de identidade havia se perdido, de modo que um sério impasse se impôs: os hospitais na África do Sul, naquele período, encontravam-se organizados por uma rigorosa segmentação. Havia hospitais exclusivos para brancos, para negros e para mestiços, e aquilo que permitia a discriminação e admissão de um paciente era a designação racial expressa na sua carteira de identidade. O fato é que, não tendo sido reconhecido como paciente adequado em nenhuma das três classes de hospitais, o homem morreu, sem nenhum tipo de tratamento, “privado de significante” (ARRIVÉ, 2001ARRIVÉ, M. Linguística e psicanálise: Freud, Saussure, Hjelmslev, Lacan e outros (1986). São Paulo: Edusp, 2001., p. 20), no corredor do último hospital.

A narração dessa cena servirá como disparadora de nossa discussão acerca da concepção de fato, na medida em que põe em suspensão significantes que são, ou eram tidos - no caso, branco e negro -, como definidores de certa organização cultural. Ao fazê-lo, a narração põe em xeque nossa tendência de tomarmos a cultura como uma tradutora fiel e inquestionável da realidade. Nessa suspensão de significantes, um ponto impossível parece se revelar: a impossibilidade de haver uma total correspondência entre os “ditos” de uma cultura e o que vivenciamos nela como experiência. A questão que aqui apresentamos concerne a esse debate: se a perfeita comunhão entre um fato e seus critérios de verificação é abalada, como pode ainda ser compreensível o conceito de fato?

Buscando uma resposta satisfatória para essa questão, examinaremos, no que se segue, a concepção lacaniana do conceito de fato a partir de um ponto que nos parece estratégico: as considerações feitas pelo psicanalista sobre o tratamento dado por Wittgenstein a este conceito em sua obra de juventude, o Tractatus Logico-Philosophicus.

Em seu Seminário 17, O avesso da psicanálise, ao examinar os tratamentos dados pelos filósofos ao conceito de verdade, Lacan se detém diante do nome de Ludwig Wittgenstein. O filósofo vienense aparece como voz um tanto dissonante em meio à “canalhice filosófica” (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 63) do discurso privilegiado, repositório da verdade. De acordo com o psicanalista, Wittgenstein, insuflado por uma “ferocidade psicótica” em seu tratamento da natureza da proposição, termina por atentar contra o próprio lugar de que fala, admitindo que a metalinguagem almejada pela filosofia é impossível e que não há outro acesso ao fato senão via proposição.

Lacan vê méritos na distância que Wittgenstein guarda daquela concepção tradicional de fato, a qual podemos definir da seguinte forma: um acontecimento que se dá no mundo indiferente ao que pode ser dito sobre ele e preexistente ao olhar de um sujeito. O filósofo desenvolve, em seu Tractatus Logico-Philosophicus, uma concepção sui generis de fato, distinta daquelas concepções fisicalistas ou realistas tradicionalmente aceitas nas interfaces entre ciência e filosofia, e mesmo em nossa lida cotidiana com a mídia e as informações jornalísticas. Contudo, o psicanalista enxerga outros tantos deméritos na obra de Wittgenstein, no que diz respeito ao seu vínculo com a tão tradicional quanto antiquada concepção de representação.

Assim, se, por um lado, o trabalho que aqui se inicia gira em torno do aspecto promissor que Lacan encontra nesse tratamento dado por Wittgenstein ao conceito de fato em seu Tractatus Logico-Philosophicus (temos como objetivo elucidar de que forma a concepção psicanalítica de fato articula-se ao que é do âmbito da linguagem e ao que a ela escapa), por outro lado, as elucidações acerca desse ponto nos conduzirão, como veremos, às divergências que há entre filósofo e psicanalista no que concerne à verdade e ao que pode ser dito verdadeiramente.

1 Do mundo à proposição

Não temos o intuito de discutir aqui, em suas minúcias, a obra de grande complexidade que é o Tractatus. Pretendemos apenas apresentar de modo sucinto a forma com que a linguagem e as coisas conectam-se na referida obra (a chamada “ontologia tractariana”), a fim de aprimorar nossa compreensão da leitura lacaniana acerca da abordagem que Wittgenstein faz do conceito de fato. Mas, antes de atacarmos diretamente o ponto, uma contextualização e uma exposição de linhas mestras nos parecem prudentes e cabíveis.

O Tractatus é considerado a culminância das investigações do jovem Wittgenstein e, para alguns, sua grande e maior produção intelectual. De um modo geral, o que está em jogo na obra é um esclarecimento acerca do “alcance representativo da linguagem” (SANTOS, 2001SANTOS, L. H. L. A essência da proposição e a essência do mundo. In: WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., p. 17). O ponto de partida desse esclarecimento é o exame da conexão entre a proposição (enquanto símbolo) e aquilo que ela representa (o simbolizado, ou afigurado).

De acordo com Wittgenstein, o objetivo da filosofia deveria ser o de “identificar as condições lógicas que devem prevalecer para haver uma ligação entre mundo e linguagem” (GRAYLING, 2002GRAYLING, A. C. Wittgenstein. São Paulo: Edições Loyola, 2002., p. 50), pois, para ele, todos os problemas filosóficos se dissolvem ao aprimorarmos nossa compreensão sobre o funcionamento da linguagem. Wittgenstein herdou de Russell o insight de que a forma gramatical de uma proposição oculta sua forma lógica (WITTGENSTEIN, 1921/2001WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus (1921). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., 4.0031) e, assim como este último, empenhou-se em cunhar e aprimorar ferramentas formais (como as tabelas de verdade) que lhe permitissem ver mais perspicuamente o que se oculta por trás dos trajes múltiplos e polissêmicos com que a gramática reveste a linguagem (WITTGENSTEIN, 1921/2001WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus (1921). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., 4.002). Buscou, desse modo, esclarecer o que precisa se somar a um signo de modo que este venha a se tornar um símbolo, i.e., de modo que este venha adquirir propriedades representacionais. Ocorre, no entanto, que, enquanto Russell, na busca por determinar o liame entre linguagem (proposição) e realidade, terminou por recorrer a uma teoria epistemológica (ou mesmo psicológica) do juízo e do sujeito que emite juízos, Wittgenstein se empenhou na obtenção de uma saída a priori ou mais puramente lógica. Essa saída é a concepção pictórica de proposição.

A ideia de que a proposição opera de modo estritamente pictórico deriva, pelo menos assim entendeu o jovem Wittgenstein, da constatação de que o sinal proposicional, em sua organização sintática (ou configuração), é um tipo muito peculiar de fato: trata-se de um fato capaz de simbolizar outro fato. Essa constatação de que "o sinal proposicional é um fato" (WITTGENSTEIN, 1921/2001WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus (1921). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., 3.14) e, mais propriamente, um fato que, mediante um método de projeção, simboliza fatos abre caminho para um dos pilares do Tractatus: o de que a simbolização pode se dar na forma de outras articulações que não a linguagem canonicamente escrita ou verbal. De acordo com Luiz Henrique dos Santos, Wittgenstein percebeu que "não há nenhuma diferença lógica entre projetar um fato possível num fato sensivelmente perceptível (um sinal proposicional) e projetá-lo num fato de qualquer outra ordem" (SANTOS, 2001SANTOS, L. H. L. A essência da proposição e a essência do mundo. In: WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., p. 74).

Assim, para Wittgenstein, o que possibilita à linguagem, e mais propriamente à proposição, a representação da realidade, é sua propriedade de afiguração. A proposição é uma figuração (Bild) da realidade. E é por conta da relação figurativa estabelecida em um âmbito mais elementar que as proposições mais complexas (proposições moleculares, que envolvem conectivos lógicos) se fazem dotadas de sentido. Esse é o coração da teoria pictórica de Wittgenstein: o isomorfismo entre linguagem e realidade em um nível elementar ou atômico. Isto fica bem patente no aforismo 3.22, em que se lê: “O nome substitui, na proposição, o objeto” (WITTGENSTEIN, 1921/2001WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus (1921). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., 3.22), - ou seja, o nome, ao se articular de tal e tal modo com outros nomes, ocupa um lugar, na linguagem, que é idêntico ao ocupado pelo objeto por ele designado em sua articulação com outros objetos. Essa identidade seria condição de possibilidade para que haja correspondência entre as proposições e os estados de coisas. Pode-se dizer, então, que uma relação afiguradora garante um isomorfismo entre figuração e realidade no nível das proposições simples, ou, de outro modo: que as figurações têm a mesma forma lógica da realidade que elas representam.

A figuração é um modelo da realidade. (WITTGENSTEN, 1921/2001WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus (1921). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., 2.12).

Que os elementos da figuração estejam uns para os outros de uma determinada maneira representa que as coisas assim estão umas para as outras. (WITTGENSTEN, 1921/2001WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus (1921). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., 2.15).

Na figuração e no figurado deve haver algo de idêntico, a fim de que um possa ser, de modo geral, uma figuração do outro. (WITTGENSTEIN, 1921/2001WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus (1921). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., 2.161).

Desse modo, o que torna as proposições verdadeiras ou falsas, de acordo com o filósofo, é uma ligação representativa (simbólica) que elas têm ou não têm com a realidade. “O que a proposição representa é o que deve ser ou acontecer na realidade para que ela seja verdadeira. Em outros termos, uma proposição, no que importa à lógica, representa suas condições de verdade” (SANTOS, 2001SANTOS, L. H. L. A essência da proposição e a essência do mundo. In: WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., p. 25). Ao operar como figuração que modela a realidade, uma proposição circunscreve uma região de possibilidades combinatórias no universo de todas as possibilidades de articulação entre objetos (o espaço lógico). Essa circunscrição são suas condições de verdade, e seu valor de verdade depende da realização ou não das possibilidades combinatórias circunscritas.

Dessa forma, Wittgenstein assume que o mundo (totalidade dos estados de coisas existentes, i.e., que são o caso) é inteiramente dizível a partir de proposições empíricas (o discurso da ciência seria paradigmático nesse sentido). Deve-se salientar, contudo, que a presença de uma relação isomórfica (fundada na referência entre nome e objeto) como base da elucidação de Wittgenstein sobre a natureza da proposição e do que pode ser dito mediante a proposição estabelece um limite para esse dizer. Para Wittgenstein, a constatação de que a linguagem e a realidade, em seus níveis mais elementares, possuem uma estrutura lógica única evidencia “os limites do que pode se dizer clara e significativamente” (GRAYLING, 2002GRAYLING, A. C. Wittgenstein. São Paulo: Edições Loyola, 2002., p. 29). Entender a estrutura da linguagem é demarcar o que se pode dizer (sagen) e também o que não pode dizer - ou ainda: o que somente se pode, quando muito, mostrar (zeigen) por meio da linguagem.

A negligência desse limite, adverte-nos Wittgenstein, tem as suas consequências na própria história da filosofia, pois os problemas filosóficos surgem quando se pretende dizer o indizível. Segundo Grayling, “os limites do que pode ser dito - e, portanto, pensado - significativamente se revelam impostos pela estrutura tanto da linguagem quanto do mundo, e pelo modo como eles se conectam entre si pela relação ‘figurativa’” (GRAYLING, 2002GRAYLING, A. C. Wittgenstein. São Paulo: Edições Loyola, 2002., p. 49).

Em um conhecido aforismo (o desfecho lapidar do Tractatus), este limite se torna evidente: “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” (WITTGENSTEN, 1921/2001WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus (1921). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., 7). Ao fim da obra, Wittgenstein deixa claro que o ímpeto filosófico de discorrer sobre questões éticas, estéticas e religiosas seria um equívoco típico. Para o filósofo vienense, o que é da ordem do valor, da distinção hierárquica entre fatos, não é algo que possa ser dito. Isso porque não há verificação possível na própria ordem dos fatos (mundo) que possa servir como lastro de tais enunciações.

Interessa-nos deixar claro que o eixo central do Tractatus (sua unidade lógica) é a proposição e que afirmar que o sentido de uma proposição “é o que é declarado quando uma sentença [...] é empregada significativamente [...]” (GRAYLING, 2002GRAYLING, A. C. Wittgenstein. São Paulo: Edições Loyola, 2002., p. 31-32) nos leva a uma ideia fundamental da obra: a de que há distinção entre as condições de sentido de uma proposição e suas condições de verdade. O sentido próprio a cada proposição não é análogo ao valor de verdade que ela assume. Essa tese, nomeada por comentadores de “tese da independência do sentido”, não é exclusiva do pensamento de Wittgenstein, sendo parte fundamental da teoria de seus antecessores, como Russell. Uma proposição é verdadeira quando representa a realidade e falsa quando não a representa, ao passo que, de maneira distinta, um sinal tem sentido se ele é símbolo de algo, não vindo ao caso se esse algo existe ou não. Se podemos empregar a linguagem corrente (natural) para fazer uma figuração falsa da realidade (GRAYLING, 2002GRAYLING, A. C. Wittgenstein. São Paulo: Edições Loyola, 2002., p. 33), isso só pode se dar porque tal figuração possui sentido apesar de ser falsa.

A propriedade da proposição descrita acima é de extrema relevância para a análise aqui proposta, pois é justamente pela proposição - como o que deve poder ser verdadeiro e deve poder ser falso (bipolaridade) - que podemos entender a concepção de fato. Para tanto, precisamos nos deter naquilo que acima se chamou de “forma lógica”.

Diz Santos que “partes da proposição referem-se a elementos da realidade (coisas, propriedades, relações) e o que ela enuncia é a realidade ou não de uma tal combinação - um fato” (SANTOS, 2001SANTOS, L. H. L. A essência da proposição e a essência do mundo. In: WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., p. 26). Ou seja, os fatos estão intimamente relacionados à capacidade da linguagem de afiguração. E é isso o que interessa a Lacan no pensamento de Wittgenstein: constitui um fato aquela ligação entre objetos que é afigurável na linguagem. Como se trata de uma relação isomórfica em suas bases, o que é afigurado e a própria figuração se equivalem, dependendo, o conceito de fato, da própria relação de equivalência. Segundo Grayling,“[...] uma análise do fato é o mesmo que uma análise da proposição correspondente a ele” (GRAYLING, 2002GRAYLING, A. C. Wittgenstein. São Paulo: Edições Loyola, 2002., p. 55). Ou mesmo, “[...] as proposições são elas mesmas figurações de fatos” (GRAYLING, 2002GRAYLING, A. C. Wittgenstein. São Paulo: Edições Loyola, 2002., p. 55).

Em resumo, a concepção de fato estabelecida deste modo evidencia a divisão presente no pensamento de Wittgenstein entre o que pode ser dito significativamente, a partir de uma relação pictórica entre a linguagem e os fatos possíveis (concebíveis) e o que não pode (o que não é concebível, não tem qualquer forma lógica) - evidenciando o limite da capacidade afigurativa da linguagem. Wittgenstein trata a um só tempo das configurações da linguagem e do mundo, mostrando-nos que uma forma lógica comum as mantém conectadas. É na descrição desse funcionamento que o filósofo afirma que “[...] apenas o discurso factual é possível[...]” (GRAYLING, 2002GRAYLING, A. C. Wittgenstein. São Paulo: Edições Loyola, 2002., p. 56), ou seja, que “não podemos dizer nada sobre o que cai fora do domínio dos fatos[...]” (GRAYLING, 2002GRAYLING, A. C. Wittgenstein. São Paulo: Edições Loyola, 2002., p. 56).

2 O Wittgenstein de Lacan

A partir do que foi apresentado, podemos passar ao exame da maneira com que Lacan, no Seminário 17, serve-se de algumas das teses expostas no Tractatus. Como dissemos ao início, certos aspectos no pensamento do jovem Wittgenstein saltam aos olhos de Lacan como demarcando uma ruptura com relação a outros filósofos. O filósofo vienense é apresentado ao auditório constituído na Faculdade de Direito como alguém que chegou a constatações relevantes, como a evidenciação da impossibilidade de uma metalinguagem, a autoanulação do discurso filosófico e o comprometimento do sentido e da verdade da proposição com “nossa vida de sujeito” (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 64).

É interessante notarmos que a concepção wittgensteiniana de fato encerra um duplo para Lacan. Por um lado, presta a ele um favor, ao fechar caminho para as pretensões filosóficas do dizer absoluto. Por outro lado, causa-lhe irritação, ao tentar salvar algo que deveria perecer no caminho fechado.

Comecemos com o favor, i.e., com os méritos encontrados no Tractatus. Wittgenstein teria sido capaz de detectar o que Lacan nomeia de “canalhice filosófica”. A canalhice, mostra Lacan, está em a filosofia querer ser o Outro (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 63), em querer “salvar a verdade” ostentando um pretenso discurso superior (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 65). E como se dá essa detecção? Uma das formas de tentarmos entendê-la é considerando que, ao trazer a concepção de fato para o âmbito da linguagem, para a representação, retirando este conceito apenas do que é representado, do que é alheio e independente do próprio processo de representação, Wittgenstein se compromete com a tese da impossibilidade da metalinguagem. Como é público e notório, Lacan também procura sustentar essa tese.

A impossibilidade da metalinguagem, no Tractatus, se segue diretamente, como corolário, da ideia de que, dada a natureza pictórica da linguagem, não podem haver dois ou mais níveis do dizer, e toda tentativa de um dizer absoluto ou bem cai em trivialidade ou bem cai em absurdo. A lógica cairia na trivialidade das tautologias e a filosofia, no absurdo. As próprias sentenças do Tractatus (de cunho filosófico) seriam absurdos, tentativas de dizer o que não pode ser dito, porém, absurdos esclarecedores. A rigor, nenhuma proposição filosófica poderia assumir o almejado nível distinto, superior e neutro de enunciação das verdades metafísicas e as próprias sentenças filosóficas do Tractatus, sabendo-se simplesmente casos-limite da articulação de signos, usam o colapso do dizer para mostrar a inexistência de qualquer dizer superior. Elas não trariam conteúdos novos e privilegiados, simplesmente mostrariam, por sua opacidade (falta de sentido), a forma da simbolização e seus limites.

No entanto, a forma como Wittgenstein lida com a impossibilidade de uma metalinguagem apresenta um problema de origem aos olhos de Lacan. E aqui começamos a considerar os deméritos do Tractatus por uma perspectiva psicanalítica. O problema delineado por Lacan reside em Wittgenstein almejar sustentar “o mundo apenas com fatos. Coisa alguma existe, para o filósofo, que não seja sustentada por uma trama de fatos” (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 62). Foi o que vimos a respeito da natureza da concepção pictórica de proposição: nela, assume-se que uma proposição elementar é isomórfica a uma ligação possível de objetos e, se verdadeira, afigura um estado de coisas (fato atômico) no mundo. Coisa alguma existe, de acordo com Wittgenstein, naquilo que constitui um fato, que escape ao processo de afiguração. Sendo assim, Lacan afirma que, para esse filósofo, o mundo é constituído pela gramática lógica, de modo que “não há verdadeiro que não seja uma proposição composta que compreenda a totalidade dos fatos que constituem o mundo” (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 69). Assim, conclui o psicanalista, para Wittgenstein, “o fato é um atributo da proposição crua” (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 62).

A concepção de factualidade presente em Wittgenstein, segundo Lacan, advém de uma radicalidade, na medida em que, para o filósofo, “não há objeto que não seja pseudo-objeto” (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 58). Suas ideias partem de uma correlação sem restos entre o realmente simples (o objeto) e o simbolicamente simples (o nome). O objeto mantém relação com a linguagem (e só mantém relação com a linguagem) ao ser por ela passível de figuração. O conceito de fato, em Wittgenstein, se erige sobre o pressuposto de uma fidelidade simbólica radical.

Claro que isto não significa, como vimos na distinção tractariana entre dizer e mostrar, que, para Wittgenstein, tudo possa ser dito, afigurado. Ocorre, contudo, que o que é mostrado não existe, é transcendental - vislumbre da pura forma mediante a qual algo se pode dizer. É o que faz com que Lacan prossiga dizendo: “Coisa alguma existe, aliás, que não seja inacessível. Só o fato é articulado” (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 63). Dos comentários de Lacan, depreende-se certo sarcasmo diante do muro erigido por Wittgenstein entre o que é próprio da linguagem e o que não pode ser por ela representado. De um lado do muro, os fatos, o que pode ser afigurado, o que pode ser dito, de outro, o que não é passível de ser afigurado, o que não pode ser dito.

No artigo Retórica do inefável x prática do semidizer, Gilson Iannini apresenta de modo claro a posição de Lacan frente a esse muro:

Essa concepção estrita do que vem a ser a linguagem e o pensamento - e seus limites - é o que conduz Wittgenstein ao silêncio. O gesto wittgensteiniano de exclusão do não sentido instaura, com uma “ferocidade psicótica”, uma barreira intransponível entre o que pode ser dito e o que não pode ser dito. O silêncio é uma consequência inevitável apenas se quisermos, a todo custo, dizer a verdade sobre a verdade. Esclarecemos assim a seguinte passagem de Lacan: “talvez eu não diga o verdadeiro a respeito do verdadeiro. Mas, vocês não notaram que ao querer dizê-lo [...] o que ocorre é que não sobra muita coisa do verdadeiro?”. (IANNINI, 2011IANNINI, G. Retórica do inefável x prática do semidizer. Revista Aurora, Curitiba, v. XXIII, n. 33, p. 425-440, 2011., p. 434-435).

O extremismo de Wittgenstein, sua “ferocidade psicótica”, leva-o à “besteira” (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 63) de isolar a linguagem (enunciação) do factício (enunciado) ou, como nos diz Lacan, de “isolar o factício do ‘faz bom tempo’” (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 63). Mas demoremo-nos um pouco mais nessa intrincada passagem.

Apesar de ver um mérito no atrelamento que faz Wittgenstein entre a forma do fato e a forma da proposição, contra a canalhice filosófica da metafísica dogmática, Lacan diverge inteiramente da concepção wittgensteiniana do dizer. Ao assumir tal concepção com relação ao dizer, Wittgenstein trabalha com a ideia de que uma proposição empírica verdadeira é uma descrição completa. Ao fazê-lo, o filósofo procura estabelecer uma cisão entre dizível e o indizível de um modo que os dois são categoricamente apartados um do outro. O indizível, o que (quando muito) somente pode ser mostrado pelo próprio emprego dos sinais de uma tal maneira, está sempre no limite ou fora do espaço lógico. Não haveria e não poderia haver qualquer inserção do indizível (seja a essência da representação simbólica, seja o místico, a esfera do valor) na semântica do discurso verdadeiro.

Do modo como compreendemos, o cerne da divergência entre os autores se condensa no emprego do termo “completamente” no aforismo 4.023 do Tractatus: “A realidade deve, por meio da proposição, ficar restrita a um sim ou não. Para isso, deve ser completamente descrita por ela” (WITTGENSTEIN, 1921/2001WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus (1921). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001., 4.023).

Notemos que Wittgenstein fala em uma realidade “completamente descrita” pela proposição. De certo modo, podemos dizer que o grande alvo de Lacan é a prepotência filosófica desse “completamente”. O mesmo filósofo que, inusitadamente, pela negação da metalinguagem, teria aberto as portas para a compreensão de que “não há sentido que não seja do desejo” (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 63) parece refugar, exigindo uma verdade que se diga inteira. O compromisso de Wittgenstein com a lógica proposicional, a qual traz, em seu bojo, regras inexoráveis de operação de conectivos (dentre os quais Lacan confere especial ênfase à implicação material), leva o filósofo a admitir como tautológica (necessariamente verdadeira) a rejeição de que o verdadeiro comporte o falso (LACAN,1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 64). Tal exigência de necessidade entra em choque com o que Lacan chama “nossa vida de sujeito” (idem). Segundo ele, nossa vida de sujeito (de sujeito desejante, aquela que salta aos olhos na experiência analítica) atesta que a verdade “é certamente inseparável dos efeitos da linguagem”, sendo que “dizer que a verdade é inseparável dos efeitos de linguagem tomados como tais é incluir aí o inconsciente” (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 65).

Essa concepção psicanalítica de verdade, assume Lacan, não é compatível com a tarefa própria da filosofia, uma vez que não há, da parte da teoria psicanalítica, qualquer interesse em “salvar a verdade” (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 65). Essa linha de pensamento permite a Lacan desenhar uma nova dinâmica, distinta da de Wittgenstein, entre o âmbito da linguagem e o que não é linguagem, considerando que o ato (a tentativa) de representação sempre se dá com um déficit e um a mais ao que é representado. Surge, então, no ensino lacaniano, algo que também é irrepresentável, mas que ocupa um lugar completamente distinto daquele ocupado na obra de Wittgenstein, pois não deixa de estar presente no campo da linguagem, não apenas como um limite dado à capacidade de representação, mas como inerente ao próprio processo.

Ou seja, de acordo com o psicanalista, mesmo as proposições empíricas (bipolares) que Wittgenstein atribui ao discurso científico são um dizer incompleto. Diz Lacan: “Nenhuma evocação da verdade pode ser feita se não for para indicar que ela só é acessível por um semidizer, que ela não pode ser inteiramente dita porque, para além de sua metade, não há nada a dizer” (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 49).

O tópico que se segue tem como objetivo evidenciar essa articulação - entre o âmbito da linguagem e o que a ela escapa - a partir dos desdobramentos da concepção de fato concebidos por Lacan.

3 Do significante ao fato

Um ponto de aproximação entre os dois autores é a ideia de que nem tudo pode ser incluído no âmbito da proposição. Contudo, se, no Tractatus, o que escapa às capacidades simbólicas da proposição é, fundamentalmente, a forma lógica e o valor, na teoria lacaniana isso que não pode ser simbolizado recebe o nome de "real". Aqui, cessa qualquer possibilidade de equivalência entre o lugar ocupado por isso que não é linguagem no pensamento dos dois autores. O entendimento da capacidade representativa da linguagem e o lugar reservado em suas teorias ao que não pode ser representado não é um consenso entre os dois autores, sendo este um fundamental ponto de discordância entre eles.

A constatação de que Lacan se utiliza de certas considerações de Wittgenstein para evidenciar a necessária articulação entre o fato e a linguagem não nos licencia a tomar a concepção de “fato” lacaniana como uma continuação de um pensar filosófico. De forma bem diversa, podemos dizer que o pensamento de Wittgenstein surge no ensino de Lacan como um desvio que permite a ele se dirigir a outro lugar, um campo bem distante de qualquer intuito filosófico. É um espaço clínico o que se estabelece: instituindo-se como um campo distinto e denunciando as pretensões de algumas práticas filosóficas que vislumbraram não um acesso à clínica, mas ao reino do absoluto.

Tendo isso em vista, trazemos a seguinte questão: nessa nova arrumação, que considera a articulação entre um fato e o significante (posto que se assume que um não pode ser sem o outro), onde se situa, de acordo com Lacan, aquilo que não pode ser abarcado pela linguagem?

No capítulo do Seminário 16, intitulado O fato e o dito, e ao longo de todo o Seminário 17, Lacan enuncia o real como impossível (LACAN, 1968-1969/2006LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. (O seminário, 16), p. 64). No entanto, é preciso perguntar: onde exatamente essa enunciação se distancia da filosofia da linguagem, como, por exemplo, na tentativa de Wittgenstein de pontuar algo que não pode ser representado pela linguagem?

Ao sublinhar que a verdade é inseparável dos efeitos da linguagem tomados como tais, Lacan anuncia a primazia do significante em face do significado como forma de instrumentalização de sua proposta de aproximação entre linguagem e inconsciente. Tal postulação, sem dúvida, abala a tradicional ideia filosófica de representação (muito cara ao Tractatus).

O conceito de significante rompe com toda uma tradição de pensamento sobre a relação entre o mundo (os objetos) e a linguagem. A escolha de Lacan por incorporar à teoria psicanalítica o conceito de significante, um conceito nascido na linguística (SAUSSURE, 1915/2006SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. 27 ed.São Paulo: Cultrix, 2006.), tem como objetivo abrir caminho para outra forma de pensar essa relação (entre linguagem e mundo), mas também distanciar o seu campo de investigação de toda uma tradição de pensamento sobre a linguagem, presente na linguística e na filosofia da linguagem.

Para Lacan, a ideia de uma prática de linguagem baseada na referência, sustentada pela crença de uma possível correspondência integral entre a linguagem e o seu objeto, faz com que tudo o que foi priorizado por Freud em sua análise do inconsciente, dos chistes, dos atos falhos e sonhos seja relegado a um segundo plano. Por essa via, o equívoco, os mal-entendidos, as criações da linguagem seriam apenas erros (e, como erros, podem ser consertados), momentos em que a linguagem não é tão bem sucedida em sua tarefa.

A estratégia de Lacan, então, é colocar o que pode ser visto por alguns como um erro ou como uma prática secundária e específica, em um lugar central, como algo que se estrutura na própria linguagem, pois, segundo ele, “[...] não há língua existente à qual não se coloque a questão da insuficiência para abranger o campo do significado” (LACAN, 1957/1998, p. 501). Ele foi buscar fora da psicanálise, no campo da linguística, um instrumento para ler Freud, com o objetivo de destacar passagens, concepções e ideias presentes na obra freudiana, fornecendo-lhes outro arranjo.

Consideramos que “a teoria do significante é igualmente inseparável da teoria do sujeito” (ARRIVÉ, 2001ARRIVÉ, M. Linguística e psicanálise: Freud, Saussure, Hjelmslev, Lacan e outros (1986). São Paulo: Edusp, 2001., p. 97). Essa observação encontra lastro na própria definição lacaniana de significante, a qual versa que “o significante é aquele que representa um sujeito para outro significante” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 73). Tal definição permite-nos enxergar ao menos duas marcas do pensamento de Lacan. A primeira é a de que Lacan não concebe uma teoria da linguagem desprovida de um ser falante (pré-ôntico) que se cria no próprio ato da fala (por oposição à ideia de um ser que primeiro é e depois a fala). Neste adágio lacaniano, encontramos novamente a ideia de uma impossibilidade de representação, a impossibilidade de haver um significante que represente o sujeito.

A segunda ideia é de que essa emergência só ocorre na relação com outro significante: “A estrutura do significante está, como se diz comumente da linguagem, em ele ser articulado” (LACAN, 1957/1998, p. 504). O sentido, assim, só emerge em um segundo momento, como resultado da cadeia significante.

Lacan nos mostra que pensar na linguagem a partir do significante implica romper com certa concepção referencialista da linguagem, na qual o significado se encontra atrelado a um determinado referente. Desta maneira, o psicanalista nos permite perceber que a novidade produzida pela cadeia significante não se esgota na produção de sentido, mas no fato de esta revelar a possibilidade de se dizer, na linguagem e pela linguagem, “algo completamente diferente do que ela diz” (LACAN, 1957/1998, p. 508). O autor afirma que esta propriedade fundamental do inconsciente se faz presente em toda a obra de Freud e na fundamentação da teoria psicanalítica, o que se apresenta em objetos de estudo tais como o chiste, no qual o sujeito diz algo distinto do que era a intenção do eu, através da formulação de uma palavra que emerge como estranha. O chiste evidencia ainda mais a concepção lacaniana de linguagem e a de significante, pois é justamente porque o significante não se encontra atrelado a um significado específico que novos sentidos podem advir no chiste, surpreendendo tanto o autor deste como seus ouvintes. Observamos, então, que o conceito de significante permite a Lacan uma nova leitura do inconsciente.

O conceito de significante, deste modo, dá suporte à ideia de um impossível de dizer (BLANCARD, 2013BLANCARD, M. H. () O real como impossível de dizer. Opção Lacaniana [online] Ano IV, n. 12, 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.hegelbrasil.org . Acesso em: 10 mar. 2006.
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, p. 3). Pela impossibilidade de haver uma perfeita confluência entre o significante e um referente, renunciamos à ideia de que a análise do que dizemos é correspondente à análise de nossa intenção, do que gostaríamos de dizer (como no chiste). Miller nos traz uma valiosa elucidação sobre a conjugação entre o impossível de dizer e o real. Vejamos:

É isso que Lacan chamou de real, dito de outra forma, a realidade como experiência do impossível de dizer. Concedamos-lhe que o real é o impossível. Quando o discurso vacila, não pode ir adiante, encontra-se algo com um não há. É o resultado de sua própria lógica, é o que se chama de o real. (MILLER, 2012MILLER, J. A psicanálise, seu lugar entre as ciências. In: COELHO DOS SANTOS, T.; SANTIGO, J.; MARTELLO, A. (orgs.). De que real se trata na clínica psicanalítica: psicanálise, ciência e discursos da ciência. Rio de Janeiro: Ed Cia de Freud, 2012, p. 13-34., p. 29).

A ideia de um impossível de dizer poderia nos levar à ideia de um “indizível” (VIEIRA, 2013VIEIRA, M. "Silêncio" (isso não é um silêncio). Opção Lacaniana [online], nova série, ano 4, n. 11, 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_11/silencio.pdf . Acesso em:03 jan. 2018.
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, p. 1), de uma de ausência de fala, de um calar-se. No entanto, pelo contrário, a experiência de uma análise nos mostra que é justamente por essa impossibilidade que falamos muito e que, inclusive, como foi dito, entramos em análise. Milner discorre sobre essa correspondência, evidenciando que o impossível de falar se conjuga com o impossível de não falar (MILNER, 1995MILNER, J. C. A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995., p. 137). É só a partir desse paradoxo que podemos entender a definição lacaniana do real como impossível e as implicações dessa elucubração em seu ensino.

Milner, em acréscimo, mostra-nos que a quebra desse paradigma foi introduzida pela própria noção de inconsciente. O inconsciente evidencia que o silêncio, inerente à ideia de um calar, é impossível. Nas palavras do autor: “O inconsciente é exatamente isso. Ora, do que não se cala, como consentir em não falar, por mais impossível que seja a tentativa?” (MILNER, 1995MILNER, J. C. A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995., p. 137). A teoria lacaniana conjuga o que não pode ser conjugado, e é no próprio dizer que essa conjugação se instaura. Milner evidencia que a suposição da possibilidade do silêncio pressupõe a inexistência do inconsciente; para ele, “Wittgenstein teria razão, se somente aquilo de que não podemos falar consentisse em se calar. O ponto é que ele nisso não consente” (MILNER, 1995MILNER, J. C. A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995., p. 137).

Podemos observar a referida comunhão, entre o real e o dizer, em uma passagem desse mesmo seminário, onde se torna mais evidente a articulação entre eles: “[...] dizer que o real é o impossível equivale também a enunciar que ele é apenas a apreensão mais extrema do dizer, na medida em que o dizer introduz o impossível, e não simplesmente o enuncia” (LACAN, 1968-1969/2006LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. (O seminário, 16), p. 64). Nessa passagem, torna-se clara a ideia de que, quando Lacan fala de um impossível em relação à linguagem, não pretende apenas apontar para alguma coisa que não pode ser representada por ela ou que se situa em um campo distinto e próprio. Se só assim fosse, abrir-se-iam portas para uma possível conjectura acerca da existência de um real que antecederia o próprio campo da linguagem ou de algo sem implicações com este. De forma diversa, a ideia que Lacan nos oferece é a de um real e de efeitos de linguagem que não existem um sem o outro; de um campo da linguagem no qual é aí, e só aí, que o real possui o seu habitat.

Essa articulação é destacada por Lacan quando ele sustenta que a verdade se inscreve no campo do semidizer. Em uma formulação sintética, seguindo o autor: “O semidizer é a lei de toda espécie de enunciação da verdade” (LACAN, 1969-1970/1999, p. 103). Ou seja, de acordo com o psicanalista, mesmo as proposições empíricas que Wittgenstein atribui ao discurso científico são um dizer incompleto. Diz Lacan: “Nenhuma evocação da verdade pode ser feita se não for para indicar que ela só é acessível por um semidizer, que ela não pode ser inteiramente dita porque, para além de sua metade, não há nada a dizer” (LACAN, 1969-1970/1999LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (O seminário, 17), p. 49).

Assim, a conhecida afirmação lacaniana de uma falibilidade da linguagem - sustentada certamente pela referência ao real como impossível - não corresponde apenas à hipótese de algo que permanece no mundo sem poder ser representado. O dizer introduz esse impossível em sua eterna tentativa de abarcar o real. A impossibilidade localizada por Lacan não é só um pressuposto da tentativa de dizer, mas é inscrita em toda tentativa, ou seja, no ato de dizer. Na tentativa de representação, um gap e um “a mais” são produzidos, gerando efeitos que povoam e constituem o campo da linguagem. A constituição de um fato seria, assim, um desses efeitos.

Viu-se que, com o significante, a ideia de uma referência direta entre signo designador e objeto designado se mostra repleta de fissuras nas quais reside o que não pode ser representado. O ensino de Lacan nos mostra que seria um equívoco insistir na tese da existência de uma cisão cabal entre o que pertence à linguagem e o que a ela escapa - o real -, como se fossem dois campos distintos e sem relação. O binômio dizer-mostrar proposto por Wittgenstein obscurece evidências clínicas de que o dizer nunca é inteiro. A concepção de “fato” desenvolvida por Lacan é fruto da tentativa do psicanalista de denunciar esse equívoco, já que evidencia outra articulação entre a linguagem e o real - uma articulação não filosófica, na medida em que não vê constrangimentos em denunciar a impotência da verdade.

A concepção de fato surge na teoria lacaniana como resultado da articulação descrita entre a linguagem e o real, sendo resultante do engendramento significante: “Tudo que está no mundo só se torna fato, propriamente, quando com ele se articula o significante” (LACAN, 1968-1969/2006LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. (O seminário, 16), p. 65). Assim, um fato não aparece como algo sobre o qual a linguagem atua, não atesta uma suposta capacidade da linguagem de representar um evento que preexiste a ela - como parece estar pressuposto na ideia de um fato jornalístico. De acordo com Lacan, o fato evidencia a articulação significante, atestando, isso sim, a tentativa do sujeito de dizer algo sobre o que lhe escapa

Conclusão

Lacan, como Wittgenstein, não concebe o fato como algo que possa ser isolado da linguagem. Vimos, no trabalho que se encerra, que a ousadia do filósofo austríaco de revirar as entranhas do discurso filosófico de modo a denunciar o colapso de qualquer projeto de metalinguagem é devidamente reconhecida como meritória pelo psicanalista. No entanto, vimos também que este último, ato contínuo, ataca o extremismo wittgensteiniano de isolar o campo do fato da esfera do que não pode ser linguagem. Se, na filosofia do jovem Wittgenstein, um estado de coisas deve poder ser inteiramente representado por uma proposição elementar, na psicanálise, a possibilidade desse dizer inteiro é contestada.

De acordo com Lacan, dado que a) associações da ordem do significante permeiam a compreensão do dito e b) linguagem e realidade se constituem mutuamente (sendo indissociáveis), então, nenhum dizer é completo. O psicanalista procura denunciar as descontinuidades discursivas que há em toda e qualquer figuração do mundo, isso porque, segundo ele, “[...] toda evocação da falta supõe instituída uma ordem simbólica” (LACAN, 1968-1969/2006LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. (O seminário, 16), p. 286). Os frutos dessa conjugação entre o dito e o impossível de dizer só podem ser colhidos na própria fala.

As formulações lacanianas acerca do impossível distanciam-nos da ideia de um dizer completo, mas também da ideia de que, frente ao impossível, nos calamos. A conjugação dessas duas ideias leva-nos a romper com a visão de que o fim último da linguagem seria o de alcançar, pela fala, a verdade.

Tendo lançado alguma luz sobre o tema, consideremos novamente a cena com a qual abrimos esse trabalho. Na cena descrita por Arrivé (acerca de um acidente de carro ocorrido em Johanesburgo), viu-se que um ponto de impossível se constitui entranhado na elaboração de um saber sobre o mundo. A descrição parece evidenciar o impossível como produto de certa forma de organização, como efeito de uma determinada forma de arrumação e manejo, disposto lado a lado com significantes (no caso, branco e negro) que, na época, serviam como índices discriminatórios que alicerçavam aquele sistema de saúde. O impossível se produz aí como denúncia da inaptidão desses significantes para o posto de traduções, legendas, do real. A ilustração apresentada permite que compreendamos que a proposta lacaniana de amarração entre o real (entendido como o impossível) e a cultura produz efeitos, os quais são expostos sempre sobre os elementos da própria cultura e apontados por nós como fatos.

Assim, Lacan, ao pensar sobre a organização da cultura/linguagem, promove uma inversão com relação à ontologia realista (fisicalista) tradicional: a cultura não se estrutura sobre o mundo, mas a cultura estrutura o que é o mundo, inclusive o que lhe é impossível. Entende-se que a sua concepção de fato se erige para conferir solidez e contorno a essa ideia. E é só a partir dessas formas de organização que se pode ter como experiência algo do real. A concepção lacaniana não se inscreve sobre a possibilidade de uma total correspondência entre as palavras e o mundo, mas sobre a presença de sua impossibilidade.

REFERÊNCIAS

  • ARRIVÉ, M. Linguística e psicanálise: Freud, Saussure, Hjelmslev, Lacan e outros (1986). São Paulo: Edusp, 2001.
  • BLANCARD, M. H. () O real como impossível de dizer. Opção Lacaniana [online] Ano IV, n. 12, 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.hegelbrasil.org Acesso em: 10 mar. 2006.
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  • FREUD, S. A pulsão e os seus destinos (1915). Rio de Janeiro: Imago, 1990. (Edição standard das obras completas de Sigmund Freud, 14)
  • GRAYLING, A. C. Wittgenstein São Paulo: Edições Loyola, 2002.
  • IANNINI, G. Retórica do inefável x prática do semidizer. Revista Aurora, Curitiba, v. XXIII, n. 33, p. 425-440, 2011.
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  • WITTGENSTEIN, L. Lecture on Ethics. In: WITTGENSTEIN, L. Philosophical Occasions: 1912-1951 Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1993.
  • VIEIRA, M. "Silêncio" (isso não é um silêncio). Opção Lacaniana [online], nova série, ano 4, n. 11, 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_11/silencio.pdf Acesso em:03 jan. 2018.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2018
  • Aceito
    21 Abr 2020
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