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O trabalho da poesia na clínica das psicoses

The work of poetry in the treatment of psychosis

Resumo:

O enlace entre psicanálise e poética é indagado em relação à clínica das psicoses. Inicialmente, o artigo discorre sobre o trabalho da poesia na escuta e leitura do sujeito do inconsciente, quer dizer, na instauração do Discurso da Psicanálise. A noção proposta por Lacan como lalangue subsidia tal articulação. A seguir, na busca do rastro do trabalho da poética (do inconsciente), discutem-se aspectos de três experiências célebres no campo das psicoses: Schreber, Marcelle e Wolfson. Por fim, a sonoridade poética (musicalidade) surge como possibilidade de intervenção na direção de um tratamento que não negligencie o sujeito do inconsciente nas psicoses.

Palavras-chave:
psicanálise; poética; psicoses

Abstract:

In this article, the link between psychoanalysis and poetics is questioned in relation to the treatment of psychoses. The work of poetry is investigated in the hearing and reading of the subject of the unconscious, that is, in the establishment of the Discourse of Psychoanalysis. The notion proposed by Lacan as lalangue subsidizes such articulation. Then, in the search for the traces of the work of poetry (of the unconscious), aspects of three famous experiences in the field of psychoses are discussed: Schreber, Marcelle and Wolfson. Finally, poetic sonority (musicality) emerges as a possibility of intervention in the direction of a treatment that does not neglect the subject of the unconscious in psychoses.

Keywords:
Psychoanalysis; poetics; psychoses

Introdução

O enlace indicado por Freud entre o acontecer psíquico inconsciente e os usos poéticos da linguagem é nosso ponto de partida para problematizar a escuta psicanalítica. Há quem diga que a poesia é tão velha quanto a linguagem (MANNONI, 1982MANNONI, O. Un comienzo que no termina: transferencia, interpretación, teoría. Barcelona: Ediciones Paidós, 1982.) e, com efeito, podemos vislumbrar essa raiz compartilhada na ligação entre a poesia e o gesto remanescente na caligrafia chinesa. A presença fortuita da poesia na aquisição da linguagem durante a infância também nos conduz à mesma consideração.

Desde os Estudos sobre a histeria (FREUD, 1895/2003FREUD, S. El chiste y su relación con lo inconsciente (1905). Madrid: Editorial Biblioteca Nueva , 2003, p. 1029-1167. (Obras completas, 1)), encontramos a ideia de que o analisante realiza no tratamento um trabalho (psíquico) relacionado à aceitação de elementos recalcados. A este trabalho, Freud cunhou o termo perlaboração. Laplanche e Pontalis (2001LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.) destacam que o verbo substantivado alemão - durcharbeiten - encontrou um equivalente satisfatório no termo inglês working-through. Desse modo, ao assumir que a psicanálise é um tratamento possível para as psicoses, procuraremos articular como esta clínica pode realizar-se a partir de um trabalho com a poesia. A leitura dos textos freudianos dos anos 1900 indica-nos o modo como o inconsciente trabalha, isto é, como um poeta. Então, resta-nos perguntar: a direção do tratamento na clínica das psicoses poderia considerar o trabalho poético do inconsciente?

Os trabalhos com a figurabilidade (por exemplo, nos sonhos), com a técnica chiste, ou, ainda, com a tradução, fazem parte do labor do poeta, bem como do trabalho realizado pelo inconsciente. Dessa forma, o analista também reconhece no trabalho com a poesia, quer dizer, na abertura à função poética1 1 De acordo com Jakobson (1960/2001), é, dentre as funções da linguagem, aquela que se organiza ao redor da própria mensagem. Apesar da presença de um código instituído, a função poética, com sua ênfase na mensagem, promove a abertura e recriação do próprio código linguístico. da palavra, muitas possibilidades de intervenção.

Neste sentido, nosso recorte sobre a poética vem também da contribuição de Lacan, presente em toda sua obra com maior ou menor intensidade. Vale sublinhar essa incidência àqueles que se interrogam pela clínica das psicoses. De fato, trata-se de uma reelaboração de nossa experiência com clínica, pesquisa e formação neste campo, no qual, por vezes, a dureza das apresentações clínicas conduz a obliterar as nuances da língua em prol de uma diagnóstica (uma resolutividade). Essa última, muitas vezes, permeada de um “neurótico-centrismo”, sob a rubrica da usualmente chamada “saúde mental”.

Em muitos contextos de trabalho na clínica das psicoses, o “neurótico-centrismo” dá lugar a outra modalidade tão daninha quanto, qual seja, a insistência em sublinhar o déficit. Essa abordagem, que muitas vezes se serve da noção da forclusão do significante do Nome-do-Pai para considerar as psicoses como um “negativo das neuroses”, posiciona estes sujeitos como “aquém” das possibilidades de usos da linguagem. Neste sentido, muitos clínicos se espantariam com a proposição de um trabalho da poesia na clínica psicanalítica das psicoses. Por que optamos em dizer “trabalho da poesia” e não “com a poesia”? Simplesmente, por ser um trabalho sem ingerência consciente de analista ou analisante. Mais precisamente, é a poesia que trabalha construindo pontes entre o literal, o significante e a imagem ou, se preferirmos, entre o real, o simbólico e o imaginário. Ao analista (e muitas vezes ao analisante) fica a tarefa de testemunhar esse trabalho escutando, lendo e intervindo.

Sublinhamos o fazer clínico das psicoses em oposição à suposição corrente de que o sujeito psicótico estaria permanentemente em exílio de sua própria linguagem e, consequentemente, da poesia. Existe uma compreensão da noção “fora-de-discurso das psicoses” que termina por revitalizar a postura deficitária, promovendo uma marginalização do psicótico no fazer clínico psicanalítico, eludindo o fato de que a linguagem é um muro para todos os falantes.

1 O trabalho poético na situação psicanalítica de tratamento

Desde a Interpretação dos sonhos (1900/2012FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900), v. 1-2. Porto Alegre: LP&M, 2015.), Freud compara o trabalho do sonho com o do poeta. A modificação verbal dos elementos latentes, através do disfarce - como mencionamos a propósito das imagens - é comparada com a rima. De fato, Freud não se assombra com a importância da palavra na formação dos sonhos, pois ela é “ponto nodal de múltiplas representações”, como “uma multivocidade predestinada”, referindo que “todo o âmbito do jogo de palavras é colocado a serviço do trabalho do sonho” (p. 364-365). De igual modo, Freud reconhece nas “deformações vocabulares do sonho” semelhanças com aquelas presentes nas paranoias.

Além do trabalho poético, há outros contextos onde encontramos o prazer no uso do significante. Um prazer que também encontramos nas crianças e que, precisamente, as incita a fazer uso da linguagem. Tudo começa como uma brincadeira, como no o-o-o-/a-a-a do fort-da. Com efeito, além de escutar os sons emitidos pelo seu neto e lê-los como Fort [Foi-se!] e Da [Está aí!], Freud captou o sentido da brincadeira, quer dizer, o sentido de fortsein - “ter ido embora” (FREUD, 1920/2006FREUD, S. Além do princípio de prazer (1920). In: FREUD, S. Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente (v. 2). Rio de Janeiro: Imago, 2006., p. 141).

Octave Mannoni, em seu livro Um começo que não termina (1982MANNONI, O. Un comienzo que no termina: transferencia, interpretación, teoría. Barcelona: Ediciones Paidós, 1982.), dedica um capítulo às “Linguisterias2 2 Lacan forja o termo linguisteria “para deixar reservado a Jakobson o seu domínio” (LACAN, 1972-1973/2006, p. 24). Em outras palavras, para desembaraçar a psicanálise do campo da linguística. ”. Para o autor, os poetas não têm sua língua, senão que a língua é que os tem. Do ponto de vista da literalidade, não existem dois textos equivalentes. A compreensão, contudo, supõe que uma paráfrase ou tradução possam dar conta de uma equivalência. A compreensão é, nessa via, o consumo, a destruição da literalidade. A poesia, ao contrário, exalta a literalidade. De acordo com Mannoni (1982MANNONI, O. Un comienzo que no termina: transferencia, interpretación, teoría. Barcelona: Ediciones Paidós, 1982.), embora difíceis de conceituar, as artes poéticas são universais e praticamente atemporais. Ao destacar que a poesia é tão velha quanto a linguagem, o autor afirma que cada arte poética trata de conservar algum aspecto literal da palavra, tornando a língua um objeto passível de tratar-se a si mesmo. A significação, neste sentido, não provoca o mesmo prazer que o jogo de palavras em si (MANNONI, 1982MANNONI, O. Un comienzo que no termina: transferencia, interpretación, teoría. Barcelona: Ediciones Paidós, 1982.).

Entretanto, o autor ainda observa que a literalidade não é prerrogativa apenas da poesia, pois os enigmas (intervenções equívocas) também necessitam da literalidade. Portanto, nos enigmas, a literalidade funcionaria como garantia de um sentido, ainda que oculto: “Finalmente, está do lado dos meios de significação” (MANNONI, 1982MANNONI, O. Un comienzo que no termina: transferencia, interpretación, teoría. Barcelona: Ediciones Paidós, 1982., p. 95). A poesia, como “palavra gratuita”, ainda que supostamente compreendida, não perderia sua literalidade.

Freud (1910/2003FREUD, S. Observaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (‘Dementia Paranoides’) autobiográficamente descrito (‘Caso Schreber’) (1910). Madrid: Editorial Biblioteca Nueva , 2003, p. 1487-1528. (Obras completas, 2)) destacou a presença das inversões nos jogos das crianças com as palavras, um jogo do qual, já referimos, também se servem o inconsciente e o poeta. Por exemplo, na poesia concreta de Paulo Leminski, vemos o poeta brincar com estas trocas silábicas: “metaformose”, “mortemesafo”, “metamorfose” etc. Como fenômeno linguístico, a metátese (inversão) - ou hipértese - está presente tanto na poesia, quanto na aquisição da linguagem na infância.

Porém, a inversão dos fonemas também ocorre no cotidiano como lapso de fala - por exemplo, de “tábua” para “tauba” - ou mesmo nos ditos populares, como: “vão-se os dedos e ficam os anéis”. E, finalmente, ainda nas brincadeiras infantis, escutamos em vez de “transmissão de pensamento” o quase tão famoso “transmimento de pensação”.

Nessas situações de fala, entendemos que o letramento pode tanto ser falho quanto, propositadamente, pervertido. Assim, o “bife à milanesa” pode transformar-se em “bife a la minesa” e, em outro contexto, “bife ali na mesa”!

Nestes equívocos revestidos de ludicidade ou brincadeiras disfarçadas de enganos, encontramos toda a fecundidade de lalangue3 3 Durante a realização do Seminário 19 - ...ou pior - ocorrera um equívoco entre Lacan e sua audiência: la langue? é o que ressoa da plateia como pergunta, aparentemente, fora de contexto. A partir disso, Lacan assume essa produção inconsciente com a homofonia lalangue. na potência criadora das línguas. Pois, se a língua já é historicamente aberta à mudança, mesmo que seja organizada, mais aberta ainda é a criação de cada um dos falantes; essa abertura foi nomeada lalangue. Entendemos que, para o psicanalista, lalangue é o terreno fértil no qual germinam as formações do inconsciente.

É durante o seminário L’Insu que sait de l’Une-bévue s’aile a mourre, ditado em 1977LACAN, J. L’insu que sait de l’une-bevues’aile a mourre (1976-1977). [online]. 2016. Inédito. (Seminário 24). Disponível em: Disponível em: http://staferla.free.fr . Acesso em: 10 jul. 2017.
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, que Lacan, cada vez mais entusiasta da poesia, faz uma declaração sobre o trabalho do analista, pensando a sua própria transmissão:

Felizmente, há um furo. Entre delírio social e a ideia de Deus não há comum acordo. O sujeito se toma por Deus, mas é impotente para justificar que se produz do significante, do significante S1 e ainda mais impotente para justificar que esse S1 o representa junto a outro significante, e que seja por aí que passem todos os efeitos de sentido, os quais se tapam imediatamente, estão em impasse. A astúcia do homem é entupir tudo isso, já havia dito, com a poesia, que é efeito de sentido, mas também efeito de furo. Não há mais que a poesia, já lhes disse, que permita a interpretação. É por isso que não chego mais, em minha técnica, ao que ela sustenta. Não sou pouate [assez pouate] o bastante. Não sou bastante pouatassé [pouateassez]4 4 Estes neologismos de Lacan são intraduzíveis, mas há uma mescla interessante entre poètesse [poetiza] e poule [querida, amiga, amante], em que pode recorrer um sentido pejorativo. . Aí está! (LACAN, 1977LACAN, J. Apertura de la sección clínica. 1977. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/ouverture_de_la_section_clinique.pdf . Acesso em: 10 jul. 2017.
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, p. 74, versão Staferla).

Philippe Julien (2009JULIEN, P. O fim de uma sessão. In: DIDIER-WEILL, A.; SAFOUAN, M. (orgs.). Trabalhando com Lacan: na análise, na supervisão, nos seminários. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.) observa, retomando essa passagem do seminário, que o efeito de furo - para além do efeito de sentido promovido pela poesia e pela interpretação - é “vazio criador”. Recordando-se das intervenções de seu analista, Lacan, Julien situa este “efeito de furo” como um “encontrão, limite”; poderíamos acrescentar: com o impossível, o real - o limite do simbólico presente no literal (p. 51-54).

Érik Porge, por sua vez, também ressalta o entrelaçamento entre a poesia e o saber inconsciente. Em seu livro Transmitir a clínica psicanalítica (2009), relata que, para o público que assistia ao seminário de Lacan, o discurso poético foi se tornando um campo cada vez mais homogêneo ao discurso inconsciente. Lembramos que, na década de 1970, Lacan passou a enunciar que ali ele falava como analisante. Entendemos que se tratava de falar “se deixando levar”, incluindo as formações do inconsciente, como os atos falhos, nos conteúdos abordados. Dessa forma, ele era coerente com o que enunciara desde 1969, com o Discurso psicanalítico. É aqui que é relevante considerarmos, com Porge (2009PORGE, E. Transmitir a clínica psicanalítica: Freud, Lacan, hoje. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.), que a aparição do sujeito dividido, quer dizer, do sujeito do inconsciente, destitui o sujeito da mestria e da representação. Nisso, teríamos a ligação entre o efeito poético e o efeito sujeito que interessa à escuta psicanalítica.

Se há um discurso psicanalítico que se “deixa levar”, onde prevalece não a representação de conceitos, mas a formação de significantes novos, esse discurso não acolheria as psicoses? Se há um fora do discurso, seria fora desde o ponto de vista de um laço social instituído. Pois não seria justamente esse fora o que o interessa ao psicanalista?

Essa questão nos importa, na medida em que as psicoses interrogam precisamente as modalidades de laço social. Dito de outro modo, as psicoses interrogam a entrada no discurso e, com isto, o compartilhamento de sentido. Para nos orientar em uma tentativa de resolução, enlaçamos a função do trabalho poético à instauração - por analista e analisante - do discurso da psicanálise na situação do tratamento. Desse modo, o trabalho da poesia na clínica psicanalítica das psicoses é potente toda vez que aponte a essa instauração.

Lacan propôs um matema para a discursividade, quatro estilos de fantasmáticas, por assim dizer. Quatro estilos (cortes) que se veiculam no seio da enunciação, através de um dito que carrega um dizer. Se estar no discurso é acessar - ainda que de forma evanescente - o sentido compartilhado no vínculo entre os falantes, talvez possamos interrogar a passagem que o psicótico realiza na estrutura do discurso. O après-coup, isto é, o efeito retroativo da fala, realiza a recuperação de um sentido para o parlêtre5 5 Possíveis traduções para o termo parlêtre: “falesser” ou “falasser”. No entanto, a sonoridade desse neologismo lacaniano evoca também a letra. Usaremos essa terminologia quando for imprescindível evitar a confusão com o “efeito sujeito”, aquele que ocorre na afânise, quer dizer, entre dois significantes. e este seria, justamente, o desafio da realização de uma clínica psicanalítica das psicoses: viabilizar uma retroação que não seja mera reprodução.

De qualquer maneira, o sentido importa tanto quanto a possibilidade de perdê-lo, no não-sentido! O que podemos considerar válido no sentido é a acepção de percurso (de orientação) da cadeia significante, na retroatividade. Ademais, a psicanálise não é a busca de um sentido, embora possa dele se servir para lançar luz ao equívoco. Desse modo, a apreensão subjetiva de um sentido, por parte do analisante, é acessória, inclusive porque dela só é possível suspeitar. Não há controle - por sorte! - sobre a apreensão subjetiva de analisante algum, quer seja neurótico, quer seja psicótico. Por isso, nos interessa, prioritariamente, quais estilos de usos da fala e da linguagem estão presentes, ou seja, as marcas de sem sentido a que cada análise poderá lançar luz.

No escrito O Aturdito, Lacan promoveu um “flash” sobre o discurso psicanalítico com a seguinte frase: “Que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve” (LACAN, 1972LACAN, J. L’insu que sait de l’une-bevues’aile a mourre (1976-1977). [online]. 2016. Inédito. (Seminário 24). Disponível em: Disponível em: http://staferla.free.fr . Acesso em: 10 jul. 2017.
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, p. 448).

Podemos colocar esse enunciado no matema:

“Que se diga” aponta que alguém está na posição de escuta, onde se coloca em causa um desejo - ". “Fica esquecido” indica a produção de um saber - S2 - por ora inconsciente, ou seja, recalcado. “Por traz do que se diz” aponta para a divisão do sujeito (), enquanto “Em o que se ouve” refere o S1 em questão. Este flash, pela distribuição na estrutura, figuraria assim o discurso da psicanálise:

A retroatividade imposta pelo aprés-coup deixa o sujeito aturdido no encontro com o seu dizer, quando este se depreende de um dito. L’Etourdit, que traduzimos ao português como “O Aturdito” também evoca a palavra “tour”; o giro ou a ronda. É neste giro que o parlêtre, ao proferir seus ditos, se reposiciona no encontro com cada dizer inconsciente.

Esse foi o modo estabelecido por Lacan em seu Seminário 17 e nas respostas das perguntas de Radiofonia (LACAN, 1969-1970/2010LACAN, J. El reverso del psicoanálisis (1969-1970). Buenos Aires: Paidós, 1992. (El Seminario, 17); 1970/2003FREUD, S. El poeta y los sueños diurnos (1908). Madrid: Editorial Biblioteca Nueva , 2003, p. 1343-1348. (Obras completas, 2)). No entanto, a partir do Seminário 18 - de um discurso que não fosse semblante - o lugar do agente também pode ser nomeado como “semblante”. Contudo, para que o agente seja “semblante”, é preciso haver a experiência de que as palavras são vazias.

Na Abertura da sessão clínica (1977), Lacan enuncia que a formulação “um significante representa um sujeito para outro significante” não é propriedade das neuroses. A escuta psicanalítica na clínica das psicoses acolhe o efeito sujeito6 6 O efeito sujeito (ᴲ) é o que ocorre entre um e outro significante. Se o falante se surpreende com o que disse; ou, se no lugar de uma alteridade, o psicanalista, escuta um não-dito, e devolve uma interrogação; uma hesitação; um deslizamento para o falante etc. Se o falante se reconhece nesse não-dito pode-se falar com propriedade de efeito sujeito. É este reconhecimento que a psicose interroga em seu testemunho. - um dizer - ainda que, na maioria das vezes, se encontre diretamente com seus ditos, por exemplo, na alucinação. Desse modo, o efeito sujeito não está diretamente ligado à estrutura da neurose, embora, nessa apresentação subjetiva, este parlêtre esteja mais poroso à equivocidade da língua, deixando-se levar mais facilmente pela polissemia.

A “matéria-prima” da língua, neste sentido, é lalangue. É por lalangue que as crianças e os poetas se deixam tocar. As crianças dão um testemunho de lalangue quando, ao ter garantido o seu lugar na linguagem, passam a aprender uma determinada língua. Por exemplo, o dito de uma criança que tivemos a oportunidade de escutar. Ao referir-se à tia, qualificada por sua família como “dorminhoca”, relatou durante conversa em meio aos adultos que, de fato, esta ficava “minhocando [dormindo] o tempo todo”. A atratividade sonora da palavra minhoca a ajudou a criar este novo verbo. Podemos suspeitar que também houvesse se inspirado no fato de as minhocas estarem, na maior parte do tempo que as observamos, na horizontal. Assim, a criança também mostra o trabalho de lalangue com a figurabilidade, com o gesto.

Na última lição do já referido Seminário 24, Lacan se pergunta pela eficácia de um “significante novo”, “sem nenhuma espécie de sentido”. A tentativa de invenção deste significante estaria no chiste, no qual a torção do uso da palavra contém o seu “efeito operatório”. Então, relembrando a homofonia entre unbewusst (inconsciente) e une bevue (um equívoco), refere que o homem, ao dormir, se “une bevue” e que disto não se desperta. Ciência e religião seriam, neste contexto, despertares suspeitos em seus “deus-lírios”. A partir disto, Lacan (1977LACAN, J. Apertura de la sección clínica. 1977. Disponível em: Disponível em: http://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2016/04/ouverture_de_la_section_clinique.pdf . Acesso em: 10 jul. 2017.
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) evoca a poesia.

A poesia, contudo, não adquire sua eficácia por produzir um novo sentido, ainda que isso ocorra. A poesia é efetiva ao suspender o efeito de um sentido. É efetiva na recusa (pas) ou no passo (pas) de um sentido. Na ultrapassagem de um sentido, no pas de sens. O trabalho do analisante com o sentido orienta-se, desse modo, na produção de um novo significante que surge na suspensão de um sentido.

Obrar com lalangue é obrar com o “aqui agora” de uma linguagem que se decanta do real. Nessa posição, a criação do analista e do analisante passam a ser una, amalgamada. O ato analítico, o ato criativo e a poesia, nesse sentido, não são propriedade do analista. São recortes que registram a pulsação de lalangue por analista e analisante. Em tal contexto, nos parece mais coerente falar da sustentação de um discurso da psicanálise; nem do analista, nem do analisante. Inclusive, esta concepção estaria acorde à ideia de um terceiro que sancionaria a operação poética - o Outro. Assim como no chiste, o poetar - aqui destacado por nós como “obrar com lalangue” - requer dessa instância (o Outro) o sentido, quer dizer, o contexto a compartilhar. É desse modo que a escrita de um matema do discurso da psicanálise conduz ao poema e vice-versa.

Inclusive, talvez não seja abusivo dizer que há discurso da psicanálise onde há escuta analítica (ou seria poética?). Como exemplo, passamos a transcrever um breve diálogo ocorrido na recepção de um equipamento da área social no qual atuávamos:

- Olha só, pra quê tanta documentação? E essa demora? Esse bolsa família é muita democracia mesmo...

- Será que a senhora quis dizer “burocracia”?

- Essa coisa do demônio mesmo...

Nessa passagem, podemos analisar a importância da repetição dos fonemas de demo na indução de uma escuta poética. Há um significante novo nestas enunciações - a democracia - não apenas presente como sinônimo de burocracia (excesso de documentações e demora), mas como algo do demônio... O enlace entre demônio e democracia aqui descrito é a criação, como produto singular de lalangue, ainda não incluído na língua portuguesa.

É o sentido que, a partir de um sem sentido na língua, instauraria, se estivéssemos em uma situação analítica de tratamento, o discurso da psicanálise.

2 O trabalho poético e a direção do tratamento das psicoses

Antes de prosseguir acerca do trabalho poético, fazemos notar que o plural de “as psicoses” engendra uma postura clínico-teórica que ressalta a singularidade e o “caso a caso” em cada “solução” psicótica, por suas diferentes vias. Delírio, alucinação, medicalização, sinthome - ou mesmo a composição destas condições - fazem da direção do tratamento das psicoses um exercício de abertura à criação.

Como consequência, poderíamos dizer, parafraseando Lacan a propósito da Mulher: O Psicótico não existe. Nesse contexto, a função poética advém como esse trabalho de criação no rastro das formações inconscientes das psicoses. Mas aqui nos vemos diante de um impasse: por um lado, as já retomadas relações entre o trabalho do poeta e o trabalho do inconsciente em sua dinâmica vela/desvela, por outro, a ideia difundida a respeito de um “inconsciente a céu aberto nas psicoses”.

Lacan (1955-1956/2002) nos sugere como indagar o funcionamento “na superfície” ou “a descoberto” nas psicoses. A esse respeito refere que:

É clássico dizer que, na psicose, o inconsciente está à superfície, é consciente. Por isso mesmo, não parece que isso tenha grande efeito em ser articulado. Nessa perspectiva, bastante instrutiva em si mesma, podemos observar de saída que não é pura e simplesmente, como Freud sempre sublinhou, desse traço negativo de ser Unbewusst, um não-consciente, que o inconsciente guarda sua eficácia. Traduzindo Freud, dizemos - o inconsciente é uma linguagem. Que ela seja articulada nem por isso implica que ela seja reconhecida. A prova é que tudo se passa como se Freud traduzisse uma língua estrangeira, e mesmo a reconstituísse recortando-a. O sujeito está simplesmente, no que diz respeito à sua linguagem, na mesma relação que Freud. A se supor que alguém possa falar numa língua que lhe seja totalmente ignorada, diremos que o sujeito psicótico ignora a língua que ele fala. (LACAN, 1955-1956/2002LACAN, J. As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. (O Seminário, 3), p. 20).

No estudo das Memórias de Schreber, Freud dá testemunho desse funcionamento a descoberto, no qual já está presente a ideia do delírio como um correlato da interpretação no tratamento analítico. Além disso, destaca um momento anterior no qual recupera o devaneio que depois formará o cerne do delírio schreberiano. - Como seria belo ser uma mulher no momento do coito. Freud realiza uma leitura do inconsciente a partir daquilo que o delírio repete deste enunciado. Dessa forma, o funcionamento de um inconsciente na superfície - ou a céu aberto - nas psicoses não é uma premissa de base na direção desses tratamentos. Podemos conjecturar que certos fenômenos psicóticos são índice desse funcionamento, por exemplo, no delírio e na alucinação. De todos os modos, a presença de uma leitura de inconsciente, qualquer que seja, supõe a presença de um analista e seu ato de escuta. Assim, conforme nos adverte Eidelsztein (2012EIDELSZTEIN, A. Las estructuras clínicas a partir de Lacan, v. 1. Buenos Aires: Letra Viva 2012.), não confundiremos os fenômenos psicóticos com as formações do inconsciente. As formações do inconsciente requerem alguém que as leia, os fenômenos psicóticos não.

Diante do exposto, propomos uma leitura de inconsciente nas psicoses a partir do trabalho com a poética. Ainda em relação a Schreber, vamos questionar a presença de uma função poética em seu testemunho. Muito já se falou sobre este caso, e seu estilo de uso da linguagem é amplamente conhecido. Mas, para nosso propósito, gostaríamos de colocar certa lente de aumento em uma característica presente: a relação com o sonoro. Quando Lacan priorizou a terminologia “alucinação verbal”, em detrimento do comumente chamado “alucinação auditiva”, quis resguardar a dimensão significante em detrimento da fenomênica. Da mesma forma, o chamado objeto voz não perde a sua presença verbosa como veremos mais adiante, e independe que uma voz corporificada esteja em ação. Contudo, colocaremos em relação certas vozes de Schreber e a poética, pela via da sonoridade.

Freud (1910/2003FREUD, S. Observaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia (‘Dementia Paranoides’) autobiográficamente descrito (‘Caso Schreber’) (1910). Madrid: Editorial Biblioteca Nueva , 2003, p. 1487-1528. (Obras completas, 2)) sublinha que os pássaros miraculados falavam frases sem sentido, porém, eram sensíveis à homofonia. De nenhum modo é aleatório que isto tenha chamado atenção de Freud, posto que já houvesse registrado a expressividade exercida pelo trabalho do sonho, através de consonância.

As vozes que Schreber chamava de pássaros miraculados, na medida em que ele destacava sua sonoridade, não nos soariam como uma formação poética? Na pluma de Schreber (1903CHREBER, D. Memórias de um doente dos nervos (1903). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.), se acessa o estilo linguístico destas vozes e as circunstâncias nas quais podemos perceber as aliterações como, por exemplo, “Santiago” e “Cartago”:

Como foi dito, os pássaros não entendem o sentido das palavras que falam; mas, ao que parece, eles têm uma sensibilidade natural para a assonância. Por isso, se, enquanto estão ocupados em tagarelar as frases decoradas, percebem palavras que têm um som igual ou próximo daquele que no momento estão falando (tagarelando), seja nas vibrações provenientes dos meus próprios nervos (meus pensamentos), seja pelo que é dito no meu ambiente, isso os deixa em um estado de surpresa, em consequência do qual, eles, por assim dizer, sucumbem à assonância, isto é, por causa da surpresa eles esquecem o resto das frases que ainda tinham para tagarelar (...). Como se disse, a assonância não precisa ser total; uma vez que não captam o sentido das palavras, basta que percebam sons semelhantes; para dar alguns exemplos, para eles pouco importa que se diga:

“Santiago” ou “Cartago”

“Chinesentum” ou “Jesum Christum”

“Abendrot” ou “Atemnot”

“Ariman” ou “Ackerman”. (SCHREBER, 1995CHREBER, D. Memórias de um doente dos nervos (1903). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995., p. 170).

A partir do relato de Schreber, podemos supor que as vozes dos pássaros miraculados eram uma das formas de revestimento do seu Outro: um Outro que lhe fazia troça. Por outro lado, ele também se divertia, pois “confundir os pássaros”, emitindo palavras de sons semelhantes, lhe proporcionava “uma distração certamente bastante singular”. Os pássaros “sucumbiam à assonância”, então, no momento do falatório, preparava-lhes a “armadilha da assonância” (SCHREBER, 1995CHREBER, D. Memórias de um doente dos nervos (1903). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995., p. 170-171). Assim, aqui temos algo diferente do que se passa com Schreber em sua “coação a pensar”, marca de um Outro muito mais aterrador. Com os pássaros miraculados, nos encontramos com um jogo que ludibria o Outro - o confundir os pássaros; em enunciações que realizam a alternância de um jogral e cuja sonoridade se torna poética.

Jean Allouch (1993ALLOUCH, J. Letra por letra: transcribir, traducir, transliterar. Buenos Aires: Editorial Edelp, 1993.) comenta que Schreber realiza uma transliteração, fomentada por seus conhecimentos de idiomas, provocando, como resposta, uma recuperação de humanidade nos pássaros. Os pássaros reconheceriam o elemento discreto do som (o fonema) emitido por eles mesmos; na letra.

Para prosseguir, nos reportaremos à publicação de 1931, Escritos “Inspirados”: Esquizografia, assinada por Lévy-Valensi, Migault e Lacan (1931/2011). Marcelle C., 34 anos, realizava “escritos inspirados” que eram recolhidos e analisados por Lacan e seus colegas. Na escrita de Marcelle, podemos vislumbrar a posterior noção lacaniana do ritornelo em sua articulação com a sonoridade e a função poética. Embora os autores tenham se limitado a identificar “distúrbios da linguagem” na escrita de Marcelle, não deixaram de ressaltar - e aqui podemos suspeitar da influência de Lacan - a qualidade poética de seus escritos. A estereotipia da fala - que, posteriormente, Lacan qualificou como ritornelo - longe de ser aleatória, mostrou ter uma qualidade poética. Percebemos, na escrita de Marcelle, que parte de seus “distúrbios” adquiriam funcionamento e ritmo provocados pelo sonoro. Por exemplo, a paciente colocava a partícula d’essay [de tenta] de modo aparentemente acidental, perturbando a semântica comum do enunciado. Sem embargo, os autores perceberam que essa partícula cumpria uma regra gramatical própria: d’essay ligava-se a toda formação que terminasse na partícula on, como ballon d’essay [tubo de ensaio]. Na musicalidade de Marcelle, sua escrita ganha efeito poético nesse enlace entre on e d’essay. Os autores destacam também o papel "essencial do ritmo” (p. 391), a musicalidade como aquilo que sustenta o estilo de Marcelle. Em suas palavras:

Nesses estados de exaltação, as formulações conceituais, quer as do delírio, quer as dos textos escritos, não têm mais importância que as palavras intercambiáveis de uma canção com estrofes. Embora elas motivem a melodia, é esta que a sustenta, e legitima na ocasião seu nonsense. (LÉVY-VALENSI et al., 1931/2011LÉVY-VALENSI, J.; MIGAULT, P.; LACAN, J. “Escritos ‘inspirados’: Esquizografia (1931). In : LACAN, J. Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade; seguido de Primeiros escritos sobre a paranoia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011., p. 392).

Que a musicalidade motive um nonsense nos faz repensar qual é o sense a ser levado em consideração. Se levarmos Marcelle “a sério”, o sentido a ser levado em conta é o sentido do som, daí a importância de escutar o ritornelo que, em seu aparente esvaziamento de sentido, não é puro sem sentido. A insistência sonora do ritornelo (do refrão) procura instaurar algo. É uma repetição cuja poética, a musicalidade, procura instaurar alguma diferença. Na experiência clínica com as psicoses, observamos que, quando esta diferença é alcançada, o refrão desaparece ou surge um novo. Neste contexto, o trabalho com a poética nas psicoses, a partir da sonoridade, nos orienta em relação ao trabalho clínico com a repetição. Em outras palavras, se há sense na repetição, a orientação pelo som estará mais do lado de uma poética do que da coerência.

Ainda a propósito de sense, no rastro do que pode colaborar com um trabalho poético na clínica psicanalítica das psicoses, não descartamos a experiência de Joyce. Lembramos que se trata de uma experiência que muito tem a contribuir à psicanálise como um todo, desde que o trabalho joyceano desassossegou Lacan. Além disso, longe de diagnosticar Joyce como psicótico, mas, sim, ressaltando sua genialidade, Lacan se deixou sensibilizar por esse trabalho artístico cuja evasão da inteligibilidade, testemunha um quase desprezo pelo sentido.

Em Lacan lecteur de Joyce [Lacan leitor de Joyce], Soler observa:

Concebe-se que a questão do sentido interessa aos psicanalistas em geral, dado que o equívoco é sua arma contra o sintoma (symptôme), se ao menos eles seguem a prática da decifração freudiana, a desmontagem do que Freud chamou condensação e deslocamento, assim como a teorização que Lacan fez em termos de linguagem. Lacan disse diversas vezes, e retomou no Seminário sobre Joyce, que o equívoco é tudo o que o analista dispõe para ter alguma chance de mover a fixidez do sintoma (symptôme). A tese havia sido já afirmada no O Aturdito: ‘a intepretação produz seu efeito via equívoco’. Ela é retomada no Seminário R.S.I. e confirmada no Seminário O Sinthoma. O paradoxo é que Joyce faz do equívoco mesmo, sintoma (symptôme), dito de outro modo, gozo (jouissance). Ali onde o analista utiliza o equívoco para desfazer uma fixidez sintomática do gozo, para fazê-lo deslizar para outros signos ou outros j'oui-sens [escuto-sentidos], Joyce opera ao inverso: ele fixa o gozo na pulverização do equívoco, digamos à la lalangue (ao modo lalangue) como ‘integral dos equívocos que sua história aí deixou persistir’. A coisa é mesmo sobremultiplicada nele, pois que em Finnegans Wake se escreve em várias línguas e não em uma só, e que é dessa mixagem de equívocos plurilinguísticos que Joyce se regala. (SOLER, 2015SOLER, C. Lacan lecteur de Joyce. Paris: PUF, 2015., p. 133-134, tradução nossa).

O capítulo onde encontramos o trecho acima é nomeado Pulvérulence des équivoques, cuja tradução literal é “pulverização dos equívocos”. O termo Pulvérulence é já equívoco, pois podemos reduzir algo a pó com a finalidade de destruir, mas também podemos transformar algo em pó para melhor espalhar ou disseminar. É como se Joyce estivesse na radicalidade da experiência poética, na origem da poesia como enigma. Seu fazer literário, nesse gozo da equivocidade, nos remete às inúmeras possibilidades de leitura e escuta, fazendo com que um texto não seja O Texto, e que um sentido não seja O Sentido.

No exercício clínico psicanalítico - qualquer que seja a estrutura - seria imprudente mimetizar Joyce, forçando uma equivocidade. Trata-se antes de entender que o literata irlandês trabalhou, como refere Soler, à la lalangue e, a partir deste testemunho, deixar-se inspirar, revigorando a escuta. Este “pulverizar equívocos” é sintoma e sinthome de Joyce, singular e não replicável. Servir-se deste testemunho para teorizar acerca do quarto nó foi a genialidade de Lacan, como operatória que serve também às psicoses. Nossa intenção é fazer notar que, nesta pulverização, Joyce realiza um poetar, como se deixar-se tocar por lalangue fosse poetar.

A experiência de Louis Wolfson (1970WOLFSON, L. Le schizo et les langues. Paris: Gallimard, 1970.) nos conduz em outra direção. O livro Le esquize et les langues, escrito por ele em francês, testemunha um trabalho de fracionamento e decomposição da linguagem com outras línguas, mas com objetivo distinto daquele de Joyce. O estadunidense busca, em diferentes línguas, não a evasão ou forclusão do sentido, mas o aniquilamento de sua língua materna - o inglês. Francês, alemão, russo e hebraico são meras ferramentas cujo aprendizado não visa habilitar Wolfson nestes idiomas, isto é lateral. O objetivo frontal do procedimento7 7 Assim se referiu Gilles Deleuze (1997) ao empreendimento de Wolfson. é liquidar a língua materna [mother tongue, mother language]. O procedimento de Wolfson, contudo, assegura a contiguidade fonemática, pois os fonemas buscados em outras línguas deveriam assemelhar-se sonoramente; o importante é que a decomposição ocorresse na escrita. Poderíamos dizer assim que a voz da língua materna é morta nas letras da língua dos outros.

Ainda que rebuscado, o proceder de Wolfson não tende ao trabalho poético, uma vez que não visa comover o sentido, nem sequer com a natural comoção que poderia ser realizada via traduções. Mas Wolfson não se serve dos idiomas para traduzir, senão que rearranja o real da língua em uma nova escrita que não seja mother. Sua expressão em francês mostra que, para ele, a comunicação não é um impossível. Atua como se fosse uma linguagem de programação na informática, em uma correspondência ponto a ponto, com única ação. Desde essa perspectiva, é como se, para Wolfson, houvesse relação sexual, pois não há resto. Assim nos mostra, por exemplo, ao referir uma fantasia que lhe provoca ereções. Ao contá-la, em vez de mencionar seu ânus, prefere a fórmula: “o orifício posterior do canal alimentar”.

De todos os modos, em uma fictícia direção de tratamento, quem sabe apostaríamos, mais uma vez, na sonoridade. Wolfson mantém, ainda que somente na forma oral do idioma inglês, a contiguidade sonora. Sabemos que lalangue (como os poetas e as crianças), em um trabalho artesanal da contiguidade sonora para a contiguidade metonímica, também produz comoção ou evasão de sentido. São procederes do analista como o da criança que interroga a mãe acerca da placa “Igreja Apostólica”: “Mãe, este é um lugar de fazer apostas?”. Não duvidaríamos, pois talvez possamos dizer que a entrega religiosa é uma das modalidades de apostas.

Considerações finais

Conforme destacamos no início desse trabalho, a sonoridade capturou o interesse de Freud para os chistes, como quebras de palavras, e foi também a sonoridade que capturou o interesse de Lacan pela obra de Joyce, isto é, a quebra da fala e da língua através da escrita, que faz com que fonemas de diversas línguas sejam utilizados na produção de uma obra literária.

No procedimento aparentemente tão maquinal de Wolfson, encontramos o paradoxo de uma luta contra a voz na manutenção da sonoridade do fonema. Em seu relato, não se mostra capaz de brincar com a língua, mas apenas de administrá-la com a escrita em outras línguas. Seu testemunho, ainda que não dê margens à leitura de um sujeito do inconsciente, ao menos aponta a direção problemática do pulsional. Neste exemplo, restam apenas conjecturas sobre um possível trabalho da poética a partir da contiguidade sonora e metonímica.

Por outro lado, em relação a Schreber, foi a sonoridade que produziu certa barra contra a voracidade do gozo do Outro, quando consideramos as vozes dos pássaros miraculados na produção de um efeito sonoro de jogral poético. E, finalmente, também a sonoridade transformou a escrita de Marcelle em uma esquizografia poética inspirada e inspiradora, para Lacan, da noção de ritornelo nas psicoses.

Entendemos que o “não retroceder” do psicanalista é também se deixar tocar por lalangue, deixando-se poetar como a criança. A criança não é poeta, porque assim o deseja, mas porque flui na língua mais livremente. Um fazer tanto mais delicado, quanto necessário nas psicoses se o analista, efetivamente, se pauta pela singularidade, pelo caso a caso. Abdicar da poesia como possibilidade de intervenção clínica seria, em última análise, abandonar a própria hipótese do inconsciente nessas estruturas. E como sustentar um discurso da psicanálise se não houver inconsciente?

REFERÊNCIAS

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  • SOLER, C. Lacan lecteur de Joyce Paris: PUF, 2015.
  • WOLFSON, L. Le schizo et les langues Paris: Gallimard, 1970.
  • 1
    De acordo com Jakobson (1960/2001JAKOBSON, R. Linguística e poética (1960). In: JAKOBSON, R. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 2001.), é, dentre as funções da linguagem, aquela que se organiza ao redor da própria mensagem. Apesar da presença de um código instituído, a função poética, com sua ênfase na mensagem, promove a abertura e recriação do próprio código linguístico.
  • 2
    Lacan forja o termo linguisteria “para deixar reservado a Jakobson o seu domínio” (LACAN, 1972-1973LACAN, J. El reverso del psicoanálisis (1972-1973). Buenos Aires: Paidós , 2006. (El Seminario, 17)/2006, p. 24). Em outras palavras, para desembaraçar a psicanálise do campo da linguística.
  • 3
    Durante a realização do Seminário 19 - ...ou pior - ocorrera um equívoco entre Lacan e sua audiência: la langue? é o que ressoa da plateia como pergunta, aparentemente, fora de contexto. A partir disso, Lacan assume essa produção inconsciente com a homofonia lalangue.
  • 4
    Estes neologismos de Lacan são intraduzíveis, mas há uma mescla interessante entre poètesse [poetiza] e poule [querida, amiga, amante], em que pode recorrer um sentido pejorativo.
  • 5
    Possíveis traduções para o termo parlêtre: “falesser” ou “falasser”. No entanto, a sonoridade desse neologismo lacaniano evoca também a letra. Usaremos essa terminologia quando for imprescindível evitar a confusão com o “efeito sujeito”, aquele que ocorre na afânise, quer dizer, entre dois significantes.
  • 6
    O efeito sujeito (ᴲ) é o que ocorre entre um e outro significante. Se o falante se surpreende com o que disse; ou, se no lugar de uma alteridade, o psicanalista, escuta um não-dito, e devolve uma interrogação; uma hesitação; um deslizamento para o falante etc. Se o falante se reconhece nesse não-dito pode-se falar com propriedade de efeito sujeito. É este reconhecimento que a psicose interroga em seu testemunho.
  • 7
    Assim se referiu Gilles Deleuze (1997)DELEUZE, G. Louis Wolfson, ou o procedimento (1970). In: DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo, Editora 34, 1997. ao empreendimento de Wolfson.

NOTAS

  • (1)
    Cf. Freud 1905/2003LACAN, J. El reverso del psicoanálisis (1969-1970). Buenos Aires: Paidós, 1992. (El Seminario, 17).
  • (2)
    Na definição de signo, SaussureSAUSSURE, F. de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix , 1995. também utiliza este termo: “O que um signo une não é uma coisa e um nome (palavra), mas um conceito e uma imagem acústica” (p. 80).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2018
  • Aceito
    20 Set 2018
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