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FREUD E A QUESTÃO DO FEMININO: PRESSUPOSTOS MÍTICOS DA PRÁTICA CLÍNICA

Freud and the question of the feminine: mythical assumptions of clinical practice

RESUMO:

Em Totem e tabu, Freud faz menção a um pai mítico - Urvater - ideia simbólica de um homem originário que pode ser inferido como um pressuposto mítico desde o qual será proposto um modelo de homem. Frente a isso, questionamo-nos: quais seriam os pressupostos “mitológicos” da psicanálise desde os quais se tornou admissível pensar a mulher freudiana? Objetivamos identificar, na obra de Freud, se a mitologia serviu como recurso de proposição do modelo feminino. Assim, problematizamos o recurso freudiano inicial de pensar a sexualidade feminina como modelo oposto incontornável da sexualidade masculina.

Palavras-chave:
Freud; mitologia; mulher; sexualidade feminina

Abstract:

In Totem and Taboo, Freud mentions a mythical father - Urvater - a symbolic idea of an original man that can be inferred as a mythical presupposition from which a model of man will be proposed. In the face of this, we ask ourselves: what are the “mythological” presuppositions of psychoanalysis from which the Freudian woman has become admissible? We aim to identify, in Freud’s work, whether mythology served as a resource for proposing the female model. Thus, we discuss the initial Freudian recourse to think of female sexuality as the inescapable opposite model of male sexuality.

Keywords:
Freud; mythology; woman; feminine sexuality

INTRODUÇÃO

O que significa admitir pressupostos no interior de uma matriz de pensamento? Trata-se de um gesto de investigação que tenta precisar os elementos que animam e compõem o esquadro imaginário e o metodológico que fundamentam concepções das mais sutis, além de trazer a lume um conjunto de ideias determinantes de uma época e que, por vezes, escapa à própria percepção de um dado autor. Do ponto de vista da proposição de uma teoria ou pensamento, os pressupostos são os encaminhamentos que tornam melhor delineados os valores que vão se associar aos fatos que irão compor seu conteúdo axiomático, ou seja, são pontos de partida da teoria, não pontos de chegada. Quando definimos pressupostos míticos, estamos fazendo menção a um segmento específico da investigação, o que significa que partimos da conjectura de que Sigmund Freud teria se servido da mitologia ao ponto de, inclusive, propor o mito totêmico como recurso de avanço teórico.

Nesse sentido, investigar estes pressupostos implica em considerar que, no conjunto da obra freudiana, haveria elementos míticos para melhor delimitar sua posição com relação ao indecidível de um modelo feminino. Em partes, já temos um primeiro encaminhamento para justificar o caráter indecidível e aberto desse modelo: no avanço da proposição mítica (Édipo), Freud pensa o feminino (passivo) por oposição ao masculino (ativo). Em face desse encaminhamento, cabe a esta pesquisa precisar o que exemplifica mitológica, clínica e metodologicamente esta posição.

Por esse viés, depreende-se que o gesto freudiano de devolver a voz às mulheres de sua época marca seu encontro com figuras femininas que, possivelmente, desconstruíram seu ideal feminino, forjado em uma Áustria do século XIX marcadamente conservadora que se alicerçava por sobre uma concepção idealizada de família como núcleo da sociedade. Portanto, às mulheres vienenses cabiam características como a abnegação, conformismo e resignação feliz, balizados inexoravelmente pelo desejo de um casamento e uma farta constituição familiar (MOLINA, 2011MOLINA, J. A. O que Freud dizia sobre as mulheres. São Paulo, Cultura Acadêmica, 2011.), uma vez que o espaço apropriado à mulher se restringia aos cuidados com a família e a vida doméstica.

A prática clínica levou Freud a se deparar com sofrimentos de mulheres que, ainda que não fossem postos em palavras, representavam no corpo desejos e anseios que iam além de uma vida doméstica e contrariava as imposições de uma sociedade patriarcal, linguagem nada discreta que o fundador da psicanálise aprendeu a escutar. É nesse contexto, no qual o discurso histérico questiona o modelo de mulher de uma época, que surge a clínica do desejo. Desse modo, depreendem-se casos - como o de Anna O., atendida por Breuer, Emmy von N., Elisabeth von R. e Dora - que aguçaram o interesse investigativo do médico vienense tão fortemente que não só originou o nascimento da psicanálise como circunscreveu o feminino enquanto continente intransponível que cerceou a maioria de suas teorizações, permanecendo como enigma do início ao fim de sua obra.

Isso porque, se a representação feminina de Freud era oriunda da cultura de sua época como aponta Assoun (1993ASSOUN, P.-L. Freud e a mulher. Rio Janeiro: Jorge Zahar, 1993.), ao se deparar com as desconstruções histéricas de ideal de mulher, o mestre de Viena esbarra na falta de elementos que lhe permitiriam descrever, no nível de uma conceituação científica, as idiossincrasias e singularidades desse universo feminino.

Sabemos que o mito para Freud sempre funcionou como premissa, tanto que ele desenvolveu Totem e tabu (1913FREUD, S. O tema dos três escrínios (1913). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12)[1912-1913]/1996FREUD, S. Totem e tabu (1913[1912-1913]). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 13)) nessa perspectiva mitológica para explicar a origem da relação do homem com a lei e da liberdade individual e coletiva que cerceava determinada sociedade. Tal construção remete a um tempo mítico que, por ser pré-histórico, só pode ser traduzido por meio de metáforas e imagens que, de alguma forma, evocam aquilo que constitui a ficção do sujeito. Assim, ele lançou mão de recursos míticos para teorizar sobre a intersubjetividade, as relações e o modo pelo qual o sujeito vivencia seu desejo, construindo o arcabouço teórico psicanalítico.

Ainda é possível conjecturar que tais mitos serviram como pressupostos míticos desde os quais se torna possível pensar um modelo simbólico de homem que pode ser inferido da posição de cada homem frente à castração. Freud nomeia esse impasse do desejo ao forjar um mito de um homem não castrado como é o Urvater: pai primevo.

Mediante tais suposições, questionamentos oriundos dos impasses da teorização de Freud sobre a feminilidade movimentam nosso interesse investigativo sobre possíveis modelos de mulher que compõem a obra freudiana. Frente a isso, indagamo-nos: quais seriam os pressupostos “mitológicos” da psicanálise desde os quais se tornou admissível pensar a mulher freudiana?

Acreditamos que Freud possua pressupostos “mitológicos” sobre a mulher, de modo que o mito o tenha socorrido mediante a falta de fundamento para responder a pergunta que ele se fez sobre o que quer uma mulher. Assim, nossa hipótese é de que a mulher freudiana se sustentaria em pressupostos “mitológicos”, ao invés de se assentar sobre uma base científica conceitual ou exclusivamente clínica. A fim de colocar tal hipótese à prova, elencamos como objetivo identificar, na obra de Freud, quais seriam os pressupostos “mitológicos” femininos que se formulariam frente ao indecidível das origens, da teoria ou da clínica.

Para tanto, lançamos mão da investigação teórica com enfoque nos textos de Freud que tratam sobre o feminino, sem dispensar a interpretação de alguns comentadores. Tal investigação se faz necessária, pois a teoria freudiana desponta-se como referência fundamental na compreensão do feminino. Portanto, a leitura de seus pressupostos pode nos fornecer elementos para uma leitura-escuta de seus textos, a partir de um lugar outro, possibilitando certos avanços teóricos sobre essa temática que é tão cara à psicanálise e que se revela extremamente atual no contemporâneo.

Um método epistêmico freudiano: entre mitos e casos clínicos ou seu inverso

Ao percorrer a obra de Freud, rapidamente se verifica que, em inúmeros momentos, ele lança mão dos mitos a fim de esclarecer certas aporias e ideias referentes ao terreno indizível do universo psíquico para pensar os fundamentos de sua clínica. Portanto, não é incomum que, em diversos momentos da teoria psicanalítica, nos deparemos com referências e metáforas mitológicas que possibilitam ilustrar impasses teóricos, assim como preencher lacunas estruturais que parecem ultrapassar a formalização conceitual (WINOGRAD; MENDES, 2012WINOGRAD, M.; MENDES, L. da C. Mitos e origens na psicanálise freudiana. Cadernos de psicanálise, v. 34, p. 225-243, 2012.). Isto nos permite pensar que a psicanálise retomou o mito, dotando-o de consequência, ao torná-lo um método que invariavelmente remete à instância formadora do discurso, a outra cena - inconsciente.

Sabemos que o estudo dos mitos é bem anterior ao surgimento da psicanálise e se mostra extremamente amplo para que possa ser resumido neste escrito. Assim, dessa abrangência mitológica interessa-nos precisar um recorte que estabeleça sua relação ao discurso psicanalítico. Portanto, partindo da etimologia do termo grego - mythos- que tinha relação com as narrativas das aventuras de deuses e heróis (PASTORE, 2012PASTORE, J. A. D. Psicanálise e linguagem mítica. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 64, p. 20-23, 2012.) e da percepção de que, no hodierno, a palavra mito se desdobra num cortejo semântico de inúmeros significados, com frequência, somos convocados a refletir sobre a diferença sutil entre mito e verdade e entre mythos e logos (GORRESIO, 2005GORRESIO, Z. M. P. Os pressupostos míticos de C. G. Jung na leitura do destino: Moîra. São Paulo: Annablume, 2005.).

Se compreendermos que, na antiguidade clássica, o mito se opunha ao lógos, ou seja, ao discurso da razão, não se torna difícil entender as razões que levaram Freud, por vezes, a se apoiar no discurso mitológico, apesar de ser abertamente um férvido defensor do lógos, tal como nos é possível ler em seu elogio feito ao lógos por oposição à figura do acaso/necessidade: Ananke (FREUD, 1927/1996FREUD, S. Futuro de uma ilusão (1927). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21)). Mas não sem razão, para o mestre de Viena, a mitologia (mythos e lógos) dispunha de um recurso que poderia funcionar como fundamento para se pensar os impasses do sujeito que ele se dispunha a investigar, já que a razão mítica poderia fazer frente ao discurso da razão vigente em sua época, a saber, a medicina localizacionista, mecanicista e fortemente marcada pelo viés determinista e reducionista do sofrimento humano.

Nessa linha de raciocínio, enquanto o discurso da razão tenta explicar os fatos, os mitos se referem a uma narrativa sustentada na sabedoria extraída dos povos. Tal narrativa se interpõe entre natureza e cultura, de modo a apresentar histórias sobre as origens (VERNANT, 1987VERNANT, J.-P. Origem do pensamento grego. Lisboa: Teorema, 1987.). Assim, o mito poderia ser pensado como uma metáfora da cultura. Com efeito, se o lógos se refere a um saber empírico/técnico/racional, o mythos, por sua vez, apontaria para um saber simbólico/mitológico/mágico (MORIN, 1986MORIN, E. O método III: o conhecimento do conhecimento. Lisboa: Publicações Europa-América, LDA, 1986.). Tendo em vista que o objeto de investigação da psicanálise é o inconsciente, torna-se impossível que a práxis analítica se baseie em um discurso da ciência puramente objetiva, motivo pelo qual Gorresio (2005GORRESIO, Z. M. P. Os pressupostos míticos de C. G. Jung na leitura do destino: Moîra. São Paulo: Annablume, 2005.) afirma que a psicanálise aborda o fato psíquico por meio de uma hermenêutica.

Por esse viés, entendemos que o discurso psicanalítico e sua prática se encontram nesse entremeio - lógos e mythos - uma vez que, independente de onde as narrativas míticas tenham sido extraídas, o fundador da psicanálise conferiu a elas certa universalidade ao utilizá-las para ilustrar, sustentar e expandir seus achados clínicos (MANO; CORSO; WEINMANN, 2018MANO, G.; CORSO, M.; WEINMANN, A de O. Psicanálise e cultura pop: os mitos no contemporâneo. Psicologia USP, Ribeirão Preto, v. 29, p. 78-86, 2018.). Assim, Freud assinala que os mitos seriam “vestígios distorcidos de fantasias plenas de desejos de nações inteiras, os sonhos seculares da humanidade jovem” (FREUD, 1908[1907]/1996FREUD, S. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1908[1907]). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19), p. 142, grifos do autor). Isso porque o mito consistiria em uma junção de uma e-vidência, ou seja, um fato vindo de fora (conjuntura) e uma in-vidência, algo vindo de dentro (estrutura). Sendo, pois, justamente esse ponto de encontro o responsável por produzir uma ressonância do singular no universal. E não seria essa também uma característica essencial da práxis psicanalítica?

É nesse sentido de pensar um dentro fora da psique que Freud, em 1897, em uma carta endereçada a Fliess, menciona os “mitos endopsíquicos” ou “psicomitologia” como sua teorização mais recente. Em suas palavras, trata-se de uma

[...] obscura percepção interior de nosso próprio mecanismo psíquico [que] estimula ilusões de pensamento, que são naturalmente projetadas para o exterior e, de modo característico, para o futuro e o além-mundo. Imortalidade, castigo, vida após a morte, todos constituem reflexos de nossa própria psique mais profunda. (Freud, 1913[1912-1913]/1996FREUD, S. Totem e tabu (1913[1912-1913]). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 13), p. 15).

Essa qualificação do mito como endopsíquico marca a posição epistemológica de Freud como propositor de uma visão de ciência fortemente marcada pelo regime das ciências naturais. Nessa perspectiva, o mito seria resultado de formulações psíquicas como consequência da exigência de trabalho imposto pelo corpo à psique. Tal modo de conceber os mitos carrega a marca da originalidade que os mesmos assumem na obra freudiana, uma vez que o mito endopsíquico faria menção ao modo como o sujeito admite perceber o mundo. Nessa esteira de pensamento, os mitos seriam histórias determinadas por nossa condição biológica/corporal em sua complexa relação com o psíquico. Nesses termos, não seria difícil admitir o uso metodológico que Freud virá a fazer dos mitos, tampouco a hipótese de seu uso como pressuposto frente às suas formulações teóricas.

Voltando ao fio de enunciações que os mitos proferem, o antropólogo Lévi-Strauss, leitor de Freud, estudou os mitos a partir de suas variantes para identificar uma armação interna que pudesse ser pensada enquanto uma estrutura. Assim, o mito parece evidenciar que a verdade que eles carreiam está no fato de serem um reflexo estrutural da sociedade e da relação entre seus membros, visto que combinam homens, deuses e natureza em uma cosmogonia, que se ocupa em explicar as origens, no intuito de compreender o estado atual de uma sociedade, seus membros, seus rituais, normas e costumes (LÉVI-STRAUSS, 1978LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, tempo brasileiro, 1978.).

Nesse conseguinte, o mito surge como índice da razão de ser do homem e de seu sentido de existência, não se tratando, pois, de uma ficção inventada para explicar o mundo, mas de uma realidade capaz de organizar o sem sentido da existência humana. Portanto, não incorreríamos em erro ao dizer que tais narrativas apresentam verdades históricas a partir de distorções e equívocos (CHAVES, 2015CHAVES, E. O paradigma estético de Freud [prefácio]. In: FREUD, S. Arte, literatura e os artistas. Belo Horizonte, Autêntica, 2015.), ou seja, por meio da ficção.

É nesse sentido que percebemos com Freud a impossibilidade de estabelecer um método de leitura mitológico sem levar em consideração a diferença entre intenção e expressão, pois é justamente no ponto de falha entre a intenção e a expressão que vemos emergir um espaço fértil à psicanálise. Nessa perspectiva, se pensarmos o mito, em consonância com Barthes (2006BARTHES, R. Mitologias. São Paulo: Difel, 2006.), como um sistema de comunicação, uma mensagem, ainda que distorcida e equivocada, poderemos vislumbrar como Freud se apropriou das narrativas míticas e como tal apropriação se desdobrou ao longo de suas elaborações teóricas.

Dito isso, pode-se destacar, no mínimo, três eixos mitológicos basilares que perpassam a obra freudiana. O primeiro encontra-se no texto A interpretação dos sonhos (1900/1996) e figura o mito como um modo de compreensão dos processos inconscientes, visto que faz uma analogia entre o sonho e o mito. Enquanto o sonho projeta os desejos inconscientes de um sonhador em particular, o mito expressaria o sonho da humanidade. O segundo está em Totem e tabu (1913[1912-1913]/1996FREUD, S. Totem e tabu (1913[1912-1913]). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 13)) e diz respeito à hipótese do mito da “horda primitiva” construído por Freud para pontuar a existência de uma passagem histórica da natureza para a cultura, ou seja, o momento de encontro do homem com a lei e as ressonâncias desse encontro. E o Édipo, terceiro eixo, é o mito que Freud utiliza para tratar da constituição do sujeito a partir do encontro com essa lei e suas consequências para o sujeito do desejo.

Partindo da ideia de que Freud produziu modelos conceituais com suas construções teóricas, percebe-se que o mito da horda primeva faz menção a um homem originário - Urvater: pai primevo - que pode ser inferido da posição de cada homem frente à castração. Freud nomeia esse impasse do desejo ao forjar um mito de um homem não castrado, de modo que o indecidível das origens se organize como um pressuposto mítico desde o qual será proposto um modelo de homem, tal como ocorreu com a teorização do Édipo. Assim, é possível a Freud traçar os caminhos da sexualidade masculina e seus impasses. Por esses motivos, Urvater e o Édipo podem ser definidos como mitos de origem do homem ou como “[...] um retrato bem conservado de um primitivo estágio de [seu] desenvolvimento” (FREUD, 1913[1912-13]/1996FREUD, S. Totem e tabu (1913[1912-1913]). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 13), p. 21).

Ao que tudo indica, essa lógica deveria se estender também à compreensão freudiana do universo feminino que, desde sempre, constituiu-se enquanto enigmático nas muitas esferas do saber. Fato é que, dos percalços de Antígona, contados por Sófocles na tragédia grega, aos de Madame Bovary, narrados por Gustav Flaubert, ou seus próprios casos clínicos, evidencia-se o encontro de Freud com os impasses do sofrimento da mulher às voltas com sua condição de não toda dada a uma representação pronta e acabada. Essa impossibilidade de totalização será a marca do pensamento e da clínica psicanalítica, sendo, portanto, nesse viés que veremos se aproximarem as figuras do feminino e o recurso narrativo do mito.

Mulher freudiana: da inferência de um pressuposto masculino ao seu oposto

A questão referente à representação do feminino antecede em muito o surgimento da psicanálise e revela-se demasiado ampla para poder ser sintetizada no escopo deste texto. De sua abrangência, interessa-nos tecer um recorte que situe suas abordagens em relação ao discurso psicanalítico, mais especificamente ao discurso freudiano. Nesse sentido, poderíamos pontuar didaticamente três momentos teóricos de Freud sobre o feminino.

O primeiro está localizado em um período conhecido como pré-psicanalítico, no qual o médico vienense se vê às voltas com a histeria e como essa nomenclatura era utilizada pela medicina da ocasião para silenciar a sexualidade, na maioria das vezes, das mulheres. Já o segundo instante compreende o início da psicanálise até meados de 1920 - que comumente chamamos de primeira tópica. Nessa ocasião, Freud acreditava que os processos psíquicos de homens e mulheres podiam ser pensados como pares opositivos. Por fim, o terceiro momento seria demarcado pela teorização da pulsão de morte até seus últimos textos, correspondendo à segunda tópica, período em que o mestre de Viena identifica uma fase anterior do Édipo que, na menina, seria mais importante que o próprio complexo edípico. Assim, ele percebe a impossibilidade de pensar a sexualidade feminina a partir de um modelo masculino.

Para o corpo deste texto, fiaremo-nos na leitura freudiana da mulher na primeira e segunda tópicas, a fim de localizar o modo por meio do qual o fundador da psicanálise desenvolve seu modelo clínico de mulher a partir do modelo masculino, como ele esbarra na impossibilidade de sustentar tal teorização e de que maneira ele tenta solucionar esse impasse no interior de seu empreendimento teórico. Nesse ínterim, partimos dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, texto em que Freud sustenta uma teoria sobre a sexualidade descentrada das propostas teóricas anteriores, representadas pela opinião predominante dos psiquiatras e cientistas de sua época.

Se, em um primeiro momento, ele aborda as aberrações sexuais, a sexualidade infantil e as metamorfoses da puberdade, de maneira geral, posteriormente, ele começa a buscar as diferenças que expliquem a distinção sexual dos homens e das mulheres, mas para além de uma concepção estritamente biológica da sexualidade, pensando em uma compreensão psíquica da mesma. Nesse momento, Freud termina por afirmar que somente a vida sexual dos homens “[...] se tornou acessível à pesquisa. A das mulheres… ainda se encontra mergulhada em impenetrável obscuridade” (FREUD, 1905/1996FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7), p. 273).

Essas observações se repetem na medida em que avança a pesquisa freudiana sobre a sexualidade feminina. Em seu estudo de 1908FREUD, S. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1908[1907]). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19), Sobre as teorias sexuais das crianças, encontramos a seguinte constatação: “Em consequência de circunstâncias desfavoráveis de natureza interna e externa, as observações que se seguem aplicam-se principalmente ao desenvolvimento sexual de apenas um sexo - isto é, o masculino” (FREUD, 1908/1996FREUD, S. Sobre as teorias sexuais das crianças (1908). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 9), p. 192).

É nesse contexto que o criador da psicanálise, onze anos depois, no texto de 1919, aborda detalhadamente as diferenças psíquicas nas fantasias de espancamento dos meninos e, principalmente, das meninas, evidenciando inclusive o que ele nomeou de uma posição feminina no homem, representada por uma relação erótica passiva no tocante ao pai (QUINODOZ, 2007QUINODOZ, J.-M. Ler Freud: guia de leitura da obra de S. Freud. Porto Alegre: Artmed, 2007.). Interessa-nos, a partir dessas diferenciações, identificar quais seriam os parâmetros utilizados por Freud para representar a mulher em sua teoria nesse dado momento. Dito de outra forma, ambicionamos rastrear um possível modelo freudiano de mulher em suas incursões teóricas e clínicas, o qual sustentamos estar atrelado aos seus pressupostos míticos.

Após se justificar com relação ao que seria essa fantasia de espancamento e qual sua importância para a constituição psíquica, Freud (1919/1996FREUD, S. Uma criança é espancada - uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais (1919). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17)) afirma que arriscará descrever tais fantasias somente nas mulheres, visto que a maioria dos casos aos quais tinha acesso se tratava de meninas. Assim, na garotinha, ele propõe três tempos para a fantasia de espancamento: 1) “meu pai está batendo na criança que eu odeio”; 2) “estou sendo espancada pelo meu pai”; 3) “os meninos desconhecidos estão sendo espancados pelo meu pai”. Sendo o primeiro e o terceiro passíveis de serem relembrados conscientemente em análise, já o intermediário seria resultado de uma construção em análise. Os dois momentos conscientes parecem ser sádicos; já o segundo momento é inconsciente e masoquista. Para o autor, essa segunda fase seria a mais importante na constituição da fantasia feminina, uma vez que envolve uma intensa carga libidinal e um profundo sentimento de culpa. Aspectos que posteriormente ele irá definir como essenciais para a construção subjetiva feminina.

Além disso, o terceiro tempo aponta para o que Freud (1919/1996FREUD, S. Uma criança é espancada - uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais (1919). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17)) entendeu como um complicador, no ponto em que, na menina, o afastamento do amor incestuoso direcionado ao pai possibilitaria que elas abandonassem facilmente o papel feminino, cedendo espaço a um complexo de masculinidade. Enquanto, no menino, a fantasia seria passiva desde o começo, o que evidenciaria uma atitude feminina em relação ao pai. Essas explicações de Freud parecem apontar para a associação masoquismo-feminino-passivo em oposição ao sadismo-masculino-ativo.

Rapidamente, percebemos que o fundador da psicanálise não permanece fiel a sua proposição inicial de abordar somente a constituição da fantasia nas meninas. Ainda que comece por descrevê-las, ele termina por buscar um correlato com as fantasias dos meninos. Assim, o que verificamos é uma tentativa de traçar um paralelo opositivo entre as fantasias femininas e masculinas. Porém, Freud se depara com alguns obstáculos que o levam à constatação de que “[...] era enganosa a expectativa de haver um paralelo completo” (FREUD, 1919/1996FREUD, S. Uma criança é espancada - uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais (1919). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17), p. 209).

Apesar de Freud afirmar, no final do artigo, que “a relação paralela que esperávamos encontrar entre as duas [fantasia feminina e masculina]” (FREUD, 1919/1996FREUD, S. Uma criança é espancada - uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais (1919). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17), p. 211) deveria ser abandonada, ao que tudo indica, ele permanece buscando traçar esses paralelos no texto do ano seguinte, referente ao caso da jovem homossexual. Esse escrito nos é importante, pois, além de abordar o último caso clínico publicado por Freud (QUINODOZ, 2007QUINODOZ, J.-M. Ler Freud: guia de leitura da obra de S. Freud. Porto Alegre: Artmed, 2007.), demarca a consideração mais aprofundada de Freud por “toda a questão da sexualidade nas mulheres” (FREUD, 1920/1996FREUD, S. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18), p. 149), durante a primeira tópica.

Para além da evolução do caso clínico, o que nos interessa é fazer um recorte de como Freud explica a sexualidade feminina a partir de seu contraponto masculino. De início, chama-nos atenção o modo como ele descreve sua paciente, no qual as características femininas apresentam-se em oposição às masculinas. Assim, se o homem possui feições agudas, atributos intelectuais perspicazes e objetivos, pois não é dominado pela paixão, a mulher, ao contrário, tem feições suaves, intelectualidade pouco objetiva e fortemente dominada pela paixão. Porém, ele diz que “essas distinções são antes convencionais que científicas” (FREUD, 1920/1996FREUD, S. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18), p. 158), pois o que importa mesmo à psicanálise é o modo por meio do qual cada um investe libidinalmente em seu objeto de amor. No caso da jovem homossexual, ela haveria “[...] assumido inteiramente o papel masculino [...] apresentava a humildade e a sublime supervalorização do objeto sexual tão características do amante masculino, a renúncia a toda satisfação narcisista e a preferência de ser o amante e não o amado” (FREUD, 1920/1996FREUD, S. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18), p. 158, grifos nossos).

Nessa lógica, a mulher fica numa posição de sujeição ao desejo do homem, por isso, ele assume uma posição ativa diante do objeto, uma vez que ele é o ser amante e à mulher cabe a posição passiva de ser amada. Freud irá explicar melhor essa posição da mulher a partir de sua segunda teorização sobre o complexo de Édipo, no texto de 1924FREUD, S. A dissolução do Édipo (1924). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19), A dissolução do complexo de Édipo, em que a menina precisa deslocar seu objeto de amor da mãe para o pai, necessitando então interpretar o olhar do pai como desejante para sentir-se amada. Assim, nas mulheres, “ser amada [seria] uma necessidade mais forte que amar” (FREUD, 1933[1932]/1996FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise - ConferênciaXXXIII: Feminilidade (1933[1932]). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22), p. 162). É nesse sentido que Calligaris (2006CALLIGARIS, E. dos R. Prostituição: o eterno feminino. São Paulo: Escuta, 2006.) assegura que fazer-se objeto de desejo do outro seria um dos traços do feminino, quiçá o mais determinante deles.

Retornando à trilha das posições, Freud menciona que “no caso do tipo masculino de escolha de objeto derivado da mãe é condição necessária que o objeto amado seja, de uma maneira ou outra, sexualmente de má reputação [...] [para despertar o] ímpeto de resgatar” (FREUD, 1920/1996FREUD, S. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18), p. 165), próprio dos homens. Tais fantasias parecem habitar as narrativas desde a antiguidade com mitos como o rapto de Perséfone. Apesar de Freud não ter feito menção direta a esse mito, verificamos em sua obra, com frequência, uma hipotética localização da mulher nessa condição de Perséfone: personagem que necessita ser resgatada, primeiramente de sua mãe por seu pai para entrar no complexo de Édipo; posteriormente, de si mesma por um homem que a faça se sentir amada e; por fim, de sua condição de castrada por um filho que fantasisticamente lhe daria o falo tão sonhado.

Essas fantasias de resgate novamente nos remetem à posição ativa do homem e passiva da mulher que Freud aponta mais uma vez no final do artigo: “[...] a masculinidade desvanecendo-se em atividade e a feminilidade em passividade, [...]. Uma mulher que já se sentiu ser um homem e amou à maneira masculina, dificilmente permitirá [...] desempenhar o papel de mulher, [...] [renunciando] a toda esperança de maternidade” (FREUD, 1920/1996, p. 175). Assim, Freud (1920/1996FREUD, S. A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18)) fala em um papel de mulher que parece associar à maternidade, talvez influência da preocupação acirrada da sociedade do século XIX “em adestrar o corpo e a sexualidade feminina, com vistas à procriação e ao casamento” (NUNES, 2011NUNES, S. A. Afinal, o que querem as mulheres? Maternidade e mal-estar. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 23, p. 101-115, 2011., p. 106).

Nesse ínterim, a maternidade emerge como característica do ser mulher ou, como propõe Zafiropoulos, o ser mãe torna-se o “ideal das próprias mulheres” (ZAFIROPOULOS, 2009ZAFIROPOULOS, M. A teoria freudiana da feminilidade: de Freud a Lacan. Reverso, Belo Horizonte, v. 31, p. 15-24, 2009., p. 19) na obra freudiana. Portanto, em Freud, a figura da mãe é primária na constituição psíquica do indivíduo. Dito de outro modo, ela assume o posto de primeiro objeto de amor tanto dos meninos quanto das meninas, a diferença dos destinos desse amor aparece nas diferentes formas que assume para os sexos. Porém, essa relação com a mãe é o que dá o tom às demais relações, como Freud (1925/1996) evidencia no texto Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos.

Com efeito, ao que tudo indica, ela (a mãe) insiste em permanecer nesse lugar de exclusividade mesmo quando a figura paterna tenta instituir a lei. Tal situação pode ser depreendida do pequeno texto intitulado Grande é Diana dos efésios (1911/1996FREUD, S. Grande é Diana dos Efésios (1911). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12)), em que Freud nos oferece uma alusão à adoração de uma figura feminina e sua elevação ao status de deusa da caça, da colheita, do parto e, consequentemente, da fertilidade. Desse modo, percebemos como a figura da mulher associava-se à imagem de mãe pura e virginal que rondava o imaginário de Freud até então. Nesse sentido, o texto aponta para uma ideia de que a mãe decididamente tem não só a primeira, mas a última palavra, ainda que precise se revestir de outras imagens.

No texto O tema dos três escrínios, de 1913, Freud apresenta as Parcas, as Moiras, as Normas e as Horas como representações do feminino que figuram a ideia de mãe e rondam o homem. Os poetas da antiguidade as cantavam como donzelas de aparência sinistra, grandes dentes e longas garras afiadas. Elas aparecem sempre em número de três e são apresentadas como representantes tanto da vida como da morte. Na análise de Freud (1913/1996FREUD, S. Grande é Diana dos Efésios (1911). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12)), a terceira figura era sempre a escolhida, esta era opaca e muda, motivo pelo qual ele a associou à morte. Serão esses indícios de sua formulação posterior sobre a pulsão de morte? Não podemos afirmar tal conjectura, mas tudo leva a crer que sim. Fato é que as Moiras representam

[...] as três inevitáveis relações que um homem tem com uma mulher - a mulher que o dá à luz, a mulher que é a sua companheira e a mulher que o destrói; ou que elas são as três formas assumidas pela figura da mãe no decorrer da vida de um homem - a própria mãe, a amada que é escolhida segundo o modelo daquela, e por fim, a Terra Mãe, que mais uma vez o recebe. (FREUD, 1913/1996FREUD, S. Grande é Diana dos Efésios (1911). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12), p. 323).

Essas palavras de Freud nos possibilitam pensar que a passagem pela vida, do seu princípio ao seu fim, é conduzida pelas mãos de uma mulher, seja como mãe, esposa ou mãe-terra. A força dessa presença precipita grande adoração, como mencionamos acima, com representações mitológicas de deusas que figuram amor e fertilidade, mas também grande assombro, como podemos verificar em figuras sedutoras, perigosas e, muitas vezes, monstruosas como Medusa, analisada por Freud em A cabeça de Medusa (1940[1922]/1996FREUD, S. Cabeça de Medusa (1940[1922]). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18)). Texto em que ele faz uma associação entre o corte da cabeça e a castração.

É nesse contexto que o medo que a figura da Medusa evoca estaria relacionado ao medo da castração oriundo da visão dos genitais femininos que denunciariam a falta de um pênis. Portanto, essa figura mitológica, em Freud (1940[1922]/1996FREUD, S. Cabeça de Medusa (1940[1922]). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18)), não é somente feminina, mas faz alusão aos genitais femininos e ao horror que os mesmos geram mediante a constatação da castração. Como mencionamos anteriormente, Freud trabalhava com uma perspectiva de mito endopsíquico, o que nos permite pensar que esse mito faria menção aos impasses de uma ocorrência corporal (ter o pênis e não ter o pênis) que, para serem dotados de sentido, deveriam ser organizados na perspectiva de uma narrativa, de modo que o horror da castração pudesse ser subjetivado em função de sua figuração mitológica.

Retomando a figura da mãe, na obra freudiana, verificamos que ela ocupa um lugar de destaque não somente na vida do homem, mas também na arqueologia do “tornar-se-mulher” que Freud vai desenvolver principalmente nos textos Sexualidade feminina, de 1931FREUD, S. Sexualidade feminina (1931). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21), e a Conferência XXXIII: Feminilidade, de 1933, visto que, além de conduzir a vida do menino, ela participa da constituição psíquica da menina, na medida em que circunscreve seus destinos possíveis de amor, afora surgir como resposta ao ser mulher. Podemos nos questionar, porém: a que tipo de mãe Freud se refere?

A figura materna envolve várias facetas na teoria freudiana, dentre elas, destacamos: a mãe objeto de amor, em que a lógica se resume em ser ou não ser o falo, como vemos no mito de Clitemnestra e seu consorte real Agamenon; a mãe fálica que necessita de uma filha dependente de seus cuidados, semelhante a Deméter e sua jovem Perséfone; e uma mãe castrada, como Medeia que mata os filhos para punir seu amado Jasão. A primeira, ao matar seu esposo, acaba por matar sua condição de mulher; a segunda, tampona sua condição de castrada com a filha; e a terceira, ao matar os próprios filhos, simbolicamente desatrela a figura de mãe da figura de mulher. É nesse contexto que Lacan atribui a Medeia o status de “uma mulher verdadeira na sua inteireza de mulher” (LACAN, 1966/1998LACAN, J. Juventude de Gide ou a letra e o desejo (1966). In: LACAN, J. Escritos. Paris: Seuil, 1998., p. 761).

Não obstante, as histéricas do século XIX pareciam protestar, com seus sintomas, denunciando a Freud a insatisfação com a fixação de suas vidas ao lar e à maternidade. Ainda assim, ele parece ter permanecido preso, até esse momento, a essas representações sociais da mulher em que figuravam considerável sujeição e conotavam dependência frente à figura masculina. Por este motivo, Assoun (1993ASSOUN, P.-L. Freud e a mulher. Rio Janeiro: Jorge Zahar, 1993.) afirma se tratar de uma forma de aprisionamento ao contexto de uma época, o qual conjecturamos ser derivado da conjuntura que submetia a dinâmica do funcionamento familiar à exclusividade de uma fantasia que só parecia encontrar vazão no âmbito da cena doméstica.

Tal destino de mulher-esposa e guardiã do lar faz emergir outra figura mitológica: Penélope, mulher caracterizada por Homero (1978)HOMERO. Odisseia. São Paulo: Abril, 1978. como mãe ansiosa, esposa fiel, chefe de uma casa real de grande dimensão, objeto do desejo de uma multidão de jovens pretendentes e arteira guardiã da imagem de Ulisses, seu esposo. É nesse sentido que a figura de Penélope é, muitas vezes, utilizada como padrão mitológico de referência de esposa ideal, que permanece à espera de seu marido, uma vez que essa é a face mais exaltada dessa mulher grega.

Os fragmentos aqui expostos evidenciam que as representações de mulher que circundam muitas das teorias freudianas retratam, de forma tenaz, as figuras de mãe e esposa, o que nos possibilita pensar, em consonância com Klipan, que “Freud é filho de seu tempo [...] como tal, pode sofrer as mesmas resistências deste. No caso do feminino [...], vemos [que buscavam] refrear [...] as mil faces do desejo que o feminino tão bem podia exprimir” (KLIPAN, 2013KLIPAN, M. L. O que Freud dizia sobre as mulheres? Psicologia em Estudo, Maringá, v. 8, p. 571-572, 2013., p. 572).

Nesse impasse entre a cultura de seu tempo, com seu modelo de ideal de mulher, e sua escuta aguçada que se depara com a histérica, uma figura que fugia aos padrões de mulher de sua época, o mestre de Viena eleva à mulher a condição de enigma. Assim, temos a Esfinge como representação da condição enigmática do feminino defrontado por Freud. Conforme Brandão (1997BRANDÃO, J. de S. Esfinge. In: DICIONÁRIO mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1997.), na tragédia de Sófocles, Édipo Rei, a Esfinge se apresenta como um monstro feminino, erótico e devorador. Ela devorava a todos que não lhe respondesse ao enigma. No caso de Freud, mais importante que responder ao enigma proposto pela Esfinge (a histérica), era responder o enigma a que a Esfinge em si constituía. Tal situação talvez o tenha levado a compreender, como Lévi-Strauss, que um enigma em um mito funciona como “uma questão que é postulada enquanto não tendo resposta” (LÉVI-STRAUSS, 1978LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, tempo brasileiro, 1978., p. 22). Por isso, Freud (1933[1932]/1996FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise - ConferênciaXXXIII: Feminilidade (1933[1932]). Rio de Janeiro: Imago , 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22)) remete aos poetas a tarefa de interpretar os cantos da Esfinge.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O recorte textual da obra freudiana que efetuamos nos possibilitou investigar os primeiros textos em que Freud teoriza mais diretamente a sexualidade feminina, nosso referente para pensar um possível modelo de mulher. Verificamos, pois, que o criador da psicanálise, nesse momento, utiliza-se de seu modelo de sexualidade masculina para pensar como seu oposto a sexualidade feminina, de modo que a libido seria exclusivamente masculina. Essa afirmação coaduna com a concepção de Birman (2001BIRMAN, J. Gramáticas do erotismo. Rio de Janeiro: Record, 2001.) de que a teoria freudiana da sexualidade se fundou sob o postulado de uma masculinidade originária. Nesse contexto, a sexualidade masculina surge enquanto norma, portanto, vista como universal, e o feminino, antiteticamente, acena para o particular. Isso nos leva a afirmar que os pressupostos para se pensar um modelo de mulher freudiana decorrem por inferência do pressuposto masculino em uma definição pelo oposto.

Contudo, diante da impossibilidade de sustentar essa teoria, Freud se vê às voltas com um processo que ele entendeu como sendo um “tornar-se-mulher”. Nesse momento, seu referente para pensar a sexualidade feminina se baseia nos modelos de mãe, esposa e histérica. Tais modelos, não raro, apontavam para personagens mitológicas, razão pela qual acreditamos que ele tenha se servido extensamente de pressupostos mitológicos, a fim de fazer avançar tanto suas construções teóricas quanto clínicas, em se tratando da mulher. Verificamos, assim, que inúmeras representações do feminino parecem se precipitar de várias figuras mitológicas, desde deusas do amor e da fertilidade, como Diana, e personagens sedutoras e paralisantes, como Medusa, até monstros que assombram, como a Esfinge. Essa multiplicidade de figuras mitológicas, que o médico vienense utiliza para ilustrar determinadas facetas da mulher parece indicar que, ainda que fosse do desejo dele fechar um modelo como fez com o homem, ele não consegue. Não sem razão, ele confessa a Marie Bonaparte sua incapacidade de definir “o que quer uma mulher” (FREUD apudJONES, 1970JONES, E. Vida e obra de Sigmund Freud - v. 2. Rio de Janeiro, Zahar, 1970., p. 445).

Portanto, essa teorização às avessas parece não ter sido suficiente para abarcar a sexualidade feminina e, consequentemente, fechar o que poderíamos chamar de um modelo de mulher freudiana. Ainda que, em um primeiro instante, Freud tenha tentado abordar a saga do feminino enquanto um par de opostos do universo masculino, ao se enveredar pelos (des)caminhos da feminilidade, ele constata que é preciso que ela se torne uma mulher e esse ato pode levá-la a trilhar uma infinidade de caminhos. Nesses termos, “Freud expressou bem a necessidade de uma reconstituição das ‘camadas’, a serem ‘datadas’ com exatidão, de uma ‘arqueologia’ do tornar-se-mulher” (ASSOUN, 1993ASSOUN, P.-L. Freud e a mulher. Rio Janeiro: Jorge Zahar, 1993., p. V, grifos do autor).

Apontamos como limitação de nossa investigação uma leitura freudiana enviesada. Com isso, queremos dizer que, ao final do texto, percebemos que, semelhante à Freud, ficamos presos em comparações entre o modelo masculino e um possível modelo feminino, o que terminou por inviabilizar a percepção de Freud da condição da mulher para além das comparações. Em um estudo posterior, sugerimos uma pesquisa do texto Totem e tabu, no intuito de identificar como o fundador da psicanálise apresenta a mulher em seu mito científico das origens.

Ao que tudo indica, as paixões do ser mulher e suas representações seduziram Freud aos moldes dos cantos das sereias, pois, ainda que ameaçasse sua construção teórica, seu arcabouço só podia ter um rosto de mulher e, por isso, aceitou, como Ulisses, ser amarrado ao mastro da cultura para poder escutá-las sem nelas se perder.

REFERÊNCIAS

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  • Financiamento: o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 .
  • errata

    ERRATA
    DOI - http://dx.doi.org/10.1590/1809-44142020003014
    Para os autores do artigo:
    TEODORO, Elizabeth Fátima; CHAVE, Wilson Camilo; SILVA, Mardem Leandro. FREUD E A QUESTÃO DO FEMININO: PRESSUPOSTOS MÍTICOS DA PRÁTICA CLÍNICA. Ágora (Rio J.), Rio de Janeiro , v. 23, n. 3, p. 72-80, set. 2020 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982020000300072&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 20 out. 2020. Epub 16-Out-2020. https://doi.org/10.1590/1809-44142020003010.
    O nome do autor
    Wilson Camilo Chave
    Considera-se
    Wilson Camilo Chaves

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2019
  • Aceito
    21 Ago 2020
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