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A FUNÇÃO DO RECURSO À SUBSTÂNCIA NA PSICOSE: ENLACES E DESENLACES

The function of the recourse to the substance in the psychosis: links and disconnections

RESUMO:

Este artigo tem como objetivo apresentar os impasses em relação à função do recurso à substância na psicose. As contribuições da clínica nodal e da clínica das psicoses ordinárias permitem ressituar a investigação da função do recurso à substância na psicose na economia de gozo de cada sujeito em função dos enlaces, desenlaces e reenlaces em relação ao Outro. Para além da função estabilizadora do recurso à substância, via identificação imaginária ao significante “sou toxicômano”, fragmentos de casos clínicos evidenciam que o recurso à substância na psicose pode promover um desenlace em relação ao Outro, reforçar a foraclusão, promover efeitos devastadores no corpo ou, ainda, funcionar como um dos nomes do pior.

Palavras-chave:
recurso à substância; psicanálise; direção de tratamento; psicose; enlaces e desenlaces

Abstract:

This article aims to present the impasses regarding the function of the recourse to the substance in the psychosis. The contributions of the nodal clinic and the clinic of ordinary psychoses allow us to resituate the investigation of the function of the recourse to the substance in the psychosis in the economy of enjoyment of each subject in function of the links, disconnections and re-links in relation to the Other. In addition to the stabilizing function of substance use, via the imaginary identification of the signifier “I am a drug addict”, fragments of clinical cases show that recourse to the substance in psychosis can promote a disconnection in relation to the Other, promotes devastating effects on the body or even function as one of the worst names.

Keywords:
substance use; psychoanalysis; treatment direction; psychosis; links and disconnections

INTRODUÇÃO

Observamos, na clínica contemporânea, um aumento não só de toxicômanos, mas de toxicômanos que revelam uma estrutura psicótica. O aumento do consumo de substâncias está relacionado ao declínio da autoridade paterna e ao predomínio do discurso do capitalista em detrimento do discurso do mestre no contemporâneo. O pai como ideal cede lugar ao objeto a mais-de-gozar como bússola de civilização atual marcada pela inexistência do Outro, que se refere tanto à pluralização como à pulverização do Nome-do-Pai, e pelo imperativo do Goze! (MILLER, 2005MILLER, J-A. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós, 2009.).

Conforme Quintella et al. apontam, a compulsão, na época de Freud, se relacionava à identificação ao pai simbólico, que norteava o ideal do eu e possibilitava ao sujeito “se organizar a partir do que o Outro organiza nele” (QUINTELLA et al., 2017QUINTELLA, R. R. et al. A função do consumo na constituição do sujeito e sua relação com as compulsões: de Freud à atualidade. Cad. psicanal., v. 39, n. 36, p. 221-241, 2017. Disponível em Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952017000100012&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 5 maio 2020.
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, p. 226). Contudo, na época atual, diante de um novo mal-estar na cultura que se coloca como uma pressão ao consumo, o ideal não funciona mais como um ponto de ancoragem para o sujeito, de modo que “o que se manifesta como efeito da falência da imago paterna e da evanescência do ideal do eu é um imperativo de gozo superegóico impossível de cumprir” (QUINTELLA et al., 2017QUINTELLA, R. R. et al. A função do consumo na constituição do sujeito e sua relação com as compulsões: de Freud à atualidade. Cad. psicanal., v. 39, n. 36, p. 221-241, 2017. Disponível em Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-62952017000100012&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 5 maio 2020.
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, p. 234).

Em função do declínio do significante do Nome-do-Pai na atualidade, que promovia uma nomeação e estabelecia uma relação entre o sentido e o real, os sujeitos buscam um significante qualquer que possibilite algum laço social e nomeie seu gozo, tal como podemos observar através da identificação imaginária ao significante “sou toxicômano”. Desse modo, Freda assinala que “a droga é o ponto de referência que nomeia uma prática (a toxicomania) a partir da qual se cria um personagem que por seu fazer com a droga cria um eu sou: um eu sou toxicômano” (FREDA, 2005FREDA, H. La secta y La globalización. In: Miller, J-A. El Outro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005., p. 307). Ao que Santiago acrescenta que “ser toxicômano consiste então num recurso diante do impasse de uma neurose, ou mesmo de uma psicose” (SANTIAGO, 2017SANTIAGO, J. A droga do toxicômano: uma parceria cínica na era da ciência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2017., p. 216).

A psicanálise se apresenta, então, como um saber teórico-clínico que defende a investigação da função da substância na economia de gozo de cada sujeito, considerando sua estrutura psíquica e os diferentes modos de amarração dessa estrutura. Ou seja, a psicanálise coloca a ênfase sobre o sujeito e não sobre a substância consumida e considera que (1) a localização da função da substância para cada sujeito é ponto categórico para o diagnóstico diferencial e para a direção do tratamento; e (2) a complexidade dessa clínica é evidenciada pela lógica que sustenta o recurso à substância de acordo com sua estrutura clínica.

Desse modo, retornaremos a Freud a fim de localizar algumas definições sobre o recurso à droga, no primeiro momento de seu ensino (FREUD, 1897/1996HENRY, F. La lengua de la transferência en las psicoses. In: MILLER et al. (orgs.). La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós, 2009., 1898FREUD, S. A sexualidade na etiologia das neuroses (1898). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 3)/1996, 1908/1996), como um substituto da satisfação sexual, e, em um segundo momento (FREUD, 1930/1996FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21)), como uma saída ao mal-estar inerente à civilização, entre outras - o amor, a religião, a atividade científica, a arte, o delírio e a sublimação -, uma medida paliativa para suportar as dificuldades da vida, um “amortecedor de preocupações” (FREUD, 1930/1996FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21), p. 86).

Naparstek (2005NAPARSTEK, F. Introducción a la clínica con toxicomanías y alcoholismo. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2005.) assinala que, em O mal-estar na civilização, Freud (1930/1996FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21)) apresenta uma nova definição do fenômeno da intoxicação ao relacioná-lo com a civilização e as restrições pulsionais impostas ao sujeito. Segundo Freud, o recurso ao narcótico é uma solução, uma construção auxiliar, que funciona como uma muleta que ameniza a dor de existir. Contudo, a saída pelo recurso à droga revela pontos a favor e contra, na medida em que pode funcionar tanto como um paliativo ao sofrimento quanto pode alterar a química do organismo, promovendo efeitos no corpo e levando ao afastamento da realidade.

Na teoria freudiana, está presente, portanto, a concepção da droga como um pharmakon, palavra que designa ao mesmo tempo o remédio e o veneno. A droga pode funcionar como um medicamento, ao promover um apaziguamento do gozo, ou como um veneno, ao ser nociva e tóxica para o sujeito. É, portanto, a investigação dos determinantes psíquicos envolvidos no recurso à substância, sua função na economia de gozo de cada sujeito, como o que medica ou intoxica, que permite ao analista construir uma direção do tratamento.

Se, nas referências freudianas, podemos localizar o recurso à substância como um casamento feliz, uma vez que o sujeito obtém uma satisfação substitutiva e alívio em relação ao mal-estar, Lacan promove uma torção em relação à definição da droga, na medida em que a apresenta como aquilo que permite romper o casamento com o falo, ou seja, com o gozo fálico, sem que haja a foraclusão do Nome-do-Pai:

Porque falei de casamento e tudo o que permite escapar desse casamento é evidentemente bem-vindo. Disso decorre o sucesso da droga, por exemplo. Não há nenhuma outra definição da droga senão esta: é o que permite romper o casamento com o pequeno pipi. (LACAN, 1975/2016LACAN, J. O aturdito (1972). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003., p. 21).

Miller (2016MILLER, J-A. Para uma investigação sobre o gozo autoerótico. Pharmakon digital, n. 2, 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.pharmakondigital.com/ed002/classicos/pt/miller_pt.html . Acesso em: 12 dez. 2016.
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) retoma a afirmação de Lacan sobre a posição do analista de não recuar diante da psicose para afirmar a importância de adotar esse mesmo posicionamento em relação à clínica das toxicomanias. Se, na psicose, o inconsciente a céu aberto promove dificuldades no manejo da transferência, na toxicomania, a ruptura com o gozo fálico, o curto-circuito pulsional, a modificação dos estados de consciência, o encobrimento do sujeito do inconsciente e uma apresentação sintomática fora da palavra e do sentido também acarretam dificuldades para o analista em relação à transferência, ao diagnóstico e à direção do tratamento.

Ainda que Lacan tenha proposto uma definição da droga como o que permite romper com o falo, Miller (2016MILLER, J-A. Para uma investigação sobre o gozo autoerótico. Pharmakon digital, n. 2, 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.pharmakondigital.com/ed002/classicos/pt/miller_pt.html . Acesso em: 12 dez. 2016.
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) assinala que essa é uma definição da droga, e não da toxicomania, na medida em que se entende a toxicomania como a relação entre o sujeito e o objeto-droga. Nesse sentido, podemos pensar tanto que as substâncias desempenham diferentes funções para os diferentes sujeitos, como que há uma diferença no gozo que se alcança com o uso de diferentes substâncias e do uso que se faz dela (em termos de regulação ou excesso). Desse modo, Miller (2005)MILLER, J-A. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós, 2009. apresenta algumas distinções entre a maconha, a heroína e a cocaína enquanto modos de gozo do sujeito em sua relação com o Outro. Se a maconha não promove uma ruptura com o laço social e não se inscreve na dinâmica de um gozo excesivo, a heroína responde a definição lacaniana da droga como ruptura, na vertente da separação e que conduz ao estatuto de dejeto, enquanto que a cocaína corresponde à alienação: “A heroína tem um efeito separador com relação ao significante do Outro, enquanto a cocaína se utiliza como facilitador da inscrição na máquina giratória do Outro contemporâneo” (MILLER, 2005MILLER, J-A. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós, 2009., p. 376).

Laurent (2014LAURENT, É. Três observações sobre a toxicomania. In: MEZÊNCIO, ROSA M.; WILMA, M. (orgs.). Tratamento possível das toxicomanias. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.) aponta, com base em sua experiência clínica, que a tese de Lacan sobre a droga como ruptura com o falo seria insuficente para se pensar o recurso à substância na psicose, na medida em que, na psicose, há, por estrutura, uma não-inscrição do significante fálico, o que caracterizaria a função estabilizadora da substância na psicose, como moderadora de gozo. Ao retormar o texto do autor, Zaffore assinala que “não se verifica que a droga venha a romper com o falo, a romper com o Outro, mas o contrário. Tem-se encontrado casos em que os psicóticos consomem, mas como um modo de enlaçar-se ao Outro e não de romper com o Outro” (ZAFFORE, 2005ZAFFORE, C. Toxicomanía y Psicosis. In: NAPARSTEK, F. Introducción a la clínica com toxicomanías y alcoholismo. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2005., p. 96, tradução nossa).

Assim, ao retomarmos as formulações sobre a psicose presentes em O Seminário, livro 3: as psicoses (LACAN, 1955-1956/1985LACAN, J. As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. (O seminário, 3)) e no texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (LACAN, 1957-1958/1998LACAN, J. Du discours psychanalytique (1972). In: Lacan in Italia. Milão: La Salamandra, 1978.), observamos que a ruptura com o gozo fálico de que se trata na toxicomania não é equivalente à foraclusão do Nome-do-Pai. Assim, se, na neurose, o recurso à substância promove um gozo fora da fantasia, fora da castração, na psicose, em função de a ruptura com o gozo fálico já estar dada de antemão, obtém-se uma relação diferente com o objeto-droga.

Logo, em alguns casos, o recurso à substância pode operar uma estabilização do quadro psicótico ao promover uma identificação imaginária ao significante “sou toxicômano”. Por isso, devemos ter delicadeza em relação à direção do tratamento de psicóticos que recorrem à substância, para que se possa localizar qual a função dessa identificação na economia de gozo de cada sujeito.

Lacan define a identificação imaginária como uma das soluções, bem como a passagem ao ato e a construção de uma metáfora delirante, que o psicótico inventa para dar um tratamento ao real. Essas soluções, ao localizarem o gozo, promovem a estabilização do quadro psicótico. Desse modo, a definição da função da substância como moderadora de gozo opõe-se à definição lacaniana da droga como formação de ruptura com o gozo fálico, válida para os casos de neurose.

Como nos aponta Naparstek (2010NAPARSTEK, F. Introducción a la clínica con toxicomanías y alcoholismo. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2010.), constatamos clinicamente uma quantidade crescente de usuários de drogas que se identificam com esse significante, “sou toxicômano”, e que são diagnosticados como psicóticos. Esse é um dos três antecedentes que poderiam nos orientar na investigação do diagnóstico nos casos de toxicomania. Outra indicação importante é a insuficiência da tese lacaniana das drogas como o que permite romper com o gozo fálico não só para se pensar a psicose, mas para se pensar a clínica atual de um modo geral. O que nos aponta para o terceiro e último antecedente, da importância de ressituar a clínica da toxicomania a partir das contribuições advindas de Los inclasificables de la clínica psicoanalítica (MILLER et al., 2008MILLER, J-A. Apertura. In: MILLER et al. (orgs.). Los inclasificables de la clínica psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2008.) e em La psicosis ordinária (MILLER et al., 2009MILLER, J-A. O monólogo da aparola. Opção lacaniana online, n. 9, 2012. Disponível em: Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_9/O_monologo_da_aparola.pdf . Acesso em: 19 dez. 2017.
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), na medida em que apresentam uma alternativa à classificação da psicose pautada nos fenômenos clínicos em função da foraclusão do Nome-do-Pai e da falência do significante fálico. Desse modo, a clínica dos nós e os novos índices de psicose, que se somam aos descritos por Lacan em seu primeiro ensino, nos fornecem novas ferramentas para que possamos pensar a clínica das toxicomanias no contemporâneo.

O diagnóstico diferencial da psicanálise, que, na primeira clínica de Lacan, era pautado na inscrição ou não do significante Nome-do-Pai, no inconsciente, no significante, no desejo, e que tinha uma concepção do sintoma como metáfora, foi reformulado por Lacan em sua segunda clínica. Isso favorece a análise da sintomatologia apresentada na clínica contemporânea, a qual apresenta múltiplos exemplos que não se enquadram nas definições clássicas da psicose, e no paradigma estrutural que direcionava o tratamento psicanalítico até então.

Na segunda clínica, continuísta, as categorias da experiência analítica são descritas como real, simbólico e imaginário, em que esses três registros são heterogêneos e cada sujeito, a fim de manter um laço social, os sustenta, os amarra, cada um a sua maneira (SKRIABINE, 2009). Os três registros, ao se enlaçarem borromeanamente, formam uma cadeia e a ruptura de qualquer um desenoda o conjunto. Contudo, o nó borromeano de três é sempre falho. Assim, é preciso que haja um quarto elemento para enlaçar os três registros, impedindo que eles se soltem: “Digo que é preciso supor tetrádico o que faz o laço borromeano” (LACAN, 1975-1976/2007LACAN, J. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. (O seminário, 23), p. 21). Segundo Skriabine, esse quarto elemento que opera em “suprir a foraclusão original e obter uma solução borromeana” (SKRIABINE, 2009, p. 4) são os Nomes-do-Pai “se o Nome-do-Pai falha sempre, os Nomes-do-Pai são numerosos para suprir a falha” (idem). Utiliza-se o termo suplência para nomear a operação do quarto elo em manter os três registros enlaçados. Trata-se, então, do modo como nos arranjamos, psicóticos ou não, diante do real. Desse modo, nem sempre ocorrem desencadeamentos, e, sim, desligamentos ou desenlaces em relação ao Outro. E, diante desses desenlaces, há as soluções, borromeanas ou não, que cada um constrói para se enlaçar ao Outro.

Um dos achados clínicos que evidencia o novo paradigma para se pensar a clínica contemporânea por meio da clínica dos nós é a psicose ordinária. Miller et al. (2009MILLER, J-A. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós, 2009.) apresentam uma atualização em relação ao desencadeamento da psicose e seus índices a partir da investigação da psicose ordinária, que nos permite considerar uma psicose em que não houve um desencadeamento franco e que não há alterações de linguagem nem alucinações verbais. Não se trata de uma psicose florida, com a presença marcante dos fenômenos elementares, como a de Schreber, mas bem sutil, discreta, silenciosa. Os fenômenos se apresentam de um modo que se assemelha à pré-psicose tal como descrita por Lacan, marcada pelo “sentimento de que o sujeito chegou à beira do buraco” (LACAN, 1955-1956/1985LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-1958). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998., p. 230-231).

As psicoses comuns, ordinárias, evidenciam uma ampliação dos fenômenos índices de psicose para além do significante e nos permitem pensar a psicose a partir dos fenômenos no corpo, marcados pelo gozo deslocalizado. O paradigma do desencadeamento dá, então, lugar aos enlaces, reenlaces e desenlaces, de modo flexível, em relação ao Outro, representados pelas amarrações e suplências. Assim, o analista deve estar atento aos detalhes, aos efeitos clínicos mínimos que evidenciam algo que “manca” na amarração entre os registros que podem ser:

Uma predominância do imaginário junto a uma ancoragem simbólica bastante leve, ou bem uma relação de estranhamento entre o eu e o corpo; ou bem o exercício desenfreado da pulsão, desconectada de toda captura em uma dialética de discurso. (DEFFIEUX, 2008DEFFIEUX, J-P. Un caso no tan raro. In: MILLERet al. (orgs.). Los Inclasificables de la clínica psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2008., p. 202, tradução nossa).

Assim, podemos localizar a estrutura psicótica em função de novos paradigmas: a partir da presença de uma externalidade social, corporal e subjetiva (MILLER et al., 2009MILLER, J-A. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós, 2009.). Da mesma forma, outros elementos se destacam como índices para um diagnóstico diferencial: o “novo desencadeamento”, a “nova transferência” e a “nova conversão”.

Miller et al. (2009MILLER, J-A. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós, 2009.) formulam que as “novas formas de desencadeamento” se expressam como desligamentos, desenlaces gradativos do Outro e ainda uma crescente marginalização. Observa-se também o desligamento sucessivo dos laços familiares e sociais, o que pode levar a uma vida errante e, ainda, a perdas identificatórias e vivências impossíveis de serem significantizadas, bem como uma reação de perplexidade ou angústia diante do gozo do Outro.

Em relação à “nova transferência” nas psicoses, Miller et al. (2009MILLER, J-A. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós, 2009.) a explicam a partir da hipótese da criação e do uso da lalíngua na transferência. Lalíngua é diferente de a língua, ou da linguagem conforme Lacan define em seu primeiro ensino. Enquanto, no primeiro ensino, Lacan se refere à linguagem como uma estrutura, na qual o sentido aparece como efeito da relação dos significantes entre si, em lalíngua “o fenômeno essencial não é o sentido - é preciso se dar conta disso -, mas o gozo” (MILLER, 2012MILLER, J-A. O monólogo da aparola. Opção lacaniana online, n. 9, 2012. Disponível em: Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_9/O_monologo_da_aparola.pdf . Acesso em: 19 dez. 2017.
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, p. 11). Assim, na clínica da psicose não é o sujeito-suposto-saber que motiva a transferência, posto que o saber está do lado do psicótico, mas lalíngua, na medida em que se apresenta “como um novo tear para tecer o laço social” (HENRY, 2009HENRY, F. La lengua de la transferência en las psicoses. In: MILLER et al. (orgs.). La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós, 2009., p. 132, tradução nossa). Lalíngua é definida como fundadora, língua única e última, que possibilita que um significante possa assinalar algo que está fora do sentido, por exemplo, através de onomatopeias, cifras e marcas apresentadas.

Na “nova conversão”, observamos fenômenos ligados ao corpo, apresentando um campo de intercessão entre a neurose histérica, o fenômeno psicossomático e os fenômenos corporais determinados pela ausência da significação fálica. Se a conversão histérica, tal como descrita por Freud, consistia em uma apresentação pela via simbólica, as novas conversões concernem ao campo do real. O uso que se faz do corpo na atualidade já não está marcado pela castração do Outro, e isso dificulta nossa leitura da parte subjetiva que depende da conversão.

Diante de uma clínica da psicose que não é mais baseada no desencadeamento, nos fenômenos elementares e no desastre do imaginário, cabe ao analista tomar caso a caso para que possa localizar o momento de desenlace em relação ao Outro e quais são as soluções inventadas por cada sujeito, que irão promover novos enlaces, novas amarrações. E, na medida em que pensamos que há uma ampliação do campo da psicose, devido às contribuições advindas da clínica dos nós e da psicose ordinária, poderíamos falar também que há uma ampliação das funções possíveis do tóxico, ou da substância?

Uma identificação ao significante que não enlaça: “sou toxicômano” e o discurso do capitalista

A clínica evidencia que nem sempre a identificação ao significante “sou toxicômano” promove um enlace ao Outro, na medida em que também pode indicar um excesso de gozo. Desse modo, faz-se importante desenvolver a relação entre o aumento de casos que se apresentam como “sou toxicômano” e as formas que o discurso do mestre assume na atualidade.

Segundo Lacan (1972LACAN, J. O aturdito (1972). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.), o discurso do capitalista é o discurso do mestre contemporâneo que se constrói a partir de uma operação de subversão no discurso do mestre antigo, discurso do inconsciente, indicando que “o que se opera entre o discurso do senhor antigo e o do senhor moderno, que se chama capitalista, é uma modificação no lugar do saber” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. Encerramento das jornadas de estudos de cartéis da Escola Freudiana (1975). Pharmakon digital, n. 2, 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.pharmakondigital.com/ed002/conferencias/pt/jacques_lacan_pt.html . Acesso em: 9 dez. 2016.
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, p. 29-30). Há uma troca de lugares entre o significante mestre e o sujeito barrado, bem como das setas que orientam o discurso, o que marca a ascensão do objeto a mais-de-gozar ao zênite social (LACAN, 1970/2003LAURENT, É. Três observações sobre a toxicomania. In: MEZÊNCIO, ROSA M.; WILMA, M. (orgs.). Tratamento possível das toxicomanias. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.), isto é, ao ponto mais alto da civilização. Da mesma forma o objeto a se dirige ao sujeito sem a mediação do Outro do saber, o que caracteriza o predomínio do gozo sobre os ideais. Portanto, ao contrário do discurso do mestre, o discurso do capitalista não faz laço social. Outro ponto importante é que o discurso do capitalista surge colado ao discurso da ciência, o que caracteriza uma estrutura discursiva na qual o sujeito demanda do saber científico a produção de um objeto que promova um gozo ilimitado e que o livre de lidar com sua própria castração.

Miller aponta que, no contemporâneo, há uma hegemonia do discurso do capitalista em detrimento do discurso do mestre, ou do inconsciente. Desse modo, se, anteriormente, a civilização era marcada pela fórmula I >a, na qual os ideais eram maiores que os objetos a mais-de-gozar, atualmente essa fórmula se inverte, “por isso o gozo toxicômano se tornou emblemático do autismo contemporâneo do gozo [...] as drogas são um modo de gozar onde aparentemente se prescinde do Outro” (MILLER, 2005MILLER, J-A. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós, 2009., p. 372).

Ao introduzir a estrutura de uma nova forma, isto é, pelo discurso, Lacan (1969-1970/1992LACAN, J. Encerramento das jornadas de estudos de cartéis da Escola Freudiana (1975). Pharmakon digital, n. 2, 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.pharmakondigital.com/ed002/conferencias/pt/jacques_lacan_pt.html . Acesso em: 9 dez. 2016.
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) demonstra que a castração não é efeito da inscrição do Nome-do-Pai e, sim, do discurso, pois, desde o encontro com a linguagem, o sujeito é marcado por uma perda de gozo. A topologia discursiva é formalizada por meio da combinação de quatro letras que se arranjam ordenadamente em quatro lugares fixos, dispostos da esquerda para a direita, seguindo um movimento de giro: agente, saber do Outro, produção/perda, e verdade. As quatro letras que compõem os quatro discursos, o do mestre, o da universidade, o da histérica e o do analista, são: S1, significante-mestre que inicia a série significante; o S2 que revela o saber do Outro, e que juntamente com o significante anterior traduz o campo do saber estabelecido no binômio S1-S2; o a, o objeto designado por uma perda, de onde o mais-de-gozar toma corpo; e o $, o sujeito do inconsciente, sujeito divido pela inserção na linguagem. Assim, todo discurso é uma articulação entre o sujeito e o Outro, sendo que o lugar do agente é que ordena o discurso.

O discurso do capitalista

Fonte:
Lacan (1972/1978LACAN, J. Du discours psychanalytique (1972). In: Lacan in Italia. Milão: La Salamandra, 1978., p. 40).

Lacan assinala que, na atualidade, há uma mudança do elemento que atua como agente no discurso. De modo que passamos a ser determinados não mais pelos significantes, mas pelos objetos de consumo, definidos por Lacan (1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1992. (O Seminário, 17), p. 153) como “latusas”, ou gadgets, que oferecem ao sujeito um meio de recuperação de gozo. A possibilidade de que o sujeito a mercê dos objetos adentre em um consumo da ordem do excesso revela a natureza de dejeto, de resíduo da civilização, dos gadgets.

Rosa (2010ROSA, M. Jacques Lacan e a clínica do consumo. Psicol. clin. [online], n. 22, 2010. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pc/v22n1/a10v22n1.pdf . Acesso em: 9 out. 2017.
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) assinala que há uma passagem da posição de consumidor para a de objeto consumido quando “o ato de consumir(-se), o efeito de consumir” leva a uma mortificação do sujeito, a um desabonamento do inconsciente, tão característico da clínica das toxicomanias.

Considerando a teoria dos discursos, podemos localizar uma mudança em relação à função do recurso à substância na atualidade. Na época em que o discurso do mestre era dominante, o consumo de substância se apresentava como uma resposta entre outras ao mal-estar na civilização e promovia certo laço social (FREUD, 1930/1996FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21)). Contudo, na atualidade, observamos um “vazio de sentido”, uma resposta única e globalizada ao mal-estar. Naparstek (2010NAPARSTEK, F. Introducción a la clínica con toxicomanías y alcoholismo. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2010.) retoma o texto A era do vazio, de Lipovetzky, a fim de assinalar que, na atualidade, o consumo localizado dá lugar a um consumo generalizado, a “toxicomania generalizada”, ou banalizada.

Naparstek (2010NAPARSTEK, F. Introducción a la clínica con toxicomanías y alcoholismo. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2010.) localiza que os sintomas de nossa época têm o aspecto do que Freud (1916-1917/1996FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21)) descrevera como o sintoma das “neuroses atuais”, marcado pela invasão da pulsão no corpo, pela ausência da fantasia inconsciente e pela falta de sentido. O preciosismo dessa descrição apresentada por Freud é o destaque para a toxidade presente no sintoma: “o tóxico não está nem na substância, nem no sujeito, mas no sintoma. Um sintoma que amarra ao sujeito de maneira singular e aditiva. O sintoma mostra a céu aberto sua toxicidade quando está separado dos sentidos” (NAPARSTEK, 2010NAPARSTEK, F. Introducción a la clínica con toxicomanías y alcoholismo. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2010., p. 27, tradução nossa).

Desse modo, na medida em que não há ideal que faça limite ao gozo, o sujeito pode fazer um uso excessivo da substância, que, em vez de promover o laço social, conduz a um desenlace em relação ao Outro. Contudo, há casos em que a identificação ao significante “sou toxicômano” pode funcionar como um enlace.

A identificação a um significante que faz laço: “sou toxicômano”

A falha estrutural da linguagem descrita na topologia dos discursos tem lugar na topologia dos nós: diante da falha, do lapso do nó, os sujeitos constroem soluções singulares a fim de promover a amarração dos três registros. É desse modo que a identificação imaginária ao significante “sou toxicômano” pode promover uma estabilização da psicose, caso funcione como um enlace ao Outro. Assim, o que nos orienta clinicamente é a localização do momento em que um sujeito se desenlaça: “Esta localização aclara, retroativamente, o elemento que funcionava como ‘enlace’ para esse sujeito, e permite dirigir a cura no sentido de um eventual ‘reenlace’” (CASTANET; DE GEORGES, 2009CASTANET, H.; DE GEORGES, P. Enganches, desenganches, reenchanches. In: MILLER et al. (orgs.). La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós. 2009., p. 18, tradução nossa).

Naparstek assinala que a clínica dos enlaces e desenlaces nos permite localizar o ponto em que algo se solta e a tentativa de enlace que se constrói a partir daí e é isso que faz com que a toxicomania não seja uma classe uniforme “não há nada mais diferente de um toxicômano que outro toxicômano” (NAPARSTEK, 2010NAPARSTEK, F. Introducción a la clínica con toxicomanías y alcoholismo. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2010., p. 109, tradução nossa), uma vez que estamos diante de respostas singulares.

Assim, em muitos casos, a identificação ao significante “sou toxicômano” pode não promover uma ruptura e, sim, um enlace ao Outro, na medida em que cumpre uma função de compensação do Nome-do-Pai foracluído, operando como uma bengala imaginária, tal como define Lacan (1955-1956/1985LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-1958). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.).

A identificação imaginária promove, assim, uma estabilização através de um espelhamento ao Outro, que, por meio do gozo, possibilita uma nomeação que dá consistência ao “eu”. Contudo, na medida em que não é sustentada pelo traço unário, promove apenas uma compensação da foraclusão (MALEVAL, 2003MALEVAL, J-C. Elementos para uma apreensão clínica da psicose ordinária. Clínica & Cultura, n. 3, p. 105-169, 2003. Disponível em: Disponível em: http://www.seer.ufs.br/index.php/clinicaecultura/article/download/2841/2993 . Acesso em: 7 jan. 2016.
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). De modo contrário, a estabilização via metáfora delirante e via obra, nos casos de Schreber e de Joyce, ao sustentarem R, S e I, juntos, têm o estatuto de suplência. Desse modo, Skriabine aponta que:

Há outros meios diversos para se tentar sustentar junto R, S e I; múltiplas formas de nós não borromeanos, de enlaçamentos que estabelecem uma continuidade entre R, S e I, e várias formas de “dar um jeito” ou de bricolages duvidosas que não se revelam sempre suficientes para proteger o sujeito do real e do gozo. (SKRIABINE, 2009, p.7).

Na literatura psicanalítica, encontramos uma quantidade considerável de casos clínicos em que o recurso à substância, ao funcionar como uma identificação imaginária ao significante “sou toxicômano”, promove um apaziguamento do gozo na psicose. Naparstek (2011NAPARSTEK, F. La direction de la cure dans le toxicomanies et l’alcoolisme. Tese de doutorado, Université Paris VIII, Saint Dennis, France. 2011.) apresenta um caso clínico de um homem que procura encontros sexuais com prostitutas e faz uso do Viagra em função não de um desejo sexual, mas para tratar as frequentes ereções de seu órgão sem motivos aparentes. O que denunciava um gozo deslocalizado, ou seja, não regulado pela significação fálica. As ereções insuportáveis eram acompanhadas de alucinações verbais e outros fenômenos psicóticos. Antes do Viagra, ele não mantinha relações, mas, depois do Viagra, passou a ser, segundo ele mesmo diz, como os demais, na medida em que a substância promovia uma regulação das ereções do seu órgão, um limite ao gozo. Assim, quando ele tinha ereções fora da relação, justificava como sendo resíduo de sua elevada atividade sexual, ao que ele dizia “posso ter uma sexualidade controlada”, “uma vida como os outros” (NAPARSTEK, 2011NAPARSTEK, F. La direction de la cure dans le toxicomanies et l’alcoolisme. Tese de doutorado, Université Paris VIII, Saint Dennis, France. 2011., p. 106, tradução nossa). Observamos, assim, a importância de se localizar qual a função do recurso à substância na economia de gozo de cada sujeito, na medida em que o que nos orienta clinicamente é a solução que cada sujeito constrói a partir de um desenlace, a fim de se enlaçar novamente ao Outro.

A função da substância como desenlace

A função do recurso à substância como desenlace é pouco abordada para se pensar a toxicomania na psicose, pois vai na contramão da tese do recurso à substância como o que estabiliza a psicose. Contudo, a partir da experiência clínica e de casos abordados na literatura psicanalítica, observamos que a investigação da função do recurso à substância na psicose também pode se referir a soluções que não promovem, necessariamente, um apaziguamento do gozo nem um enlace ao Outro.

Briolle (2009BRIOLLE, G. Toxicomanía. Um lazo social entre otros?Pharmakon: El Lazo Social Intoxicado, n. 11. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2009.) apresenta um caso clínico que o recurso à substância, em vez de estabilizar a psicose, promove efeitos devastadores sobre o corpo, ao não colocar um limite ao excesso de gozo. Blanche, uma mulher de vinte e cinco anos, foi apresentada ao álcool e aos soníferos pela mãe. Ela dizia se lembrar pouco do pai, humilhado por sua mãe, que o enganava à vista de todos. Sua mãe desvalorizava os homens. Blanche se entregava brutalmente a todo tipo de substância, principalmente ao álcool, e também ao primeiro homem que lhe aparecia, apesar de dizer que tinha um marido bonito e dois filhos pequenos. Os estragos que a paciente promovia em seu corpo revelavam que ela encarnava “a parte má do Outro materno” e que apresentava “uma posição melancólica em que não pode existir para o Outro senão sob a forma de dejeto” (BRIOLLE, 2009BRIOLLE, G. Toxicomanía. Um lazo social entre otros?Pharmakon: El Lazo Social Intoxicado, n. 11. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2009., p. 46, tradução nossa). Os significantes pelos quais ela se nomeava, dados pelo Outro social, “mulher medíocre, má filha, vulgar”, “uma drogada louca” (BRIOLLE, 2009BRIOLLE, G. Toxicomanía. Um lazo social entre otros?Pharmakon: El Lazo Social Intoxicado, n. 11. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2009., p. 46, tradução nossa), não funcionavam como estabilizadores, nem promoviam um laço social, mas reforçavam a foraclusão e a mantinham colada à mãe na posição de objeto/dejeto.

Lacadée (2006LACADÉE, P. A modernidade irônica e a cidade de Deus. Revista Curinga: Invenções Paternas, n. 23, 2006.) se refere a esses significantes, dados pelo Outro social e que promovem estragos, como “nomes do pior”. São nomeações que se contrapõem àquelas fornecidas pelo Nome-do-Pai, orientadas pelo ideal, que se apresentam, portanto, mais na vertente do gozo que do sentido. As nomeações que se apresentam na vertente do sentido são aquelas que promovem a identificação imaginária a um significante, como no caso do “sou toxicômano” que funciona como um S1, como uma significação absoluta, fornecendo uma identidade ao sujeito e, portanto, uma estabilização do quadro psicótico. De modo contrário, no caso clínico de Blanche, a identificação aos significantes “mulher medíocre, má filha, vulga, uma drogada louca”, por estarem colados ao real, reforçam a posição de dejeto/objeto de gozo do Outro ao qual o sujeito está submetido na psicose.

Aucremanne se refere à função de desenlace que a substância pode operar nos casos de sujeitos que não estão separados do Outro, que ocupam a posição de objeto do gozo do Outro, “objeto não desejado, ou demasiado ‘querido’, objeto de capricho” (AUCREMANNE, 2011AUCREMANNE, J-L. Las Conversaciones del TyA. Pharmakon: Chifladuras Adictivas, n. 12. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2011., p. 63, tradução nossa). O gozo alcançado nesses casos pode aparecer sob a forma do “demasiado” - excesso, persecutório, intrusivo, violento; ou sob a forma de um “demasiado pouco”, nos casos do deixar cair e da negligência. Nesse viés, o autor cita o caso de um paciente para o qual o uso excessivo de heroína era devastador. Roberto, de quarenta anos, apresentava várias internações nos últimos oito anos. Ele relatava um consumo devastador de heroína, que, contudo, nem sempre foi da ordem do excesso. O paciente fazia um uso regular de heroína desde a adolescência, em relação ao qual não precisou recorrer a nenhum tratamento. Ele trabalhava regularmente, de modo que o recurso às substâncias cumpria a função de “suportar a farsa social”, o que tinha relação com algo que seu pai lhe transmitiu, segundo relata o paciente, que “a sociedade é um mundo de máscara” (AUCREMANNE, 2011AUCREMANNE, J-L. Las Conversaciones del TyA. Pharmakon: Chifladuras Adictivas, n. 12. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2011., p. 64, tradução nossa). Contudo, seu uso se tornou excessivo e devastador após a morte de sua mãe e venda da casa familiar, e também em função de uma convocação de seu filho ao lugar de pai. A partir desse momento, o que passa a promover certo apaziguamento é a internação hospitalar, que, segundo Aucremanne, toma um outro relevo e uma outra orientação para o sujeito, que “com seu sintoma, encontrou uma forma de usar a instituição” (AUCREMANNE, 2011AUCREMANNE, J-L. Las Conversaciones del TyA. Pharmakon: Chifladuras Adictivas, n. 12. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2011., p. 64, tradução nossa), na medida em que permitiu que ele se afastasse tanto dos impasses em relação à paternidade como ao consumo excessivo da heroína.

É interessante destacarmos também a função da substância, descrita como devastadora por alguns autores do campo freudiano. O termo devastação foi formulado por Lacan (1975-1976/2007LACAN, J. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. (O seminário, 23)) para falar da relação mãe-filha, mas que também pode estar presente na relação da mulher com o homem quando “o homem toma o relevo da mãe, em lugar de falicizar-la, fazê-la desejável” (SALAMONE, 2003SALAMONE, L D. La droga: síntoma o estrago?In: BOTTO, S.; NAPARSTEK, F.; SALAMONE L. D. (orgs.). El psicoanálisis aplicado a las toxicomanías. Belo Horizonte: TyA, 2003, p. 53-62., p. 56, tradução nossa). Segundo Lacan:

Se uma mulher é um sinthoma para todo homem [...] posto que o sinthoma se caracteriza justamente pela não-equivalência. Pode-se dizer que o homem é para uma mulher tudo o que quiserem, a saber, uma aflição pior que um sinthoma. [...] Trata-se mesmo de uma devastação. (LACAN, 1975-1976/2007LAURENT, É. Três observações sobre a toxicomania. In: MEZÊNCIO, ROSA M.; WILMA, M. (orgs.). Tratamento possível das toxicomanias. Belo Horizonte: Scriptum, 2014., p. 98).

Lacan (1972/2003LACAN, J. Radiofonia (1970). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.) define a devastação em seu aspecto estrutural para designar tanto a relação da mulher com sua mãe como a relação que uma mulher pode estabelecer com um homem. Assim, diante da frustação da menina em sua passagem pelo Édipo, diante da perda do amor da mãe e da hostilidade e ódio em relação a esta, a qual aponta como responsável pela sua falta de pênis, a mulher pode transferir ao seu parceiro homem “esses signos de amor, que a deixam em uma posição de dependência absoluta” (CARBONE; PAIS, 2011CARBONE, R.; PAIS, M. De es-tragos. Pharmakon: Chifladuras Adictivas, n. 12. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2011., p. 128, tradução nossa).

Segundo Salamone (2003SALAMONE, L D. La droga: síntoma o estrago?In: BOTTO, S.; NAPARSTEK, F.; SALAMONE L. D. (orgs.). El psicoanálisis aplicado a las toxicomanías. Belo Horizonte: TyA, 2003, p. 53-62.), a droga promove a devastação justamente no ponto em que ela aciona o supereu materno, essa dimensão devastadora do desejo da mãe, essa “boca do jacaré” que coloca para o sujeito a ameaça de devorá-lo, o empurrando a um gozo desmedido. Assim, do lado do homem, a inscrição do significante fálico permite que se coloque um rolo, de pedra, na boca do crocodilo que é a mãe “Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão - a mãe é isso. Não se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar sua bocarra. O desejo da mãe é isso” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. Radiofonia (1970). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003., p. 105). Enquanto do lado feminino, como não há o significante fálico que limite o gozo, pode ocorrer a devastação ou a construção de alguma barreira ao gozo pela via do amor.

Esses casos clínicos apresentam uma função do recurso à substância distinta de algo que trata ou apazigua o gozo, ao apontarem para um desenlace do Outro e um gozo da ordem do excesso, que promove efeitos devastadores sobre o corpo. A substância revela, então, sua outra face, ou função, ao reforçar a foraclusão e intoxicar o sujeito, podendo mesmo levá-lo à morte. Assim, diante das diferentes funções que a substância pode ter na economia de gozo de cada um, a psicanálise oferece uma escuta para que, a partir da fala, o sujeito possa se enlaçar ao Outro e construir novas soluções mais eficazes e duradouras do que aquelas alcançadas com a substância.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do aumento de toxicômanos, e principalmente de psicóticos que fazem o uso de substância, a psicanálise defende que não há nada mais diferente de um toxicômano do que outro toxicômano! A ética da psicanálise, portanto, é do um a um, da singularidade, de uma direção de tratamento orientada pela investigação da função que a substância cumpre na economia de gozo de cada sujeito.

Assim, o analista deve ter cautela na clínica com toxicômanos, tanto em relação ao diagnóstico como em relação à direção do tratamento, na medida em que sua intervenção em relação ao consumo depende de uma escuta singular sobre a solução toxicômana de cada um. Dessa forma, o analista tem como guia não somente a clínica estrutural, mas também as contribuições propostas pela clínica dos nós e da psicose ordinária, que possibilitam uma investigação da função do recurso à substância para cada sujeito a partir dos enlaces e desenlaces em relação ao Outro.

Como podemos observar, o trabalho psicanalítico na clínica das toxicomanias não é fácil. Mas é importante sustentar, nessa clínica árida o desejo do analista, desejo que surge para-além da demanda do paciente; trata-se de uma presença que implica a escuta e promove a condição de fala. Isto que nos permite avançar no sentido de um consumo mais regulado, localizado, ou, ainda, no sentido da construção de novas soluções, novos modos de gozo, que tenham menos efeitos secundários do que a substância e que sejam menos danosos para os sujeitos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2018
  • Aceito
    10 Jun 2020
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