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EM PEDAÇOS: A FRAGMENTAÇÃO NA OBRA DE SÁNDOR FERENCZI* * Artigo baseado em conferência apresentada em Fragmentations. Meeting on Sándor Ferenczi Studies and Research. Lisboa: 29 fev. 2020.

In pieces: fragmentation in the work of sándor ferenczi

RESUMO:

Existem duas maneiras de se pensar a fragmentação subjetiva na obra de Ferenczi. Os fragmentos podem resultar de um choque ou podem estar relacionados a uma multiplicidade original da qual a própria subjetividade deriva. Neste artigo, levo em consideração as duas perspectivas nos textos ferenczianos, enfocando mais uma delas - o fragmento como irredutível à unidade. Trata-se de uma questão contemporânea, uma vez que as subjetividades e suas relações afetivas, estéticas e políticas funcionam hoje, predominantemente, sob forma fragmentária.

Palavras-chave:
Sándor Ferenczi; fragmentação; trauma; destrutividade

Abstract:

There are two ways to conceive the idea of fragmentation in Ferenczi’s work. They may result from a shock or they may be related to an original multiplicity from which subjectivity itself derives. In this paper I take into consideration the two perspectives of fragments in Ferenczian articles, but focusing more on one of them - the idea of fragment as irreducible to a unity. It is a contemporary issue, since subjectivities, and their affective, aesthetic and political relations work predominantly in fragmentary mode today.

Keywords:
Sándor Ferenczi; fragmentation; trauma; destruticveness

INTRODUÇÂO

O filósofo Gilles Deleuze (1953/2006DELEUZE, G. Causas e razões das ilhas desertas (1953). In: DELEUZE, G. A ilha deserta e outros textos (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 17-22.) faz uma distinção entre dois tipos de ilhas. Existem ilhas que se formam ao se separar do continente; essas ilhas continentais, como são chamadas, são ilhas acidentais, derivadas. Nasceram de uma desarticulação, de uma catástrofe, de uma quebra. Mas existem também as ilhas oceânicas. Estas são originárias; não derivam da fratura do continente. São criadas a partir de erupções submarinas e surgem, desde o início, como territórios independentes, com sua própria perspectiva.

Os dois tipos de ilha sugerem dois modos de se pensar os fragmentos. As ilhas continentais são pedaços referidos a uma unidade primeira; o fragmento nesse caso é derivado, como no caso de um vaso que se quebra ou de um corpo que se despedaça. Porém, é possível se pensar neles de outro modo: assim como as ilhas oceânicas, os fragmentos não seriam referidos a uma realidade preexistente; seriam múltiplos, espalhados, independentes e, como tais, irredutíveis à unidade. Em seu O dialeto dos fragmentos (1798/1997), o filósofo alemão Friedrich Schlegel nos explica como podemos olhar para esses pedaços: “Um fragmento tem que ser como uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito e acabado em si mesmo, como um porco espinho” (SCHLEGEL, 1798/1997SCHLEGEL, F. O dialeto dos fragmentos (1798). São Paulo: Iluminuras , 1987., p. 82).

As duas maneiras de conceber os fragmentos estão presentes em Ferenczi. Ele é um pensador das descontinuidades, das rupturas, dos pedaços e dos restos. E existem, em sua obra, duas formas de contemplá-los: os fragmentos podem surgir em decorrência de um trauma ou de uma catástrofe, ou podem ter estado lá desde o início, numa espécie de multiplicidade originária da qual a própria subjetividade deriva. Creio que é importante considerar esses dois modos fragmentários sem a prevalência de um sobre o outro. E não somente porque a presença dos dois seria mais fiel a Ferenczi e às nossas situações clínicas. A questão é que, se consideramos os fragmentos apenas como despedaçamento de uma unidade primeira, corremos o risco de pautar nossa clínica pela bandeira da unidade ou da identidade. Em contrapartida, se consideramos apenas a multiplicidade originária sem os traumas e as dores que a vida traz, corremos o risco de transformar o fragmento em si mesmo em uma bandeira política e em um novo tipo de sistema, justamente aquilo que Ferenczi tentava evitar na sua teoria e clínica.

Feita essa ressalva, pretendo, neste artigo, levar em conta as duas perspectivas sobre os fragmentos nos textos ferenczianos, dedicando-me mais a uma delas - a das ilhas oceânicas. E isso por dois motivos. A fragmentação como vaso estilhaçado, resultado do choque - como nas ilhas continentais -, já foi muito abordada nos trabalhos sobre Ferenczi, mas poucos autores se ocuparam desse pendor original para o fragmento que encontramos em alguns textos seus. Creio, além disso, que se trata de um tema bastante atual, que nossos pacientes e nossos encontros no mundo nos obrigam a enfrentar: hoje, as subjetividades, as relações afetivas, estéticas e políticas se apresentam frequentemente sob um modo fragmentário. Em um belo livro sobre as transformações históricas da sensibilidade, Claudine Haroche (2008HAROCHE, C. A condição sensível: formas e maneiras de sentir no Ocidente. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008., p. 219) observa que o eu e a própria ideia de eu, sua concepção como lugar e condição de síntese, estão atualmente em questão. Não se trata simplesmente de reconhecer o descentramento do sujeito a partir do inconsciente; mais do que isso, trata-se de admitir sua fragmentação, atomização ou dispersão: “Os processos de subjetivação se modificaram com as formas de tecnologia contemporâneas que induzem a aceleração, a instantaneidade, o imediatismo [...] Os indivíduos são bombardeados por imagens e sons contínuos, levando à fragmentação e à dispersão, num predomínio das sensações sobre as percepções” (HAROCHE, 2008HAROCHE, C. A condição sensível: formas e maneiras de sentir no Ocidente. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008., p. 201-202).

Por conta disso, somos, enquanto psicanalistas, convocados a responder a um problema ético fundamental: vamos manter uma postura nostálgica, lamentando que as formas fragmentárias tenham tomado o espaço das formas mais sistemáticas ou unitárias, ou vamos refinar nossa sensibilidade e nossa percepção para aquilo que essas formas subjetivas e estéticas trazem de novo, de digno e de criativo? Como nos posicionarmos em relação aos pacientes que, pensando e falando de maneira fragmentária, mostram-se refratários à associação livre; aos pacientes que não dispõem de tempo para um tratamento de duas ou três vezes por semana; aos pacientes que não apresentam uma continuidade em suas relações e em sua vida?

Para Ferenczi, somos, no início, ilhas oceânicas. Essa fragmentação originária fica mais clara se entendemos dois conceitos: o de autotomia e o de autoplastia. Descrita por zoologistas, a autotomia é uma defesa utilizada por alguns animais que, diante de uma situação de perigo, se desfazem de parte de seu próprio corpo para salvar o restante. Ferenczi (1924/1993FERENCZI, S. Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade (1924). São Paulo: Martins Fontes , 1993, p. 255-325. (Obras completas, Psicanálise III)) relaciona este livrar-se daquilo que incomoda ao preço de livrar-se de uma parte de si ao modo pelo qual os humanos reagem ao trauma, utilizando uma defesa mais primária do que o recalcamento: a clivagem psíquica. É sob o modelo da autotomia que Ferenczi a concebe. Na clivagem, o eu também destrói a si mesmo ou partes de si, fragmentando-se para salvaguardar a sobrevivência psíquica. Decompor o eu em pedaços pode ser vantajoso, como explica Ferenczi na nota de 21.02.1932 do Diário Clínico: “Fragmentação. Vantagens psíquicas: poupa-se o desprazer que resulta da colocação em evidência de certas coerências, abandonando essas coerências. A clivagem em duas personalidades que nada querem saber uma da outra, e que estão agrupadas em torno de diferentes tendências, economiza o conflito subjetivo” (FERENCZI, 1932FERENCZI, S. Diário Clínico (1932). São Paulo: Martins Fontes , 1990., p. 72).

O outro conceito importante para se entender o valor dos fragmentos é o de autoplastia (FERENCZI, 1924/1993FERENCZI, S. Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade (1924). São Paulo: Martins Fontes , 1993, p. 255-325. (Obras completas, Psicanálise III)). Na impossibilidade de transformar o mundo para adequá-lo a si - comportamento denominado aloplástico -, os seres vivos terminam por responder às catástrofes transformando seu corpo, seu psiquismo ou seu modo de viver - comportamento denominado autoplástico. A questão é que essa autoplastia é impossível sem a destruição, parcial ou total, do corpo e do eu ou, em outros termos: a autoplastia implica a autotomia, a fragmentação, como escreve Ferenczi:

‘Comoção’, reação a uma excitação externa ou interna num modo mais autoplástico (que modifica o eu) do que aloplástico (que modifica a excitação). Essa neoformação do eu é impossível sem uma prévia destruição parcial ou total, ou sem dissolução do eu precedente. Um novo Ego não pode ser formado diretamente a partir do Ego precedente, mas a partir de fragmentos, produtos mais ou menos elementares da decomposição deste último. (FERENCZI, 1932FERENCZI, S. Diário Clínico (1932). São Paulo: Martins Fontes , 1990., p. 227).

Ao fragmentar-se, o eu fica mais pulverizado, adquire maior plasticidade; um eu mais espalhado e poroso pode adaptar-se mais facilmente a uma nova situação ou a um trauma. Há uma positividade na fragmentação, como menciona Ferenczi na nota de 21.09.1930: “A fragmentação pode ser vantajosa: a) pela criação de superfícies maiores contra o mundo circundante, pela possibilidade de uma descarga afetiva aumentada; sob o ângulo psicológico: o abandono da concentração, da percepção unificada, faz desaparecer pelo menos o sofrimento simultâneo de um desprazer com múltiplas faces. Cada fragmento sofre por si mesmo; a unificação insuportável de todas as qualidades e quantidades de sofrimento é eliminada” (FERENCZI, 1930/1992FERENCZI, S. Each adaptation is preceeded by an inhibited attempt at splitting (1930c). Notes and fragments. In: FERENCZI, S. Final contributions to the problems and methods of psychoanalysis. London: Karnac, 1994, p. 220., p. 248).

Até aqui, porém, estamos falando de fragmentação como defesa, de clivagem como consequência de um trauma. Estamos falando de ilhas continentais e não de ilhas oceânicas, que aludem a fragmentos como condição originária. Essa perspectiva começa a se tornar possível quando Ferenczi indica que a autoplastia e a autotomia, processos que produzem fragmentação, não são apenas mecanismos de defesa, mas também modos de subjetivação e de expansão psíquica.

Para Ferenczi, todo processo criativo é necessariamente autoplástico e, por esse motivo, destruição e criação aparecem conjugados: “O processo de destruição tem por consequência a produtividade” (FERENCZI, 1932/1990FERENCZI, S. Diário Clínico (1932). São Paulo: Martins Fontes , 1990., p. 73). A decomposição é essencial para a criação e a reconstrução da vida, como ele explica em Thalassa: os organismos são levados “a se reconstruir a partir de seus próprios restos, utilizando até mesmo a força inversa produzida pela destruição parcial a fim de dar prosseguimento ao seu desenvolvimento” (FERENCZI, 1924/1993FERENCZI, S. Thalassa: ensaio sobre a teoria da genitalidade (1924). São Paulo: Martins Fontes , 1993, p. 255-325. (Obras completas, Psicanálise III), p. 322). Ferenczi não concebe a vida sem destruição. Entre ambas, porém, não existe conflito. Trata-se de um modo de pensar não dualista, que admite a pulsão de morte sem que esta se oponha à pulsão de vida. Em vez de oposição ou conflito, teríamos tendências de composição e tendências de decomposição participando de um movimento vital mais amplo: “Mesmo a matéria tida como ‘morta’, logo, inorgânica, contém um germe de vida e, por conseguinte, tendências regressivas rumo ao complexo de ordem superior que lhes deu origem [...] Não existe vida sem participação de tendências de morte” (FERENCZI, 1924/1993FERENCZI, S. Diário Clínico (1932). São Paulo: Martins Fontes , 1990., p. 325). Poderíamos acrescentar, seguindo Ferenczi, que não existe criação sem participação das tendências destrutivas. Traumas e catástrofes não são empecilhos para o desenvolvimento e a atividade criadora, mas justamente aquilo que fomenta ambos. Toda situação de catástrofe, ele escreve em Thalassa, “desperta a tendência à autotomia que dormita no organismo […], e os elementos desse começo de decomposição passam a ser os materiais da evolução ulterior” (FERENCZI, 1924/1993FERENCZI, S. Diário Clínico (1932). São Paulo: Martins Fontes , 1990., p. 321). Este processo é descrito poeticamente em Autotomia, de Wislawa Szymborska: “Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:/deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo/salvando-se com a outra metade. /Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação” (SZYMBORSKA, 2016SZYMBORSKA, W. Um amor feliz. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 142). O poema alude também a uma espécie de cálculo a partir do qual os organismos aceitam, de maneira ativa, sua autodestruição: “Se há justiça, ei-la aqui/ Morrer só o necessário, sem exceder a medida/ Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou”.

O processo de destruição de si também é utilizado por Ferenczi para pensar a criação de novos órgãos e de novas possibilidades subjetivas e culturais: a partir dos restos de um processo autodestrutivo, a vida inventa formas novas ou mais sofisticadas, seja no plano da natureza ou no plano da cultura, já que o psicanalista húngaro não separa os dois. Tanto a respiração pulmonar, a digestão, a vertebralidade, quanto a memória, a inteligência, o pensamento, a linguagem, teriam se tornado possíveis a partir de uma destrutividade criadora. Nesse ponto, Ferenczi concorda com Sabina Spilrein, que propõe “a destruição como causa do devir”: “O mais surpreendente na autodestruição é o fato de que, neste caso, (na adaptação, o reconhecimento do mundo circundante, a formulação de um julgamento objetivo) a destruição converte-se verdadeiramente na ‘causa do devir’” (FERENCZI, 1926/1993FERENCZI, S. O problema da afirmação do desprazer (1926). São Paulo: Martins Fontes , 1993, p. 393-404. (Obras completas, Psicanálise III), p. 402). O próprio modo ferencziano de pensar o trauma e seus efeitos dá mostras do potencial criador das tendências destrutivas. Para ele, o trauma não seria apenas uma ferida na memória, mas justamente aquilo que deveria constituí-la: “A memória é uma coleção de cicatrizes de choques no eu” (FERENCZI, 1932FERENCZI, S. Diário Clínico (1932). São Paulo: Martins Fontes , 1990., p. 150). É também dessa maneira que ele explica o nascimento do intelecto: “O intelecto só nasce a partir do sofrimento […], não simplesmente de sofrimentos comuns, mas só do sofrimento traumático” (FERENCZI, 1931/1992, p. 254). Mesmo a imitação que provém de situações aterrorizantes - aquilo que Ferenczi chama de identificação com o agressor - encontra-se na raiz da memória e da capacidade narrativa: “[Uma parte do ego] tenta tirar proveito dessa demolição. As impressões de mimetismo traumático são utilizadas como traços mnésicos úteis ao Ego [...] A fala é um relato da história do trauma” (FERENCZI, 1932FERENCZI, S. Diário Clínico (1932). São Paulo: Martins Fontes , 1990., p. 151).

Somente nos últimos textos de Ferenczi conseguimos compreender o motivo mais profundo desse empuxo à fragmentação como estratégia de defesa e, ao mesmo tempo, de criação de formas novas. É quando aparece o modo fragmentário originário, não derivado e irredutível a uma unidade primeira. Ele é descrito inicialmente no texto A criança mal acolhida e sua pulsão de morte (1929/1992aFERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte (1929). São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 47-51. (Obras completas, Psicanálise IV)). Ao investigar a gênese das tendências inconscientes de autodestruição, Ferenczi se dá conta de que essas tendências estão presentes desde o nascimento: diferentemente do adulto, o bebê estaria “muito mais perto do não ser individual, do qual não foi afastado pela experiência da vida” (FERENCZI, 1929/1992aFERENCZI, S. Traumatismo e aspiração à cura (1930a). São Paulo: Martins Fontes , 1992, p. 248. (Obras completas, Psicanálise IV - Notas e fragmentos) , p. 50). “Os seres humanos no início de suas vidas não possuem individualidade”, escreve Ferenczi (1932/1990, p. 189). Seria então muito mais fácil deslizar novamente para esse estado de não ser diante das dificuldades trazidas pelo ambiente, isto é, diante da falta de acolhimento dos pais. O bom acolhimento seria capaz de criar os contornos subjetivos necessários para um sujeito resistir aos ataques do mundo, na contramão das tendências para a autodestruição, que são fortes no nascimento. O psiquismo de um bebê, diz Ferenczi (1932/1990FERENCZI, S. Diário Clínico (1932). São Paulo: Martins Fontes , 1990., p. 189), “não terminou de se cristalizar, mais ainda se encontra, de certa forma, num estado de dissolução”.

Ferenczi não considera essa falta de defesas de maneira apenas negativa; a criança desprovida de filtros possui uma superfície de comunicação mais ampla com o universo, o que permite que ela “saiba muito mais sobre o mundo do que nos permite o nosso estreito horizonte”. (FERENCZI, 1932/1990FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte (1929). São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 47-51. (Obras completas, Psicanálise IV), p. 190). De fato, os órgãos dos sentidos dos adultos servem “no essencial, para excluir uma grande parte do mundo externo (de fato, tudo, exceto o que é útil)” (FERENCZI, 1932/1990FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte (1929). São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 47-51. (Obras completas, Psicanálise IV), p. 190). Devido a este estado dissolvido e à falta de meios de proteção, as crianças pequenas teriam uma sensibilidade bem maior do que a dos adultos, mantendo-se “em ressonância com o mundo circundante”. (FERENCZI, 1932/1990FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte (1929). São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 47-51. (Obras completas, Psicanálise IV), p. 117).

Mas existe outro modo de pensar este estado. Antes da concepção, escreve Ferenczi, “a pessoa ainda estava, de alguma forma, dissolvida no universo” (FERENCZI, 1932/1990FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte (1929). São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 47-51. (Obras completas, Psicanálise IV), p. 117). Nessa mesma nota, ele propõe um paralelo fisiológico para essa ideia: “O indivíduo, antes da concepção, estava repartido em, pelo menos, duas metades. Uma parte formava o elemento constitutivo da mãe, a outra, do pai” (FERENCZI, 1932/1990FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte (1929). São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 47-51. (Obras completas, Psicanálise IV), p. 117). A esta partilha inicial, Ferenczi dará o nome de “clivagem precoce”, apresentando sobre ela uma hipótese inusitada: “Formula-se neste ponto a questão muito precisa de saber se este estado de clivagem precoce não é a prefiguração de todas as clivagens ulteriores e também a da clivagem da personalidade na psicose” (FERENCZI, 1932/1990FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte (1929). São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 47-51. (Obras completas, Psicanálise IV), p. 117). Desse modo, é proposta uma modalidade de cisão que não se reduz à reação a um perigo ou a um mecanismo de defesa. Trata-se de uma clivagem originária, fornecendo o modelo para todas as que lhe seguirão; as autoclivagens narcísicas, decorrentes de traumas, estariam reatualizando a cisão primordial. É a essa condição originária que nos referimos quando usamos a imagem das ilhas oceânicas, de uma multiplicidade de fragmentos irredutível a uma unidade primeira. Ao falar de clivagem precoce, Ferenczi sugere que não nos fragmentamos apenas como resultado de um trauma; nosso estado originário já seria dissolvido, clivado, fragmentado, e a unidade só passa a ser mantida “pela pressão do mundo circundante” (FERENCZI, 1932/1992FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte (1929). São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 47-51. (Obras completas, Psicanálise IV), p. 239).

Essa clivagem precoce nada tem a ver com uma desintegração. Trata-se de um estado primevo, anterior à própria diferenciação entre integração, não integração ou desintegração. É no empuxo deste estado inicial que as mudanças desfavoráveis no meio ambiente podem provocar mais tarde a desintegração, entendida como retorno ao modo fragmentário. Mas ainda que possa prefigurar as clivagens ulteriores, a clivagem inicial nada tem de patológica em si mesma. É uma clivagem primária, constitutiva, o que significa dizer que ela é uma forma de estruturar o psiquismo, possibilitando um modo legítimo e não patológico de subjetivar-se.

É através desse modo fragmentário que, segundo Ferenczi, uma criança se relaciona com o mundo exterior. A porosidade e a plasticidade desta forma de funcionamento permitem que a criança faça mais do que se identificar com figuras: ela é capaz de mimetizar o mundo. Como afirmou Walter Benjamin (1933/1985BENJAMIN, W. A doutrina das semelhanças (1933). São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 108-113. (Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política, 1)) - e é curiosa a proximidade entre esses dois pensadores, Ferenczi e Benjamin - as crianças, quando brincam, não se transformam apenas em médico ou professor, identificando-se com figuras parentais, mas mimetizam também moinhos de vento e trens, objetos do mundo. Esse funcionamento mimético, implicando uma adaptação autoplástica ao exterior, é o que prevalece na linguagem da ternura. (HÁRS, 2015HÁRS, G. P. O conceito de paixão no Diário Clínico de Ferenczi. Trad. Luís Otávio Nicodemos. Tempo Psicanalítico, v. 47, n. 1, p. 9-21, 2015.). Nesse aspecto, a ternura de Ferenczi é bem diferente da ternura de Freud: a ternura freudiana é uma paixão inibida em seu alvo, possuindo uma direção aloplástica, enquanto que a ternura ferencziana é um fenômeno autoplástico, sendo condição básica de um tipo de inteligência sensível que funciona num registro diverso tanto da razão quanto da paixão. (HÁRS, 2015HÁRS, G. P. O conceito de paixão no Diário Clínico de Ferenczi. Trad. Luís Otávio Nicodemos. Tempo Psicanalítico, v. 47, n. 1, p. 9-21, 2015.). O psicanalista húngaro chega a mencionar a “suprema sabedoria e onisciência infantis”, afirmando que é a regressão a este estado poroso que torna os médiuns, os psicóticos e os bebês sábios tão sensíveis e sagazes nas suas relações com o ambiente (FERENCZI, 1932/1990FERENCZI, S. Diário Clínico (1932). São Paulo: Martins Fontes , 1990., p. 118).

A ideia do fragmento enquanto modo originário encontra algumas dificuldades na tradução latina dos textos de Ferenczi. Um bom exemplo se encontra no pequeno texto (também ele um fragmento) intitulado Toda adaptação é precedida de uma tentativa inibida de desintegração, de 10.08.1930. “Todo ser vivo reage a uma excitação de desprazer com uma dissolução que começa por uma fragmentação”, escreve Ferenczi (1930b/1992FERENCZI, S. Toda adaptação é precedida de uma tentativa inibida de desintegração (1930b). São Paulo: Martins Fontes , 1992, p. 239. (Obras completas, Psicanálise IV - Notas e fragmentos), p. 239). Ele explica, então, como a plasticidade adquirida pela fragmentação torna possível uma nova adaptação. No texto original em alemão e na tradução inglesa, lemos:

A autoplastia precede sempre a autotomia. A tendência para a autotomia é inicialmente completa; entretanto, uma corrente oposta (pulsão de auto-conservação, pulsão de vida) inibe a desintegração e impele para uma nova consolidação, desde que a plasticidade resultante da fragmentação o permita.2 2 Na tradução inglesa, lê-se: “Consequently autoplastic adaptation is always preceded by autotomy. The tendency to autotomy in the first instance tends to be complete. Yet an opposite movement (instinct of self-preservation, life-instinct) inhibits the disintegration and drives toward a new consolidation, as soon as this has been made possible by the plasticity developed in the course of fragmentation”. (FERENCZI, 1930c/1994FERENCZI, S. Each adaptation is preceeded by an inhibited attempt at splitting (1930c). Notes and fragments. In: FERENCZI, S. Final contributions to the problems and methods of psychoanalysis. London: Karnac, 1994, p. 220., p. 220, grifos meus).

É surpreendente que a tradução francesa transmita a concepção contrária, e que as traduções espanhola e brasileira, baseadas na tradução francesa, tenham reproduzido o erro. Em português, lemos: “A autoplastia precede sempre a autonomia. A tendência para a autonomia é inicialmente completa” (FERENCZI, 1930b/1992FERENCZI, S. Diário Clínico (1932). São Paulo: Martins Fontes , 1990., p. 239, grifos meus). Ao substituir autotomia por autonomia, passa-se a ideia de que nossa tendência primeira é para a individualidade, e não para a fragmentação, como consta no texto original. Para Ferenczi, mesmo a plasticidade resulta da fragmentação, e é ela que nos fornece uma adaptabilidade corporal e psíquica. Não caminhamos, neste caso, da unidade para a cisão, e, sim, ao contrário, dos fragmentos para uma unidade provisória.

Essa ideia é importante para a clínica, principalmente em nossos dias. Se consideramos as ilhas oceânicas, admitimos uma fragmentação que não deriva de uma integração preexistente; nesse caso, nosso objetivo último, na clínica, não pode ser o de retornar a ela. Buscar integrar as partes clivadas implica, muitas vezes, em normatizar o funcionamento psíquico dos pacientes que nos procuram, submetendo-os a um modelo subjetivo que estaria servindo de padrão universal para todos os outros. Um modelo que, na verdade, nos espelha. Para escaparmos desse tipo de aspiração, seria preciso abrir mão das pretensões unificadoras e do nosso próprio narcisismo. Como afirmam Mello, Carneiro e Magalhães (2019MELLO, R. M., CARNEIRO, T. F.; MAGALHÃES, A. S. Trauma, clivagem e progressão intelectual: um estudo sobre o bebê sábio ferencziano. Psicologia em Estudo, v. 24, 2019. Disponível em:https://doi.org/10.4025/psicolestud.v24i0.45390. Acesso em: 03 jul. 2020.
https://doi.org/10.4025/psicolestud.v24i...
, p. 10): “não se trata de desclivar o psiquismo”.

Mas, nesse caso, como trabalhar com a fragmentação? Vimos que, em Ferenczi, a fragmentação não é sempre patológica; ela constitui a vida psíquica e a enriquece. Por isso, uma vida fragmentária não é, necessariamente, uma vida pobre; a fragmentação cria superfícies maiores para lidar com o mundo circundante e, com isso, permite que se desenvolvam a percepção, a memória e a capacidade de pensar. Por isso, Ferenczi (1932/1990FERENCZI, S. Diário Clínico (1932). São Paulo: Martins Fontes , 1990., p. 150) afirma que a destruição do eu é a condição prévia da percepção objetiva. Nesse sentido, fragmentar-se é um trabalho, e um trabalho criador (KNOBLOCH, 1998KNOBLOCH. F. Le travail du trauma. Les lettres de la Societé de Psychanalyse Freudienne, v. 2, n. 4, 1998.). O eu ferencziano não é um eu circunscrito, mas um eu que se alarga constantemente, tanto pelos choques quanto pelas introjeções. Um eu que só se constitui na medida em que se fragmenta ou se dissolve.

Muitos de nossos pacientes funcionam e se expressam sob uma forma prioritariamente fragmentária: silêncios, falas interrompidas ou pouco encadeadas, dificuldades com a associação livre, oscilações afetivas. O desafio do analista é o de acolher a fragmentação sem qualquer expectativa de coerência ou sistematicidade, acompanhando as variações afetivas de seus pacientes e deixando-se sensibilizar por elas. Isso significa suportar estes momentos fragmentários sem buscar unir as partes, nem mesmo confrontá-las entre si - “você está dizendo isso agora, mas no início da sessão disse o contrário”, atitude de quem pretende pegar o sujeito em flagrante delito. Se seguirmos com Ferenczi, a ideia não é aprofundar a cisão nem eliminá-la, e, sim, acolhê-la como modo válido de ser, com todo o seu inacabado, seus rasgos e seus remendos.

Ao invés de colar o que está partido, trata-se de dar a isso um destino. Se o analista sustenta e positiva a fragmentação como modo subjetivo legítimo, o paciente se sente mais à vontade para se deslocar por entre os pedaços, deixando de se culpar por não conseguir uma coerência ou não sentir-se viável como pessoa. O sofrimento do sujeito decorre, na maior parte das vezes, do seu esforço fracassado de integração. O ambiente não lhe permitiu viver tranquilamente suas experiências de não integração, ou, o que vem a resultar no mesmo, lhe impôs um modo de se integrar sem levar e conta seu ritmo e seu modo de ser. Aprisionado entre a imposição de integração e sua própria impossibilidade, o sujeito não é capaz de dar um destino para os fragmentos que o constituem. Se abandonamos esse ímpeto integrador e propiciamos ao paciente uma experiência diferente, trabalhando com seus fragmentos um a um, a “culpabilidade por inadequação” da qual ele sofria, desaparece. O sujeito se torna capaz de transitar sem culpa pelos pedaços, de perceber neles uma força e de lhes fornecer um destino e um sentido, sem se preocupar em reuni-los. A integração é um destino possível e legítimo para um sujeito em análise, mas ele está longe de ser o único. Na experiência analítica, o paciente será capaz de dar um rumo aos seus fragmentos, e não cabe a nós demarcá-lo antecipadamente ou por ele.

Uma análise não é simplesmente um encontro no qual se decifra o sofrimento, se desvela segredos da existência ou se religa o que está separado. Mesmo que possa ocorrer, não é isso o fundamental de uma experiência analítica. O que faz diferença numa análise, como afirmou Pontalis (2014PONTALIS, J. B. Entrevista com J. B. Pontalis. In: SELAIBE, A.; CARVALHO, A. (orgs). Psicanálise Entrevista, 2. São Paulo: Estação Liberdade, 2014.), é a experiência de intimidade. Se o analista acompanha as diversas variações subjetivas de um paciente, ainda que elas não possuam encadeamento ou coerência, instaura-se uma intimidade que não possui equivalente em nenhum outro lugar, em nenhuma outra forma de relação, para além do dizível, narrável ou integrável.

REFERÊNCIAS

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  • FERENCZI, S. Traumatismo e aspiração à cura (1930a). São Paulo: Martins Fontes , 1992, p. 248. (Obras completas, Psicanálise IV - Notas e fragmentos)
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    » https://doi.org/10.4025/psicolestud.v24i0.45390
  • PONTALIS, J. B. Entrevista com J. B. Pontalis. In: SELAIBE, A.; CARVALHO, A. (orgs). Psicanálise Entrevista, 2. São Paulo: Estação Liberdade, 2014.
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  • SZYMBORSKA, W. Um amor feliz São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
  • *
    Artigo baseado em conferência apresentada em Fragmentations. Meeting on Sándor Ferenczi Studies and Research. Lisboa: 29 fev. 2020.
  • 2
    Na tradução inglesa, lê-se: “Consequently autoplastic adaptation is always preceded by autotomy. The tendency to autotomy in the first instance tends to be complete. Yet an opposite movement (instinct of self-preservation, life-instinct) inhibits the disintegration and drives toward a new consolidation, as soon as this has been made possible by the plasticity developed in the course of fragmentation”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2020
  • Aceito
    19 Jan 2021
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