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A DEMANDA MATERNA POR ATENDIMENTO INFANTIL: UM ESTUDO PSICANALÍTICO DE CASO

La demanda materna de cuidado infantil: un estudio psicoanalítico de caso

Maternal demand for child care: a psychoanalytic study of case.

RESUMO:

Este trabalho consiste em um estudo de caso que enfoca as motivações subjetivas implicadas na demanda de uma mãe por atendimento clínico de seu filho no Serviço de Psicologia Aplicada da Faculdade Católica Rainha do Sertão. A pesquisa foi construída a partir do método clínico psicanalítico, que permitiu o levantamento de certas nuanças psíquicas inacessíveis de outra forma. O material colhido nos atendimentos foi igualmente analisado a partir do arcabouço conceitual da Psicanálise. No decorrer dos atendimentos realizados, pôde-se apontar e deslindar determinadas formações fantasísticas singulares implicadas na demanda por atendimento para o filho.

Palavras-chave:
demanda; fantasia; alienação

Abstract:

This paper is about a case study that investigates the subjective motivations involved in a mother’s demand for medical care for her child in the Department of Applied Psychology (DAP), at Rainha do Sertão Catholic Faculty. The research was constructed from the psychoanalytic clinical method that allowed the survey of certain psychological nuances, inaccessible in another way. The material, collected during the sessions, was also analyzed from the conceptual framework of Psychoanalysis. Throughout the medical services that were provided, we could point out and analyze certain fantasistic unique formations involved in the demand for child medical care.

Keywords:
demand; fantasy; alienation

Resumen:

Este trabajo es un estudio de caso que investiga las motivaciones subjetivas involucradas en la demanda de una madre para el cuidado clínico de su hijo por el Servicio de Psicología Aplicada de la Universidad Católico Reina del Sertão. La investigación fue construida a partir del método clínico psicoanalítico, lo que permitió la supresión de algunos matices psíquicos inaccesibles de otro modo. El material recogido en la atención también se analizó desde el marco conceptual del psicoanálisis. Durante las consultas realizadas, podemos señalar y analizar ciertas formaciones fantasmáticas naturales involucradas en la demanda de atención para el niño.

Palabras clave:
demanda; fantasía; alienación

1 INTRODUÇÃO

Diante do aumento da demanda por atendimento de crianças no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Faculdade Católica Rainha do Sertão (FCRS) feita pelos pais ou através de encaminhamentos de especialistas, surge uma interrogação relativa às suas razões. Como ponto de partida, pergunta-se: quais são as motivações psíquicas dos pais que estão no bojo dessa busca por diagnóstico de seus filhos?

Com o intuito de responder a questão levantada, utiliza-se o cotejamento teórico da empiria clínica a partir de algumas elaborações conceituais psicanalíticas, entre elas o sintoma e sua relação com a família, o sujeito da linguagem, o processo de alienação e os efeitos da popularização do discurso da psiquiatria descritiva no processo de patologização da vida cotidiana.

Tem-se como objetivos da presente pesquisa compreender as motivações parentais para a busca de tratamento e confirmação diagnóstica de supostos transtornos mentais através do Serviço de Psicologia Aplicada da FCRS, bem como analisar as articulações entre o desejo materno e o discurso psiquiátrico descritivo, cada vez mais entranhado no senso comum.

Os pressupostos psicanalíticos, que estruturam este estudo de caso, consideram a singularidade psíquica do sujeito implicado no tratamento, evitando, dessa forma, as generalizações apriorísticas e certos imperativos discursivos da normalidade e do “bem viver”. Conforme os rumos do caso em questão, a demanda materna inicial por atendimento do filho cedeu espaço à solicitação de atendimento para si. As queixas se modificaram e a criança, que antes estava alienada ao discurso psicopatológico hegemônico da psiquiatria descritiva, desapareceu da fala materna. O fato aponta para uma amenização do furor alienante da mãe ao significante psiquiátrico transmitido por ela ao filho.

A resultante dissociação da criança do rígido lugar instituído pelo significante psiquiátrico só foi possível pela emergência do desejo da cliente para além do filho. De alguma forma, no decorrer do tratamento, o desejo da cliente deslocou-se do filho, enquanto lugar objetal de criança “doente”, para outros objetos, como será descrito.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Este estudo de caso vem indagar sobre os fatores psíquicos implícitos nas demandas dos pais por uma confirmação diagnóstica ou tratamento de supostos transtornos mentais em seus filhos. Para tanto, fazem-se necessárias a definição e a abordagem de várias nuanças da questão, que envolvem, principalmente, a teia de sintomas familiares e os efeitos do discurso dos especialistas e suas categorias diagnósticas. Em vista disso, utilizar-se-á o referencial teórico da Psicanálise. A seguir, será exposto brevemente um apanhado conceitual que será fundamental na construção do percurso investigativo.

2.1 O sujeito da linguagem

Para a Psicanálise, a linguagem é o elemento fundante e estruturante do psiquismo, pois o sujeito, mesmo antes de nascer, é falado e desejado pelo Outro1 1 Outro: conceito de Lacan referente à função de fornecimento de significantes ao sujeito. . Esse campo dos significantes, nomeado por Outro, produz o sujeito através de uma teia complexa de significações, entre as quais, considerando o que interessa para efeito deste trabalho, estão as categorias diagnósticas que fundamentam discursivamente a queixa de muitos pais. Por esse motivo, faz-se necessário deslindar o processo de subjetivação pela via da linguagem.

2.1.1 Criança

De forma distinta ao que certos discursos sugerem, a criança não é um ente natural, existente em si mesmo e integralmente determinado por aspectos biológicos. Para além dessa “metafísica da infância”, a criança é um produto das significações provenientes do Outro que fundam suas condições de existência psíquica. A constituição do psiquismo é responsável pela instalação da subjetividade cujos vínculos e desejos se apoiam, passando a definir as relações desse sujeito com o outro. Conforme ressalta Bernardino, a constituição do psiquismo é articulada às “pessoas que assegurem o cumprimento das funções paterna e materna em suas acepções simbólicas” (BERNARDINO, 2006BERNARDINO, L. M. F. A abordagem psicanalítica do desenvolvimento infantil e suas vicissitudes. In: BERNARDINO, L. M. F. (org). O que a psicanálise pode ensinar sobre a criança, sujeito em constituição. São Paulo: Escuta, 2006., p. 33).

Para efeito de ilustração da afirmação acima feita, já que não cabe a este trabalho a construção de uma “história da criança”, basta destacar que, na Idade Média, a criança era vista como um pequeno adulto, enquanto, na Renascença, esta era o centro do grupo familiar. Convém salientar também que o sentido atribuído à criança, em determinados períodos históricos e grupos sociais, corresponde ao lugar que ela ocupa na trama social e, mais ainda, ao seu lugar psíquico.

Foi somente a partir do século XIX que a criança passou a ser objeto do discurso científico. Nesse momento, emerge a figura do especialista - psicólogo, pedagogo, pediatra, psiquiatra, fonoaudiólogo etc. - que se dedica a apontar o que é “infância saudável” e como os pais devem proceder para produzi-la em seus filhos. Logo, conclui-se que, da mesma forma que a infância era uma “invenção” discursiva nos períodos acima apontados, ela também o é nos dias de hoje. Afinal de contas, os discursos sobre a “infância normal” e a “infância anormal” continuam proliferando e fundando práticas das mais distintas.

Este trabalho, que versa sobre a demanda parental por diagnóstico dos filhos, traz à tona o caráter discursivo do ser criança e uma de suas formas de “desvio” instituídas pelo significante - o transtorno mental. Essa demanda parental dialoga com o que afirma Mannoni “sobre a angústia materna que ecoa pela criança, por meio dos seus sintomas, sendo vivido pelos filhos, demandas que não foram resolvidas a nível de castração pelos pais” (MANNONI, 1923/1999MANNONI, M. A criança retardada e a mãe (1923). Trad. Maria Raquel Gomes Duarte. 5ed. São Paulo: Martins Fontes , 1999., p. 50). O aumento da busca por atendimento de crianças em serviços clínicos diversos parece se correlacionar à crescente presentificação do discurso psiquiátrico na cultura e à consequente inscrição, como patológico, o que antes estava no campo da normalidade. No caso clínico a ser exposto a seguir, pretende-se abordar as formas de articulação entre o discurso como ente universal e a fantasia psíquica como elemento singular do sujeito.

2.1.2 Família

Desde sempre, a família foi o campo privilegiado de subjetivação, conforme afirmam Bernardino e Kupfer, citando Lacan:

Em 1938, J. Lacan propôs uma definição para o verbete “família”, segundo ele, que justificaria a sua existência enquanto instituição seria a transmissão da cultura. Devido a esta função, simbólica por excelência, a família presidiria os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico, no entendimento do referido autor. (BERNARDINO; KUPFER, 2008BERNARDINO, L. M. F. A criança como mestre do gozo da família atual: desdobramentos da “pesquisa de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil”. Revista Mal-estar e Subjetividade, v. 8, n. 3, 2008., p. 668, grifo do autor)

Observa-se no trecho acima exposto que a família transmite a cultura à criança, inserindo-a psiquicamente numa teia de significações simultaneamente conscientes e inconscientes, singulares e socialmente compartilhadas.

Esse fenômeno universal para o ser humano, a família, seja qual for sua configuração, não remete só ao biológico, mas fundamentalmente aos laços de parentesco que são, em sua essência, simbólicos. O que se destaca na afirmação de Lacan ora exposta é a família como vetor da cultura para a criança. Dito de outra forma, a família insemina em seus rebentos o que já foi falado e o que se fala, influenciando de uma forma subjetivada e que será elaborada psiquicamente de acordo com cada sujeito.

À família é atribuída a função de educar os filhos, e, nesse processo, ao longo da vida o sujeito passará, em determinados momentos, por sintomas, não no sentido de adoecimento, mas mecanismos para elaborar questões intrínsecas ao desenvolvimento, para viver a pulsão da vida, a constante mudança e inovação trazida pelo Real. Nas palavras de Dolto, “para os pais, esse sintoma em geral é inquietante, a criança investe nele a energia que não é criadora e não é claramente interpretada por eles. [...] a criança alivia assim tensões de que sofre [...]” (DOLTO, 2007DOLTO, F. As etapas decisivas da infância. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão, 2ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. 01).

Lacan considera, em Outros escritos, em nota sobre a criança, que: “o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar” (LACAN, 2001/2003, p. 369). Articulando o exposto ao tema deste trabalho, existem lucros primários e secundários na demanda parental e urgência por uma confirmação diagnóstica para o infante. Radicalizando ainda mais, pode-se afirmar que existe algo do sintoma dos pais - e não só destes - implicado na demanda por diagnóstico de seus filhos. É o que se pretende demonstrar na descrição e análise do estudo de caso.

2.1.3 Simbólico e Linguagem

Garcia-Roza relata a importância da linguagem: “[...] a criança está desde seu nascimento, imersa na linguagem e submetida à estrutura do simbólico [...] é somente a partir do lugar do Outro, dessa ordem simbólica inconsciente, que se pode falar em sujeito e em subjetividade segundo Freud” (GARCIA-ROZA, 1985/2009GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente (1985). Rio de Janeiro: Zahar, 2009., p. 227).

A clínica psicanalítica tem como fundamento a fala, mas não qualquer fala. A regra fundamental da associação livre institui que o analisante fale o que lhe vier à mente, sem qualquer restrição. O objetivo é retirar a palavra das organizações prévias de sentido e ampliar seu campo de ação. Dito de outra forma, a associação livre permite que o sujeito seja “atropelado” pela própria palavra, fazendo emergir algo de si até então não vislumbrado.

Tal emersão do sentido não seria possível numa situação clínica onde a fala estivesse estruturada pelo saber do “especialista”. Nesses casos, o que há de singular na fala do sujeito - aquilo que surpreende a ele mesmo - é ceifado em prol de uma inteligibilidade imaginária que atende aos interesses do saber em questão.

Porém, deve-se ter cuidado para não recair numa “metafísica do ser”, pois o sujeito em sua singularidade é construído no campo do Outro. “A prática clínica revela, com frequência, particularidades de uma época” (SCHAEDLER; MARIOTTO, 2012SCHAEDLER, M. C.; MARIOTTO, R. M. M. Formações discursivas, posições subjetivas: efeitos do uso de psicofármacos por crianças nas relações familiares. In: KUPFER, M. C. M.; BERNARDINO, L. M. F.; MARIOTTO, R. M. M. Psicanálise e ações de prevenção na primeira infância. São Paulo: Escuta, 2012., p. 71). Assim, o que importou para este trabalho foi como o “universal” do discurso psiquiátrico, enquanto dádiva do Outro, articula-se à teia de sentido materna e familiar que estrutura a demanda por atendimento da criança.

2.2 Sujeito, outro, alienação

2.2.1 Sujeito

O termo “sujeito”, tão utilizado pela psicanálise, destaca a dimensão de sujeição ao Outro e seus significantes. Entra em discussão o sujeito que deseja, respaldando a importância também do inconsciente, que não exclui o consciente, mas também não reduz a complexidade do sujeito ao “eu penso e existo por isso”. Roudinesco relata: “Lacan inventa uma teoria do sujeito que recusa não o cogito cartesiano, mas... de uma filosofia do ‘eu penso’ (Descartes) para uma filosofia do ‘eu desejo’ (Freud, Hegel)” (ROUDINESCO, 2006ROUDINESCO, E. A análise e o arquivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2006., p. 38, grifo do autor). Como consequência dessa operação sobre a afirmação cartesiana, destaca-se o fato de que o sujeito transcende àquilo que pensa conscientemente.

Quinet, em Os Outros em Lacan, descreve: “[...] inconsciente como lugar dos significantes, é a morada do sujeito como ser-de-linguagem... pois se ele está na linguagem esta não o apreende: o sujeito é a falta-a-ser porque falta um significante que o defina. Eis o princípio da desalienação” (QUINET, 2012QUINET, A. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2012., p. 31).

Considera-se nesta pesquisa os significantes da cliente como ser-de-linguagem, que reproduz o discurso psiquiátrico e desvela, a partir da queixa inicial, uma cadeia de significantes que a leva para além da suposição feita pelo diagnóstico. Pois, como bem atesta Fink, “[...] o sujeito nunca é mais do que uma suposição de nossa parte” (FINK, 1998FINK, B. O Sujeito Lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003., p. 55).

De acordo com Quinet, “Lacan escreve sujeito dividido com um S barrado, riscado, ($) [...] significa negação sendo, portanto, $ o matema do sujeito do inconsciente definido pela impossibilidade de sua nomeação e pelo vazio de sua negatividade” (QUINET, 2011QUINET, A. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2011., p. 28). O sujeito da ciência moderna é diferente do sujeito da psicanálise, pois, para esta, o sujeito é barrado pela lógica do inconsciente, enquanto o sujeito da ciência, no sentido cartesiano do termo, seria um sujeito sem barra, sem divisão e constituído psiquicamente pelo amálgama unificador da razão.

Avançando na questão, pode-se ainda dizer que o sujeito para a psicanálise abriga um fundo de indeterminação, de não saber. Entretanto, para além das definições imaginárias do sujeito, conforme se poderá comprovar pelo caso clínico exposto, há outro saber que se insinua: o saber inconsciente, um saber que não se sabe. É esse saber que tem sua emergência possibilitada pela escuta analítica.

2.2.2 Alienação

Chega-se a um tópico relevante para a pesquisa, pois a alienação permite compreender que o sujeito fica “aprisionado” às significações provenientes do Outro (para o tema em questão, o diagnóstico). A criança fica alienada, reduzida às significações provenientes do diagnóstico e deixa de ser sujeito do próprio sintoma, tornando-se “hiperativa”, “autista”, “disléxica”, com “transtorno de aprendizagem”, “desenvolvimento atrasado”, “ansiosa” etc. Há um desalojamento do sujeito de seus próprios atos pela suposição discursiva de uma etiologia orgânica. Fink descreve a alienação: “Enquanto a alienação é o primeiro passo imprescindível para ascender à subjetividade [...] O sujeito existe na medida em que a palavra o moldou do nada [...] A alienação representa a instituição da ordem simbólica” (FINK, 1998FINK, B. O Sujeito Lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003., p. 74).

Pode-se apontar o poder alienante do Outro através de Roudinesco: “[...] designar o grande Outro, essa lei simbólica que o determina em sua relação com o desejo” (ROUDINESCO, 2011ROUDINESCO, E. Lacan, a despeito de tudo e de todos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2011., p. 79). Assim, o que é constituído pela teia discursiva de uma época produz uma cadeia alienante quanto ao sentido que prende em suas malhas o especialista, a mãe e a criança.

2.3 O discurso psiquiátrico

Em certa medida, o discurso psiquiátrico substitui a radical e errante singularidade do sujeito por um modelo dicotômico de normal-patológico. Essa operação, que estrutura o discurso psiquiátrico em sua inserção no campo médico, aponta na contemporaneidade para um suposto substrato orgânico na base dos ditos transtornos mentais. Para Schaedler e Mariotto: “Essa busca pela objetividade e isenção de qualquer vestígio de subjetividade é característica dos esforços científicos no sentido de construir fórmulas gerais, universalmente válidas” (SCHAEDLER; MARIOTTO, 2012SCHAEDLER, M. C.; MARIOTTO, R. M. M. Formações discursivas, posições subjetivas: efeitos do uso de psicofármacos por crianças nas relações familiares. In: KUPFER, M. C. M.; BERNARDINO, L. M. F.; MARIOTTO, R. M. M. Psicanálise e ações de prevenção na primeira infância. São Paulo: Escuta, 2012., p. 79). Conforme se pode observar, as crianças não escapariam às malhas do pretensamente “universal”.

Roudinesco cita a relevância da não redução ao paradigma organicista: “É que nada é mais destrutivo para o sujeito do que ser reduzido a seu sistema físico-químico” (ROUDINESCO, 2000ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2000., p. 148). Fica evidente, através das diferentes versões do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, que o sujeito do significante comparece na anamnese psiquiátrica como um devir-categoria nosográfica ancorado numa metafísica neurofisiológica.

Nas anamneses e falas cotidianas, ouvem-se apenas os signos que possam fazer referência a um saber que já existe. A psicanálise, por sua vez, radicaliza a dimensão subjetiva da fala e do sintoma. Como fala Quinet, “[...] a psicanálise não se opõe à psiquiatria, mas sim a todo Discurso que suprime a função do sujeito” (QUINET, 2002QUINET, A.; PEIXOTO, M. A.; VIANA, N.; LIMA, R. Psicanálise, capitalismo e cotidiano. Goiânia: Germinal, 2002., p. 39).

O discurso psiquiátrico em nossa cultura é “contagioso”, se assim se pode dizer. O termo “contagioso” aqui utilizado faz alusão ao contágio psíquico que ocorre entre os membros de um grupo, conforme aludido por Freud em seu estudo Psicologia das Massas e Análise do Eu (1922). Não é difícil perceber esse contágio discursivo, pois certas categorias nosográficas já foram incorporadas ao senso comum e são reproduzidas em seus aspectos de significação por vizinhos, professores, profissionais da saúde etc.

De certa forma, os transtornos mentais criados pela psiquiatria descritiva e divulgados pelos mais distintos meios de comunicação são transmitidos pela via discursiva a um número cada vez maior de pessoas, consistindo numa verdadeira “epidemia”. Nesse sentido, Guarido (2007GUARIDO, R. A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso psiquiátrico e seus efeitos na Educação. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 33, n. 1, 2007.) discute a patologização da vida cotidiana promovida pelo excesso de diagnósticos, que transcreve fatos normais da vida em categorias nosográficas. Tal variedade atende mais aos interesses e à saúde financeira da indústria que à saúde dos pacientes”.

3 MÉTODO

A pesquisa, de viés qualitativo, foi realizada com base no estudo de caso de um atendimento clínico realizado no SPA. Considera-se a fala singular da responsável pela criança, excluindo, portanto, qualquer pretensão generalizante. A pesquisa foi realizada segundo as balizas da clínica psicanalítica, que trazem tratamento e pesquisa em consonância. Portanto, obedeceu-se às suas regras fundamentais: a associação livre pelo analisante e a contrapartida da atenção flutuante pelo estagiário. Como consequência, evitou-se a seleção de material durante os atendimentos e quaisquer sugestões apriorísticas.

Busca-se, através desta pesquisa qualitativa, informações que em clínica são inesperadas. Gonzalez Rey descreve: “Nenhuma teoria esgota o estudado... o sujeito é sempre um rico interlocutor de qualquer teoria, e sua pesquisa reportará sempre elementos novos e desafiantes” (REY, 2011REY, F. L. G. Pesquisa Qualitativa em Psicologia: caminhos e desafios. São Paulo: Cengage Learning Edições, 2011., p. 70). Negar a subjetividade em prol de uma metodologia “importada” das ciências naturais - como é vigente nas matrizes cientificistas da psicologia - é ignorar a complexidade do sujeito, pois o sistema subjetivo, para Gonzalez Rey, é: “[...] um sistema aberto, abrangente e irregular, que influencia as diversas experiências humanas no processo de subjetivação [...]” (REY, 2011REY, F. L. G. Pesquisa Qualitativa em Psicologia: caminhos e desafios. São Paulo: Cengage Learning Edições, 2011., p. 38-39).

O curso da pesquisa qualitativa pressupõe o estudo de caso não como via de obtenção de informação complementar, mas produção de conhecimento pelos resultados que serão parciais, gerando novos problemas com objetivos ampliados. Seu caráter singular expressa-se na legitimidade, que foi possível pela escuta clínica compreender os fatores subjetivos que levam à busca do diagnóstico e lugar da criança neste discurso. Gonzalez Rey expressa a importância da pesquisa qualitativa e subjetiva: “Um grande desafio do estudo da subjetividade é que não temos acesso a ela de forma direta, mas apenas por meio dos sujeitos em que se apresenta constituída de forma diferenciada” (REY, 2011REY, F. L. G. Pesquisa Qualitativa em Psicologia: caminhos e desafios. São Paulo: Cengage Learning Edições, 2011., p. 81). O expressar de forma livre e subjetiva, sem restrições, possibilitou na clínica informações complexas, de caráter único pelo estudo de caso.

A pesquisa foi realizada com início na clínica no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Faculdade Católica Rainha do Sertão (FCRS), com as devidas autorizações institucionais e da cliente. O primeiro contato dessa cliente foi efetivado a partir do preenchimento de uma ficha com as secretárias do SPA; posteriormente, foi contatada (de acordo com a fila de espera) para um processo de triagem. Esse processo foi o primeiro contato da responsável com o terapeuta estagiário (supervisionado por um docente do curso de Psicologia da FCRS). Desse modo, foram realizadas entrevistas iniciais na triagem, com a investigação e coleta de informações imprescindíveis, assim como especificando a queixa da cliente que envolvia o diagnóstico do psiquiatra para seu filho.

Foi realizada a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e principalmente explicada a importância do sigilo que está caracterizado no artigo 9º do Código de Ética do Profissional Psicólogo (CEPP, 2005BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resoluçãonº466. 2012.), bem como a explicitação do contrato terapêutico e do número de faltas e justificativas destas. Os atendimentos clínicos no SPA foram efetuados semanalmente, com duração de cinquenta minutos.

Ressalta-se como fundamental destacar que a pesquisa foi produto dos atendimentos e não o inverso. Já a coleta de dados foi realizada através do SPA, que pertence à FCRS, no período de agosto a novembro de 2014. Após a triagem, foi apresentada a importância do trabalho a ser realizado e as orientações necessárias para que não houvesse dúvidas quanto à nossa pesquisa. A cliente aceitou participar e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias, ficando uma com ela e outra com o pesquisador, a qual foi anexada ao prontuário do paciente, de modo a atender aos requisitos contidos na Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2012CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília: CFP, 2005. Disponível em: Disponível em: http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/codigo_etica1.pdf . Acesso em2020.
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). Após os atendimentos, foram realizadas anotações segundo os significantes da cliente, que não permitiu a gravação e o uso de imagens.

Os atendimentos foram conduzidos em função do processo analítico e não em função da pesquisa, para o não direcionamento da fala da cliente, pois a pesquisa é um efeito dos atendimentos realizados em clínica psicológica, no período de estágio profissionalizante, e não uma adaptação simultânea da teoria psicanalítica aos atendimentos psicológicos. A coleta baseou-se nos relatos de sessão presentes no prontuário da cliente e nas anotações pessoais do estagiário após os atendimentos, que contribuíram para a discussão.

O presente estudo foi submetido ao Comitê de Ética da Faculdade Católica Rainha do Sertão, através da Plataforma Brasil, e aprovado com o número do parecer 672.494. De acordo com a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta as diretrizes e normas da pesquisa em seres humanos (BRASIL, 2012CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília: CFP, 2005. Disponível em: Disponível em: http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/codigo_etica1.pdf . Acesso em2020.
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), seguindo as determinações desta que são especificidades das pesquisas com seres humanos. Para isso, não só o Comitê de Ética da Faculdade Católica Rainha do Sertão, mas todos envolvidos (Coordenação do SPA e do Curso de Psicologia) autorizaram a pesquisa.

Em clínica psicológica, preservamos informações que pertencem ao sujeito através do Código de Ética Profissional do Psicólogo que esclarece, no Art. 9º, “É dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional” (CEPP, 2005BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resoluçãonº466. 2012.), fundamental para a nossa pesquisa, pois envolveu fatores psíquicos da responsável e certamente é de caráter confidencial e intransferível durante e após o processo.

4 DISCUSSÃO

A pesquisa realizada no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Faculdade Católica Rainha do Sertão (FCRS) iniciou-se após a procura da mãe pelo serviço como consequência do diagnóstico concedido pelo psiquiatra a seu filho de quatro anos. Todos os atendimentos foram supervisionados por um docente responsável pelo estágio profissionalizante em Clínica Psicológica.

Este caso chegou com o início do fluxo de uma fila de espera, pois há uma crescente demanda por atendimento infantil no SPA nos últimos anos. Os atendimentos, conduzidos segundo o manejo clínico da psicanálise, priorizaram as elaborações da cliente (realidade psíquica), excluindo, portanto, qualquer apreensão teórica prévia. O estudo do caso, conforme as categorias conceituais psicanalíticas, ocorreu após o término dos atendimentos, com o objetivo de não direcionamento teórico da fala da cliente. Nesse sentido, a escuta foi construída com base na atenção flutuante2 2 Atenção flutuante: evitação por parte do analista de qualquer seleção de sentido na fala do analisante (FREUD, 1913). . Realizou-se a coleta de dados de acordo com as anotações pós-atendimentos, assim como os relatos de sessão presentes no prontuário da cliente.

4.1 Queixa inicial: o sintoma, o paradigma organicista e a alienação

Uma das constatações que sustentam nossa pergunta de pesquisa é a presença maciça dos diagnósticos da psiquiatria descritiva na nossa cultura e não só através dos encaminhamentos que chegam ao SPA. O fato é evidente nos grandes meios de comunicação, entre os profissionais da Saúde Mental e da população em geral, que está “familiarizada” com algumas categorias diagnósticas - como depressão, hiperatividade, transtorno bipolar, autismo, transtorno de aprendizagem, retardo mental, para citar apenas algumas - que já foram incorporadas ao vocabulário e saber populares. Isso se articula diretamente ao nosso tema de pesquisa, pois a criança, muitas vezes, recebe dos pais esses significantes que podem aliená-la a esse campo de sentido.

Na triagem, a responsável traz consigo seu filho de quatro anos com a seguinte queixa principal: o transtorno de ansiedade leve na criança. Relata ainda: “[...] me preocupo com meu filho... ele está angustiado”. Segundo seu relato, antes de chegar ao serviço, ela procurou primeiramente um psiquiatra, que, em um único encontro, escutou a queixa de que seu filho era inquieto, desatento e que “puxava o ar” em certas situações; o especialista diagnosticou-o com o já referido transtorno. O profissional ainda levantou a hipótese de uma possível afecção orgânica, que foi descartada com uma série de exames. Como tratamento, além de um medicamento fitoterápico, foi indicada a psicoterapia no serviço de psicologia do SPA.

A mãe, por sua vez, por queixar-se angustiada ao profissional, recebeu a prescrição do uso de um psicofármaco (Fluoxetina), mesmo sem um diagnóstico, por um período de seis meses.

Durante a entrevista inicial, a mãe afirma que a ansiedade do seu filho está diretamente relacionada a uma situação traumática vivida por ela: um assalto à mão armada quando seu filho ainda estava em gestação. Diante do fato, a mãe produziu a fantasia3 3 Fantasia: realidade que não é representada por fenômenos, mas psiquicamente. A fantasia consiste num enredo subjetivo inconsciente que fornece inteligibilidade ao Real da experiência. , constituída em parte pelo discurso etiológico organicista, que coloca seu filho, ainda um feto naquela ocasião, como afetado pela “angústia” (sic) experimentada por ela. É digno de nota que a etiologia orgânica do transtorno in utero é apenas uma hipótese ainda sem ampla aceitabilidade no meio científico, enquanto a fantasia psíquica dessa mãe, que institui uma etiologia no registro simbólico, desponta como fato através de sua fala. “Sinto um peso... tenho medo de perder meu filho, sou superprotetora... será que passei para ele durante a gravidez?” (sic). O psiquiatra, com sua escuta fundada no discurso organicista, endossa a fantasia materna e emite a sentença do diagnóstico, encaminhando a criança para o SPA para fins de tratamento.

A avó de seu filho, de acordo com a cliente, foi diagnosticada no passado como “bipolar”, utilizando dois psicofármacos: “Haldol” e “Diazepan”. A mãe, observando a “doença” de sua ascendente, sustenta a causa de seus sintomas no campo da transmissão genética entre gerações. Sobre isso, Roudinesco retrata o perigo da redução neurofisiológica: “É que nada é mais destrutivo para o sujeito do que ser reduzido a seu sistema físico-químico” (ROUDINESCO, 2000ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2000., p. 148). Para a psicanálise, o sujeito está para além da ‘’disfunção neuroquímica’’ rotulante. No trabalho de escuta do sujeito, próprio da clínica psicanalítica, o discurso em questão perde sua consistência de “verdade científica” socialmente estabelecida e passa a ser compreendido como uma construção de sentido da cliente. Sendo mais específico, a suposta transgeracionalidade genética do transtorno mental, antes de ser um fato em si, é um fato psíquico, pertencente ao campo do sujeito.

Neste campo, está inserida uma teia de significações simultaneamente conscientes e inconscientes, singulares e socialmente compartilhadas. O discurso funda os fatos, pois o que antes seria da ordem do insignificante ou do estranho ganha o sentido de sinal inequívoco de um transtorno mental.

Outro elemento fundamental que emerge da fala da cliente é sua maternagem4 4 Maternagem: investimento de desejo no filho que transcende a mera dimensão dos cuidados, proporcionando também a inserção da criança no campo da linguagem pela via da oferta alienante de significantes. . Essa mãe, que trabalha como agente de saúde, relata que sempre se preocupou com os outros: “Sou mãe de todos, cuido de quinhentas pessoas mais a família, amigos” (sic). Destaca-se a fantasia psíquica - que é atuada nos mais distintos contextos - que a coloca numa função materna diante do outro. Numa das sessões iniciais, a cliente afirma ainda: “Não quero que ele sofra como eu sofri... não tive infância... sempre pensei nos outros e ele pode pensar também nos outros... faço tudo pelo meu filho, cuidei dos meus irmãos, da minha mãe, cuido da comunidade e esqueço de mim... preciso de carinho e atenção que meu filho tem” (sic). Vê-se na fala da cliente o fato psíquico - fantasia - de que é “mãe de todos” (sic). Entretanto, essa maternagem, exercida até na profissão de agente de saúde - e no desejo expresso de tornar-se pediatra -, não se reduz aos cuidados para com o outro. Ela também ganha expressão pela via do desejo e do significante alienantes. Nesse sentido, o tratamento permitiu que o desejo que punha o filho no lugar de portador de um transtorno mental sofresse um abalo e perdesse consistência, conforme será abordado adiante.

Lacan (2003LACAN, J. Outros escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2003., p. 369), no texto Nota sobre a criança, aponta-nos: “O sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar”. Antes mesmo de nascer, esta criança já estava mergulhada, assim como outras, nas significações do Outro (da sua mãe), pois a linguagem preexiste ao sujeito, mesmo que ele não fale ainda. Inicialmente, a mãe relata que o assalto foi a causa da angústia; no decorrer das sessões, ela se pergunta: “Eu falo para ele sobre o assalto, será que ele está assim... porque eu relato tudo sobre o assalto?... por vezes ele pede para contar novamente e eu conto”. O sentido dado ao assalto pela mãe inseriu seu filho nesse campo de significação.

Por conseguinte, percebe-se na fala da cliente o efeito alienante dos seus significantes. A fantasia materna do assalto como fator etiológico fundante do “transtorno mental” amarra a criança nessa teia significante. Como afirma Fink, “O sujeito existe na medida em que a palavra o moldou do nada [...] A alienação representa a instituição da ordem simbólica” (FINK, 1998FINK, B. O Sujeito Lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003., p. 74).

Ao assinar o Termo de Consentimento Livre Esclarecido para participar da pesquisa, a mãe relatou que, no seu trabalho, herdado simbolicamente da sua mãe, rotineiramente as mães afirmam a ela: “meu filho tem algo, que não é normal” (sic). Neste momento, revela-se a demanda de um saber dirigido ao lugar simbólico do Outro, lugar este ocupado, nessa demanda, pela agente de saúde, que também busca outros saberes (psiquiatria, psicologia) para “ajudar” seu filho. Inclusive, a cliente tem o desejo de ser médica pediatra para cuidar de crianças. Ao mesmo tempo em que afirma seu altruísmo com regozijo, queixa-se dele: “Preciso pensar em mim, não tive infância... preciso cuidar da angústia do meu filho, para não perdê-lo” (sic).

Ainda na primeira sessão, antes de atender ao pedido para que se retirasse da sala de atendimento para a escuta de seu filho, a mãe diz: “Perceba que ele vai puxar o ar” (sic) e realiza o movimento equivalente, a fim de chamar a atenção ao fato que, segundo ela, atesta o transtorno mental do filho. Destaca-se, nesse episódio, o apelo alienante da reprodução do discurso por essa mãe, que insere não apenas a criança nessa teia de sentido, mas também tenta envolver o estagiário na função de “sujeito suposto saber diagnosticar”.

No restante da sessão, a criança, através do brincar simbólico, não expressou demanda terapêutica ou qualquer queixa relatada pela mãe. Na semana seguinte, foi agendado um dia para atender a mãe, e seu filho foi desligado do serviço, pois, durante a triagem, a mãe desenvolveu fortemente suas queixas pessoais, esvaziando a demanda inicial que seria a confirmação do diagnóstico e o tratamento para seu filho.

4.2 Para além do discurso patologizante: a emergência do sujeito

Inicialmente, conforme visto anteriormente, a mãe relata a preocupação com o diagnóstico do filho e com a angústia associada ao episódio do assalto. Com a escuta analítica, foi possível que a mãe saísse das relações pré-estipuladas de causa e efeito presentes no discurso patologizante e se colocasse como sujeito onde antes só havia um alheamento de si causado por um saber generalizante.

Ao falar, lembrou-se de mais perdas, de “outros assaltos” (sic). Segundo a própria cliente, estão no rol desses “assaltos”: a sua “infância perdida”, o abuso sexual na infância por duas vezes, a perda de entes queridos (como o irmão mais novo, que era como um filho) e o falecimento da sua mãe.

É importante relatar que, a partir do segundo atendimento, o pretenso transtorno mental do filho não é mais citado pela mãe. São patentes o desaparecimento da queixa inicial e da busca de tratamento para o filho e o surgimento de uma demanda pessoal de escuta, outrora velada. O fato por si só, possibilitado pela escuta ímpar da clínica psicanalítica, gera a seguinte conclusão: a queixa levada ao psiquiatra, citada anteriormente, foi acatada e interpretada prontamente segundo os parâmetros da psiquiatria descritiva. Pode-se ainda salientar que, ao mesmo tempo que o discurso psiquiátrico estruturou parcialmente essa demanda por tratamento da criança, ele também emitiu o diagnóstico como um veredito (afirmação “verdadeira”). Dessa forma, fica evidente que a realidade discursiva reproduz-se na queixa, na demanda, no diagnóstico e no tratamento medicamentoso. Tudo ocorre como se não houvesse espaço para aquilo que não se encaixa no discurso em questão. Entretanto, conforme afirmado acima, a escuta analítica insere o sujeito em sua própria queixa e demanda, retirando-a, muitas vezes, do ciclo do discurso que se reproduz e produz um alheamento do sujeito de si.

A cliente relata que usa “escudos” (sic) para se proteger de mais “assaltos” (sic). Na décima primeira sessão, a cliente fala sobre sua demanda por tratamento do filho: “[...] trouxe meu menino pensando no bem-estar dele, mas ele era um escudo [...]. Hoje percebo que quem precisava naquele momento era eu [...]. Hoje penso em mim” (sic). Esse trecho da fala da cliente deixa evidente o fato de que a criança - como um “escudo” - e a busca por tratamento dela atendem, de alguma forma, ao desejo materno. Restam algumas questões: o que a mãe ganha com isso? Qual é o interesse implicado na “criação” de um “transtorno mental” no próprio filho?

Já foi explicitada anteriormente a noção de que a criança é, de certa forma, um sintoma familiar. Retirando toda pecha negativa que recai sobre o significante “sintoma”, pode-se levar em conta que a criança em questão emerge, inclusive biologicamente, do desejo dos pais. Entretanto, deve-se salientar que, como o tratamento em questão segue o fluxo associativo da própria cliente, não foi possível ainda deslindar as nuanças do desejo materno. Conforme foi exposto, a produção de conhecimento é uma consequência do tratamento, estando totalmente sujeitado a este.

Para a psicanálise, qualquer nomeação fechada e definitiva para o sujeito é impossível, pois todo saber é faltoso diante das idiossincrasias de sentido assumidas pelo sujeito do inconsciente. Nesse sentido, o discurso da psiquiatria descritiva perde consistência identificatória para o sujeito no transcurso da análise. Esta, ao ofertar um espaço de emersão para a singularidade da palavra do paciente, produz uma implicação dele onde antes havia apenas supostas causas neurofisiológicas.

Os significantes transmitidos pela mãe produzem um duplo efeito na criança. Ao mesmo tempo em que reduzem sua subjetividade infantil a alguns enunciados generalistas, produzem, por outro lado, aspectos da própria subjetividade. De qualquer forma, a escuta possibilitada pelo tratamento da mãe pode ter produzido uma queda desses significantes que antes serviam de suporte identificatório à criança. A fala materna expressa numa sessão que chama a atenção para o fato de que a criança não “puxa” mais o ar - o que antes era tomado de forma inequívoca como um sintoma do transtorno de ansiedade - aponta para a perda de consistência do suporte imaginário do discurso. Dito de outra maneira: da mesma forma que a mãe “cria” um transtorno mental para seu filho, ela pode “desfazê-lo”. Contudo, não há evidências fora da fala materna sobre os efeitos indiretos do tratamento para a criança.

O saber psiquiátrico - falsamente legitimado cientificamente por pretensas etiologias orgânicas - exclui, conforme afirmado anteriormente, o sujeito de seu próprio sofrimento. Enquanto, para a psicanálise, há uma implicação contínua do sujeito em sua própria dor pela via da palavra, na psiquiatria há um rechaço daquilo que não se encaixa num saber prévio. No caso em questão, a complexidade real da demanda por atendimento da criança continua, pois é composta por fatores subjetivos intricados. Se antes havia o significante “transtorno de ansiedade” organizando essa demanda, com a queda deste significante, a demanda é redimensionada.

Este discurso não dá conta dos fatores psíquicos, pois a pretensão de adestrar o inconsciente e adaptá-lo descamba no insucesso. O sofrimento não é extirpado e o sintoma, via de regra, mantém-se. As mudanças nos manuais diagnósticos no decorrer das décadas e o aumento constante do número de “transtornos” atestam não apenas a irredutibilidade do mal-estar na civilização, para utilizar um termo freudiano, mas também uma crescente patologização da vida cotidiana. A demanda parental e os desdobramentos do caso clínico em questão expõem de forma viva a tentativa malfadada de domesticar o inconsciente através da nomeação diagnóstica e da medicamentalização.

A exposição do caso clínico explicitou as vicissitudes da queixa e da demanda materna no decorrer de seu tratamento. Como abordado anteriormente, a demanda materna por atendimento do filho, justificada por um pretenso transtorno mental, cedeu espaço a uma demanda própria de atendimento. As queixas se modificaram e a criança, que antes estava inscrita pela mãe em um discurso patologizante, praticamente desapareceu da sua fala. Tal fato - que atesta uma desalienação da criança do significante psiquiátrico transmitido pela mãe - só foi possível pela emergência do desejo da cliente para além do filho. “Olhar para mim” (sic) é a fala da mãe, em dada sessão, que emerge da associação que discorre sobre seu desejo sexual por um homem próximo da família, que frequenta, inclusive, sua casa. Cabe aqui um pequeno parêntese: o marido da cliente praticamente está ausente de sua fala. De alguma forma, no decorrer do tratamento, o desejo da cliente deslocou-se do filho enquanto lugar objetal de criança “doente” para outros objetos, incluindo nisso o outro homem.

5 CONSIDERAÇÕES

Pelo caso clínico, percebe-se que não é o fato que funda o discurso, mas o inverso: o discurso é fundante da realidade. Daí a afirmação freudiana: “a realidade é psíquica”. O discurso vende caro a identificação pelo diagnóstico, posto que o determinante simbólico do Outro, alienante como o paradigma organicista, pode construir um efeito reverso do bem-estar, pois foraclui o sujeito de seu próprio sintoma.

Este, representado pelo sintoma parental, é evidenciado através da demanda por diagnóstico e alienação ao discurso psiquiátrico, que é estruturado pela linguagem. A psicanálise desmascara as compreensões ideologizadas do sujeito, que sempre estará além e aquém do que dizem a religião, o estado, as ideologias, as mitologias científicas etc.

Implicadas no desejo e no discurso do Outro (psiquiatra, família, escola etc), estas crianças fazem parte deste enculturamento que tece a subjetividade através da linguagem que estrutura o inconsciente. Hoje, estas são guiadas e traduzidas por manuais e métodos adaptativos e com alto consumo de psicofármacos, empobrecendo a capacidade de simbolizar subjetivamente, o que pode ter impactos não só individuais, mas nas famílias e seus laços sociais. Assim, questiona-se, sem pretensões de responder nesta pesquisa: “quais serão os próximos significantes da dor e as promessas do bem viver?”.

Na apreensão deste caso clínico isolado, vislumbram-se três elementos, profundamente articulados, que talvez se apresentem diariamente em milhares de consultórios no mundo: o imperativo diagnóstico, a tentativa de foraclusão do sujeito pelo discurso diagnóstico e a medicamentalização do “falta-a-ser”. Entretanto, algo escapa. Isso que escapa, o sujeito do inconsciente, só perceptível diante do prosaico ato da escuta, apresentou-se no caso clínico em questão. Nas metafísicas do bem-viver - todas malogradas, como atestam os livros de história, os noticiários e a vida cotidiana - espera-se um desfecho feliz ao tratamento. Neste trabalho, a título de honestidade intelectual, basta apontar para um simples fato: onde havia um discurso alienante, emergiu um sujeito implicado em sua própria dor. No atual contexto das práticas “psis”, isso é um grande avanço.

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  • 1
    Outro: conceito de Lacan referente à função de fornecimento de significantes ao sujeito.
  • 2
    Atenção flutuante: evitação por parte do analista de qualquer seleção de sentido na fala do analisante (FREUD, 1913FREUD, F. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia [“O caso Schreber”], artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.).
  • 3
    Fantasia: realidade que não é representada por fenômenos, mas psiquicamente. A fantasia consiste num enredo subjetivo inconsciente que fornece inteligibilidade ao Real da experiência.
  • 4
    Maternagem: investimento de desejo no filho que transcende a mera dimensão dos cuidados, proporcionando também a inserção da criança no campo da linguagem pela via da oferta alienante de significantes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2020
  • Aceito
    17 Fev 2021
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