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Em busca de um lugar de onde falar: uso do meio e maleabilidade do enquadre na clínica dos sofrimentos narcísico-identitários

In search of a place to speak from: use of the medium and malleability of the frame in the clinic of narcissistic-identity sufferings

RESUMO:

Partindo de uma discussão acerca das qualidades das relações de base imprescindíveis ao desenvolvimento da capacidade simbólica e, nesse âmbito, em especial, sobre o funcionamento do ambiente enquanto um meio maleável, o artigo busca apontar o papel da situação analisante como condição da transformação clínica de sofrimentos decorrentes de falhas primárias na comunicação com o ambiente. Com a construção de um caso clínico, procuramos ilustrar o modo com que experiências não simbolizadas precisam ser materializadas em um meio, descondensadas graças à sua transferência para ele para, só depois, serem refletidas, tornando-se apreensíveis pelo sujeito.

Palavras-chave:
simbolização; meio maleável; construção de caso

Abstract:

In search of a place from where to speak: the use of the medium and malleability of the setting clinic of narcissistic-identitarian sufferings. Starting from a discussion about the qualities of the essential relationships required to the development of symbolic capacity and, in particular, about the functioning of the environment as a malleable medium, the article seeks to point out the role of analyzing situation as a condition to the clinical transformation of suffering derived from primary failure of communication with the environment. With the construction of a clinical case, we intend to illustrate the way in which un-symbolized experiences need to be materialized in a medium, transfered to it, so that it can later be reflected, becoming apprehensible by the subject.

Keywords:
symbolization; malleable medium; case construction.

INTRODUÇÃO

Ao se falar em trabalho psíquico ou nas formas possíveis de organização da vida emocional, é muito comum usarmos como metáfora os verbos “metabolizar” ou “digerir”. Certamente, deve-se a uma herança bioniana a utilização tão corrente desses termos na comunidade psicanalítica. Fato é que metabolizar ou digerir significa, literalmente falando, tornar algo parte integrada de si mesmo. Não por acaso, e de modo similar, entendemos que o trabalho de simbolização, tão em pauta no campo da psicanálise contemporânea, deve ser pensado como o processo de transformação pelo qual as experiências precisam passar para serem apropriadas pelo psiquismo, alçando-as a uma condição com a qual este seja capaz de operar.

Consideramos que uma fundamental potencialidade clínica decorre de se poder pensar as diferentes modalidades de sofrimento com que nos deparamos em nossa prática em termos dos diferentes níveis de dificuldade que o aparelho psíquico vem a enfrentar no desempenho deste trabalho, que é o trabalho simbolizante. A preocupação assim manifesta é “abrir nossos ouvidos” e a nossa atenção clínica para a escuta de tipos diferentes de processos e de linguagens inconscientes, os quais irão coexistir dentro de um mesmo sujeito, e cuja distinção é crucial para que se entenda a qualidade do trabalho que vai ser demandada em cada situação clínica.

No presente artigo, iremos desenvolver o que nos parecem ser as condições de base para o trabalho simbolizante, sobretudo a partir do conceito de meio maleável, introduzido por Marion Milner (1952/1991MILNER, M. O papel da ilusão na formação simbólica (1952). In: MILNER, M. A loucura suprimida do homem são. Rio de Janeiro: Imago , 1991.), para, em seguida, buscarmos ilustrar, por meio da construção de um caso clínico, de que forma o entendimento destas condições nos permite ampliar o alcance de manejos demandados no atendimento a indivíduos acometidos por falhas graves nas formas primárias de comunicação com o ambiente1 1 1 Ao falar em ambiente, partimos do entendimento de Winnicott de que um bebê é um conceito que não pode ser pensado senão em sua inserção dentro de uma estrutura ambiente-indivíduo, em um contexto que provê cuidados. Nesse sentido, o sujeito só poderia emergir a partir de uma realidade que assegure as condições necessárias para uma experiência suficiente de “continuidade de ser”. .

O meio maleável e as condições do processo de simbolização

Na tradição do pensamento psicanalítico, grande parte das reflexões relativas ao processo de simbolização levou a posicioná-lo, fundamentalmente, como simbolização da ausência e da falta por ela engendrada (ROUSSILLON, 2019ROUSSILLON, R. Manual da prática clínica em psicologia e psicopatologia. São Paulo: Blucher , 2019.). Por esta perspectiva, simbolizar corresponderia à tarefa de suportar a ausência do objeto, através de um luto que tornaria em parte presente, por sua representação, o objeto ausente, externo ao psiquismo. A simbolização havia aparecido primeiro, então, como oriunda do trabalho psíquico solitário, do trabalho de renúncia, isto é, como ultrapassagem necessária de um prazer primeiro, decorrente do encontro com o objeto fonte de satisfação.

Em seguida, porém, a psicanálise teve de começar a reconhecer formas prévias nas quais a simbolização parecia ser menos comandada pelo ultrapassar do prazer imediato do que pela criação das condições da emergência do prazer no seio das experiências primitivas. A partir daí, o trabalho psíquico não poderia mais ser vetorizado apenas pelas formas de superação de um prazer primeiro, mas encontrava, na criação e conquista de um prazer suficiente, seu organizador primordial. A clínica dos sofrimentos não neuróticos e a consequente expedição pelo universo do desenvolvimento primitivo (WINNICOTT, 1945/1992WINNICOTT, D. W. Aggression in relation to emotional development (1950). In: WINNICOTT, D. W. Through Paediatrics to Psychoanalysis - Collected Papers. London: Karnac Books, 1992.) nos impuseram, então, a máxima: o psiquismo não é capaz de realizar o luto do que não teve (MADUENHO, 2010MADUENHO, A. Nos limites da transferência: dimensões do intransferível para a psicanálise contemporânea. Tese de Doutorado, Programa de Pós Graduação em Psicologia Experimental, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. 2010.).

Se as primeiras teorias psicanalíticas atribuíam à frustração e ao limite imposto pela realidade a concepção do objeto como separado do Eu, a clínica foi nos demonstrando ao longo da história que, sozinha, a frustração não era capaz de produzir a percepção do objeto como externo. A depender da qualidade da relação previamente estabelecida com ele, bem como dos modos com que essa frustração era operada, o que ela produziria não seria uma desilusão gradativa, mas, ao invés disso, a experiência de uma “ilusão negativa”, ou seja, um sentimento de fracasso e autodepreciação por não ter sido capaz de produzir algo bom para si. O efeito subjetivo de necessidades primordiais não reconhecidas não seria uma delimitação do Eu e, sim, um sentimento de desajuste. A coincidência do “mal dentro” com o “mal fora” corrobora a onipotência do bebê; a ilusão de que ele é a origem de tudo não se altera, e ele continua na posição do narcisismo primário. Tal situação põe o sujeito na contramão do “luto representativo” do prazer vivido em companhia do objeto.

O atendimento aos diversos estados de sofrimento narcísico esbarra, sem dúvida, na dificuldade que há em pedir a um sujeito para quem o princípio do prazer não está estabelecido, ou não o suficiente - alguém que vive em uma “lógica de sobrevivência” mais do que de vida, uma “lógica da desesperança” (GREEN, 2005GREEN, A. On private madness. Londres: Hogarth Press , 2005.) -, para que renuncie a seus pilares de sobrevivência, por menos prazerosos que sejam, em nome de algo absolutamente incerto, de que ele não possui as marcas em seu psiquismo e em sua história. Um prazer e um apoio mínimos precisam ser percebidos como suficientemente assegurados para que o psiquismo tolere a complexificação da vida psíquica que o processo de simbolização implica, para que ele consiga digerir ao invés de evacuar, estabelecendo novas ligações internas e externas, em lugar do isolamento esquizoide, ou da desobjetalização (GREEN, 1988GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988.). Isso é necessário para que se consiga fazer o luto do objeto primordial e ideal, para que ligações se tornem possíveis com objetos substitutos.

Quando as dificuldades se encontram neste primeiro nível, é necessário promover com o sujeito formas de contato que procuram transformar ou recriar experiências traumáticas para restituir ao funcionamento psíquico determinado prazer, que não tem como se originar senão de uma experiência de partilha. Entendemos ser nesse sentido que Winnicott sugere, então, “ensinar a brincar” a sujeitos que nunca brincaram (WINNICOTT, 1967/1994WINNICOTT, D. W. Medo do colapso (1963). In: WINNICOTT, D. W. Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.).

No célebre Construções em análise, de 1937, Freud irá recuperar a questão do delírio e da alucinação, que é seu núcleo. Ele evoca ali experiências que precedem o surgimento da linguagem verbal, e que vêm se dissimular na percepção atual. Uma vez que o modo de retorno dessas experiências se faz de maneira alucinatória, Freud supõe a simultaneidade de um processo perceptivo atual e de um processo de alucinação de experiências precoces, que se dissimulam no anterior (FREUD, 1937/1964FREUD, S. Constructions in analysis (1937) Londres: Hogarth Press, 1964, p. 255-270. (The standart edition of the complete psychological works of Sigmund Freud, 23)). Essa hipótese é subjacente à concepção de Winnicott sobre o objeto criado/encontrado: o objeto é criado no e pelo processo alucinatório, e é encontrado na percepção (WINNICOTT, 1953/1994WINNICOTT, D. W. Transitional Objects and Transitional Phenomena (1953). In: WINNICOTT, D. W. Playing and Reality. London: Routledge, 1994.). Essa simultaneidade abre o campo de uma ilusão que ultrapassa a oposição alucinação/percepção. Com isso, para pensar as formas primeiras de simbolização, não é mais necessário pensar o objeto ausente, e a questão inicial passa a ser a da coincidência entre o processo oriundo do bebê e a resposta do entorno. O símbolo encontra, então, seu sentido primeiro: o de um colocar junto, que funciona como um processo de mútuo reconhecimento, anterior ao modelo clássico da simbolização, mais próximo do “colocar algo em lugar de”.

Os primórdios da simbolização dizem respeito ao início do trabalho, interminável ao longo de uma existência, de tomar para si a própria experiência, tornar-se proprietário dela e tê-la à sua disposição. Acontece que é durante a construção da possibilidade de comunicar essa experiência que esse processo se dá. Daí o papel central do entorno humano para sua realização. As formas primárias dos processos de transformação e simbolização da “experiência bruta” - não diferenciada, não localizada, não qualificada ainda de modo suficiente pelo Eu - necessitam ser identificadas e reconhecidas pelo material humano mais familiar do primeiro entorno do bebê para que sejam suficientemente apropriadas por ele.

O que a clínica nos tem feito denominar comunicações não simbólicas (ROUSSILLON, 2011ROUSSILLON, R. Primitive agony and symbolization. London: Karnac Books, 2011.), presentes sobretudo nos pacientes em estados-limite, refere-se a aspectos que não foram identificados e reconhecidos em seu primeiro entorno. A repetição de tais traços na idade adulta testemunha sua não integração ao Eu, decorrente do fato de o ambiente inicial tê-los deixado como “letra morta”. Isso quer dizer que a reação do objeto é necessária para sua “integração significante”: é a resposta do ambiente que, ao reconhecer o sentido como tal, lhe dá valor de mensagem, definindo-o como significante endereçado.

Se não for assim, o sentido ‘degenera’, perde seu valor protossimbólico potencial, corre o risco de não ser mais do que uma evacuação insignificante, é anulado em seu valor expressivo e protonarrativo. (ROUSSILLON, 2012ROUSSILLON, R. As condições da exploração psicanalítica das problemáticas narcísico-identitárias. ALTER - Revista de Estudos Psicanalíticos, Brasília, v. 30, n. 1, p. 7-32, 2012., p. 23).

Uma das hipóteses de Roussillon acerca das problemáticas narcísico-identitárias é que estas contam a história de tentativas de comunicação sem êxito que, de tanto não serem reconhecidas como tais, desqualificadas ou não qualificadas pelas respostas do ambiente, vão se apresentar sob uma forma de manifestação corporal, atuada ou psicossomática. As linguagens do gesto, do ato e do corpo são, assim, fundamentalmente, potencialidade mensageira, sentido ainda não cumprido ou incompleto, em busca de quem o responda. Em termos da técnica analítica, isto implica que a escuta da associatividade possa integrar os modos de linguagem pré e não verbais, assimilando elementos provenientes das diferentes formas primárias de expressão.

Cabe indagar, então, quais seriam as características do ambiente humano imprescindíveis à criação de sentidos que possam ser integrados ao Eu, tornados pessoais e, nesta medida, comunicados a outrem.

Para poder se refletir e operar suas regulações indispensáveis, é preciso que o Eu possa se sentir, se ver, se escutar. Nessas tarefas, ele encontra a necessidade das confirmações e ecos do outro. Mais do que isso: ele precisa, antes, que suas comunicações sejam percebidas e qualificadas pelas pessoas referentes. Para significar, dar sentido, é necessário construir signos e referenciais de si, do outro, da ação recíproca de si sobre o outro e do outro sobre si, os quais, antes de se tornarem representação e linguagem, são concretos, protorrepresentativos e protolinguísticos. As primeiras trocas são estésicas, mimo-gesto-posturais, modos de comunicação que se exercem com o outro em um nível sensorial. É nesse plano que as primeiras necessidades de reconhecimento e qualificação da experiência são exercidas, o que implica um outro genuinamente disponível para isso.

A partir da obra de Winnicott, alcançamos o entendimento de que a condição primeira desta disponibilidade se traduz pela capacidade de sobrevivência do objeto frente a toda ordem de expressões pulsionais do bebê (WINNICOTT, 1950/1992WINNICOTT, D. W. Aggression in relation to emotional development (1950). In: WINNICOTT, D. W. Through Paediatrics to Psychoanalysis - Collected Papers. London: Karnac Books, 1992.). Winnicott sustenta que o início da percepção de si como um ente destacado do mundo em redor e, por consequência, do objeto como exterior ao Eu, depende fundamentalmente da possibilidade daquele de se manter vivo face às manifestações iniciais dos impulsos “destrutivos” e eróticos da criança.

Grande parte das condições que o objeto precisa respeitar para viabilizar e sustentar um processo de simbolização está reunida em uma noção inaugurada pelo pensamento de Marion Milner (MILNER, 1952/1991) e amplamente desenvolvida por Roussillon (ROUSSILLON, 2019ROUSSILLON, R. Manual da prática clínica em psicologia e psicopatologia. São Paulo: Blucher , 2019.): a de meio maleável. O desempenho desta função por parte do objeto significa que ele irá prover as condições e pré-condições do processo de simbolização sendo, ao mesmo tempo, o lugar no qual as diferenciações que o caracterizam poderão ser analisadas e, desse modo, representadas pelo sujeito. Em outras palavras, o meio maleável é, simultaneamente, o solo para o trabalho de simbolização e o espelho que permite simbolizar o processo simbolizante. Isto ocorre na medida em que o meio se mostra capaz de materializar características específicas, nuances da forma como se dá o processo de simbolização, de modo a permitir que estas sejam reconhecidas e representadas em seu próprio curso.

Quando falamos, então, em meio maleável, falamos de um meio capaz de fornecer ao sujeito os recursos para simbolizar seu próprio processo de simbolização, para descobrir e experimentar essa “coisa” psíquica particular que é a representação. O fato é que, na imaterialidade que os caracteriza, os processos psíquicos dependeriam, justamente, de um psiquismo para poderem representar a si mesmos. Então, como fazer, se o que está em jogo é precisamente a constituição, o surgimento desse psiquismo? Em sendo assim, o caminho se dá, de forma gradativa, a partir das pré-representações concretas deste trabalho.

Uma das funções do brincar é dar forma material, perceptível, aos processos que começam a se desenrolar na psique. O ser humano, primordialmente a criança, tem como um dos fundamentos do seu desenvolvimento mental a capacidade de produzir representações-coisas, representações materiais de si e do que o habita, cuja natureza é simultaneamente material e simbólica. O terreno da arte, diga-se de passagem, não é outro que não esse. Daí a definição de Roussillon do meio maleável como o objeto transicional do processo de simbolização, pois que está a meio caminho entre o físico e o mental, o corpo e a psique (ROUSSILLON, 2006ROUSSILLON, R. Paradoxos e situações limites da Psicanálise. São Leopoldo: Unisinos, 2006.).

A metáfora mais simples e direta para a função desempenhada pelo meio/ambiente maleável talvez seja a da massa de modelar: um objeto que não tem forma própria, podendo assumir todas elas sem, por isso, contrariar em nenhum momento sua própria natureza. Isto é, um objeto que pode se tornar infinitas coisas sem, ao mesmo tempo, deixar de ser ele mesmo. Isto fornece ao sujeito a oportunidade de se colocar fora de si, explorando em todas as suas nuances, suas qualidades internas. Por quê? Porque a massa se modifica conforme o uso que dela é feito pelo indivíduo, informando-o, assim, de modo concreto, perceptível, pré-representacional, do que ele é e do que o habita, a partir das marcas que nela são deixadas precisamente segundo seus gestos. Para cumprir tal função, a massa não pode se esfacelar, tampouco permanecer rígida, incólume aos movimentos que lhe são impostos.

Trata-se, então, de um objeto/meio suficientemente plástico para responder diretamente aos gestos do sujeito, indicando, nesta mesma medida, sua existência separada deste, pela preservação de suas características, propriedades e consistência ao longo do uso que dele é feito. No curso deste processo, a psique faz para si diferentes representações de si mesma, de sua atividade de transformação, encontrando o tempo todo, no mundo externo, análogos deste algo de si, que são o começo das representações, substância pela qual se organizam as experiências vividas. Tudo isto se dá na mesma trilha pela qual se encontra e conhece o outro como tal.

A experiência do brincar é, essencialmente, uma reflexividade. Quer dizer, um dos momentos principais em que a psique e sua atividade tomam a si mesmas como objeto. Neste movimento, ele se descobre. É por isso que o brincar é geralmente acompanhado de um afeto de júbilo, que é o júbilo pela descoberta de si.

Exploração de si e da atividade simbolizante; exploração do objeto como espelho de si, mas também como outro-sujeito, como diferente de si. Acaso não seria essa a via régia da abordagem clínica nas situações em que tal problemática esteja fundamentalmente em questão?

A busca de Alice

Alice2 3 3 Em Medo do colapso, Winnicott indica com precisão o sentido do termo inconsciente referido à problemática que abordamos, ao afirmar que “neste contexto particular, o inconsciente significa que a integração do ego não é capaz de abarcar algo. O ego é demasiado imaturo para acolher todos os fenômenos na área da onipotência pessoal” (WINNICOTT, 1963/1994, p. 74). era uma mulher com cerca de trinta anos quando um de nós foi por ela procurado, em 2016. No primeiro momento do encontro, logo que entrou na sala, sentou-se na poltrona à frente do analista e observou: “Nossa... longe, né”? - Referindo-se, aparentemente, à distância entre as duas poltronas, e sorrindo um tanto sem jeito.

Dizia estar procurando atendimento por experimentar uma infinidade de dúvidas a respeito de como conduzir sua vida a partir dali. Vivia uma crise pessoal e profissional, não sabendo se deveria permanecer morando com sua família, mudar para um apartamento próprio, ou se arriscar buscando outros ares na Europa, onde parecia haver mais perspectivas para seu trabalho.

Nos primeiros encontros, trazia a narrativa de uma história familiar marcada por instabilidades diversas, ligadas, em boa medida, às várias internações psiquiátricas de sua mãe, diagnosticada com transtorno afetivo bipolar desde quando a memória de Alice alcançava. O pai, professor universitário, comparecia às cenas descritas como figura distante, “sempre fechado no escritório, com as coisas dele”.

Essa atmosfera escurecida, em que duas crianças pareciam se movimentar sem serem percebidas (Alice era a segunda filha do casal), foi também cenário de abusos sexuais que a paciente era capaz de descrever em detalhes, cometidos contra ela por uma empregada doméstica que trabalhara por anos na casa da família. Como se não bastassem tais características para fazer deste um ambiente quase inabitável psiquicamente, tudo levava a crer que a condição emocional dos pais deixara sem contornos os lugares de cada uma das meninas dentro do adoecido quadro familiar. Da irmã mais velha, Alice recebeu grande carga de ódio, provavelmente relacionada ao sentido de ameaça que a chegada da mais nova, num contexto já tão sem garantias, parecia adquirir: “Lembro que uma vez - acho que tinha uns oito anos - ela me disse que eu era deficiente, retardada, mas que ninguém me contava porque tinham pena de mim”.

Nas relações amorosas, impressionava (ou nem tanto, em vista do histórico relatado) o caráter tirânico dos namorados que, aos poucos, Alice passava a apresentar. O mergulho em seu universo impunha o contato com figuras masculinas bastante autoritárias, por vezes violentas, cuja postura deixava entrever, a partir de seus relatos, uma atitude claramente abusiva em relação a ela.

Os primeiros meses de trabalho foram marcados por uma grande frequência de alterações de agenda e pedidos por trocas de horários das sessões. Por vezes, também, sem avisar, Alice não comparecia à sessão e se comunicava horas depois, dando alguma justificativa e indagando, ansiosa, sobre possibilidades de reposição. Numa ocasião, a paciente compareceu à sala de espera do consultório em dia e horário totalmente estranhos ao combinado. Ao dar-se conta do fato, desculpou-se aturdida, dizendo ter feito “confusão” a partir de possibilidades anteriormente aventadas frente a alguma de suas demandas por modificação de agenda.

Em meio a isso, houve, certa vez, um episódio peculiar. Alice solicitou os dados bancários necessários para realizar o pagamento das sessões. Entretanto, mais de uma semana depois, o valor não havia ainda sido creditado na conta indicada. Verificou-se, então, um erro no preenchimento dos dados, com a alteração de um dos dígitos informados. O “detalhe” era que, naquele momento, ela não estava no Brasil, e previa seu retorno para pouco mais de um mês a partir dali. Deste ponto em diante, uma discussão passou a se dar com a paciente sobre formas possíveis de manejar a situação.

Ela dizia: “Vou entrar em contato com o banco e pedir o estorno do valor. Assim que eles me responderem, te dou notícia”. No dia seguinte: “A gerente não me respondeu ainda. Vou pedir para que a minha mãe deposite para você”. Depois: “Você por acaso tem conta em algum outro banco? Acho que aí pode ficar mais fácil, porque talvez eles tenham um sistema mais simples”. Desse modo, a situação foi se arrastando, até, praticamente, a data do seu retorno.

Do ponto de vista contratransferencial, uma das reações mais imediatas a essa situação foi, naturalmente, uma irritação. Além da frustração decorrente da demora no pagamento, a necessidade de dispender tanto tempo com tais “burocracias” não era, de fato, em nada agradável.

Obviamente, também, era notório que havia algo aí em termos do que se fazia objeto daquela análise, o que, entretanto - ou nessa própria medida -, não autorizava o “fechamento” da situação em determinada estrutura interpretativa, realizando, desse modo, uma esquiva do campo confuso e truncado de comunicação que assim se estabelecia. Chegamos, na época, a debater o caso numa reunião clínica da qual participávamos e um dos colegas colocou que, em sua visão, seria necessário remeter a situação ao enquadre das sessões, declarando algo como: “Logo que você retornar, decidimos como fazer”. Mas não foi essa nossa leitura.

Tomando em consideração o conjunto das atuações e demais comunicações de Alice, desde sua procura por análise, passando pela intensa investigação do enquadre, até a situação relativa à falha do pagamento no contexto de sua distância, a questão de seu sofrimento e de sua busca pessoal passava a se afirmar de forma cada vez mais contundente: qual poderia ser uma forma que viesse a lhe conferir, de fato, um lugar em suas relações?

Por mais que as exigências abusivas de diversos namorados fossem fonte de sofrimento (como de fato eram), elas lhe forneciam ou prometiam fornecer o que, de nenhum outro modo, Alice conseguia obter sozinha: em seu autoritarismo, seus namorados eram explícitos em declarar o que queriam dela. Por efeito desse autoritarismo, era fácil se localizar em relação aos desejos deles.

“Longe, né?”, dizia ela, na primeira e fundamental comunicação que havia feito em análise. O que/como eu faço? Onde eu fico? Como posso/devo me aproximar? - Ela verdadeiramente perguntava. Era essa, em nosso entendimento, a questão na base de toda a confusão em torno do pagamento: me ajude, por favor, a saber qual a forma e intensidade das demandas a partir das quais uma relação se faz possível ou, ao contrário, se torna abusiva.

A irritação vivida contratransferencialmente não foi casual, tampouco proveniente do aspecto apenas “objetivo” do pagamento. No decurso dos atendimentos, ela de fato precisou “forçar um pouco a barra” em nome de uma investigação a respeito do que possibilitava ou não sua permanência em ligação com o outro. A distância e enorme frieza do pai, sua existência convertida em personagem do mundo interno delirante de sua mãe e o ódio incondicional por parte da irmã não lhe davam parâmetro algum sobre isso.

Ela dizia, com um traço de esperança, o que lhe trouxera até a análise: precisa existir um lugar, isto é, a forma de um Eu possível. E seu eu fizer assim? E assim? Ou assim? Jogava-se, desse modo, uma espécie de jogo de “quente e frio”, no qual se encenava a questão mais essencial de sua vida: se eu pisar aqui, você vai me odiar? Um pouco mais para a esquerda... e podemos nos encontrar e ter uma troca genuína? Meu Deus! Ultrapassei seus limites e agora você nunca mais irá querer me ver nem pintada! Estraguei tudo? Você ainda está aí? Me diga, me diga!

E por que não silenciar essa bagunça, como em certo momento questionou nosso colega, remetendo isso tudo a um diálogo no enquadre “correto” das sessões? Ora, porque ela está demonstrando que não é esse o plano a partir do qual é capaz de formular tais questões. Não é lá que ela está. Para viabilizar o processo de simbolização primária, o ambiente e, portanto, a situação analisante, ela precisa encontrar o sujeito no lugar e no ritmo de seu próprio passo.

As questões de Alice não eram questões inconscientes, no sentido clássico3 3 3 Em Medo do colapso, Winnicott indica com precisão o sentido do termo inconsciente referido à problemática que abordamos, ao afirmar que “neste contexto particular, o inconsciente significa que a integração do ego não é capaz de abarcar algo. O ego é demasiado imaturo para acolher todos os fenômenos na área da onipotência pessoal” (WINNICOTT, 1963/1994, p. 74). . Elas eram a expectativa de alguma resposta por parte do ambiente sobre necessidades que permaneceram em errância dentro dela, resposta sem a qual esta própria necessidade jamais poderia ser por ela percebida como tal. Nitidamente, um dos motivos pelos quais tolerava tantos abusos era a convicção de que, na origem, a verdadeira abusadora era ela, situação que bem ilustra o mecanismo classicamente descrito por Ferenczi como identificação com o agressor (FERENCZI, 1933/2011), ou identificação narcísica (MINERBO, 2019MINERBO, M. Novos diálogos sobre a clínica psicanalítica. São Paulo: Blucher, 2019.), produzida num ambiente em que a única forma existir psiquicamente passa a ser a desorganização psíquica que “aceita” alojar em si os elementos tanáticos não simbolizados pelas figuras parentais.

Tudo o que Alice possuía para a comunicação de seu sofrimento era esse “mau jeito”, a realidade hesitante de seu corpo e a disposição um tanto incondicional para ir até o outro, onde ele estivesse, que a tornava tão vulnerável e que era agora veiculada no campo transferencial, com a colocação do analista na posição de quem, desta vez, deveria ir até ela (será que ele iria?), flexibilizando seus termos até o limite dos próprios recursos.

O que demandava, então, em sua análise? Mais do que, ou antes de, interpretações, muito bem-vindas, também, no contexto e no tempo devidos, ela demandava de seu analista a disponibilidade para adentrar com ela esse campo pré-simbólico de comunicação. Se não fosse possível entrar aí “de carne e osso”, não haveria de onde analisar com ela as verdades que com isso poderiam se desenhar. A atividade representativa, ela mesma, não pode começar a ser simbolizada a menos que o sujeito consiga se ver onde ele esteve, e ainda está.

A desconsideração disso seria, mais ou menos, como a tentativa de ensinar uma criança a andar de bicicleta dando instruções a metros de distância. Ela não tem como decodificar essas informações, porque ainda não sabe sequer como se colocar sobre a bicicleta. Ela não sabe de onde partir para seguir tais orientações a distância. O que irá fornecer a ela essa condição, antes das orientações, será o tônus muscular (afetos) do cuidador que segura o guidão com ela; a segurança, manifesta em seu corpo, de que o equilíbrio é possível (você não será abandonada por ter falhado com o pagamento), pisando no mesmo chão e sentindo o mesmo peso, as mesmas inclinações que ela (ficando, neste caso, por algum tempo, sem o valor devido). Do contrário, em termos de simbolização primária, nada feito.

O que orienta o clínico nesse trabalho é a maneira como o meio/setting é utilizado, as aproximações são realizadas, e uma “dança” é encenada pelo sujeito no decorrer da sessão e do tratamento. O modo com que o paciente se utiliza das diferentes propriedades do solo comum à dupla para sua atividade de simbolização nos informa sobre o que ele herdou da relação primária com o objeto, e sobre como este se deixou ou não utilizar pelo sujeito no plano primordial de constituição do Eu.

Podemos assumir sem muitas ressalvas que, dentre os espaços abertos em análise para a comunicação das angústias de Alice, a caixa de diálogo de um aplicativo de mensagens se apresentou como lugar particularmente útil para a investigação sobre qualidades específicas do contato que ali se produzia. No intervalo física e temporalmente delimitado das sessões, diversas questões acerca da extensão e a frequência do contato “permitido” entre a dupla, bem como das posições estabelecidas para que ele se desse, encontravam-se, por assim dizer, previamente “respondidas”: no consultório, com duração de X minutos e regularidade Y, ela em sua poltrona e o analista na sua, as quais, ainda por cima, mantinham entre si uma distância Z, definida segundo as prerrogativas e a estética pessoal dele! Isso era demais para Alice, que logo fez do desordenamento desse quadro a primeira forma de tradução das questões existenciais que precisariam ali ser comunicadas.

No caso de que tratamos, os recursos/propriedades do aplicativo de mensagens pareceram oferecer um meio privilegiado para a transformação, em linguagem, do sofrimento até então pouco ou nada simbolizável de Alice. Graças à forma de mediação fornecida por ele, as comunicações poderiam acontecer a qualquer momento do dia ou da semana, inclusive no instante de emergência dos estados emocionais que as motivassem, abrindo ampla margem de “pesquisa” a respeito da disponibilidade e prontidão do analista em respondê-las; o volume, ritmo, frequência e regularidade das mensagens não estavam agora subordinados a uma agenda que previamente definia os limites de sua tolerância em relação à presença da paciente. Tal contexto propiciava a experimentação dessa questão “na prática”, através, por exemplo, das reações do terapeuta à imprevisibilidade agora inerente à forma com que as trocas se estabeleciam. A modalidade de comunicação que assim se realizava admitia, ainda, uma forma de materialização e permanência da dinâmica que era criada por ambos: o celular estava com Alice o tempo todo; as conversas poderiam ser revisitadas a qualquer momento; ela poderia, quando quisesse, se certificar do que havia sido dito ali, explorando novos sentidos da comunicação que poderiam de início não ter sido identificados; a conversa, por fim, ficaria salva nas contas do aplicativo, assegurando contra o esquecimento, negação, deturpação do que lá estava posto4 4 4 Nossa preocupação em apontar as diversas propriedades do aplicativo não ocorre porque estejamos empenhados em afirmar o uso de todas elas para as finalidades terapêuticas aqui debatidas, mas porque defendemos que a escolha de sua utilização pela paciente está intimamente relacionada à reunião destas propriedades em um único meio. .

Como apontamos, a decepção narcísica primária não se traduz por símbolos, mas pela presença de potenciais vacilantes, que não chegaram a ganhar contornos pelos quais o sujeito pudesse se localizar, se reconhecer e se afirmar. Por essa razão, apresentar ao sujeito a saída de um labirinto sem percorrer com ele o trajeto de sua busca funcionaria como a voz sedutora e alienante de um oráculo que diz que a saída existe, mas ele não a encontra por que não está na direção correta, e nunca esteve.

Um dos fundamentos da prática clínica está na ideia de que a matéria-prima psíquica ou, como dissemos anteriormente, a “experiência bruta” não é imediatamente apreensível como tal e que ela deve ser materializada antes em um meio, desdobrada, descondensada graças à sua transferência para esse meio/objeto para, só depois, ser refletida, tornando-se apreensível. Ela deverá ser, pois, “mediatizada” para atenuar seu caráter hipercomplexo e enigmático. Reconhecemos, nesse sentido, a ideia de Antonino Ferro de que a situação analítica não poderá curar aquilo de que o campo não puder adoecer (FERRO, 2000FERRO, A. A psicanálise como literatura e terapia. Rio de Janeiro: Imago, 2000.).

Alice se manteve em atendimento até o início de 2020. Até então, esteve alguns meses na Europa - época em que as sessões ocorriam via internet -, sem encontrar as oportunidades de trabalho que almejava. Em 2018, experimentou nova decepção amorosa, marcada por grande sofrimento, o qual pôde, mais uma vez, ser testemunhado no espaço da análise.

Tal experiência teve, entretanto, uma característica diferente das frustrações amorosas que, até então, a analisanda havia relatado. Nesse relacionamento, nenhum traço abusivo pareceu se evidenciar. Apesar disso, era fácil identificar, no conteúdo trazido para as sessões acerca do rapaz, um forte elemento de idealização. A dor, nesse caso, dizia ela, estava ligada ao sentimento - por vezes à convicção - de que jamais voltaria a encontrar alguém que a tratasse com tal carinho e delicadeza. Fernando era, nas palavras de Alice, “um príncipe” que, estrangeiro, havia recusado sua proposta de passar a viver com ela na Europa ou acompanhá-la em seu retorno ao Brasil. Bom demais para ser verdade.

Já de volta ao Brasil, cerca de um ano depois, Alice conhece um homem, através de um aplicativo de relacionamento. Na ocasião, comentou: “Eu não sei, mas tenho a sensação de que, tempos atrás, eu não teria ‘dado like’ no perfil dele. Ele é muito bonito. Hoje eu noto que, geralmente, quando um cara era assim e morava aqui [no Brasil], eu automaticamente supunha que não era pra mim, ou pensava: bonito desse jeito, e solteiro... esmola demais. Ou é um idiota, ou deve ter algum problema”.

A satisfação, antes, ou estava fora de alcance (noutro país), ou não existia, porque nunca existiu. Além disso, a aproximação com um homem que, de saída, não se mostrasse um “fruto estragado” levantava a ansiedade, noutro momento insuportável, de reencontrar na realidade externa o sentido primariamente concebido de que nada com ela poderia funcionar, já que o verdadeiro e único fruto estragado seria, de fato, ela própria. Mantendo a possibilidade do amor e da satisfação em um plano idealizado - o príncipe bom demais para ser verdade -, em algum lugar, ao menos, essa possibilidade estaria resguardada.

Após alguns encontros, Alice e o novo rapaz se declaram apaixonados. Em sessão seguinte, durante o relato de um dos encontros entre eles, uma atenção é despertada para o teor das perguntas que estavam sendo colocadas pelo analista: o que ele faz? Vive em São Paulo? Costuma fazer tais viagens com frequência? A partir disso, o terapeuta decide afirmar: sabe, te perguntando essas coisas sobre o Alan, me senti de repente como um pai que indaga a filha sobre as ‘credenciais’ do rapaz com quem está saindo (risos). Ao que ela responde: “Curioso você dizer isso. Hoje mesmo eu pensei que queria te agradecer. Sinto que, sem o trabalho que temos feito, eu não teria tido coragem de me manter perto dele. Eu teria muito medo. No fundo, ainda tenho. Ele me trata bem”.

O aspecto geracional e edípico da réverie que se produziu, da imagem por ela criada, atestava, pela primeira vez, a percepção de lugares claramente distintos e suficientemente estabelecidos para o diálogo: um pai, preocupado com a filha (nesse caso, com medo de que ela se machucasse) e com as qualidades do rapaz que conheceu. Nada mais clássico. Deste ponto, parte uma brincadeira: vejo como você está feliz. E já que a ideia é brincar de pai... pode deixar, ficarei de olho - disse o analista. Ambos riram.

“Ficar de olho”. Anos atrás, parecia inviável. Não era possível imaginar onde Alice estava. Temos a impressão de que, hoje, ela e seu analista são capazes de se localizar um em relação ao outro. “Longe, né”? Mas não assusta mais. Não da mesma maneira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos afirmar, como uma das características centrais dos chamados sofrimentos narcísico-identitários, a dificuldade em criar representações de experiências de satisfação vividas em presença do objeto primário e, consequentemente, em transferir essas representações para objetos substitutos. Uma outra forma de colocar isto seria dizer que, no caso de uma comunicação suficientemente harmônica e bem sucedida entre o bebê e seu entorno, o sujeito conseguirá encontrar a si mesmo nas representações que poderá guardar dessas experiências primárias.

Falhas nesses processos fazem com que nos deparemos, em nossos consultórios ou serviços de saúde, com sujeitos que buscam nossa ajuda “carregados” daquilo que não ocorreu. Eles virão nos mostrar os aspectos de si que não puderam se tornar experiências e não se transformaram, assim, em partes integradas de si próprios.

Em termos do desenvolvimento da capacidade representacional, trata-se, como dissemos, da necessidade de um objeto/meio suficientemente plástico para responder aos gestos do sujeito conforme o uso que dele é feito. Neste caminho, o psiquismo estabelece para si diferentes representações de si mesmo, localizando no mundo externo representantes concretos de si e do que o habita.

Porém, não é só isso. O que o meio possibilita ao sustentar esse trabalho não é apenas a representação concreta, por assim dizer, dos estados internos do sujeito, mas a representação do próprio processo em curso. Se representar é apresentar a si mesmo uma cópia da própria experiência, o meio maleável é o recurso pelo qual o indivíduo pode enxergar este processo acontecendo.

Podemos dizer que o desempenho deste papel pelo analista e pelo setting analítico é condição necessária para que o paciente acometido por angústias primárias desperte em uma espécie de consciência de ser. O sujeito passa a reconhecer seus contornos psíquicos devido à forma que esses contornos imprimem ao meio circundante. No caso da análise, eles irão se evidenciar a partir das reações mais genuínas do analista às manifestações do paciente.

Entendemos, por isso, que o caráter vivo do ambiente primário, dado pelo bom desempenho de sua função de meio maleável, é condição sine qua non do processo pelo qual o sujeito vem a adquirir a noção de si mesmo como um ente destacado, com características pessoais singulares e valiosas em relação ao universo que o circunda. Quando modificações no ambiente se dão em resposta a uma forma própria do sujeito, o self encontra uma possibilidade de começar ou de voltar a existir criativamente. Isto demanda modalidades de encontro com as necessidades do indivíduo cujo sentido vai além de um “holding”, pois o que se assim se manifesta é uma disposição do mundo humano em receber um novo membro, porquanto lhe é dada a autorização em reivindicar para si mesmo um lugar e um traço próprios dentro da comunidade humana.

Referências

  • FERENCZI, S. Confusão de língua entre os adultos e a criança (1933). São Paulo: Martins Fontes, 2011. (Obras completas - Psicanálise IV)
  • FERRO, A. A psicanálise como literatura e terapia Rio de Janeiro: Imago, 2000.
  • FREUD, S. Constructions in analysis (1937) Londres: Hogarth Press, 1964, p. 255-270. (The standart edition of the complete psychological works of Sigmund Freud, 23)
  • GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte São Paulo: Escuta, 1988.
  • GREEN, A. On private madness Londres: Hogarth Press , 2005.
  • MADUENHO, A. Nos limites da transferência: dimensões do intransferível para a psicanálise contemporânea Tese de Doutorado, Programa de Pós Graduação em Psicologia Experimental, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. 2010.
  • MINERBO, M. Novos diálogos sobre a clínica psicanalítica São Paulo: Blucher, 2019.
  • MILNER, M. O papel da ilusão na formação simbólica (1952). In: MILNER, M. A loucura suprimida do homem são Rio de Janeiro: Imago , 1991.
  • ROUSSILLON, R. As condições da exploração psicanalítica das problemáticas narcísico-identitárias. ALTER - Revista de Estudos Psicanalíticos, Brasília, v. 30, n. 1, p. 7-32, 2012.
  • ROUSSILLON, R. Manual da prática clínica em psicologia e psicopatologia São Paulo: Blucher , 2019.
  • ROUSSILLON, R. Paradoxos e situações limites da Psicanálise São Leopoldo: Unisinos, 2006.
  • ROUSSILLON, R. Primitive agony and symbolization London: Karnac Books, 2011.
  • ROUSSILLON, R. Teoria da Simbolização: a simbolização primária. In: FIGUEIREDO. L. C.; SAVIETTO, B. B.; SOUZA, O. (orgs.) Elasticidade e limite na clínica contemporânea. São Paulo: Escuta , 2013.
  • WINNICOTT, D. W. Aggression in relation to emotional development (1950). In: WINNICOTT, D. W. Through Paediatrics to Psychoanalysis - Collected Papers London: Karnac Books, 1992.
  • WINNICOTT, D. W. Medo do colapso (1963). In: WINNICOTT, D. W. Explorações Psicanalíticas Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
  • WINNICOTT, D. W. Primitive emotional development (1945). In: WINNICOTT, D. W. Through Paediatrics to Psychoanalysis - Collected Papers London: Karnac Books, 1992.
  • WINNICOTT, D. W. The Place where we Live (1967). In: WINNICOTT, D. W. Playing and Reality London: Routledge, 1994.
  • WINNICOTT, D. W. Transitional Objects and Transitional Phenomena (1953). In: WINNICOTT, D. W. Playing and Reality London: Routledge, 1994.
  • 1
    1 Ao falar em ambiente, partimos do entendimento de Winnicott de que um bebê é um conceito que não pode ser pensado senão em sua inserção dentro de uma estrutura ambiente-indivíduo, em um contexto que provê cuidados. Nesse sentido, o sujeito só poderia emergir a partir de uma realidade que assegure as condições necessárias para uma experiência suficiente de “continuidade de ser”.
  • 3
    3 Em Medo do colapso, Winnicott indica com precisão o sentido do termo inconsciente referido à problemática que abordamos, ao afirmar que “neste contexto particular, o inconsciente significa que a integração do ego não é capaz de abarcar algo. O ego é demasiado imaturo para acolher todos os fenômenos na área da onipotência pessoal” (WINNICOTT, 1963/1994, p. 74).
  • 4
    4 Nossa preocupação em apontar as diversas propriedades do aplicativo não ocorre porque estejamos empenhados em afirmar o uso de todas elas para as finalidades terapêuticas aqui debatidas, mas porque defendemos que a escolha de sua utilização pela paciente está intimamente relacionada à reunião destas propriedades em um único meio.
  • 2
    2 Os nomes de todos os indivíduos mencionados neste trabalho foram alterados a fim de resguardar suas identidades. Com o mesmo propósito, foram modificados ou omitidos, ao longo da narrativa apresentada, quaisquer dados que pudessem permitir a identificação dos sujeitos em que o relato se baseia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2020
  • Aceito
    01 Nov 2021
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