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A origem e o sintoma: dos tempos de Freud aos dias de hoje

The origin and the symptom: from Freud to nowadays

RESUMO:

O presente artigo pretende abordar, por meio do caso O Homem dos Ratos, o caráter ficcional da neurose. Partindo da proposição lacaniana de que a neurose nasce de um furo no saber soberano, o que se busca ressaltar é que, por mais que haja uma intensificação dos excessos e da falta de referências na contemporaneidade, a angústia e o sintoma já estavam presentes desde os tempos de Freud. Assim, com o objetivo de evidenciar que a função paterna é falha por estrutura, investigaremos o complexo de Édipo, fundador do mito de origem, lançando luz sobre o aspecto paradoxal da castração.

Palavras-chave:
Homem dos ratos; mito de origem; sintoma; função paterna; contemporaneidade

Abstract:

This paper aims to approach, through the case The Rat Man, the fictional character of the structure of neurosis. Starting from the Lacanian assumption that neurosis is born from a gap on the sovereign knowledge, hereby we aim at highlighting that even though on the present days there is an intensification of excesses and of a lack of reference, the anguish and the symptom were already present in Freud’s days. Hence, with the objective of demonstrating that the paternal figure is structurally flawed, we will investigate the Oedipus’ Complex, founder of its origin myth, so that we can shed some light on the paradoxical aspect of castration.

Keywords:
The Rat Man; the origin myth; symptom; paternal function; contemporaneity

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo1 1 O presente artigo é fruto da pesquisa intitulada A voz e os limites, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e coordenada pelo Professor e Bolsista em Produtividade em Pesquisa do CNPq Marcus André Vieira. O trabalho de pesquisa foi desenvolvido na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), sendo este artigo realizado em co-autoria pelas alunas Bruna M. Guaraná, mestranda e bolsista CAPES, e Luisa Moraes, bolsista Faperj, e pelo orientador Marcus André Vieira. tem por objetivo abordar o caso O homem dos ratos, como ficou popularmente conhecido o ensaio de Freud (1909/1980FREUD, S. Notas sobre um caso de neurose obsessiva (1909). Rio de Janeiro: Imago , 1980. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 10)) intitulado Notas sobre um caso de neurose obsessiva, partindo da leitura do texto O mito individual do neurótico, de Lacan (1953/2008LACAN, J. O mito individual do neurótico, ou Poesia e verdade na neurose (1953). Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 9.). O retorno ao caso se deve ao fato deste nos permitir deixar clara a diferença entre a dívida e o excesso presentes na construção do sintoma e da fantasia do paciente em questão. De um lado, o excesso é encarnado na cena fantasmática da tortura que Ernst Lanzer, o famoso “homem dos ratos”, imagina que seu pai sofrerá, e, de outro, a dívida é encenada de forma sintomática, uma vez que o paciente de Freud cria a impossibilidade de esta ser paga.

Sob a perspectiva lacaniana dos conceitos de sintoma e fantasia (LACAN, 1957/1998LACAN, J. A instância da letra ou a razão desde Freud (1957). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1998, p. 496.), Jacques-Alain Miller comenta: “A oposição entre sintoma e fantasia é também uma oposição entre significante e objeto, na medida em que o que prevalece no sintoma é sua articulação significante” (MILLER,1983/2002MILLER, Jacques-Alain. Percurso de Lacan: uma introdução (1983). Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2002., p. 98). Aqui, entendemos significante como o que pode, em termos simbólicos, promover articulação possível do gozo2 2 Gozo é um conceito lacaniano derivado do que Freud formalizou sobre a pulsão de morte, significando a pulsão que ameaça a homeostase do princípio do prazer, apresentando-se como um misto de prazer e dor. LACAN, J. “Seminário 5: As formações do inconsciente” (1958/1999). que nos habita. A cadeia significante é equivalente a uma constelação de palavras e traços, que em si não contêm o gozo, mas articulam-no. Já o gozo é o que se busca alcançar no sentido de uma satisfação plena, que pode também ser vivido como angústia. Por isso, na cadeia significante, e, portanto, no sintoma, o gozo existe de forma parcial (LACAN, 1964/1998BARROS, R. Compulsões e obsessões: uma neurose do futuro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 125p., p. 159; 1957a, p. 496).

No caso do Ernst, como dissemos, essas duas dimensões, a da fantasia e a do sintoma, aparecem de forma exemplar. Se a fantasia apresenta-se na cena em que o objeto de horror é encarnado pela imagem do suplício do pai, gerando angústia excessiva e certo gozo no paciente de Freud, o sintoma surge, então, como uma tentativa de encobrir esse gozo e encapsulá-lo na Lei e na ordem paterna, o que ocorre por meio das dívidas, superstições e ideias obsessivas. Parece, portanto, que a fantasia vivida com horror e fascínio por Ernst Lanzer está relacionada à questão de seu pai ter falhado em sua função de negativizar seu gozo, barrando-o. Assim, a solução encontrada por Ernst para esse gozo excessivo e ilimitado se dá de maneira sintomática, a partir da criação da dívida e de superstições, como veremos adiante.

Contudo, talvez o leitor se pergunte quanto à pertinência das contribuições do caso do homem dos ratos para os dias de hoje, tempos tão diferentes dos de Freud. Para elucidar tal questão, será necessário realizarmos uma breve retrospectiva histórica.

No século XVIII, houve uma ruptura cultural, reconhecida por Lacan (1965/1998) como o “corte maior”3 3 A expressão “corte maior” de Lacan em Ciência e verdade (1965) é usada para designar a ruptura referida aqui, isto é, da Modernidade. Lacan se baseia em Alexandre Koyreé, pensador e filósofo da ciência. Ver bibliografia. Desse corte maior resulta a inauguração de uma espécie de “Doutrinal da Ciência”, termo cunhado por Jean-Claude Milner em Obra clara (1996). , que revolucionou o pensamento até então vigente e delimitou o início da Modernidade. Essa ruptura implicou um grande golpe sofrido pela autoridade paterna, em sua dimensão totalizante e soberana. Assim, a fragilidade das ideias e das referências que vemos hoje torna-se clara quando Robert Dufour, filósofo francês, afirma que a economia capitalista se mostra contrária a qualquer submissão às leis de mercado e ressalta o excesso como marca do liberalismo atual (DUFOUR,2008/2013).

Há controvérsias com relação ao período em que esse estado “de excesso” teria se instituído. Muitos autores consideram que houve na contemporaneidade uma nova ruptura cultural, essa em relação à Modernidade, e muitos outros entendem o quadro atual apenas como uma exacerbação dos valores instituídos já no período moderno, conferindo certa continuidade entre este e os dias de hoje.

Desse modo, diversos pensadores nomearam de formas diferentes a atualidade, a partir do século XX, como, por exemplo, “Pós-Modernidade” para Lyotard, “Hiper-modernidade” para Lipovestsky, “Modernidade Líquida” para Baumann, “Sociedade de Controle” para Deleuze e, ainda, “Alta Modernidade” para Giddens.4 4 Essas referências são produto do projeto de pesquisa chamado O sintoma no início do tratamento psicanalítico, coordenado pelo Professor Marcus André Vieira no período de 2010-2013, financiado pelo CNPq e co-produzido com graduandos, mestrandos e doutorandos.

Contudo, guardadas as particularidades de cada pensador da contemporaneidade, todos eles parecem concordar que as transformações culturais atuais levaram a um esvaziamento ou decadência da transcendência como forma de lidar com o gozo e com o excesso. Ainda assim, optamos aqui por utilizar a expressão de Lipovestsky “Tempos Hipermodernos”5 5 Essa expressão também é cunhada por Marcus André no artigo A (hiper)modernidade lacaniana, publicado em Latusa número 9, p. 69-82, 2004. , uma vez que pensamos a atualidade não em termos de radical ruptura com a individualidade moderna, mas como índice que marca uma especificidade nada negligenciável nessa mesma história (LIPOVETSKY, 2004/2014).

Hoje, como Dufour constata, há uma radicalidade do paradigma instituído pela Modernidade, isto é, o excesso, que já era presente nesse período, é levado às ultimas consequências (DUFOUR, 2008/2013). Por isso, será com base nesse reconhecido marco da Modernidade que iremos nos situar.

Na Idade Média, momento imediatamente anterior a essa ruptura histórica marcada pela Modernidade, Deus era a figura privilegiada para encarnar tudo aquilo que é da ordem do mistério, do desconhecido e que poderia produzir angústia. Assim, o esvaziamento dessa função transcendente, isto é, a produção de um furo nesse saber religioso que se pretendia total, foi o que ao mesmo tempo fez nascer a ciência, a psicanálise e até mesmo a neurose. Miller, sobre as condições para o surgimento da psicanálise, afirma:

[...] os céus, a criação, a terra não eram de modo algum mudos antes do advento da ciência. [...] O discurso da ciência, a partir do nascimento da física-matemática, é que fez calar o mundo [...] a ciência supõe que no mundo existem significantes que já não querem dizer nada para ninguém. Podemos encontrar no mundo significantes que se organizam, significantes que respondem a leis, mas esses significantes não estão relacionados com um sujeito que se expressaria por seu intermédio.[...] Há significante independentemente do sujeito. Há significante organizado segundo leis autônomas que funcionam independentemente da consciência que o sujeito possa ter dele ou da expressão; é o sujeito, justamente, que é um efeito do funcionamento das leis significantes. Por isso Lacan diz, e afinal a história parece confirmá-lo, que a psicanálise não era possível antes do advento do discurso da ciência. (MILLER, 1979, p. 46, grifos nossos).

Miller comenta aqui que, antes da ruptura que mencionamos haver ocorrido com o nascimento da ciência no século XVIII, havia a dominância da crença nos céus e criações divinas como resposta para o mistério da origem. Com o deslocamento da suposição de sentido outrora localizada em Deus, para a subsequente valorização das “leis autônomas” da natureza, que em nada devem à intencionalidade da vontade divina, há um emudecimento do mundo, pois esse deixa de querer dizer coisas para o sujeito.

Desse modo, a função paterna, que costumava abarcar a intenção ou sentido da existência, é enfraquecida, e a condução da nossa existência parece, assim, se aproximar de uma lógica muda, similar à da matemática. É sobre esse movimento que comenta Marcus André Vieira, em sua resenha baseada no livro do psicanalista Romildo do Rêgo Barros Compulsões e obsessões: uma neurose do futuro, afirmando que: “A psicanálise seria filha de uma mutação na cultura que igualmente teria dado origem ‘à neurose” (VIEIRA, 2014VIEIRA, M-A. Inventando um tempo. Psic.Clin., Rio de Janeiro, v. 26, n. P, p. 237-241, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-56652014000100015&script=sci_arttext. Acesso em: 13 jul. 2015.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010...
, p. 238).

Ainda nesse sentido, partindo dessa virada histórico-cultural que se direcionou para uma lógica muda na qual impera a ciência moderna, Romildo do Rêgo Barros sustenta: “Surgiu a partir dos séculos XVII e XVIII uma nova forma de esperança, diferente da religiosa, foi ela que deu lugar ‘à neurose e a Freud’” (BARROS, p. 94 apudVIEIRA, 2014VIEIRA, M-A. Inventando um tempo. Psic.Clin., Rio de Janeiro, v. 26, n. P, p. 237-241, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-56652014000100015&script=sci_arttext. Acesso em: 13 jul. 2015.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010...
, p. 238, grifos nossos).

É essa nova forma de esperança aqui assinalada que caracteriza a mudança que viemos nos referindo, da passagem de um Outro que tudo sabe, onde é suposto o saber em Deus, a um Outro6 6 O conceito de Outro é estabelecido por Lacan e teve usos diferentes ao longo de seu ensino. Neste artigo, usaremos a concepção de Outro que permeou todo o percurso lacaniano, ou seja, o Outro como simbólico e, por extensão, como cultura. Ver: VIEIRA, M. A. Objeto e Nome-do-Pai, em Scilicet dos nomes do pai, AMP, 2005. ao qual falta saber (VIEIRA, 2014VIEIRA, M-A. Inventando um tempo. Psic.Clin., Rio de Janeiro, v. 26, n. P, p. 237-241, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-56652014000100015&script=sci_arttext. Acesso em: 13 jul. 2015.
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). A forma de esperança diferente da crença em Deus é fruto do abalo sofrido por essa crença onipotente que tudo encobria, sem dar lugar para que o sujeito adviesse de seu discurso, situando-o em lugar alhures, mais especificamente em Deus. Com esse abalo, ocorre nas leis do mundo, que antes eram explicadas por Deus, uma descompletude que dá margem à invenção do inconsciente freudiano.

O inconsciente freudiano, assim, nasce da brecha que surgiu nas certezas prévias que o sujeito tinha em relação ao mundo. A famosa frase de Freud “o eu não é mais senhor em sua própria casa” (FREUD, [1917]1944, p. 295) revela essa ideia. O sujeito que fala não é o senhor do que diz, na medida em que não detém o controle de suas intenções ou mesmo do conteúdo que gostaria de expressar. Existe algo no próprio sujeito que lhe é desconhecido e pode se desvelar como tal, sem que isto seja imputado à figura de Deus, detentora do que nos falta. Desse modo, o que abrirá caminho para o surgimento da psicanálise e da neurose diz respeito ao fato do sujeito não ser mais preenchido totalmente pelo sentido religioso.

É o que torna possível a psicanálise, sustentada na possibilidade de uma busca da verdade em nós mesmos, que só nós possuímos um saber singular. A neurose é uma forma de viver esta esperança, fazendo, porém, com que a verdade permaneça sempre encoberta, para que se possa seguir buscando-a eternamente. (BARROS, 2012BARROS, R. Compulsões e obsessões: uma neurose do futuro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 125p.apudVIEIRA, 2014VIEIRA, M-A. Inventando um tempo. Psic.Clin., Rio de Janeiro, v. 26, n. P, p. 237-241, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-56652014000100015&script=sci_arttext. Acesso em: 13 jul. 2015.
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, p. 74).

Essa busca da verdade que é sempre não alcançada tem como causa um desejo inconsciente, algo que desconhecemos e que se faz presente em nosso próprio dizer. No lugar de um Outro que sabia a verdade, como Deus, surgiu aquele a quem faltava saber. Diante dessa falta de saber e do baque sofrido com essa mudança de paradigma, o que estamos hoje vivendo diz respeito a algo que parece ter se excedido e intensificado, gerando um novo modo de relação com o saber e com o gozo, mas ainda em consonância com a ruptura maior que a Modernidade operou. Dessa forma, o gozo passou de proibido para possível de ser atingido, e, assim sendo, tornou-se consequentemente, obrigatório.

Iniciaremos então uma reflexão acerca do escrito clínico sobre O homem dos ratos, certos de que valerá recorrer a esse estudo, posto que Freud revela um caso em que a autoridade do Pai não conseguiu funcionar como limite do gozo. Isso pode ser evidenciado pelo fato de que a própria figura do pai encarna um excesso na fantasia de seu filho.

A experiência de Ernst Lanzer, nesse sentido, se aproximaria daquelas dos sujeitos atuais, uma vez que, se antes indicamos, a partir da transformação do discurso prevalente, a falha da figura paterna em cumprir sua função estruturante, hoje, o pai simbólico muitas vezes sequer existe como referencial privilegiado. Com o esvaziamento da função paterna, predomina um tipo de relação com o gozo que busca a totalidade da satisfação, e assim somos levados, tal como Ernst, a produzir muitas vezes saídas sintomáticas, na tentativa de circunscrever esse excesso, que se caracteriza pela ilimitação própria dos dias atuais.

2 O MITO INDIVIDUAL DO NEURÓTICO- A ORIGEM

Lacan toma emprestada a expressão “mito individual”, criada por Lévi-Strauss, para tratar da estrutura básica que constitui a subjetividade do neurótico, cunhando então o termo “mito individual do neurótico”, que dá título a seu livro7 7 LACAN, J. O mito individual do neurótico, ou Poesia e verdade na neurose (1953). In: LACAN, J. O mito individual do neurótico. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. . Nesse livro, Lacan analisa o caso clínico de Freud, O homem dos ratos, e elabora a ideia de que o conflito fundamental do neurótico, seu mito individual, é uma reedição da estrutura mítica familiar, sendo constitutivo do sujeito e de seus sintomas.

Além disso, quando se fala de mito, evidencia-se o potencial metafórico e metonímico de sua estrutura como linguagem, isto é, como representação de algo que não pode ser dito, mas encenado ou atuado através da condensação ou deslocamento dos objetos libidinais originais. O mito se situa onde a experiência de verdade8 8 Lacan utiliza o termo “verdade” com diversos empregos distintos. No contexto em questão, “verdade” é entendida como origem, ou, ainda, como aquilo que não pode ser dito. Nesse caso, o sentido da palavra “verdade” aproxima-se do que mais tarde Lacan irá chamar de experiência do Real. não é exprimível. Daí deriva-se o segundo título possível para esse mesmo estudo: Poesia e verdade na neurose.

O mito é o que dá uma formulação discursiva a algo que não pode ser transmitido na definição de verdade. [...] A fala não pode apreender a si própria, nem apreender o movimento de acesso à verdade como uma verdade objetiva. Pode apenas exprimi-la- e isso de forma mítica. Nesse sentido é que se pode dizer que aquilo em que a teoria analítica concretiza a relação intersubjetiva, e que é o Complexo de Édipo, tem valor de mito. (LACAN, 1953/1987, p. 13).

Portanto, pode-se afirmar que a neurose possui na sua origem um mito, visto que os sintomas neuróticos consistem justamente na atualização de desejos referentes à fantasia primordial do sujeito, presentificada através de um circuito psíquico que se estabelece pela atuação de um pequeno drama. A constelação original do sujeito possui relação precisa com a sua fantasia. Isto é, as relações que presidiram o nascimento do sujeito, e que estabeleceram a união de seus pais, estão intimamente ligadas ao desencadeamento da crise e ao roteiro imaginário ao qual esse chega como se fosse solução de sua angústia (LACAN, 1953/2008, p. 19).

A apreensão subjetiva e não factual da relação inaugural com o pai e com a mãe, com a presença do Outro, é essencial para o entendimento da situação atual do sujeito. Como afirma Freud (1909/1972), o sintoma é uma “solução de compromisso”, uma negociação entre as representações recalcadas do desejo inconsciente e as exigências defensivas do eu.

[...] o que se torna consciente como representações e afetos obsessivos, substituindo as lembranças patogênicas no que concerne à vida consciente, são estruturas da ordem de uma formação de compromisso entre as representações recalcadas e as recalcadoras. (FREUD, 1909/1972, p. 167, grifos nossos).

As representações recalcadas correspondem aos desejos inconscientes e as recalcadoras, às representações mobilizadas pelo eu do indivíduo no sentido de evitar que esses desejos irrompam na consciência. Assim, em meio a esse jogo de forças do aparelho psíquico, a identidade do eu exige coerência entre os seus conteúdos representacionais, recalcando o que se torna incongruente em relação ao eu, ainda que sob a condição da produção de sintoma. Esse conflito é formador do sintoma freudiano e é fundamental na constituição do sujeito neurótico.

Dessa forma, é possível constatar que o conflito de base da neurose se trata de um mito não só pela dimensão fantasmática dos desejos advindos da história individual do sujeito, mas também pela impossibilidade de uma resolução final da configuração do conflito constitutivo, a saber, o complexo da castração como saída do complexo de Édipo.

A Lei que proíbe o incesto, representada pela função paterna no romance familiar do complexo de Édipo, instaura a um tempo a interdição e o desejo. O valor simbólico dessa Lei consiste no fato da criança se identificar com as figuras parentais, interiorizando e recalcando a castração e a dimensão desejante, a deles e a própria. A proibição é uma promessa de que algo do gozo precisa ser recusado9 9 O gozo recusado refere-se à ideia de Lacan, que consta em seu Seminário livro 7: A ética da psicanálise (1960/2008), de que, para todo ser falante, o gozo está vedado como tal, ou seja, é limitado. para que se possa ter uma satisfação que caminharia para encontrar o que foi perdido.

Abre-se mão do gozo pleno, para que se possa gozar, com satisfações sempre parciais. O que perdemos de gozo é perdido de saída, pelo fato de sermos seres de linguagem e nos submetermos ao jogo simbólico, por meio do qual passamos a existir como sujeitos. Essa ideia é bem trabalhada por Lacan no Seminário 7: A ética da psicanálise (1959-60/2008), no qual resgata de Freud o princípio do prazer como instituinte de uma regulação do nosso aparelho psíquico:

A motivação desse evitamento [referente ao obsessivo que evita atingir o objetivo de seu desejo] é extraordinariamente radical, pois o princípio do prazer nos é efetivamente dado como tendo um modo de funcionamento que é justamente de evitar o excesso, o prazer em demasia. (LACAN, 1960/2008, p. 69).

O que será decisivo para estabelecer o princípio do prazer como regulador do gozo do sujeito desde sua origem é a relação fundamental originária do ser do sujeito desde antes de sua existência:

Pois bem, aqui, é em relação a esse das Ding original que é feita a primeira orientação, a primeira escolha, o primeiro assento da orientação subjetiva que chamaremos [...] a escolha da neurose. Essa primeira moagem regulará doravante toda a função do princípio do prazer. (LACAN, 1959-60/2008, p. 70).

Das Ding é um conceito resgatado por Lacan na obra de Freud em seu Projeto para uma psicologia científica (FREUD, 1895/1966) e que diz respeito ao elemento inassimilável na relação do sujeito com o Outro. Portanto, nesse caso, das Ding seria homólogo ao gozo pleno e absoluto, objeto desde sempre perdido para o ser falante, encarnado metaforicamente pela Mãe. Assim, das Ding torna-se algo interno à subjetividade, ao mesmo tempo em que funciona como índice de exterioridade.

No complexo de Édipo, há uma reatualização dessa perda do objeto que é desde sempre perdido, por meio da interdito paterno. Nesse caso, a função paterna irá metaforizar o gozo da mãe e ser a portadora da instauração da Lei simbólica. É através da incidência da função paterna e a interiorização desta pelo supereu, que a promessa - a de que certa parcela do gozo deve ser perdida para que este possa ser alcançado - ganha estatuto simbólico. Dessa forma, a libido investida antes apenas em um circuito narcísico (mãe-bebê), direciona-se para outros objetos do mundo (pai-sociedade). Entretanto, a possibilidade de transgressão da Lei sempre implica outra promessa, essa de plenitude de gozo.

Todavia, essa satisfação plena nunca é atingida, posto que as satisfações parciais estarão sempre aquém de um gozo total, e, caso a satisfação do sujeito ultrapasse o que lhe foi previsto pela Lei do pai, isso lhe retorna em forma de culpa. Assim, tanto o evitamento da satisfação, como o excedente de gozo usufruído, fazem o sujeito, como consequência de sua culpa, ser defrontado com uma espécie de dívida subjetiva.

Dessa forma, podemos afirmar uma ambiguidade fundamental da castração: de um lado há a falta, que dá consistência ao sonho de plenitude e à expectativa de que essa falta poderá ser preenchida, de que a dívida poderá ser paga; por outro lado, há o excesso, presente no horror que se apresenta na ausência da falta. Freud diferencia essas duas facetas da castração como dívida e horror. Já Lacan chama de castração apenas a faceta da dívida, e, ao horror da castração, ele dá o nome de gozo ou angústia, introduzindo o termo morte para contemplar essas duas experiências.

Assim, o conflito é inerente ao sujeito porque a dívida nunca poderá ser paga, a falta nunca poderá ser suprimida, dada a condição desejante do neurótico e a impossibilidade de satisfação total da pulsão. Portanto, uma vez que não é possível tornar o conflito mítico consciente e se livrar deste, dada essa impossibilidade estrutural, o que se pode fazer é apenas torná-lo mais leve, transformá-lo em alguma medida. Dessa forma, o que a psicanálise propõe é a travessia da fantasia inconsciente que determina o sujeito, e não eliminá-la.

3 O HOMEM DOS RATOS - O SINTOMA

O caso do “homem dos ratos”, publicado por Freud em 1909, é um caso emblemático do mito individual do neurótico, por conta de sua simplicidade e por seu “caráter manifesto visível, das relações em jogo” (LACAN, 1953/1987, p. 18). Portanto, tentaremos apresentar para o leitor as relações envolvidas, tanto na origem como na formação do sintoma de Ernst Lanzer, e a própria relação entre ambas.

O pai do homem dos ratos, apesar de ser amado por seu filho, era ao mesmo tempo desvalorizado inconscientemente por este, por conta de sua dupla dívida. Havia uma dívida moral, pois ele era um suboficial do exército que conseguira prestígio através de um casamento vantajoso com uma dama rica, sua mãe, ao mesmo tempo em que mantinha interesses por uma dama pobre; e uma dívida social, pois devia dinheiro a um amigo e nunca lhe havia pagado. Essa é, resumidamente, a constelação familiar do homem dos ratos.

O sintoma de Ernst surge quando ele contrai uma dívida própria e se vê com a impossibilidade de pagá-la, por conta de um circuito psíquico impossível que ele próprio constrói para si. Ele não pode deixar de tentar pagar a dívida nem tampouco pode pagá-la; paradoxo para mantê-la não paga. Isso ocorre porque a sua dívida simbolicamente repete e atualiza a dívida do pai.

Assim, por amor ao pai, ele gostaria de pagar essa dívida, e imagina que, se não o fizer, seu pai, que já estava morto, sofreria o suplício dos ratos, uma tortura militar que consistia em introduzir ratos por meio anal. Entretanto, seu discurso inconsciente, que contém o desprezo pelas escolhas do pai e os desejos hostis em relação a ele, afasta-o de pagar a dívida, uma vez que a manutenção desta reafirma e denuncia a castração simbólica dele. Por conseguinte, a degradação concreta da figura do seu pai, em sua fantasia, lhe causa fascínio e horror, atualizando o tema da castração neurótica em sua ambivalência e causando-lhe angústia.

O circuito que torna a sua dívida impossível de ser paga se dá mediante as juras que ele faz a si mesmo: primeiro, ele jura que vai pagar ao ‘tenente A’, mas descobre que deve pagar ao ‘tenente B’, e, mais tarde, percebe que na realidade ele deve à senhora dos correios. Portanto, estabelece-se um fluxograma cheio de incongruências, uma vez que ele jurou para si pagar aos dois tenentes, quando devia na verdade à senhora dos correios. Além disso, a senhora dos correios é associada à dama pobre por quem ele imagina que seu pai fora apaixonado, de forma que ir ao encontro dessa é, na linguagem do inconsciente, pagar ao mesmo tempo a dívida moral e social de seu pai, através da sua própria história.

Portanto, é na tentativa de recobrir os dois planos da dívida paterna que ele faz uma operação circular, nunca satisfatória. Esse roteiro fantástico desdobra-se em um pequeno drama, que é justamente o que se nomeia de sintoma, e que está intimamente relacionado ao mito individual do neurótico. Seus sintomas aparecem justamente quando seu pai o pressionava a casar-se com uma dama rica. Os impasses próprios se deslocam para outro ponto da rede mítica, posto que o que não pode ser resolvido em um lugar (na realidade) é reproduzido em outro (na fantasia, no sintoma).

Assim, a impossibilidade de sanar a dívida do pai leva à angústia, e o arranjo psíquico encontrado como solução para essa constitui- se, no entanto, como o próprio sintoma obsessivo. O sintoma surge em forma de rituais e repetições (circuitos impossíveis), que possuem no aparato psíquico a função de tentar barrar e negativizar excesso de gozo presente. Isso pode ser ilustrado através da tentativa sintomática do homem dos ratos de pagar a sua dívida, que se revela na verdade como um esforço de “salvar” seu pai, tanto de sua dívida moral e social como do suplício dos ratos em sua fantasia, como também em sua função simbólica limitadora de gozo. Essa via do sintoma é, no entanto, uma solução inconsciente muito sofrida.

Dessa forma, podemos esquematizar o caso da seguinte maneira: o desejo hostil em relação ao pai endividado e castrado é recalcado e retorna no Real10 10 Conceito elaborado por Lacan que afirma a psicanálise lidar com um real em cena, na ficção: “No irreal é o real que nos atormenta” (LACAN, 1955/1998, p. 91). Essa definição é análoga à formulação paradoxal freudiana acerca do “isso” ou “id”, cuja presença é impossível de objetivar sob a administração de um ego esclarecido. Ver: VIEIRA, 2008, p. 172. como sintoma, o que, no caso do homem dos ratos, é caracterizado pelas ideias obsessivas e delirantes de que o pai morto iria sofrer um suplício. Os sintomas são a presença de um gozo excessivo (horror e fascínio), que pressionam o aparelho psíquico no sentido da formação de compromisso.

A formação de compromisso, por sua vez, dá-se através da criação de um circuito impossível: a tentativa de pagar a dívida, mas nunca pagá-la. Esta forma de tentativa de negativação do gozo, que é posta em jogo através da dívida, atualiza os temas do gozo do pai, mantendo o homem dos ratos, assim como o pai, endividado financeiramente e longe da dama pobre, que, no caso do paciente de Freud, é encarnada pela senhora do correio.

O motor do circuito, que fazia circular a quem o homem dos ratos devia pagar, tornando impossível o fim da dívida, é o que Lacan chama de “Morte”, que seria o quarto termo do fluxograma que envolve os três agentes (tenente A - tenente B - senhora dos correios). Esse termo “Morte” abarca dois tipos distintos de experiência.

Tudo no caso do homem dos ratos movimentava-se e ao mesmo tempo estagnava-se por conta da “Morte”. Tanto pelo lado da falta como pelo do excesso. Exemplifiquemos:

A Morte do lado do primeiro termo marca a presença de uma ausência, como é o caso da sepultura, símbolo que presentifica a falta, é a marca de uma negativação, característica do registro fálico. Trata-se daquilo que pode ser representado pela linguagem, ganhando sentido através da simbolização. Nesse sentido, faz parte dessa experiência a morte do pai, no aspecto que retoma a sua ausência, a perda do pai, a sua falta, tanto a falta que sente do pai como a falta do pai, tudo aquilo que ele não foi, e que resiste como a imagem do pai desvalorizado, endividado, castrado.

Já a experiência de morte do lado do segundo termo diz respeito ao horror e ao fascínio que o homem dos ratos sente ao imaginar seu pai sendo torturado com o suplício dos ratos. Há um gozo excessivo que se dá pelo sadismo, pela crueldade, pois há um fantasma de um pai que não morre, que permanece em contínuo sofrimento. Há aí uma relação com o gozo pela gramática anal, sendo o rato uma representação do objeto a, imagem de a. Esse tipo de experiência não é passível de ser representada pela linguagem de forma que seu valor simbólico seja transmitido, pois está fora do alcance do sentido, da simbolização; está mais próximo do registro do Real.

4 CONCLUSÃO

O drama vivido por Ernst Lanzer configura-se como uma neurose obsessiva clássica da época de Freud, na qual a angústia, como excesso, e a culpa, como dívida, possuem papéis centrais na constituição do sintoma. Pudemos perceber que o sintoma do paciente em questão se dá, em parte, como resposta ao gozo que sente ao imaginar seu pai sofrendo a tortura, e esse gozo que se apresenta na cena fantasmática, condensada na figura do Pai, é o que Lacan nomeia de objeto a. Tal como o designa Lacan: “o objeto a pertence ao reino do estranho e não ao objetivo” (LACAN, 1970/1992, p. 99).

Assim, a partir desse conceito, podemos compreender melhor que há algo que, não podendo ser totalmente objetivado ou recalcado por meio da função paterna, aparece em sua face estranha e perturbadora, como na cena fantasmática do suplício dos ratos.

Vimos como esse fato se deve a algo que escapa ao Pai e funda o furo, furo este que, no eixo histórico-cultural, fundou o corte do qual a psicanálise advém, assim como também a própria neurose. A leitura lacaniana do caso de Freud nos força a ressaltar a dialética entre excesso e dívida, a qual surge como resposta justamente ao furo ou falha paterna, que se coloca para todos nós.

Não é de hoje que vemos cada vez menos, no plano universal, o discurso do mestre ou a função paterna operando na organização das subjetividades. Se, já naquela época, Ernst Lanzer teve que inventar uma solução sintomática para sua angústia, também somos levados muitas vezes, hoje, a apelar para esse tipo de “formação de compromisso”, frente à queda da função paterna como balizadora das relações e da alteridade.

Tanto para Ernst Lanzer quanto para nós da contemporaneidade, podemos perceber o quanto o Pai não funciona de forma total como regulador dos excessos, sem deixar restos. Todavia, a especificidade da atualidade diz respeito ao empuxo a esse excesso; é o imperativo de gozo, que designa não só que o gozo é possível, mas ainda impõe que esse deve ser atingido. Citando Jacques-Alain Miller: “Estamos num ponto em que o discurso dominante determina que não se tenha mais vergonha de seu gozo [...] de seu desejo sim, mas não de seu gozo” (BARROS, 2012BARROS, R. Compulsões e obsessões: uma neurose do futuro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. 125p.apudVIEIRA, 2014VIEIRA, M-A. Inventando um tempo. Psic.Clin., Rio de Janeiro, v. 26, n. P, p. 237-241, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-56652014000100015&script=sci_arttext. Acesso em: 13 jul. 2015.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010...
, p.102; MILLER, 2003/2004, p. 139).

Portanto, considerando o que demonstramos do caso do O homem dos ratos, podemos afirmar que seria falso pensarmos que antigamente, na época de Freud, o Pai vigorava em toda a sua autoridade, de forma soberana e total, limitando o gozo, contendo o excesso e eximindo o homem de confrontar-se com sua angústia, por meio do interdito. Esse pensamento nos levaria apenas a uma idealização do passado, uma ilusão nostálgica.

Segundo Freud, toda ilusão revela a força de desejos inconscientes que se realizam através de crenças e ideais. Portanto, se hoje vemos com olhos saudosos os “bons tempos de Freud” e reclamamos a atual falta de ideais e referências, é baseando-nos na esperança de que estes seriam o remédio para o excesso de angústia presente na contemporaneidade. A ilusão, entretanto, consiste na crença de que, em algum tempo futuro ou passado, houve ou haverá a satisfação plena, tempo em que não haveria a falta nem tampouco o excesso, e que o princípio do prazer regeria soberanamente.

O que deflagra esta idealização dos “tempos dos ideais” é que, ainda que na modernidade houvesse maior valor atribuído às normas e às leis, isso não significa que o homem desse tempo não sofresse os efeitos de um Pai que falhava em conter os excessos. O expressivo desse fato é a constatação de que a neurose desde o seu princípio é nada mais do que o produto de um transbordamento de angústia, frente ao qual se produz um sintoma.

Assim, o que o presente artigo tentou demonstrar é que, se já havia neurose na época de Freud, é porque já havia a presença da figura de um Pai não-todo, faltoso, falho em sua função estruturante. Quando se fala hoje, em linhas gerais, da ausência do Pai, isto é, de referências balizadoras e organizadoras das subjetividades, talvez estejamos tratando apenas da transformação dessa falha estrutural, que antes era contida no âmbito familiar e atualmente se revela na ordem social. A ausência de parâmetros torna-se crônica ao serem instituídos socialmente os ideais de gozo pleno, tão proclamados pelo liberalismo.

O que desejamos evidenciar aqui é que a neurose e a psicanálise não teriam nascido se não tivessem condições que possibilitassem o seu surgimento. As condições, como vimos, dizem respeito justamente à mutação sofrida no Outro, que dá lugar a uma nova forma de esperança. Antes dessa ruptura ou “corte maior” (LACAN, 1965/1998), o desconhecido era encoberto por uma suposição de saber em Deus ou na ordem transcendente, e, depois dessa transformação, com o surgimento do pensamento moderno, passamos a nos voltar para o desconhecido em nós mesmos, para aquilo que deixa vislumbrar o inconsciente freudiano.

O que nos ensina as elucubrações de Freud e Lacan sobre o caso é referente a experiências em que a incidência da função paterna é frágil, de modo que essa figura não é tornada operativa. Como consequência disso, o sujeito depara-se com a sua angústia e com seus próprios recursos psíquicos para inventar uma resposta ao que lhe transborda.

Assim, podemos formular que esse tipo de vivência se aproxima das dos pacientes da clínica atual, era em que a função paterna limitadora do gozo, de modo geral, é falha, e o excesso, predominante. Portanto, o quadro cultural-social-histórico e, mais especificamente, as constelações familiares, constituem os sujeitos, aliando seus mitos de origem a seus sintomas. Dessa forma, pode-se afirmar que o modo como se dá a incidência da função paterna na vida do sujeito possui papel primordial na configuração da neurose obsessiva clássica, bem como das patologias contemporâneas.11 11 Como articular a neurose obsessiva com o TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) de hoje? Podemos traçar a hipótese de que o TOC se apresenta tal como nos sintomas repetitivos de Ernst Lanzer, contudo, sem a localização do Pai, em uma tentativa de fazê-lo valer ou salvá-lo. Para a categorização diagnóstica atual baseada nos manuais psiquiátricos, ver: Organização Mundial da Saúde (OMS), Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionadas à Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

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  • VIEIRA, M-A. Restos: uma introdução lacaniana ao objeto da psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008.
  • 1
    O presente artigo é fruto da pesquisa intitulada A voz e os limites, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e coordenada pelo Professor e Bolsista em Produtividade em Pesquisa do CNPq Marcus André Vieira. O trabalho de pesquisa foi desenvolvido na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), sendo este artigo realizado em co-autoria pelas alunas Bruna M. Guaraná, mestranda e bolsista CAPES, e Luisa Moraes, bolsista Faperj, e pelo orientador Marcus André Vieira.
  • 2
    Gozo é um conceito lacaniano derivado do que Freud formalizou sobre a pulsão de morte, significando a pulsão que ameaça a homeostase do princípio do prazer, apresentando-se como um misto de prazer e dor. LACAN, J. “Seminário 5: As formações do inconsciente” (1958/1999).
  • 3
    A expressão “corte maior” de Lacan em Ciência e verdade (1965) é usada para designar a ruptura referida aqui, isto é, da Modernidade. Lacan se baseia em Alexandre Koyreé, pensador e filósofo da ciência. Ver bibliografia. Desse corte maior resulta a inauguração de uma espécie de “Doutrinal da Ciência”, termo cunhado por Jean-Claude Milner em Obra clara (1996).
  • 4
    Essas referências são produto do projeto de pesquisa chamado O sintoma no início do tratamento psicanalítico, coordenado pelo Professor Marcus André Vieira no período de 2010-2013, financiado pelo CNPq e co-produzido com graduandos, mestrandos e doutorandos.
  • 5
    Essa expressão também é cunhada por Marcus André no artigo A (hiper)modernidade lacaniana, publicado em Latusa número 9, p. 69-82, 2004.
  • 6
    O conceito de Outro é estabelecido por Lacan e teve usos diferentes ao longo de seu ensino. Neste artigo, usaremos a concepção de Outro que permeou todo o percurso lacaniano, ou seja, o Outro como simbólico e, por extensão, como cultura. Ver: VIEIRA, M. A. Objeto e Nome-do-Pai, em Scilicet dos nomes do pai, AMP, 2005.
  • 7
    LACAN, J. O mito individual do neurótico, ou Poesia e verdade na neurose (1953). In: LACAN, J. O mito individual do neurótico. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
  • 8
    Lacan utiliza o termo “verdade” com diversos empregos distintos. No contexto em questão, “verdade” é entendida como origem, ou, ainda, como aquilo que não pode ser dito. Nesse caso, o sentido da palavra “verdade” aproxima-se do que mais tarde Lacan irá chamar de experiência do Real.
  • 9
    O gozo recusado refere-se à ideia de Lacan, que consta em seu Seminário livro 7: A ética da psicanálise (1960/2008), de que, para todo ser falante, o gozo está vedado como tal, ou seja, é limitado.
  • 10
    Conceito elaborado por Lacan que afirma a psicanálise lidar com um real em cena, na ficção: “No irreal é o real que nos atormenta” (LACAN, 1955/1998, p. 91). Essa definição é análoga à formulação paradoxal freudiana acerca do “isso” ou “id”, cuja presença é impossível de objetivar sob a administração de um ego esclarecido. Ver: VIEIRA, 2008, p. 172.
  • 11
    Como articular a neurose obsessiva com o TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) de hoje? Podemos traçar a hipótese de que o TOC se apresenta tal como nos sintomas repetitivos de Ernst Lanzer, contudo, sem a localização do Pai, em uma tentativa de fazê-lo valer ou salvá-lo. Para a categorização diagnóstica atual baseada nos manuais psiquiátricos, ver: Organização Mundial da Saúde (OMS), Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionadas à Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2015
  • Aceito
    22 Fev 2016
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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