Acessibilidade / Reportar erro

A INSUSTENTÁVEL MESTRIA DO GÊNERO: A DIVISÃO DO SUJEITO ENTRE BUTLER E A PSICANÁLISE LACANIANA

The unbearable mastery of gender: the division of the subject between Butler and Lacanian psychoanalysis

RESUMO:

Este artigo propõe uma articulação entre os trabalhos iniciais de Judith Butler na década de 1990 e o recente livro de Clotilde Leguil sobre as incidências do gênero na constituição do sujeito. Nosso percurso começa tensionando o gênero entre desejo e demanda por meio da teoria lacaniana dos anos 1950 e 1960 para, em seguida, avançar rumo a algumas contribuições que a teoria lacaniana dos discursos nos anos 1970 pode oferecer para esse debate. Nossa intenção é evidenciar a divisão estrutural do sujeito a despeito das exigências de unificação subjetiva veiculadas pelos ideais do gênero, atestando sua insustentável mestria.

Palavras-chave:
gênero; mestria; desejo; demanda; discurso

Abstract:

This article proposes an articulation between the initial works of Judith Butler in the 1990s and the recent book by Clotilde Leguil on the incidences of gender in the constitution of the subject. We begin by tensioning gender in between desire and demand, resorting to Lacanian theory in the 1950s and the 1960s; then, we move towards some of the contributions that Lacanian theory of discourses in the 1970s can offer to this debate. Thus, our aim is to demonstrate that, even when the subject assumes an identification with a master-signifier among those conveyed by the ideals of gender, he/she remains divided and incoherent under this identification, something that attests its unsustainable mastery.

Keywords:
gender; mastery; desire; demand; discourse

Nos últimos anos, têm ganhado notoriedade os trabalhos de Judith Butler acerca do gênero como performativo. Essa perspectiva considera que o gênero é o resultado de um processo regulado de repetição de rituais, atos, gestos que citam e reiteram uma norma que não existe fora de sua própria aplicação (BUTLER, 1993BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York & London: Routledge, 1993.). Trata-se de uma norma cis-heterossexual que opera produzindo e regulando corpos dentro de uma matriz binária, baseada em uma exigência de coerência e unidade entre “sexo”, gênero, desejo e práticas sexuais, bem como demarcando campos de abjeção - de vidas matáveis, violáveis, vidas que não são consideradas como tais - para corpos que não se adequem a essa exigência normativa. Assim, a reiteração performativa das normas de gênero teria como efeito retroativo a ilusão de que o sexo seria uma substância natural de onde brota o gênero. A estratégia de Butler, então, é evidenciar que as normas de gênero é que são responsáveis pela manutenção de uma noção de sexo binário, apagando seu caráter histórico e contingente pela via de uma naturalização (BUTLER, 1990/2015BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.).

Nesse sentido, a psicanálise ganha um lugar fundamental para a obra da filósofa, por oferecer um relato de como as posições sexuais são assumidas e de como elas são sempre assombradas por uma falha cômica - ainda que a autora também se preocupe com diversos pontos de reiteração de normas no fazer teórico e prático desse campo (BUTLER, 1993BUTLER, J. Gender as performance (1993). In: OSBORNE, P. (ed.). A critical sense: interviews with intellectuals. New York & London: Routledge , 1996./1996). Relendo a teoria psicanalítica em Bodies that matter, Butler (1993BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York & London: Routledge, 1993.) propõe “considerar a demanda simbólica para assumir uma posição sexuada e o que está implicado por essa demanda” (p. 96, tradução nossa). Assim, ela nos orienta a pensar o gênero como uma demanda simbólica que faz com que certas identificações e escolhas de objeto sejam prescritas para o sujeito, ao passo que outras devem ser forcluídas ou recusadas de antemão, constituindo o campo do abjeto, daquilo que não é passível de reconhecimento ou de inteligibilidade no horizonte da norma cis-heterossexual. De que forma podemos desdobrar essa proposta de Butler dentro do campo da psicanálise?

Desde Freud (1905/2016FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). São Paulo: Cia. das Letras, 2016. (Obras completas, 6)), em uma releitura lacaniana, sabemos que há algo no sujeito que resiste à universalização, à pura captação em um conjunto de normas, algo que o fundador da psicanálise chama de pulsão. A partir de sua conceituação do gozo, Lacan (1972-1973/2008bLACAN, J. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar , 2008b. (O Seminário, 20)) consolida essa noção freudiana de um elemento singular que marca o sujeito no corpo, constituindo com isso um ser sexuado, para sempre exilado de uma satisfação instintiva ou natural. Isso se deve à presença corporal de estranhos vestígios do Outro que ecoam nos modos de satisfação pulsional do sujeito, mordido pelo significante.

Servindo-se das contribuições de Freud e Lacan frente aos debates contemporâneos de gênero, Leguil (2016LEGUIL, C. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.) afirma que a psicanálise não se situa nem do lado das concepções tradicionais e naturalizantes (que sustentam um determinismo biológico do gênero pelo sexo), nem do lado das perspectivas culturalistas e construcionistas (que pensarão o gênero como construção social ou como performativo que produz a norma do sexo binário). Constituindo uma terceira via1 1 Vale observar que Butler (1993) também propõe seu trabalho como uma terceira via em relação aos debates de natureza e cultura. Do seu ponto de vista, a performatividade não está do lado da naturalização, mas tampouco da construção social do gênero; antes, trata-se da perspectiva de sua desconstrução, ao interrogar o gênero a partir daquilo que foge à norma, e não a partir dos ideais (das construções) de homem ou mulher. em relação a essa discussão, a psicanálise, na visão de Leguil (2016)LEGUIL, C. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016., não reduziria o gênero nem à natureza, nem às normas ou aos estereótipos sociais.

Segundo a autora, tanto a visão naturalizante quanto a visão construcionista do gênero perdem de vista a dimensão da singularidade do sujeito, que o campo psicanalítico se propõe a resgatar. Tal dimensão se refere a algo da subjetividade que não se reduz à biologia ou às normas sociais, escapando às tentativas de determinação biológica e cultural: algo que diz respeito às marcas singulares de gozo que assombram cada sujeito de maneira contingente, a partir dos rastros deixados pelo Outro em sua história (LEGUIL, 2016LEGUIL, C. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.).

Nessa direção, Leguil sustenta que o gênero, mais além de uma dominação, alça o sujeito a um questionamento sobre as fronteiras do seu próprio ser, por tocar naquilo “que desperta em cada um a questão do que ele deseja e de quem ele deseja” (LEGUIL, 2016LEGUIL, C. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016., p. 33). Assim, o gênero, na psicanálise, levaria o sujeito a se perguntar sobre o que significa, para cada um, ser “este homem”, “esta mulher”, para além de toda repetição pretensamente anônima de estereótipos sociais, os quais “não passeiam sozinhos pela cidade” e não entram “no detalhe da vida de um sujeito” (LEGUIL, 2016LEGUIL, C. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016., p. 29). Para a autora, o gênero se torna, então, uma via de respiração do ser, por nos conduzir a uma pergunta pelo desejo.

Desse modo, nos encontramos diante de duas leituras que enfatizam diferentes aspectos da relação entre as normas de gênero e a subjetividade. Na leitura de Butler (1993BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York & London: Routledge, 1993.), o gênero se constitui como uma demanda simbólica; em Leguil (2016LEGUIL, C. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.), por sua vez, o gênero parece centrado na singularidade do desejo de cada um. Diante disso, a primeira parte deste trabalho é um esforço de fazer avançar as propostas iniciais de Butler em seus trabalhos da década de 1990 em um diálogo com o recente livro de Leguil (2016), buscando pensar as formas de incidência do gênero na constituição do sujeito entre desejo e demanda por meio da teoria lacaniana dos anos 1950 e 1960. Pois, ainda que o desejo nunca seja inteiramente capturado por aquilo que o Outro demanda, é somente por meio de tal demanda, mais precisamente por seus intervalos, que o sujeito pode intuir algo do desejo do Outro (LACAN, 1964/2008aLACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 2008a. (O Seminário, 11)). Na sequência, buscaremos articular essa construção à teoria lacaniana dos discursos nos anos 1970, a fim de pensar a operação de uma psicanálise sobre a identificação do sujeito aos significantes-mestres que marcaram sua história.

O gênero entre desejo e demanda

Ao trabalhar a hiância entre a anatomia e o que faz com que um sujeito se reconheça enquanto um homem ou uma mulher, Bessa (2012BESSA, G. de L. P. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.) menciona uma passagem clínica que nos orientará em nossa discussão. Trata-se de um rapaz que escuta, desde pequeno, seu pai lhe dizer: “Você tem que ser homem”. O paciente confessa, em análise, ter passado muito tempo sem ser capaz de encontrar uma significação para essa “sentença” (BESSA, 2012BESSA, G. de L. P. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum, 2012., p. 40). O que fica para ele é o imperativo de cumprir tal sentença, ainda que não soubesse como iria fazê-lo.

A autora destaca como “‘ser homem’ vai além de ser ‘portador de pênis’” (BESSA, 2012BESSA, G. de L. P. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum, 2012., p. 40), já que esse enunciado é inevitavelmente atravessado pelas “insígnias que definem o que é ser um homem no discurso ao qual [o sujeito] está referido” (BESSA, 2012BESSA, G. de L. P. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum, 2012., p. 40). A interrogação acerca do desejo do Outro, no caso do paciente de Bessa, aparece cifrada por essa demanda: “Você tem que ser homem”. Assim, com Butler, poderíamos pensar que o gênero se apresenta para esse sujeito como uma demanda simbólica para assumir uma posição sexuada (BUTLER, 1993BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York & London: Routledge, 1993.), diante da qual, no entanto, ele não encontra uma resposta suficiente2 2 O fato é que nenhuma resposta é suficiente frente às demandas de gênero e ao enigma do desejo do Outro. No entanto, ao não se colocar questões, o sujeito pode se alienar às normas da cultura, consentindo com o apelo das demandas que recebe. A maioria dos sujeitos opera nessa direção; mas o caso do paciente de Bessa (2012) nos ensina o que resta como pano de fundo desse consentimento, isto é, que o sujeito permanece dividido sob o ideal, razão pela qual dele nos serviremos a fim de pensar o caráter estrutural da divisão do sujeito frente às normas sociais. e, por isso, tal demanda se mantém como pergunta.

Lacan definirá a demanda como “a pergunta em sua forma mais fechada, sob a forma de um significante que se propõe como opaco, ele mesmo, o que constitui a posição do enigma” (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1962-1963). Rio de Janeiro: Zahar , 2005. (O Seminário, 10), p. 73). É por meio de significantes como “homem”, que operam uma demanda necessariamente enigmática, que o sujeito poderá se posicionar no laço social, ao supor que há algo de fálico naquilo que ele recorta do Outro como sua demanda. Desse modo, abre-se uma via para interrogarmos as relações entre gênero, desejo e demanda na constituição do sujeito a partir da teoria lacaniana.

Nessa direção, Lacan afirma que o neurótico, seja ele histérico, obsessivo ou fóbico, é “aquele que identifica a falta do Outro [isto é, o desejo do Outro] com sua demanda, Φ com D” (LACAN, 1960/1998bLACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998b.p. 838). Daí deriva que a pulsão no neurótico está sempre em uma “relação privilegiada” com “certa forma da demanda” do Outro [($ ◊ D)] (LACAN, 1958-1959/2016LACAN, J. O desejo e sua interpretação (1958-1959). Rio de Janeiro: Zahar , 2016. (O Seminário, 6), p. 306), já que, para realizar sua montagem pulsional, o sujeito depende do significante; ele precisa estar inserido na linguagem a partir do discurso do Outro, que lhe faz uma série de exigências que se concentram nos objetos anal, oral, escópico e invocante. Nesse processo, o neurótico se configura por tomar o desejo do Outro pela sua demanda, mas essa prevalência que ele dá à demanda “esconde sua angústia do desejo do Outro” (LACAN, 1960/1998bLACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998b., p. 838).

Por não se reduzir a nenhum objeto da necessidade, o desejo do Outro guarda certa opacidade subjetiva para o ser falante, na medida em que ele só pode ser entrevisto “na margem em que a demanda se rasga da necessidade” (LACAN, 1960/1998bLACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998b., p. 828). Trata-se de uma margem aberta no ponto em que a demanda do Outro sinaliza um mais além da mera necessidade biológica, “por não haver satisfação universal (o que é chamado de angústia)” (LACAN, 1960/1998bLACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998b., p. 828). Diante do enigma do desejo do Outro, que se entrevê nas vacilações de sua demanda, o falo comparece como o significante que vem operar o fechamento de uma significação para o sujeito, localizando-o diante desse desejo (LACAN, 1958/1998aLACAN, J. A significação do falo (1958). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998a.).

Assim, se, por um lado, a ligação entre o sujeito e o Outro se dá a partir das bordas erógenas do corpo da criança, por outro lado, o sujeito também encontra, no campo do Outro, uma convocação para que assuma uma posição no simbólico como homem ou mulher. Paralelamente aos enigmas relacionados às demandas oral, anal, escópica e invocante, um sujeito pode, por exemplo, encontrar-se às voltas com este tipo de questão inconsciente: “Certo, o Outro me chama de ‘rapazinho’ ou de ‘mocinha’, mas, quando ele me diz isso, o que é que ele quer?”. Isto é, por meio da demanda do Outro, algo de seu desejo se introduz de forma enigmática. Vale observar que esse tipo de interpelação não envolve apenas o falo, mas pode incluir também os objetos parciais da demanda - posteriormente retomados por Lacan pela via do objeto a, a exemplo do objeto voz como imperativo que convoca o sujeito a assumir seu lugar na ordem simbólica, ou também de um traço recriminador no olhar de um pai para as condutas viris de sua filha (ROCHA; LIMA, 2021ROCHA, G. M.; LIMA, V. M. Sexo, objeto e indeterminação: deslizamentos entre Butler e a psicanálise. In: PRATA FILHO, R.; CASTRO, T. De B. (orgs.). Lendo Judith Butler: apropriações teóricas e políticas interdisciplinares. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2021. Disponível em: Disponível em: http://www.editora.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=963&sid=3 . Acesso em21 nov. 2021.
http://www.editora.puc-rio.br/cgi/cgilua...
).

Diante disso, as posições de ser e ter o falo se apresentam como tentativas do sujeito de responder ao enigma do desejo do Outro por meio da significação fálica que ele encontra nos ideais e nas normas da família ou da cultura (afinal, nem sempre as normas e os ideais familiares coincidem com os culturais). Se é fato que a cultura veicula o ideal de ser o falo para as mulheres e o ideal de ter o falo para os homens, como duas modalidades do parecer que substitui para ambos a impossibilidade do ter, também é certo que a posição fálica do sujeito se estabelece “desconsiderando a diferença anatômica entre os sexos” (LACAN, 1958/1998aLACAN, J. A significação do falo (1958). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998a., p. 693). O que entra em jogo, juntamente com as normas da cultura, é a forma como cada um irá responder ao Outro que incidiu em sua história.3 3 Tal construção, que fazemos aqui a partir da obra de Lacan, tem pontos de contato com a perspectiva que Butler desenvolve mais tardiamente em sua obra a partir de seu interesse pelos trabalhos de Jean Laplanche (BUTLER, 2012; BUTLER, 2014), que lhe permitirão pensar as designações de gênero atravessadas por mensagens enigmáticas concernentes ao sexual inconsciente dos cuidadores da criança. Essa perspectiva implica que o gênero não é apenas uma mera adequação comportamental a normas sociais, mas é também uma resposta singular que cada um terá de fornecer aos enigmas do sexual que lhe foram veiculados pelo Outro - ou pelos outros - que o antecede(m) (LIMA; BELO, 2019).

Discutindo o falo em Problemas de gênero, Butler (1990/2015BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.) faz uma provocação à psicanálise lacaniana ao afirmar que a ordem simbólica constituiria uma espécie de imperativo totalizante, que forçaria os sujeitos a reencenarem comicamente os fracassos normativos, sem margem para uma subversão crítica dessa ordenação. Assim, os homens estariam fadados a repetir falhadamente a comédia de ter o falo - enquanto o mesmo se daria com as mulheres - e a comédia de ser o falo - algo cuja realização plena, para ambos os sexos, teria um estatuto de impossível, mas que seria religiosamente idealizado pela teoria lacaniana, protegendo o binarismo normativo do gênero.

No entanto, mesmo que ser e ter o falo constituam a norma da cultura para as mulheres e para os homens, sabemos também que o Outro é barrado [S(Ⱥ)], isto é, ele não é capaz de regular completamente as identificações do sujeito a partir da norma heterossexual, e a consequência disso é que as mais diversas permutações fálicas se tornam possíveis, a exemplo das possibilidades subjetivas exploradas por Butler em Bodies that matter:

homens desejando “ser” o falo para outros homens, mulheres desejando “ter” o falo para outras mulheres, mulheres desejando “ser” o falo para outras mulheres, homens desejando tanto ter quanto ser o falo para outros homens [...], homens desejando “ser” o falo para uma mulher que o “tenha”, mulheres desejando “tê-lo” para um homem que o “é”. (BUTLER, 1993BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York & London: Routledge, 1993., p. 103, tradução nossa).

Assim, em psicanálise, a resposta que o sujeito equaciona com sua posição diante do falo leva em conta de que modo a falta no Outro se apresentou para ele, falta na qual cada um se aloja à maneira, ao buscar ser o filho homem que a mãe nunca teve, ou mesmo a princesinha que o pai esperava. Em outras circunstâncias, o sujeito também pode se ver às voltas com uma eleição subjetiva que contraria as intenções conscientes dos pais, a exemplo do filho que, por ser afeminado, suscita uma ira em seu pai, ou a filha butch4 4 O termo “butch” se refere a mulheres lésbicas com expressão de gênero socialmente lida como masculina. que desafia as cartilhas da feminilidade, decepcionando os ideais narcísicos de sua mãe. Cabe pensar também no rapaz que, sem saber, procura ser a filha que a mãe perdeu, ou na menina que, frente aos irmãos viris, busca elaborar outra forma de masculinidade que ela supõe mais afeita às expectativas da família, dentre inúmeras outras possibilidades que se apresentam no caso a caso.

O que está em jogo é localizar a singularidade da posição do sujeito e das parcerias que ele estabelece, a partir do modo como o Outro lhe apresentou a sua versão do que é ser um homem ou uma mulher (LEGUIL, 2016LEGUIL, C. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.) - ou de ser algo diferente dessas nomeações -, negociando, com isso, sua solução diante das normas da cultura. Ao se servir dos ideais de ser e ter, Lacan avança que “esses ideais adquirem vigor pela demanda que estão em condições de satisfazer, e que é sempre demanda de amor, com seu complemento de redução do desejo à demanda” (LACAN, 1958/1998aLACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 2008a. (O Seminário, 11), p. 701). Nesse sentido, ao serem incorporados, os ideais impossíveis de ter e ser o falo se constituem como uma demanda de amor na medida em que tentam suprir o que o sujeito supõe que falta ao Outro, o que configura precisamente a operação neurótica de tentar suprir o desejo do Outro com sua demanda.

Dessa forma, extraindo consequências da formulação lacaniana, os ideais do gênero - de ser e ter o falo - parecem se estruturar como uma demanda de amor do sujeito ao Outro; no singular, o gênero se constituiria como a forma com que cada um tenta preencher a lacuna encontrada no Outro, ainda que sempre esbarrando em um fracasso, visto que essa falta não é tamponável. Ao buscar subscrever, por exemplo, ao ideal de ser o falo, uma mulher pode se localizar como desejável por um parceiro ao reduzir o desejo desse Outro àquilo que ela supõe fazer parte de sua demanda - o que nem sempre (ou quase nunca) coincide com o que de fato causa o desejo desse parceiro (saiba ele disso ou não).

Podemos agora sintetizar a construção que fizemos até aqui. Do lado do Outro, o gênero se organiza inicialmente como uma demanda simbólica para que o sujeito assuma uma posição sexuada no discurso como homem ou mulher (BUTLER, 1993BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York & London: Routledge, 1993.) - demanda essa que será atravessada pelo enigma de seu desejo, muitas vezes de forma inconsciente. Do lado do sujeito, por sua vez, avançamos que o gênero se torna uma demanda de amor endereçada ao Outro, a partir da forma como cada um responderá à versão da tradição que incidiu em sua história (LEGUIL, 2016LEGUIL, C. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.). Assim, a subscrição de um sujeito ao ideal de ser ou ter o falo passa a constituir uma demanda de ser amado a partir daquilo que ele supõe fazer falta a esse Outro (LACAN, 1958/1998aLACAN, J. O desejo e sua interpretação (1958-1959). Rio de Janeiro: Zahar , 2016. (O Seminário, 6)).

À luz dessa construção, para retomar o caso de Bessa (2012BESSA, G. de L. P. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.), o paciente parece interrogar o enigma do desejo paterno a partir daquilo que ele cifra em sua demanda - “Você tem que ser homem” -, colocando em questão seu caráter imperativo. Ao fazê-lo, ele expõe o modo normativo de funcionamento do gênero no discurso - isto é, como uma demanda simbólica para assumir uma posição sexuada -, uma demanda frente à qual ele se vê dividido. Tal situação nos ensina que, para que a assunção normativa do gênero funcione - se é que podemos dizer que funciona -, o sujeito precisa ocultar a sua divisão subjetiva, a qual deve idealmente se apagar sob o peso de uma identificação com o “tipo ideal de seu sexo” (LACAN, 1958/1998aLACAN, J. A significação do falo (1958). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998a.).

Mas, ainda que as normas busquem instituir uma coerência identitária para o sujeito, a divisão subjetiva insiste em se apresentar, pois, no âmbito da posição sexuada de cada um, não há unificação final, não há mestria possível. Ao se mostrar incapaz de vincular uma significação inequivocamente determinada à demanda simbólica de ser homem, o paciente de Bessa (2012BESSA, G. de L. P. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.) expõe a divisão que permanecia oculta sob os significantes-mestres de sua história. Com esse gesto, ele nos convoca a pensar o gênero não apenas como um ideal referido à dialética entre demanda e desejo, mas também como um significante-mestre ao qual o sujeito busca se identificar e que orienta sua inserção no laço social. Assim, somos levados a pensar o gênero a partir da teoria lacaniana dos discursos nos anos 1970.

A insustentável mestria do gênero

Ao redigir seu ensaio Imitation and gender insubordination, Butler se interroga sobre o que significaria escrever ou falar “como uma lésbica” (BUTLER, 1991BUTLER, J. Imitation and gender insubordination. In: FUSS, D. (ed.). Inside/out: lesbian theories, gay theories. New York & London: Routledge , 1991., p. 307, tradução nossa, grifos da autora), algo que, como ela confessa, lhe desperta certo tipo de angústia. Afinal, as categorias identitárias são, muitas vezes, instrumentos de regimes regulatórios e, mais do que isso, tais categorias apresentam instabilidades que a inquietam, incomodam, mobilizam. Ela afirma que, quando “eu” “saio do armário”, dizendo “eu sou uma lésbica”, esse significante, “lésbica”, não produz um desvelamento completo da minha sexualidade (BUTLER, 1991BUTLER, J. Imitation and gender insubordination. In: FUSS, D. (ed.). Inside/out: lesbian theories, gay theories. New York & London: Routledge , 1991., p. 309). Ele apenas inaugura uma nova versão da opacidade que concerne ao inconsciente.

Assim, por seu caráter disruptivo, a sexualidade se torna aquilo que resiste a se apresentar completamente em uma identidade (BUTLER, 1991BUTLER, J. Imitation and gender insubordination. In: FUSS, D. (ed.). Inside/out: lesbian theories, gay theories. New York & London: Routledge , 1991., p. 315), desestabilizando toda tentativa de estabelecer uma coerência identitária do eu, a exemplo do enunciado “eu sou uma lésbica”, que não nos diz o que significa o que é ser uma lésbica: “a cópula é vazia, [...] ela não pode ser substituída por uma série de descrições” (BUTLER, 1991BUTLER, J. Imitation and gender insubordination. In: FUSS, D. (ed.). Inside/out: lesbian theories, gay theories. New York & London: Routledge , 1991., p. 309). A consequência disso é que “não existe gênero ‘adequado’, um gênero adequado a um sexo mais do que a outro” (BUTLER, 1991BUTLER, J. Imitation and gender insubordination. In: FUSS, D. (ed.). Inside/out: lesbian theories, gay theories. New York & London: Routledge , 1991., p. 312), na medida em que a opacidade do sexual torna impróprias as convenções performativas que buscam naturalizar uma identificação de gênero ou uma posição sexuada.

Na perspectiva de Butler, a performatividade se torna o “modo discursivo pelo qual efeitos ontológicos são instalados” (BUTLER, 1993BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York & London: Routledge, 1993./1996, p. 112, tradução nossa), gerando a ilusão de que haveria um “ser”, uma substância de onde brota o “eu sou” nos performativos de gênero. Na psicanálise, por sua vez, essa ilusão de ser se dá a partir da ordenação do sujeito pelo significante-mestre (S1), termo que Lacan (1972-1973/2008bLACAN, J. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar , 2008b. (O Seminário, 20)) faz equivocar, no francês, entre “maître” (mestre) e “m’être” (“me-ser”). Assim, a identificação ao significante-mestre forneceria ao sujeito a ilusão do “eu sou”, permitindo-lhe alienar-se nessa identificação.

No entanto, nem sempre essa operação é bem sucedida; pelo contrário, ela nunca funciona completamente. Esse fracasso estrutural se apresenta particularmente quando o sujeito passa a colocar questões sobre as identificações que o orientam no discurso, a exemplo da interrogação de Butler (1991BUTLER, J. Imitation and gender insubordination. In: FUSS, D. (ed.). Inside/out: lesbian theories, gay theories. New York & London: Routledge , 1991.) quanto ao significante “lésbica”, bem como da interrogação do paciente de Bessa (2012BESSA, G. de L. P. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.) quanto ao significante “homem”. Ainda que esses termos possam exercer correntemente a função ordenadora de S1 para muitas/os, eles não são capazes de apagar inteiramente a divisão do sujeito ($), que permanece incoerente e opaco sob sua identificação normativa. Tendo isso em mente, faremos um recorte da teoria lacaniana dos discursos para, com essas ferramentas, avançarmos nosso debate.

No Seminário 17, Lacan define os discursos como modalidades distintas de laço social. Em sua leitura, o que está em questão no discurso é uma estrutura necessária que ultrapassa as palavras, a partir das relações fundamentais e estáveis que se estabelecem na linguagem (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 11). Na visada lacaniana, o discurso é um aparelho que funciona como nossa realidade linguageira, que sustenta os pilares do mundo que conhecemos (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 13). Assim, é pela inserção discursiva que podemos articular o emprego da linguagem, na qual somos seus empregados mais do que a empregamos (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 69).

Nesse caso, o sujeito é tomado não como a referência do discurso, e, sim, como seu efeito, já que o discurso se funda numa estrutura (LACAN, 1971/2009LACAN, J. De um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: Zahar , 2009. (O Seminário, 18), p. 10). Essa estrutura é constituída na relação de um significante com outro significante, que resulta no aparecimento de um sujeito dividido, $ (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 13). O S1, então, é aquele que intervém no campo do Outro, campo já constituído dos outros significantes, chamado de saber. No saber, S2, é o sujeito que vem se perder, na opacidade de seu próprio fading, juntamente com as suas origens (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 17).

Pois, se o S1 vem representar o sujeito para outro significante (S2), ali onde é representado, o sujeito só pode estar ausente, encontrando-se dividido ($) (LACAN, 1971/2009LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 10). Com isso, o aparato significante se encontra no lugar paradoxal de ser o que, por um lado, interdita o gozo e, por outro, franqueia uma parte dele (LACAN, 1971/2009LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 114), por permitir ao sujeito ser engendrado numa posição discursiva, inserido no campo do Outro, mas apenas se representado por um significante. Desse trajeto dos significantes, surge uma perda, que é o objeto a, função do objeto perdido que instala o gozo e sua repetição, no limite do saber (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 13). Isso indica que, na base de todo discurso, encontramos um elemento de impossibilidade, na raiz do que é um fato de estrutura (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 46).

Nessa direção, Lacan (1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17)) isola os quatro discursos que se colocaram como decisivos na história ocidental: o do mestre, o da histérica, o do universitário e o do analista. Para nossos propósitos, vamos nos concentrar especialmente no discurso do mestre, no qual o significante-mestre está na posição de semblante/agente, o saber se situa no lugar do Outro, a produção é traduzida como objeto a e a verdade recalcada é a do sujeito barrado. Esse discurso nos interessa na medida em que nos permitirá pensar o modo com que operam os mecanismos de gênero, em uma tentativa sempre falhada de encontrar uma identidade do Um consigo mesmo. Sua relevância está no fato de partir não de um sujeito preexistente ao ato, mas, sim, de uma estrutura discursiva, na qual “o agente não é forçosamente aquele que faz, mas aquele a quem se faz agir” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 179).

Figura 1:
O discurso do mestre

O discurso do mestre é aquele que intervém pela eleição de um significante-mestre na posição de agente ou semblante que interpela o Outro do saber, a fim de extrair, daí, um mais-de-gozar, que se apresenta de maneira a esconder a castração do próprio mestre. Ao cumprir sua função de senhor (S1), extraindo do escravo seu saber (S2), o mestre perde alguma coisa que ele desconhece. Por essa coisa perdida, algo do gozo deve ser-lhe restituído, constituindo aí o mais-de-gozar (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 113). No entanto, nesse discurso, “não há relação entre o que vai mais ou menos se tornar causa de desejo de um cara como o mestre - que, de costume, não compreende nada disso - e o que constitui sua verdade” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 113). Há aí uma barreira entre $ e a, tornando impossível a articulação da fantasia. É isso que faz o discurso do mestre ser, “em seu fundamento, totalmente cego” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 114).

Por causa disso, o mestre não deseja saber nada, ele só “deseja que as coisas andem” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 23). A essência do senhor, portanto, é que “ele não sabe o que quer” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 32). É o escravo que sabe o que o senhor quer, se lermos o escravo enquanto uma rede de significantes articulados no campo do Outro. Saber que, no entanto, falha, enguiça, motivo pelo qual a experiência psicanalítica o coloca na berlinda (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 31). Afinal, se a ligação de S1 a S2 não é necessária, mas contingente, é porque o significante, em si mesmo, não significa nada; ele depende de um lugar na cadeia significante para assumir uma significação. Nessa esteira, segundo Lacan, o que permanece misterioso é como o desejo poderia advir ao senhor, uma vez que, do desejo, o senhor “bem que abria mão, pois o escravo o preenchia antes mesmo que ele soubesse que podia desejar” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 34).

A partir dessa concepção, o curta-metragem Bicha Bomba, dirigido por Renan de Cillo (2019CILLO, R. de (diretor). Bicha Bomba [curta-metragem/documentário]. Curitiba: Beija flor filmes. 2019. Disponível em:Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=-ZRcgkU_Ktk&feature=youtu.be . Acesso em: 24 mar. 2020.
https://www.youtube.com/watch?v=-ZRcgkU_...
), pode nos auxiliar a pensar de que forma os arranjos de gênero tradicionais marcam o sujeito em sua entrada no discurso. O início da narrativa nos coloca diante da lembrança de infância de um sujeito que não podemos saber se é o próprio diretor ou Marcelo Oriani, que com ele assina o roteiro; mas a incidência traumática dessa recordação se transmite de imediato:

A primeira vez que eu ouvi a palavra “bicha”, eu tinha apenas quatro anos e estava sentado com minha avó e um tio assistindo A praça é nossa. De repente, surgia na televisão a personagem Vera Verão. Durante muitos anos ela assombrava minhas noites de sábado e representava tudo aquilo que eu jamais deveria ser. Sempre que ela aparecia, meu tio gritava: “bicha tem é que morrer”. (CILLO, 2019CILLO, R. de (diretor). Bicha Bomba [curta-metragem/documentário]. Curitiba: Beija flor filmes. 2019. Disponível em:Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=-ZRcgkU_Ktk&feature=youtu.be . Acesso em: 24 mar. 2020.
https://www.youtube.com/watch?v=-ZRcgkU_...
).

O impacto traumático da nomeação “bicha” para esse sujeito nos ensina algo sobre a maneira como o significante-mestre se chapa sobre o sujeito de forma violenta e enigmática. A nosso ver, os mecanismos de gênero parecem operar justamente a partir dessa marcação significante advinda das demandas simbólicas, seja o sujeito interpelado como “macho”, “bicha”, “mocinha” ou mesmo como o gênero mais neutro que tentemos construir. A partir disso, sustentamos que o gênero muitas vezes opera como uma demanda que marca o sujeito com significantes-mestres cuja interpelação é traumática, por não encontrar nenhuma significação, saber ou sentido que lhe sejam dados a priori5 5 essa direção, as demandas de gênero, a exemplo daquela endereçada pelo tio do sujeito em questão, podem servir como meio para que qualquer um que se sirva das normas sociais de forma tão rígida não tenha de se haver com a interrogação opaca de seu próprio desejo e de sua posição subjetiva. Desse modo, o saber advindo das normas de gênero pode vir a compor, aí, uma espécie de resposta postiça ao enigma do desejo do Outro, reduzido, assim, a uma demanda padronizada que tenta escamotear a angústia de desconhecer o que o Outro espera. Trata-se da ficção em que um sujeito supõe que ele tem de gozar como todo o mundo pretensamente deveria, na medida em que os ideais do gênero, ao serem incorporados subjetivamente, baseiam-se em algo que já estaria escrito, em um encontro suposto bem-sucedido entre macho e fêmea, ideal cujo fracasso se atesta pelo aparecimento de sofrimento, violência e segregação ligados aos campos de gênero e sexualidade. .

Partindo dessa concepção, levantamos a hipótese de que os gêneros tradicionais franqueiam uma forma de inserção no laço social de maneira afinada com o discurso do mestre. É preciso ser “homem” ou ser “mulher”, a partir do traço diferencial da presença ou ausência de pênis, que determina em grande medida - mas não de forma completa - o destino de um sujeito na ordem simbólica. Destino que, ao menos nas configurações normativas tradicionais, supõe ser um homem ou uma mulher cisgênero/a, que expressa um desejo coerentemente heterossexual e que é punido caso não seja esse o resultado de sua subjetivação, a exemplo das figuras espectrais da bicha feminizada e da sapatão falicizada em Butler (1993BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York & London: Routledge, 1993.), paradigmas dos corpos abjetos nesse momento de sua obra (LIMA, 2021LIMA, V. M. Psicanálise e homofobia: o infamiliar na sexuação. Revista latino-americana de psicopatologia fundamental, v. 24, n. 2, 2021. Disponível em:https://doi.org/10.1590/1415-4714.2021v24n2p397.9. Acesso em:21 nov. 2021.
https://doi.org/10.1590/1415-4714.2021v2...
).

Essa intimação enigmática e sem sentido advinda do gênero convocaria o sujeito a reunir outros significantes (S2) a esses enxames de S1, a fim de constituir um saber sobre sua posição sexuada. No curta de Renan de Cillo (2019CILLO, R. de (diretor). Bicha Bomba [curta-metragem/documentário]. Curitiba: Beija flor filmes. 2019. Disponível em:Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=-ZRcgkU_Ktk&feature=youtu.be . Acesso em: 24 mar. 2020.
https://www.youtube.com/watch?v=-ZRcgkU_...
), essa operação também se apresenta: “Eu, que sempre corria chorando para o colo da mamãe, aprendi com o meu pai o que é ser bicha. ‘Bicha é o homem que chora’”. Nessa versão do que é ser um homem, é preciso sustentar a coerência viril do macho. Algo que o sujeito em questão relata nunca ter sido presente em sua posição subjetiva, o que o tornou alvo de uma série de violências desde a infância, muitas delas advindas da própria família, ao ser tomado do lugar de um objeto feminizado, corpo abjeto, violável sob o olhar do Outro.

O fato é que cada um responderá às interpelações do Outro à sua maneira, com maior ou menor adesão aos significantes-mestres que marcam sua história; mas cada sujeito terá de dar um destino singular a essa marcação, apropriando-se de algum S1 que permita sua inserção no laço social. Dessa forma, um sujeito que se inscreve sob a rubrica de um gênero de algum modo reconhece, sob o apelo desse significante, um traço de seu gozo (a). No caso do paciente de Bessa (2012BESSA, G. de L. P. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.), e nele como em tantos outros, o sujeito assume o significante da tradição pelo qual é convocado; e busca, à sua maneira, sustentar a identificação ao “homem” na posição de S1, a fim de representá-lo frente ao Outro.

Ao procurar as insígnias viris que pudessem promover uma copulação discursiva entre S1 e S2, o que está em jogo é uma tentativa de esconder o caráter sem sentido do significante-mestre que convoca o sujeito, na medida em que essas buscas por dar sentido ao S1 “homem” o permitiriam adormecer numa identificação, fazendo parecer que existe um vínculo natural e necessário entre esse significante e as insígnias fálicas que a ele se ligam. No entanto, ao tentar se colocar no discurso como senhor de si mesmo, o neurótico se enreda como um escravo da sua própria busca pela copulação discursiva - por uma ligação consistente entre S1 e S2 -, mas isso escamoteia sua verdade recalcada de ser um sujeito dividido, que não sabe bem quem é.

Pois, tal como agenciado no discurso do mestre, o sujeito “tende a se sustentar apenas nesse mito ultrarreduzido, o de ser idêntico a seu próprio significante” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 94). O resultado disso é que o sujeito acredita ser o que não é: “unívoco” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 108). Isso na medida em que há uma impossibilidade na flecha que vai de S1 a S2: “de fato é impossível que haja um mestre que faça seu mundo funcionar” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 185), apontando para a verdade recalcada desse discurso: a de que o mestre é castrado (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 101). A divisão subjetiva escancara, assim, a insustentável mestria do gênero.

Como consequência, afirma Lacan, “não existe mestre, existe o significante-mestre, que o mestre segue como pode” (LACAN, 1971/2011LACAN, J. Da incompreensão e outros temas (1971). In: LACAN, J. Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne. Rio de Janeiro: Zahar , 2011., p. 66). Em suas tentativas de conseguir a identidade do Um, um sujeito que alça o significante “macho” ao lugar de S1 pode reunir, por exemplo, uma rede de S2 cujos avatares fálicos incluem o semblante de potência ou invulnerabilidade, como forma de desconhecer sua castração e seu desejo inconsciente. Com essa articulação, o sujeito nos parece se servir da roupagem das normas de gênero, no que elas podem se estruturar pelo discurso do mestre, para desconhecer sua própria divisão subjetiva, dificultando qualquer possibilidade de interrogar-se quanto à sua posição de sujeito, assombrada por sua estranheza íntima.

No entanto, a tentativa de ser fiel a todo custo aos imperativos da norma herdados da tradição esbarra em sua própria impotência para dar conta da verdade de um sujeito barrado ($ // a) (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 185). A fragilidade dessa identificação, pela qual o sujeito busca incessantemente repetir as formas de dar sentido ao significante-mestre que o organiza, reitera um modo de gozo solitário que sempre esbarrará em uma falha, sua impossibilidade estrutural de fazer Um. Afinal, “a linguagem, mesmo a do mestre, não pode ser outra coisa senão demanda, demanda que fracassa” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 130).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse cenário, frente às interpelações advindas das demandas de gênero, um sujeito pode aderir mais ou menos aos significantes-mestres que lhe são ofertados pelo Outro. Mas o fato é que uma experiência de análise, como escreve Leguil, “se assenta sobre essa possibilidade de desapego em relação às normas existentes, a fim de abordar o continente do desejo e do gozo, que remete cada uma à sua parte de excentricidade e de anormalidade irredutível” (LEGUIL, 2016LEGUIL, C. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016., p. 96). Assim, se, de um lado, o funcionamento normativo do discurso (isto é, o discurso do mestre) tenta apagar a dimensão singular da fantasia ($a), que remete ao desejo e ao gozo de cada um, de outro lado, a estrutura da fantasia inconsciente escapa à norma identitária do S1, à regulação pela cadeia significante (S1 -S2).

Diante disso, a psicanálise propõe um giro discursivo visando interrogar essa dimensão da subjetividade que não se captura pelas formas identitárias socialmente codificadas (isto é, pelos significantes-mestres da cultura), expondo a divisão de um sujeito sem identidade ($) diante do objeto que causa seu desejo (a). Desse modo, a operação de uma análise visa justamente permitir que apareça a singularidade da fantasia que o mestre tenta ocultar. Ao contrário de visar a uma readequação do sujeito aos ideais identitários que produzem seu sofrimento, o processo analítico o convida a cuspir os significantes-mestres que marcaram seu percurso (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17)).

Ao levar o analisante a interpelar seus significantes-mestres, o discurso do analista provoca uma histerização do sujeito em questão, levando-o a se haver com aquilo que era a verdade recalcada no discurso do mestre: o desejo inconsciente de um sujeito dividido (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 33). Nesse processo, está em jogo para o analisante a queda dos ideais e das identificações, a localização de suas relações com a demanda e com o desejo, bem como o encontro com o caráter sem sentido dos significantes-mestres que guiaram seu percurso, a fim de não mais se petrificar no S1 que o orientou até então.

Se, no discurso do analista, o significante-mestre se encontra no lugar da produção, e não mais no lugar do semblante ou do agente, é porque esse S1 corresponde, dessa vez, à invenção de um significante novo (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 187), que se refere a uma nominação própria do sujeito, menos submetida ao discurso do Outro, permitindo surgir a fantasia (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17), p. 114). Assim, se o gênero se conjuga no singular, tratando-se deste homem, daquela mulher, de uma bicha, de uma pessoa não-binária, do que isso significa para cada um a partir de sua história (LEGUIL, 2016LEGUIL, C. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.), um processo de análise envolve também desfazer a crença em universais como aqueles das normas de gênero (BUTLER, 1990/2015BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.), para que o sujeito possa se abrir a uma interrogação quanto à dimensão opaca de sua satisfação pulsional.

REFERÊNCIAS

  • BESSA, G. de L. P. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.
  • BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York & London: Routledge, 1993.
  • BUTLER, J. Gender as performance (1993). In: OSBORNE, P. (ed.). A critical sense: interviews with intellectuals. New York & London: Routledge , 1996.
  • BUTLER, J. Imitation and gender insubordination. In: FUSS, D. (ed.). Inside/out: lesbian theories, gay theories. New York & London: Routledge , 1991.
  • BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
  • BUTLER, J. Rethinking sexual difference and kinship in Juliet Mitchell’s Psychoanalysis and Feminism. Differences, v. 23, n. 2, 2012. Disponível em:https://doi.org/10.1215/10407391-1629794. Acesso em: 21 nov. 2021.
    » https://doi.org/10.1215/10407391-1629794
  • BUTLER, J. Seduction, gender and the drive. In: FLETCHER, J.; RAY, N. (orgs.). Seductions and enigmas: Laplanche, theory, culture. London: Lawrence &Wishart Ltd, 2014.
  • CILLO, R. de (diretor). Bicha Bomba [curta-metragem/documentário]. Curitiba: Beija flor filmes. 2019. Disponível em:Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=-ZRcgkU_Ktk&feature=youtu.be Acesso em: 24 mar. 2020.
    » https://www.youtube.com/watch?v=-ZRcgkU_Ktk&feature=youtu.be
  • FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). São Paulo: Cia. das Letras, 2016. (Obras completas, 6)
  • LACAN, J. A significação do falo (1958). In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: Zahar, 1998a.
  • LACAN, J. Da incompreensão e outros temas (1971). In: LACAN, J. Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne Rio de Janeiro: Zahar , 2011.
  • LACAN, J. De um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: Zahar , 2009. (O Seminário, 18)
  • LACAN, J. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar , 2008b. (O Seminário, 20)
  • LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar , 1992. (O Seminário, 17)
  • LACAN, J. O desejo e sua interpretação (1958-1959). Rio de Janeiro: Zahar , 2016. (O Seminário, 6)
  • LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1962-1963). Rio de Janeiro: Zahar , 2005. (O Seminário, 10)
  • LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 2008a. (O Seminário, 11)
  • LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: Zahar , 1998b.
  • LEGUIL, C. O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.
  • LIMA, V. M. Psicanálise e homofobia: o infamiliar na sexuação. Revista latino-americana de psicopatologia fundamental, v. 24, n. 2, 2021. Disponível em:https://doi.org/10.1590/1415-4714.2021v24n2p397.9. Acesso em:21 nov. 2021.
    » https://doi.org/10.1590/1415-4714.2021v24n2p397.9
  • LIMA, V. M.; BELO, F. R. R. Gênero, sexualidade e o sexual: o sujeito entre Butler, Foucault e Laplanche. Psicologia em estudo, v. 24, 2019. Disponível em:Disponível em:https://www.scielo.br/j/pe/a/GqrtdTDmhmTDPb73Vs3VSgM/?format=pdf⟨=pt Acesso em:21 nov. 2021.
    » https://www.scielo.br/j/pe/a/GqrtdTDmhmTDPb73Vs3VSgM/?format=pdf⟨=pt
  • ROCHA, G. M.; LIMA, V. M. Sexo, objeto e indeterminação: deslizamentos entre Butler e a psicanálise. In: PRATA FILHO, R.; CASTRO, T. De B. (orgs.). Lendo Judith Butler: apropriações teóricas e políticas interdisciplinares. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2021. Disponível em: Disponível em: http://www.editora.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=963&sid=3 Acesso em21 nov. 2021.
    » http://www.editora.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=963&sid=3
  • 1
    Vale observar que Butler (1993) também propõe seu trabalho como uma terceira via em relação aos debates de natureza e cultura. Do seu ponto de vista, a performatividade não está do lado da naturalização, mas tampouco da construção social do gênero; antes, trata-se da perspectiva de sua desconstrução, ao interrogar o gênero a partir daquilo que foge à norma, e não a partir dos ideais (das construções) de homem ou mulher.
  • 2
    O fato é que nenhuma resposta é suficiente frente às demandas de gênero e ao enigma do desejo do Outro. No entanto, ao não se colocar questões, o sujeito pode se alienar às normas da cultura, consentindo com o apelo das demandas que recebe. A maioria dos sujeitos opera nessa direção; mas o caso do paciente de Bessa (2012) nos ensina o que resta como pano de fundo desse consentimento, isto é, que o sujeito permanece dividido sob o ideal, razão pela qual dele nos serviremos a fim de pensar o caráter estrutural da divisão do sujeito frente às normas sociais.
  • 3
    Tal construção, que fazemos aqui a partir da obra de Lacan, tem pontos de contato com a perspectiva que Butler desenvolve mais tardiamente em sua obra a partir de seu interesse pelos trabalhos de Jean Laplanche (BUTLER, 2012; BUTLER, 2014), que lhe permitirão pensar as designações de gênero atravessadas por mensagens enigmáticas concernentes ao sexual inconsciente dos cuidadores da criança. Essa perspectiva implica que o gênero não é apenas uma mera adequação comportamental a normas sociais, mas é também uma resposta singular que cada um terá de fornecer aos enigmas do sexual que lhe foram veiculados pelo Outro - ou pelos outros - que o antecede(m) (LIMA; BELO, 2019LIMA, V. M.; BELO, F. R. R. Gênero, sexualidade e o sexual: o sujeito entre Butler, Foucault e Laplanche. Psicologia em estudo, v. 24, 2019. Disponível em:Disponível em:https://www.scielo.br/j/pe/a/GqrtdTDmhmTDPb73Vs3VSgM/?format=pdf⟨=pt . Acesso em:21 nov. 2021.
    https://www.scielo.br/j/pe/a/GqrtdTDmhmT...
    ).
  • 4
    O termo “butch” se refere a mulheres lésbicas com expressão de gênero socialmente lida como masculina.
  • 5
    essa direção, as demandas de gênero, a exemplo daquela endereçada pelo tio do sujeito em questão, podem servir como meio para que qualquer um que se sirva das normas sociais de forma tão rígida não tenha de se haver com a interrogação opaca de seu próprio desejo e de sua posição subjetiva. Desse modo, o saber advindo das normas de gênero pode vir a compor, aí, uma espécie de resposta postiça ao enigma do desejo do Outro, reduzido, assim, a uma demanda padronizada que tenta escamotear a angústia de desconhecer o que o Outro espera. Trata-se da ficção em que um sujeito supõe que ele tem de gozar como todo o mundo pretensamente deveria, na medida em que os ideais do gênero, ao serem incorporados subjetivamente, baseiam-se em algo que já estaria escrito, em um encontro suposto bem-sucedido entre macho e fêmea, ideal cujo fracasso se atesta pelo aparecimento de sofrimento, violência e segregação ligados aos campos de gênero e sexualidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    05 Jul 2020
  • Aceito
    03 Dez 2021
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistaagoraufrj@gmail.com