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O PRIMADO DO OUTRO* * O outro (e não o Outro), para Laplanche, se refere concretamente à outra pessoa e, ainda, ao inconsciente, no sentido freudiano, do estrangeiro em nós. Mas, não se pode negar certa influência de Lacan, de quem Laplanche foi analisando e discípulo. NA PRÁTICA ANALÍTICA: CONTRIBUIÇÕES DE JEAN LAPLANCHE

The primat of the other in psychoanalysis practice: Jean Laplanche contributions

RESUMO:

Laplanche trouxe importantes contribuições para a teoria psicanalítica. Ao retomar os escritos freudianos, o autor traz de novo à cena a sedução, agora como a marca da relação intersubjetiva presente na constituição psíquica de todo ser humano, relação esta assimétrica por excelência entre um adulto e uma criança, entre um sedutor e um seduzido. O objetivo deste trabalho é discutir implicações de suas concepções teóricas na prática clínica do analista, onde este, ao manter o enigma, restaura a sedução originária, possibilitando assim novas construções. Nesse modelo, a transferência é vista não como uma resistência que deve ser desfeita, mas como uma reabertura ao originário.

Palavras-chave:
Laplanche; psicanálise; situação analítica; teoria da sedução generalizada; transferência

Abstract:

Laplanche brought up important contributions to the psychoanalytical theory. When rereading the Freudian texts, the author brings back the seduction scene, now as the mark of the intersubjective relationship present in the psychic constitution of every human being, asymmetric par excellence, between a seducer and a seduced one. The article’s aim is to discuss implications of his theory conceptions in the psychoanalytical method, which consists in a revival of the enigmatic and a restoring of the original seduction, resulting in new constructions. In this model, the transference is seen not as a resistance to be broken but as a reopening of the original.

Keywords:
analytic situation; Laplanche; psychoanalysis; theory of general seduction; transference

1 A FORMAÇÃO DO INCONSCIENTE E A TEORIA DA SEDUÇÃO GENERALIZADA

Laplanche, em 1992, publicou o artigo A revolução copernicana inacabada. Para o autor, a descoberta copernicana de que a terra se move ao redor do sol resultou em uma abertura epistemológica fundamental: a denominada Revolução Científica. Se antes, o conhecimento estava atrelado à teologia, neste momento, a partir do Renascimento, a ciência ganha nova estruturação, voltada às necessidades humanas e desvinculada de aspectos divinos.

Esta mudança epistemológica favoreceu o desenvolvimento das ciências, com mudanças profundas na forma de se conhecer o mundo. Laplanche (1992a/2008LAPLANCHE, J. Implantation, intromission (1990a). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) destaca a revolução copernicana como uma etapa que resultou em descobertas importantes, dentre elas, a constatação da imensidão do universo. Em um mundo limitado à Via Láctea, justificava-se a presença de um centro; em um universo de perspectiva infinita, a ideia de um centro, seja ele o sol ou a terra, torna-se absurda.

Se não existe centro e o universo apresenta-se em suas dimensões infinitas, não é apenas o homem, em sua existência concreta, que se encontra insignificante dentro da imensidão do universo. Há também uma mudança profunda no sujeito do conhecimento, já que ele não ocupa mais a posição central daquilo que ele conhece. O homem não é mais a medida de todas as coisas. Ali, estão o sujeito cognoscente e, ao mesmo tempo, o inconsciente, como água e óleo, imiscíveis, ambos dotados de saberes, impossíveis de serem reduzidos a um contínuo ou a um sistema único. O das Andere, a outra coisa em nós. “Assim, o descentramento e a infinitude do universo seriam enunciadores de uma infinitude do conhecimento e de um descentramento epistemológico, de outra forma difíceis de aceitar” (LAPLANCHE, 1992a/2008LAPLANCHE, J. Implantation, intromission (1990a). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008., p. VIII, tradução nossa).

Neste sentido, a revolução copernicana comunica-se com a revolução freudiana. A psicanálise, com o método de associação livre, descobre uma instância que nos vive, mais do que nós a vivamos. Há um descentramento radical, pois inaugura o olhar para uma instância que está em nós, nos determina, mas que também é estrangeira a nós. Uma outra coisa que pode se manifestar a partir de um método próprio, a associação livre, e que obedece a leis específicas, o processo primário. Laplanche (1992a/2008LAPLANCHE, J. Implantation, intromission (1990a). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) lembra o compromisso do sintoma: nele, estão presentes duas instâncias estrangeiras entre si, uma alheia à outra, incapazes de serem reduzidas uma à outra. O inconsciente incapaz de ser capturado pelo discurso consciente e, ao mesmo tempo, o sintoma como não apenas a tradução pura e simples do inconsciente. O sintoma, assim como outras formações do inconsciente, é resultado de uma solução de compromisso entre duas instâncias psíquicas estrangeiras entre si, irredutíveis uma à outra, uma alteridade radical, presente no ser humano.

Nos textos iniciais da metapsicologia freudiana, sejam eles a Interpretação dos sonhos (1900FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 5)) ou o Projeto para uma psicologia científica (1895), o inconsciente é fruto do recalque. No entanto, no desenvolvimento da obra freudiana, uma outra hipótese é levantada: a existência de um inconsciente primordial. No primeiro caso, a pulsão teria origem no inconsciente a partir de inscrições sexuais ali retidas; na segunda hipótese, a pulsão seria somática e o inconsciente surgiria a partir da pulsão. Laplanche (1992a/2008LAPLANCHE, J. Implantation, intromission (1990a). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) chama a atenção ao fato de que estas duas interpretações são diametralmente opostas. Na primeira, a origem do inconsciente é exterior; na segunda, interior.

Se o inconsciente nasce da pulsão e esta é somática, as fantasias, presentes no inconsciente, seriam a expressão psíquica da pulsão, conforme afirma Isaacs: “as fantasias não têm origem no conhecimento articulado do mundo externo; sua fonte é interna, nos impulsos instintivos” (ISAACS, 1952ISAACS, S. A natureza e a função da fantasia. In: RIVIERE, J. (ed.). Os progressos da psicanálise. Rio de Janeiro: Guanabara, 1952., p. 107).

No entanto, Laplanche (1990a/2008LAPLANCHE, J. Implantation, intromission (1990a). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) vai retomar a hipótese freudiana, presente nos primeiros artigos, de que o inconsciente é formado de cenas e fragmentos de cenas, traços mnêmicos, todas essencialmente sexuais. O autor chama a atenção para o fato de que tais lembranças são sexuais e não alimentares ou de proteção. É o prazer do sugar que o bebê vivencia e o inscreve como traços mnêmicos, portanto, um primado do sexual, o que remete essencialmente para a questão do outro, outro que não somente um adulto que se apresenta à criança, mas também, em simultâneo ao adulto, o seu outro (o inconsciente), seu estranho em si, em uma relação inicial entre a criança, o adulto e o outro (inconsciente) no adulto.

Laplanche (1990a/2008LAPLANCHE, J. Implantation, intromission (1990a). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) salienta que, nos mecanismos de projeção, introjeção, identificação, negação e forclusão, é necessário um eu ativo, pois são verbos que implicam a presença de um sujeito ativo: eu projeto, eu introjeto, até mesmo eu forcluo o nome do pai. Mas antes disso há um outro, o outro da sedução, o que significa que a origem do inconsciente se dá a partir da passividade da criança em relação a um outro, o adulto, que implanta elementos da sua própria sexualidade recalcada no psiquismo de uma criança, cujo inconsciente ainda não se diferenciou, pois, para isso, é necessário o recalque primário. Em um processo de sedução, significantes são recebidos passivamente e, a partir daí, o sujeito busca ativamente uma tradução. Laplanche (1990a/2008LAPLANCHE, J. Implantation, intromission (1990a). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) cita o Ford da descrito por Freud, a partir da interpretação de que a ausência do pai ou mãe é o significante implantado, e a brincadeira do Ford da é uma tentativa de tradução. Para o autor, a implantação é um processo normal da formação do inconsciente, que remete à transformação ativa pelo sujeito a partir da tradução.

Nesse sentido, Laplanche (1991/2008LAPLANCHE, J. L’interpretation entre déterminisme et herméneutique: une nouvelle position de la question (1991). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) retoma a definição de Freud de que a histérica sofre de reminiscências e as define como um corpo estranho, atuais, inconscientes ao sujeito e, ao mesmo tempo, inseridas nele pelo estranho do outro, por isso mensagens enigmáticas. “A outra coisa do nosso inconsciente, a outra pessoa que implantou essas mensagens, com, por horizonte, a outra-coisa na outra pessoa, ou seja, o inconsciente do outro, fazendo com que essas mensagens sejam enigmáticas” (LAPLANCHE, 1990b/2008LAPLANCHE, J. Le temps et l’autre (1990b). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008., p. 383, tradução nossa).

O resultado é um sujeito que não é mais senhor dentro de sua própria morada, pois em seu interior existe algo estranho a ele, fonte de impulsos que representam o que há de mais íntimo em si, mas que, ao mesmo tempo, é o estranho. Destacamos aqui o artigo de Freud Das Unheimliche (1919/1996). Nele, o autor conceitua o Unheimlich, como uma palavra derivada do Heimlich, ou seja, o que é familiar e agradável, aquilo que é pertencente à casa ou à família, o que é doméstico, íntimo, amistoso, tranquilo e acolhedor. Por outro lado, Heimlich também significa escondido, oculto da vista, o que é sonegado aos outros. Algo que faz parte da intimidade, do familiar, justamente porque foi afastado dos olhos de estranhos, foi escondido, tornou-se secreto (familiar e, ao mesmo tempo, o oculto). Se Un é um prefixo de negação, continua o autor, unheimlich poderia ser traduzido como estranho ou não familiar, mas, ao mesmo tempo, poderia ser traduzido como o que deveria ter ficado oculto, mas veio à luz. Heimlich é uma palavra incapaz de ser reduzida a uma coisa só, ambivalente em sua natureza, que remete ao familiar e ao oculto, simultaneamente. Vale lembrar que a palavra heimlich é utilizada para designar as partes íntimas do corpo humano, ora, justo o sexual, o familiar e o oculto, simultaneamente.

Em uma visão reducionista, poderíamos pensar que o heimlich (familiar) tornou-se unheimlich (não familiar) pela repressão, pressupondo um processo de desenvolvimento do que era familiar para o estranho e, por consequência, a possibilidade de retorno do estranho ao familiar. Mas é justamente contra esse pensamento que Laplanche (1992a/2008LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée (1992a). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) chama a atenção quando levanta a questão da revolução copernicana e a possibilidade, ou não, de conceber um mundo onde o centro inexiste, o heimlich é o estranho e o familiar ao mesmo tempo, não o desenvolvimento de uma coisa em outra.

Nessa linha, Laplanche (1989/2008LAPLANCHE, J. Temporalité et traduction (1989). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) propõe pensar o inconsciente como uma outra-coisa, que não é uma memória, mas, sim, uma reminiscência. Um corpo estranho que se manifesta como uma outra-coisa (das Andere), o inconsciente, mas que só se mantém pela outra-pessoa (der Andere). Aqui, o artigo em alemão das é um artigo neutro, o inconsciente, mas o artigo der é um artigo masculino, o outro. Entre a intervenção do outro (der Andere) e a formação do inconsciente (das Andere) existe o recalque, um processo complexo que, para Laplanche, envolve uma constante tentativa de tradução de algo que foi implantado no psíquico pelo outro. O outro, pessoa da realidade, é quem vai seduzir a criança, pois vai emitir mensagens de um sexual já recalcado, mas o destinatário dessas mensagens é uma criança cujo recalque não se instituiu. São mensagens enigmáticas, impossíveis de serem compreendidas. Cabe à criança, o incessante trabalho de tentativas de tradução dessas mensagens recebidas do outro e que permanecem fixadas no psíquico, como fonte de excitação para novas traduções.

Para Laplanche (1989/2008LAPLANCHE, J. Temporalité et traduction (1989). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.), a relação universal e originária entre humanos é sempre uma relação de sedução, pois implica uma relação passiva-ativa, entre uma criança e um adulto. Uma relação dissimétrica entre um adulto que envia mensagens impregnadas de significações, principalmente sexuais, inconscientes para ele mesmo, e uma criança cujo aparelho psíquico está a se constituir. “Uma criança em desamparo, no sentido que não tem mais do que meios rudimentares para traduzir mensagens e excitações que lhes são propostas” (LAPLANCHE, 1989/2008LAPLANCHE, J. Temporalité et traduction (1989). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008., p. 333, tradução nossa).

Há, portanto, um movimento constante, que Laplanche (1989/2008LAPLANCHE, J. Temporalité et traduction (1989). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) denomina temporalização, onde algo do passado se faz presente no presente (reminiscência) e que busca uma outra tradução. No mesmo artigo, o autor destaca a importância do termo Nachträglichkeit, inventado por Freud (1893-1895/1996FREUD, S. Estudos sobre a histeria (1893-1895). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 2)), uma palavra composta, difícil de ser traduzida. Laplanche (1989/2008LAPLANCHE, J. Temporalité et traduction (1989). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) utiliza-se da tradução de Lacan, après-coup, e a relaciona com o processo de tradução: coup no sentido de um golpe e après como posterior. Não é o evento, em si, o traumático, mas a memória do evento, onde algo enigmático se transformou em uma tradução, agora sintomática. O sintoma seria, portanto, algo que recebeu uma tradução, mas que retorna (o passado retorna ao presente, de forma atual) e exige outra tradução.

Para sustentar sua tese, Laplanche (1984/2008LAPLANCHE, J. Traumatisme, traduction, transfert et autres trans(es) (1984). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) retoma o modelo de aparelho psíquico descrito por Freud na carta 52 a Fliess (1896/1996), onde levanta a hipótese de que o psiquismo opera por estratificação: as primeiras inscrições são derivadas de percepções, os indicadores de percepção, capazes de se associarem por simultaneidade; o segundo registro seria o inconsciente, quando os indicadores de percepção se associam a partir de outras relações, formando as representações-coisa; no terceiro registro, ligam-se às representações verbais, o pré-consciente. A passagem de uma fronteira a outra depende que haja uma tradução do material psíquico. Quando a tradução não é possível, o material permanece no estrato anterior e deve obedecer às leis psíquicas que regem este estrato. O recalque seria, portanto, a impossibilidade de tradução, o que resulta na manutenção do material psíquico no inconsciente, a representação-coisa, algo a traduzir.

Por isso, Laplanche se refere constantemente, na sua obra, a um a-traduzir, como sinônimo do inconsciente, mais especificamente a um a-traduzir primordial. Diz ele, por exemplo: “Uma criança, confrontada a um mundo adulto, que de imediato lhe envia mensagens impregnadas de significados sexuais (aqueles detectados pela psicanálise) inconscientes (para o próprio emissor), mensagens percebidas como enigmáticas, como um ‘a- traduzir’” (LAPLANCHE, 1990a/2008LAPLANCHE, J. Implantation, intromission (1990a). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008., p. 332-333).

Assim, Laplanche (1984/2008LAPLANCHE, J. Traumatisme, traduction, transfert et autres trans(es) (1984). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) diz que aquilo que se inscreve no psiquismo, de forma passiva, já como traços de percepção, é uma mensagem intraduzível, um significante enigmático, o reprimido que se manifestará em cada etapa posterior, como um eco deste intraduzível interno, ao que ele chama de transcendência da situação originária. “É a transcendência da situação originária - esta relação da criança a um adulto que significa o que ele não sabe - que será traduzida, transportada, transferida com mais ou menos restos, mas jamais reduzida” (LAPLANCHE, 1984/2008LAPLANCHE, J. Traumatisme, traduction, transfert et autres trans(es) (1984). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008., p. 269, tradução nossa). Um enigmático que permanece sempre enigmático e que movimenta o aparelho em busca de novas traduções.

O que faz a análise? Separa em partes o discurso racional, o decompõe, e pede a associação livre a partir de cada termo. Para Laplanche (1984/2008LAPLANCHE, J. Traumatisme, traduction, transfert et autres trans(es) (1984). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.), o objetivo é que uma tradução, sintomática, possa ser desfeita e uma nova tradução possa surgir, a partir da associação livre e do insight do analisando, de maneira espontânea, menos repressora e menos sintomática, em um movimento de destradução e de retradução de um originário. Um originário que não surge do biológico ou de um discurso estruturado, mas, sim, um originário fruto de uma relação de sedução entre um adulto (der Andere) e seu outro (das Andere) e uma criança em processo do recalque. O primado do outro e de seu inconsciente (a outra-coisa).

Laplanche defende em seus artigos que a psicanálise mantenha seu fundamento inovador, a alteridade do inconsciente, o que implica, de um lado, o descentramento do ser humano e, de outro, a prioridade do outro na formação do psiquismo. São estes fundamentos que possibilitam postular a sedução como um caráter universal e inevitável a todos os humanos, pois trata-se, no início, de uma relação entre uma criança, com um inconsciente a se constituir, e um adulto, com um inconsciente recalcado, e que, inevitavelmente, seduzirá a criança de quem cuida, levando-a a um intenso trabalho de tradução com o recalcamento originário como defesa. Aí está o caráter universal, generalizado, da sedução originária inevitável - a teoria da sedução generalizada.

Nessa dissimetria, mensagens são transmitidas, advindas do inconsciente do adulto, sua sexualidade recalcada. O adulto como ativo, a criança como passiva e como alguém a se constituir. O adulto, ao dispensar os cuidados corporais na criança, acaba por despertar sensações de prazer, não somente na criança - aí estão as zonas erógenas -, mas também no adulto, o algo a mais que irá ficar marcado no inconsciente da criança, algo universal e inevitável, não dependente desta ou daquela contingência. “Com o termo sedução originária qualificamos, por isso, esta situação fundamental em que o adulto propõe à criança significantes tanto não-verbais como verbais, ou fundamentais, impregnados de significações sexuais inconscientes” (LAPLANCHE, 1987aLAPLANCHE, J. Novos fundamentos para a psicanálise. Lisboa: Edições 70, 1987aa., p. 132).

Mas a criança que recebe esses significantes não é capaz de traduzi-los, pois falta a ela elementos simbólicos que possam dar sentido às mensagens recebidas. Por isso, tais mensagens mantêm-se como enigmáticas. Justamente por não poderem ser compreendidas e traduzidas, permanecem neste estado que Laplanche (1987aLAPLANCHE, J. Novos fundamentos para a psicanálise. Lisboa: Edições 70, 1987aa.) chama de selvagem, o que as tornam traumatizantes e pressionarão por uma tradução. Haveria, para Laplanche (2003b/2007LAPLANCHE, J. Trois acceptions du mot “inconscient” dans le cadre de la théorie de la seduction généralisée (2003b). In: LAPLANCHE, J. Sexual: la sexualité élargie au sens freudien. Paris: PUF, 2007.), um estado de espera para a tarefa de tradução que a criança empreenderá em dois tempos, para sermos mais precisas. Matioli comenta essa ideia:

Para Laplanche (2007LAPLANCHE, J. Trois acceptions du mot “inconscient” dans le cadre de la théorie de la seduction généralisée (2003b). In: LAPLANCHE, J. Sexual: la sexualité élargie au sens freudien. Paris: PUF, 2007.c), o processo de tradução ocorre em dois tempos. No primeiro tempo, a mensagem é simplesmente inscrita, implantada, mas não é compreendida. No segundo tempo, esta mensagem é reavivada e passa a atuar como um verdadeiro corpo estranho interno que é necessário integrar ou dominar. Esta tradução, ou tentativa de tradução, tem como intuito fundar no aparelho psíquico um nível pré-consciente, essencialmente o ego, que compreende a forma como o sujeito representa sua história.

Contudo, esta tradução - que não deixa de ser uma historicização - é sempre imperfeita e, conseguintemente, deixa resíduos intraduzíveis. São estes resíduos que escaparam às primeiras tentativas de tradução, estes defeitos de tradução que constituem, por oposição ao ego pré-consciente, o inconsciente no sentido freudiano do termo. (MATIOLI, 2011MATIOLI, A. Um estudo psicanalítico da separação conjugal: as mensagens enigmáticas de pais separados dirigidas aos seus filhos. Dissertação de mestrado. Viviana V. Martinez, orientadora. Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá. 2011.).

Isso nos indica que o trabalho de recalcamento do sexual virá somente em um segundo tempo, quando o próprio adulto e a cultura terão ofertado à criança elementos organizadores do excesso. Martens (2007MARTENS, F. (2007). Para una validación socio-clínica de la teoría de la seducción generalizada: ¿Una contribución de los pedófilos belgas?Revista Alter, n. 3, febrero. Disponível em:Disponível em:https://revistaalter.com/revista/para-una-validacion-socio-clinica-de-la-teoria-de-la-seduccion-generalizada/767 . Acesso em:12 jul 2020.
https://revistaalter.com/revista/para-un...
) denomina tais organizadores de assistentes de tradução, termo incorporado por Laplanche na teoria da sedução generalizada (TSG).

Estes consistem na produção da cultura, como códigos sociais e grandes esquemas narrativos, diz Laplanche (2003aLAPLANCHE, J. Três acepções da palavra “inconsciente” no quadro da Teoria da Sedução Generalizada. Revista de Psicanálise, v. X, n. 3, p. 403-418, 2003a.), que são comunicados à criança - junto com as mensagens enigmáticas - pelo socii, isto é, a comunidade próxima, o núcleo familiar, os pais, avôs e irmãos. O que auxilia o pequeno sujeito humano a ligar e simbolizar, como parte da árdua tarefa de tradução da sedução ao longo da sua vida.

Nesse sentido, a sedução é originária porque fundamenta a formação do inconsciente. No processo de análise, essa sedução originária pode ser reposta. Isso não significa retornar ao passado, ou trazê-lo ao presente, mas repor a condição de enigmático, algo que busca ser traduzido, agora com mais condição simbólica para o sujeito. Para isso, Laplanche (1992b/2008LAPLANCHE, J. Trois acceptions du mot “inconscient” dans le cadre de la théorie de la seduction généralisée (2003b). In: LAPLANCHE, J. Sexual: la sexualité élargie au sens freudien. Paris: PUF, 2007.) destaca a relação analítica como um lugar de contenção, de transferência, de desconstrução e de construção, lugar onde a sedução originária se restaura, abrindo a possibilidade para que transformações possam acontecer.

Quando Laplanche (1987aLAPLANCHE, J. Novos fundamentos para a psicanálise. Lisboa: Edições 70, 1987aa.) propõe a teoria da sedução generalizada, ele atinge não apenas o repertório teórico psicanalítico, mas, principalmente, sua prática. “A teoria da sedução generalizada não é (segundo a expressão pejorativa de Freud) uma simples ‘superestrutura’, mas pode proporcionar uma sólida base de partida para novos desenvolvimentos na prática da cura” (LAPLANCHE, 1987aLAPLANCHE, J. Novos fundamentos para a psicanálise. Lisboa: Edições 70, 1987aa., p. 168).

Propor a teoria da sedução generalizada como ponto de partida para novos desenvolvimentos na prática clínica implica pensar o primado do outro na clínica, de que forma a alteridade está implicada no processo analítico e quais funções pode ela exercer na prática clínica. Vejamos as contribuições de Laplanche.

2 A PRÁTICA ANALÍTICA

Desde Freud, a prática psicanalítica se baseia em dois pilares: a associação livre do analisando e a escuta flutuante do analista. Para sustentar a prática, não se exige do psicanalista o conhecimento de técnicas, procedimentos, protocolos de tratamentos que possam ser aplicados aos diferentes casos concretos, como se recomenda a um profissional que atua no campo médico ou psicoterápico. O que Freud (1912/1996FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12)) preconiza como recomendações para aqueles que desejam seguir como psicanalistas é que possam se abster de sua ambição terapêutica, que possam atuar como um receptor do inconsciente do analisando e, por último, que possam atuar como um espelho, não mostrando nada além do que lhes é mostrado pelos analisandos.

O que se espera de um analista é que ele consiga se abster para que o inconsciente possa emergir, em uma relação de transferência entre analista e analisando. O analista é alguém que sai da cena para que o outro, a outra-coisa, apareça. Por isso, a análise é um lugar para a experiência do inconsciente, algo possível somente a partir da presença de um analista que tenha sido analisado, que tenha vivido a experiência do inconsciente sob a perspectiva de analisando. Freud (1937/1996FREUD, S. Análise terminável e interminável (1937). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 23)) destaca a importância da análise do analista e reitera a importância de transformá-la em uma tarefa interminável.

Deste analista analisado, espera-se uma possibilidade de neutralidade, de abstenção, de abertura para ouvir um saber que é do inconsciente. Laplanche (1987bLAPLANCHE, J. Problemáticas V: A Tina, a transcendência da transferência. São Paulo: Martins Fontes, 1987b.) cita Lacan em sua luta constante que abomina uma psicanálise baseada em uma relação imaginária na qual o analista ocupa o lugar do mestre a prescrever respostas adaptativas ao analisando. A atitude fundamental do psicanalista é justamente a recusa da posição de mestre.

Para manter a posição de neutralidade, Laplanche (1987bLAPLANCHE, J. Problemáticas V: A Tina, a transcendência da transferência. São Paulo: Martins Fontes, 1987b.) destaca que a posição e a atitude do analista são fundamentais para que a transferência seja produzida e a condição de análise se instaure. Para o autor, o analista não deve ceder a uma intervenção adaptativa, prescritiva, quando passa a atuar no plano da realidade concreta, ao dar conselhos, recomendações e orientações ao analisando. Da mesma forma, deve recusar o saber e recusar-se a saber, já que não sabe nem do inconsciente do analisando, nem de seu próprio inconsciente. Ao mesmo tempo, cabe ao analista a recusa em satisfazer a demanda do outro. Serão essas recusas do analista que possibilitarão a instauração da transferência e do processo analítico.

Quando Laplanche (1987aLAPLANCHE, J. Novos fundamentos para a psicanálise. Lisboa: Edições 70, 1987aa.) propõe uma abrangência da teoria da sedução generalizada na prática analítica, ele resgata a situação analítica como um lugar onde a sedução originária é restaurada, quando o enigma mantém seu lugar como motor para que o analisando possa ele mesmo criar seus significados. Essa é a condição fundamental do processo analítico: a não resposta do analista, a recusa em já saber de si e do outro. Para Laplanche, “o essencial é que o analista, se deve estar em posição de suposto-saber, deve seguramente recusar o saber, mas também e sobretudo recusá-lo a si próprio” (LAPLANCHE, 1987aLAPLANCHE, J. Novos fundamentos para a psicanálise. Lisboa: Edições 70, 1987aa., p. 16).

Quando o analista se recusa a dar respostas adaptativas, a si e ao analisando, segue Laplanche (1987aLAPLANCHE, J. Novos fundamentos para a psicanálise. Lisboa: Edições 70, 1987aa.), ele permite a instauração do sexual, da atividade pulsional, da situação analítica. O analista ocupa o lugar do receptor indeterminado, um que pode ser qualquer um, que permite a manutenção do enigma e a instauração do processo criativo, assim como Fliess foi para Freud.

Nesse sentido, o analista atua como o guardião do enigma, capaz de acolher a excitação que provoca e, a partir do método da associação livre, permitir que o processo primário, próprio do inconsciente, opere. Laplanche propõe três funções para o analista: “o analista como garantia da constância; o analista como piloto de um método e acompanhante do processo primário; analista como guardião do enigma e provocador da transferência” (LAPLANCHE, 1992b/2008LAPLANCHE, J. Du transfert: sa provocation par l’analyste (1992b). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008., p. 430, tradução nossa).

Como primeira função, diz Laplanche (1987aLAPLANCHE, J. Novos fundamentos para a psicanálise. Lisboa: Edições 70, 1987aa.), é fundamental que o analista permita a criação de um espaço para conter a excitação que aparece no processo analítico, assim como propuseram Winnicott e Bion, com a ideia de holding e de continente. Um espaço delimitado, já que impulsos vindos do inconsciente irão se manifestar e cabe ao analista direcioná-los para o trabalho psíquico, não para a atuação.

O analista, quando recusa o saber, acaba por provocar e manter o enigma e a transferência, ambas condições fundamentais para fazer trabalhar o inconsciente. O analista será capaz de garantir a constância ao permitir um espaço onde a excitação circule. Em sua segunda função, como piloto e conhecedor de um método, o da associação livre e da escuta flutuante, pode guiar o analisando pelo processo primário, próprio do inconsciente, em busca de um saber desconhecido para ambos. E, por último, em sua terceira função, quando recusa ocupar a posição do mestre, ele mantém o enigma e provoca a transferência.

Assim, para Laplanche (1987bLAPLANCHE, J. Problemáticas V: A Tina, a transcendência da transferência. São Paulo: Martins Fontes, 1987b.), falar de técnica é falar de transferência, não como uma resistência que deve ser desfeita, mas como uma reabertura ao originário, um retorno à condição de enigma, próprio ao infantil, como possibilidade para restaurar um lugar de sedução originária, não como uma regressão temporal ao infantil, mas como fundamento a um trabalho de análise. Se o analista se recusa a saber, ele restaura o enigmático, condição fundamental da transferência originária.

Em sua técnica, Laplanche (1992b/2008LAPLANCHE, J. Du transfert: sa provocation par l’analyste (1992b). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) propõe a transferência analítica não como um transporte entre situações vividas no passado para situações do presente e vice-versa, mas como um lugar onde a transferência originária é restaurada, sustentada pelo enigma do outro. Para isso, é necessário que o analista também reconheça e mantenha a condição do outro em si, algo que ele também não conhece, que também para ele é um enigma. O analista não é somente o analista, é ele e o seu outro. Quando ele é capaz de manter esta alteridade em si, ele verdadeiramente permite que a transferência se manifeste em seu caráter enigmático, como um vazio que vem se instalar em outro vazio, o que Laplanche (1992b/2008LAPLANCHE, J. Du transfert: sa provocation par l’analyste (1992b). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) denominou de transferência em oco.

Dessa forma, o sexual é endereçado ao analisando em seu caráter enigmático, traumático e provocador, como na situação originária, entre o adulto e a criança, o que Laplanche (1987bLAPLANCHE, J. Problemáticas V: A Tina, a transcendência da transferência. São Paulo: Martins Fontes, 1987b.) denominou de transcendência da situação originária. A criança, ao receber a mensagem enigmática, procura traduzi-la, inseri-la na cadeia de simbolização e, quando não possível, recalcá-la. Portanto, uma reabertura à alteridade, àquilo que se manteve fechado no inconsciente, e que encontra uma possibilidade de se manifestar na transferência.

Assim, no par analítico, repete-se o protótipo da sedução originária adulto-criança, algo que não se limita ao processo analítico, mas que é característica de uma dimensão fundamental do humano. No entanto, não se trata apenas de uma repetição. O que a psicanálise traz de novo é uma possiblidade de análise, um método de acesso aos processos inconscientes. Se, na experiência de satisfação, o recalque originário lançou o significante enigmático para o inconsciente, ali ele permanece como um objeto-fonte da pulsão, algo que suscita um trabalho constante de simbolização, o recalcamento secundário.

Não cabe à análise eliminar a transferência, mas, ao contrário, suscitá-la. Por isso, o título do artigo de Laplanche publicado em 1992: Du transfert: sa provocation par l’analyste. O analista como provocador da transferência, não como aquele que deve eliminá-la. A transferência deixa de ser resistência e entra como fundante de análise. Só existe processo de análise quando há transferência, mas nem toda transferência é processo de análise; pode ser mera repetição.

Laplanche (1992b/2008LAPLANCHE, J. Du transfert: sa provocation par l’analyste (1992b). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.) propõe um modelo em espiral, infinito, em que existe um duplo fechamento: de um lado, o que pode ser traduzido e, de outro, o que resiste à simbolização. Em Laplanche, a clivagem deverá sempre ser mantida. Abre-se para a simbolização, mas esta nunca será completa, o enigma sempre estará lá, por isso, ao invés da resolução da transferência, o que o autor propõe é a transferência da transferência, um modelo em espiral, em que o enigma se impõe como motor para impulsionar novas construções, novas simbolizações. “Se nós interpretamos um movimento transferencial, não é para atacá-lo como uma defesa, nem para resolvê-lo; eventualmente é para fazê-lo evoluir, ajudá-lo a evoluir” (LAPLANCHE, 1992b/2008LAPLANCHE, J. Du transfert: sa provocation par l’analyste (1992b). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008., p. 420, tradução nossa).

Chamamos a atenção para a palavra eventualmente! Ela traz, em si, o limite da simbolização. Existe a possibilidade de uma abertura, mas ela nunca é total. Trará sempre, atrás de si, o enigma, o não simbolizável, o inconsciente. “Podemos diminuir este limite inconsciente, pode ganhar-se terreno sobre ele, mas não pode abolir-se, ao contrário daquilo que Freud esperava” (LAPLANCHE, 1987aLAPLANCHE, J. Novos fundamentos para a psicanálise. Lisboa: Edições 70, 1987aa., p. 168).

Aqui, o autor salienta o limite da análise pelo inconsciente, pois o mantém em seu caráter inapreensível; algo impossível de ser simbolizado por completo, já que o processo autointerpretativo é infinito. Ao mesmo tempo, o autor insere a possibilidade de uma análise finita. Para ele, o término da análise não implica uma dissolução da transferência, já que esta estará sempre presente e é ela quem impulsiona a simbolização. Em Laplanche (1987bLAPLANCHE, J. Problemáticas V: A Tina, a transcendência da transferência. São Paulo: Martins Fontes, 1987b.), término da análise é quando se dá a transferência da transferência. É ela que possibilita a saída da análise e a busca por outras formas de confrontação com o enigma e, portanto, de simbolização.

Ao pensarmos no modelo em espiral proposto por Laplanche (1992b/2008LAPLANCHE, J. Du transfert: sa provocation par l’analyste (1992b). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.), a transferência de transferência deve se situar quando o sexual endereçado ao analisando em seu caráter enigmático, traumático e provocador provenha de fora da análise, não mais de dentro dela. Nessa situação, o agente provocador da análise não é mais o analista, mas algo fora da análise. Uma provocação enigmática de fora que pode ganhar significações diversas. “Transferência de transferência, onde se desenha, fora do tratamento, um verdadeiro lugar de confronto com o enigma” (LAPLANCHE, 1992b/2008LAPLANCHE, J. Du transfert: sa provocation par l’analyste (1992b). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008., p. 436, tradução nossa).

Nesse sentido, o processo analítico é finito, mas a simbolização não, pois o sexual permanece sempre em sua condição enigmática. Haverá sempre algo a ser comunicado e a ser simbolizado. É nesse processo que se insere a linguagem. Para Laplanche (1987bLAPLANCHE, J. Problemáticas V: A Tina, a transcendência da transferência. São Paulo: Martins Fontes, 1987b.), o inconsciente é como uma linguagem, já que é feito de significantes, mas não que seja estruturado como uma linguagem, o que o diferencia de Lacan. A linguagem é um recurso do inconsciente, assim como o corpo o é, mas o inconsciente é o campo dos significantes que sofreram uma profunda mutação, justamente por terem sido proporcionados de forma enigmática à criança. São enigmáticos por possuírem mais sentido do que a criança é capaz de compreender, por isso traumatizantes. “[...] significantes enquistados, isolados; significantes também clivados, isto é, reduzidos, exatamente por estarem interiorizados, a seus aspectos mais excitantes e talvez mais mortíferos” (LAPLANCHE, 1987bLAPLANCHE, J. Problemáticas V: A Tina, a transcendência da transferência. São Paulo: Martins Fontes, 1987b., p. 104, grifos nossos).

Para o autor, o traumático na sedução não está relacionado com um gesto, uma penetração, ou qualquer outro elemento comportamental. Para ele, é traumático porque é impossível à criança dar sentido ao sexual que recebe do adulto, o que a coloca em uma posição de passividade perante o adulto. E esta “passividade está inteiramente na inadequação em simbolizar aquilo que acontece em nós da parte do outro” (LAPLANCHE, 1984/2008LAPLANCHE, J. Traumatisme, traduction, transfert et autres trans(es) (1984). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008., p. 263, tradução nossa).

O processo analítico propõe ao analisando que fale. A linguagem vem como um auxílio no processo de tradução entre as diferentes instâncias psíquicas. Vale lembrar Freud, no Projeto para uma psicologia científica (1895) e na Interpretação dos sonhos (1900), quando diz que uma representação atravessa a barreira do inconsciente/pré-consciente quando a ela liga-se uma palavra, formando a representação-palavra. Se, no consciente, existe a representação da coisa e a representação da palavra que pertence a ela; no inconsciente, existe apenas a representação-coisa. Aquilo que não puder ser associado à palavra, será mantido no inconsciente em estado de repressão. “Uma apresentação que não seja posta em palavras, ou um ato psíquico que não seja hipercatexizado, permanece a partir de então no inconsciente em estado de repressão” (FREUD, 1915/1996FREUD, S. O Inconsciente (1915). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14), p. 206).

A linguagem, para Laplanche (1987bLAPLANCHE, J. Problemáticas V: A Tina, a transcendência da transferência. São Paulo: Martins Fontes, 1987b.), seria uma espécie de rede para pescar o inconsciente, uma forma de manter o peixe-inconsciente na superfície, uma maneira de trazer de volta, por via associativa, o que foi outrora excluído, ao que Freud chamou de elaboração associativa e de perlaboração que, segundo o Vocabulário de Psicanálise (2001), significa “uma espécie de trabalho psíquico que permitiria ao sujeito aceitar certos elementos recalcados e libertar-se da influência de mecanismos repetitivos” (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001LAPLANCHE, J. Traumatisme, traduction, transfert et autres trans(es) (1984). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008., p. 338). A linguagem teria a tarefa de comunicação - não somente com o outro de fora, mas também com o outro interno -; além da tarefa de simbolização, dando sentido àquilo que antes era impossível e, portanto, lançado fora, num sistema aparte, o inconsciente.

O processo de análise, ao propor um espaço para o analisando falar, põe em andamento ambas as funções da linguagem: a comunicação e a simbolização, funções imprescindíveis para comunicar dois sistemas estrangeiros entre si. Para Laplanche (1987bLAPLANCHE, J. Problemáticas V: A Tina, a transcendência da transferência. São Paulo: Martins Fontes, 1987b.), a linguagem e a transferência possibilitam uma abertura à comunicação, pois aquilo que estava fechado no inconsciente encontra um espaço onde possa ser visto. Ao mesmo tempo, é também a linguagem que permite a simbolização. A palavra comunica ao outro, intrapsíquico e interpsíquico, ao mesmo tempo em que possibilita a construção de um sentido.

Nesse percurso, Laplanche (1987bLAPLANCHE, J. Problemáticas V: A Tina, a transcendência da transferência. São Paulo: Martins Fontes, 1987b.) destaca a possibilidade de que se desconstrua uma defesa ou repressão anterior, insuficiente, e se construa uma nova tradução, mais rica e englobante. Nesse processo de simbolização, o Édipo, as teorias sexuais infantis, o complexo de castração, o supereu, todos atuam como assistentes de tradução propostos pela cultura, presentes para auxiliar o humano no processo de traduzir e teorizar sobre si, uma forma de construir sua própria história, em um movimento que se inicia com a desconstrução, liberação de energia pulsional e reconstrução de uma nova tradução.

O analista, como mantenedor do enigma e provocador da transferência, dissocia antigas ligações e permite que a pulsão possa encontrar outras formas de ligação. O analista restaura a sedução originária e oferece um lugar de fala, onde o analisando possa fazer novas ligações, novas associações, novas construções.

[...] essa força pulsional (Triebkraft) que empurra a traduzir encontra origem na efração do outro e na necessidade de ligar essa efração: o outro (der Andere) infantil da mensagem enigmática, depois esta “outra-coisa” (Das Andere) interna que é o inconsciente, e, enfim, esse representante do outro que é o analista. (LAPLANCHE, 1991/2008LAPLANCHE, J. L’interpretation entre déterminisme et herméneutique: une nouvelle position de la question (1991). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008., p. 414, tradução nossa).

Trata-se do primado do outro na relação inicial entre o adulto e a criança, na formação do inconsciente e na relação analítica. Uma alteridade sempre presente, nos campos inter- e intrapsíquicos.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Laplanche, ao concluir o primeiro capítulo de seu livro La Revolution copercicienne inachevée, cita a frase de Freud: “Wo Es war, soll Ich werden” (LAPLANCHE, 1992a/2008LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée (1992a). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008., p. XXXV). Frase que pode levar à interpretação de uma tentativa de se restabelecer um centro, como se o Eu pudesse dominar o Isso. E propõe, a partir da teoria da sedução generalizada, um sentido inverso, ou, segundo ele, complementar: “Wo Es war, wird (soll? muss?) immer noch Anderes sein, lá onde havia (algo) do isso, haverá sempre e mais do outro” (LAPLANCHE, 1992a/2008LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée (1992a). In: LAPLANCHE, J. La révolution copernicienne inachevée. Paris: Presses Universitaires de France, 2008., p. XXXV).

Laplanche, quando escreve Anderes (outro), não coloca o artigo alemão der nem das, o que pressupõe a existência dos dois, o outro-humano e a outra-coisa. O inconsciente (das Andere) em sua presença e permanência em se dirigir ao outro (der Andere). Ele também retira Ich da frase e insere Andere. O outro em si e o outro de fora, este com seu outro interno, todos presentes nas relações interpessoais. Manter o primado do outro no processo analítico significa abrir um espaço de presença da alteridade em toda sua complexidade interna e externa, em um sistema de reconhecimento, não de domínio.

REFERÊNCIAS

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  • FREUD, S. Estudos sobre a histeria (1893-1895). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 2)
  • FREUD, S. Extratos dos documentos dirigidos a Fliess. Carta 52 (1896). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud,1)
  • FREUD, S. O estranho (1919). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17)
  • FREUD, S. O Inconsciente (1915). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14)
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  • ISAACS, S. A natureza e a função da fantasia. In: RIVIERE, J. (ed.). Os progressos da psicanálise Rio de Janeiro: Guanabara, 1952.
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  • MATIOLI, A. Um estudo psicanalítico da separação conjugal: as mensagens enigmáticas de pais separados dirigidas aos seus filhos Dissertação de mestrado. Viviana V. Martinez, orientadora. Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá. 2011.
  • *
    O outro (e não o Outro), para Laplanche, se refere concretamente à outra pessoa e, ainda, ao inconsciente, no sentido freudiano, do estrangeiro em nós. Mas, não se pode negar certa influência de Lacan, de quem Laplanche foi analisando e discípulo.
  • Errata

    O nome da autora
    VIVIANA VELASCO MARTINE
    É corrigido para
    VIVIANA VELASCO MARTINEZ

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Out 2020
  • Aceito
    04 Abr 2022
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