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AUTÔMATOS SONHAM COM AMANTES CIBERNÉTICOS?

DO AUTOMATONS DREAM OF CYBER LOVERS?

RESUMO:

Neste artigo, que tem como suporte teórico o conceito de “paixão pelo autômato”, analisam-se duas ordens de produções culturais contemporâneas: em uma, desponta o enlace erótico entre humanos e robôs onde antes predominava o tema da guerra; em outra, sobressai a ideia da compatibilidade amorosa a priori entre humanos, a qual poderia ser calculada por meio de algoritmos. A fim de pensar estes aspectos do pathos erótico atual, lançamos mão, por um lado, do conceito de condomínio digital (tendência à formação de bolhas narcísicas) e, por outro, do conceito de ciborgue (tendência à dissolução da cisão moderna homem/máquina).

Palavras-chave:
psicanálise; autômato; ficção; ciência

Abstract:

This article, which has as its theoretical basis the concept of passion for the automaton, analyzes two orders of contemporary cultural productions: in one, the erotic bond between humans and robots where the theme of war used to prevail; in another, stands out the idea of a priori love compatibility between humans, which could be calculated by algorithms. In order to think about these aspects of the current erotic pathos, we use, on the one hand, the concept of digital condominium (tendency to narcissistic bubbles formation) and, on the other, the concept of cyborg (tendency to dissolve the modern split man/machine).

Keywords:
psychoanalysis; automaton; fiction; science

INTRODUÇÃO

A fim de pensar algumas tendências da erótica contemporânea, este artigo debruça-se sobre produções audiovisuais atuais que parecem plasmar importantes transformações no campo das relações amorosas. Na análise de tais criações, um operador teórico adquire realce: o conceito de paixão pelo autômato, que realiza uma leitura do pathos moderno organizada em torno da noção de morte de Deus - ato instaurador da episteme moderna (FOUCAULT, 2002FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.), que tem entre seus efeitos a emergência do autômato como ideal da cultura (WEINMANN; MEDEIROS; MANO, 2017WEINMANN, A. O.; MEDEIROS, R. H. A. ; MANO, G. C. M. Deus está morto. Viva o autômato! Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 225-237, 2017.). Nesse sentido, serão explorados dois desdobramentos contemporâneos desse operador teórico, a partir de diferentes acepções do próprio termo.

Em sua literalidade, paixão pelo autômato designa o fascínio por aquilo que é da ordem do robótico, do mecânico, do artificial. Ainda que o mito do autômato assuma, ao longo da história, um número relativamente amplo de formas - contemplando figuras tão díspares quanto o gigante de bronze Talos, o Golem de Praga, o monstro de Frankenstein e até mesmo Pinóquio -, na Modernidade, esse tema aparece significativamente demarcado pelo espectro da belicosidade entre humanos e máquinas (MANO; WEINMANN; MEDEIROS, 2018MANO, G. C. M.; WEINMANN, A. O. ; MEDEIROS, R. H. A. A paixão pelo autômato: a condição maquínica. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 24, n. 2, p. 506-523, 2018.). Gradualmente, porém, nas obras audiovisuais mais recentes, a paixão pelo autômato começa a despontar como a materialização não interditada do enlace erótico entre humanos e robôs (MANO, 2018MANO, G. C. M. Psicanálise, cinema e cultura pop: os mitos no contemporâneo. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2018.). O deslizamento da guerra ao amor no campo da ficção, delineando reconfigurações da relação entre o anthropos e a sua criatura, coaduna-se a novas perspectivas científicas que, fundindo ciências biológicas e informáticas, aproximam e mesmo equiparam humanos e máquinas, agora ambos objetos de um mesmo campo de saber (SIBILIA, 2002SIBILIA, P. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.).

Outra via de análise é a acepção de paixão pelo autômato como paixão através ou por meio do autômato. Nesse sentido, exploram-se as plataformas de relacionamentos e as produções fílmicas nas quais os encontros amorosos são mediados por ferramentas digitais, propagando a ideia de que humanos podem ser, ou não, compatíveis uns com os outros; que essa compatibilidade é dada a priori; e, ainda, que ela pode ser calculada. Visto que a condição para tanto seria a possibilidade de digitalizar as particularidades de um humano, reconhecem-se aí consonâncias dos novos horizontes científicos no pathos erótico contemporâneo, no qual delineiam-se tendências a relações narcisicamente controladas, condomínios digitais (DUNKER, 2017DUNKER, C. I. L. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu, 2017.), e à dissolução da cisão moderna homem/máquina, que dá lugar ao ciborgue (HARAWAY, 2009HARAWAY, D. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, D.; KUNZRU, H. ; TADEU, T. (orgs). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p. 33-118.).

A PAIXÃO PELO (E ATRAVÉS DO) AUTÔMATO

Entre as produções audiovisuais que exploram a possibilidade de que o sucesso de relacionamentos possa ser calculado ou objetivamente produzido, apresentaremos, de início, três obras: o seriado Osmosis (2019OSMOSIS.. Criação de Audrey Fouché França: Capa Drama, 2019, son., color. Série exibida pela Netflix. Acesso em:01 jun. 2019.); Hang the DJ, episódio de Black mirror (2017); e Zoe (2018ZOE. Direção: Drake Doremus. Estados Unidos da América: Aperture Media Partners, Global Road Entertainment, Scott Free Productions, 2018.), filme de Drake Doremus.

Na trama de Osmosis, uma empresa desenvolve um procedimento tecnológico que, a partir da inserção de nanobots no cérebro, perscruta elementos “inconscientes” do usuário e captura uma imagem de seu verdadeiro amor. Em um segundo momento, o serviço trataria de encontrar, em algum lugar do mundo, o indivíduo que corresponde à imagem captada. Na busca pelo amor, os clientes seriam poupados da incerteza, das pessoas “erradas” e da dor de suas frustrações. Em Hang the DJ, por sua vez, um programa de computador é capaz de realizar um imenso número de simulações digitais do relacionamento entre duas pessoas, pondo à prova a sua viabilidade através de realidades virtuais que desafiam esse laço. Conhecem-se, assim, os riscos de um possível mau encontro, ou da perda de tempo investido em uma relação cujas chances de sucesso são deduzidas através de um software. Se a particularidade de cada indivíduo pode ser digitalmente apreendida em forma de código informático, permitindo uma migração completa à realidade virtual - possibilidade presente em diversos episódios de Black mirror -, por que não testar os relacionamentos em ambiente controlado, sem danos? Em Zoe, finalmente, a compatibilidade de duas pessoas para um relacionamento amoroso também é passível de conhecimento prévio através de um serviço oferecido por uma empresa de tecnologia. Os indivíduos se submetem a um teste que consiste em responder a uma bateria de perguntas-padrão - realizadas por um computador - de modo a terem seus perfis objetivamente determinados e armazenados em um banco digital de pessoas cuja compatibilidade pode ser testada. Em nome da precisão e da eliminação dos riscos, o amor perderia seu caráter de descoberta ou construção ao ser absorvido pela tecnologia informática.

A ênfase de Zoe, porém, é colocada no amor entre Cole, o humano-criador, e Zoe, a criatura-robô cujas aparência e personalidade não permitem que seja distinguida dos humanos. Cole, que ainda enfrenta as dores de um divórcio - cuja única razão que o filme permite conhecer é, ironicamente, um diagnóstico de incompatibilidade dado pela ferramenta de sua própria empresa -, inventa Zoe como uma espécie de remédio para que ninguém mais precise sentir a dor que ele sente. Em diálogo com sua ex-esposa, ele menciona uma almofada quente e pulsante, espécie de robô primitivo inventado especificamente para que, quando abraçado, reproduza as sensações de dormir agarrado a outro humano. “- Um pouco assustador” (a little spooky), diz a mulher. “- Dormir sozinho é mais assustador” (sleeping alone is spookier), responde Cole.

Protótipo de um fabuloso produto prestes a ser comercializado, Zoe é, sem ser perfeita, a parceira perfeita, criada para amar espontânea e verdadeiramente. Longe de serem bonecos destinados a fins sexuais ou mesmo criaturas de beleza supra-humana, em Zoe, os robôs são dotados de características meramente humanas. A grande vantagem que oferecem, todavia, é anunciada por um protótipo masculino que, divulgando-se em uma feira de tecnologia, promete: “Nunca vou partir seu coração”. Os autômatos, programados tanto para amarem quanto para encontrarem amantes compatíveis, aparecem como solução à solidão.

Amantes robóticos produzem uma torção na genealogia dos autômatos da ficção, que atravessaram boa parte do século XX figurando como inimigos da humanidade, conforme apresentado em filmes como 2001: uma odisseia no espaço (19682001: uma odisséia no espaço. Direção: Stanley Kubrick. Reino Unido, Estados Unidos da América: Metro-Goldwyn-Mayer, Stanley Kubrick Productions, 1968.), O exterminador do futuro (1984O EXTERMINADOR do Futuro. Direção: James Cameron. Reino Unido, Estados Unidos da América: Cinema ‘84, Euro Film Funding, Hemdale, 1984.) e Matrix (1999MATRIX. Direção: Lilly Wachowski e Lana Wachowski. Estados Unidos da América, Austrália: Warner Bros., Village Roadshow Pictures, Groucho Film Partnership, 1999.). Nestes, para além de duplos aprimorados dos humanos (sendo mais fortes, duradouros, eficientes e, sobretudo, mais racionais), eles despontam como os principais rivais do projeto de sujeito forjado pela Modernidade. No século XXI, as produções audiovisuais, sem abandonar totalmente a relação belicosa entre humanos e robôs, começam também a explorar a vertente erótica, desenvolvendo na tela a possibilidade efetiva de enlace entre o orgânico e o maquínico - e se poderia situar, como um marco do estabelecimento dessa torção genealógica, o filme Ela, de Spike Jonze (2013ELA. Direção: Spike Jonze. Estados Unidos da América: Annapurna Pictures, Stage 6 Films, 2013.). A partir daí, outras obras, dentre as quais aquelas abordadas neste escrito, tomarão essa trilha, enriquecendo, complexificando e consolidando a paixão pelo autômato como dispositivo de crítica da cultura contemporânea.

Para tais propósitos, a série Black mirror revela-se bastante fértil. Em um de seus episódios, Be right back, a protagonista Martha é colocada diante da possibilidade de trocar e-mails com seu recém falecido namorado Ash, de quem espera um filho. Isso se dá a partir de uma tecnologia que, integrando seu histórico de interações e postagens em redes sociais, constrói um algoritmo que simula a personalidade de Ash e responde, automaticamente, a e-mails. Em um segundo momento, um novo produto é oferecido a Martha: um robô, de aparência idêntica ao seu então companheiro, que carrega um software que simula sua personalidade. Ainda em sofrimento e luto, Martha aceita a oferta. Uma vez que o leque de respostas do robô pode ser personalizado de acordo com registros digitais selecionados, ele parece projetado menos para reproduzir Ash do que para adaptar-se às vontades e gostos da cliente, que poderia selecionar apenas características agradáveis. Ainda melhor do que o namorado real? A resposta de Black mirror, como de hábito, é crítica, na medida em que Martha apresenta um desconforto progressivo com a personalidade muito dócil e agradável do robô, que não corresponde bem ao sarcástico - e, por vezes, desagradável, pois humano - Ash. No final, o robô é guardado no sótão junto de outras recordações familiares quaisquer.

Seja pelo cálculo que assegura o sucesso de um relacionamento, seja pela invenção de robôs capazes de amar humanos de maneira plena e, sobretudo, segura, sugerimos que essas ficções esboçam traços da contemporaneidade. Um deles diz respeito à contabilidade destinada à eliminação do risco de relacionar-se com o outro, ou seja, o eu será mantido em sua estabilidade imaginária na medida em que o outro supostamente incompatível será identificado e evitado. Outro traço, que também poderia ser interpretado como uma espécie de manutenção narcísica, delineia-se pela incitação de encontrar, no outro, o mesmo. Ambos seriam facilitados e promovidos pela absorção das particularidades humanas por tecnologias digitais que ou pretendem ou fazem supor possível a medição de compatibilidades, expressando, na construção das relações entre pares, um excesso de prescrição destinado a promover um encontro narcisicamente controlado.

A incidência cibernética na erótica contemporânea faz-se visível a partir de aplicativos de encontros, como Grindr, Tinder, Happn e similares, que oferecem aos usuários a chance de encontrar parceiros a partir de um dado número de imagens e de informações fornecidas por outros usuários. Isso torna possível, por exemplo, que pessoas escolham ou descartem perfis a partir dessas características, partindo do pressuposto de que conhecem aquilo que procuram em termos de interesses comuns, aparência, idade etc. Em conjunto com os sites de relacionamento, como OkCupid, que circulam há mais tempo em um modo semelhante de operação, esses dispositivos materializam, em certa medida, a esperança da compatibilidade prévia, animada pela concepção dos enlaces eróticos como experiências de determinação promovidas por algoritmos, isto é, paixões através do autômato.

Em Dataclisma, Christian Rudder, um dos fundadores do OkCupid e que se dedica à análise sistemática e crítica dos dados colhidos por sua invenção, afirma que o lema do site deveria ter sido “tornar o inexprimível totalmente exprimível” (RUDDER, 2015RUDDER, C. Dataclisma. Rio de Janeiro: BestSeller, 2015., p. 14). O serviço, já utilizado por milhões de pessoas, constrói um perfil de cada usuário a partir de uma série de perguntas e submete suas respostas a um algoritmo que prevê o quanto duas pessoas se dariam bem em um encontro. Do enorme questionário oferecido pelo OkCupid, em média trezentas perguntas são respondidas pelos usuários, sendo que estes podem escolher quais respostas de outras pessoas seriam aceitáveis, ou não. Segundo os dados colhidos pelo autor, “as pessoas tendem a surtar nessas perguntas de compatibilidade, marcando quase tudo como ‘obrigatório’, fazendo uma lista de características fundamentais” (RUDDER, 2015RUDDER, C. Dataclisma. Rio de Janeiro: BestSeller, 2015., p. 97) em campos como religião e política. Curiosamente, em cerca de 75% dos encontros que se tornam relacionamentos duradouros, acontece de as pessoas responderem de maneira semelhante não a essas perguntas, mas a outras acerca de temas inócuos, como o gosto por filmes de terror. O próprio inventor é crítico às expectativas criadas por sua invenção, afirmando que “há um lado disso que presta um desserviço ao amor” (RUDDER, 2015RUDDER, C. Dataclisma. Rio de Janeiro: BestSeller, 2015., p. 98). Rudder destaca que um experimento de encontro às cegas, onde pessoas são sugeridas umas às outras aleatoriamente e sem levar em conta suas preferências alegadas, constata um grau de satisfação superior aos encontros baseados em compatibilidades: “[...] as pessoas parecem estar pré-selecionando demais na Internet com base em algo que não parece tão importante quando elas se encontram pessoalmente” (RUDDER, 2015RUDDER, C. Dataclisma. Rio de Janeiro: BestSeller, 2015., p. 96).

No âmbito clínico, a não rara surpresa de que um relacionamento com uma pessoa “compatível” venha a ser frustrante parece articular-se em narrativas onde a solidão é descrita menos como falta de companhias e de encontros do que como uma insuficiência destes em atingir um ideal esperado de correspondência e entendimento. De forma semelhante, sentimentos de inadequação e a queixa de baixa autoestima são atualizados na velocidade das rejeições sofridas nos aplicativos, frequentemente gerando uma oscilação entre momentos de aceleração da busca pelo perfil compatível e outros de recolhimento solitário. Isso delineia uma problemática - de alcance inclusive político - acerca das possibilidades materiais e subjetivas de encontro com alteridades que não sejam baseadas em semelhanças, isto é, que não sejam tão somente extensões narcísicas mais ou menos administráveis. À sua maneira, a clínica parece assim testemunhar algo da reconfiguração do pathos contemporâneo, no que diz respeito aos enlaces eróticos.

O sentido aqui reservado a pathos, partícula de psicopatologia, opera um deslocamento de seu uso mais corrente - doença - e considera outras de suas acepções, como dis-posição (“deixar-se convocar por”) e assujeitamento, de forma que “uma mudança radical na forma de pensar em uma determinada época implicaria uma modalidade páthica diferente” (MARTINS, 1999MARTINS, F. O que é pathos?. Revista latinoamericana de psicopatologia fundamental, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 62-80, 1999., p. 68). Em outras palavras, a noção de pathos diz respeito às relações entre uma cultura, suas exigências e seus ideais, e o modo como estes condicionam os padecimentos subjetivos. O que sugerimos aqui, portanto, é que o pathos de nosso tempo estaria marcado por uma tendência a relações narcisicamente administradas. É o que aprofundaremos, a seguir, à luz da noção de condomínio digital, um desdobramento da noção de condomínio (DUNKER, 2015DUNKER, C. I. L. Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo, 2015.) que aborda a lógica de espaços de intimidade controlada.

DO CONDOMÍNIO MATERIAL AO CONDOMÍNIO DIGITAL

Através da noção de forma de vida em condomínio, proposta em Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros (2015), mais do que descrever uma tendência urbanística brasileira das últimas décadas, Dunker ensaia uma leitura psicopatológica do social - ou social do psicopatológico - que percorre produções fílmicas e literárias do contexto da ditatura militar até os dias de hoje. De acordo com o autor, o condomínio se configuraria a partir da criação de um conjunto de normas que produziria “um espaço de excepcionalidade, erigido como defesa contra a barbárie exterior” (DUNKER, 2009DUNKER, C. I. L. A lógica do condomínio ou: o Síndico e seus descontentes. Revista Leitura Flutuante, São Paulo, v. I, n. 1, 2009. Disponível emDisponível emhttps://revistas.pucsp.br/leituraflutuante/article/view/7623 . Acesso em: 04 out. 2019.
https://revistas.pucsp.br/leituraflutuan...
, p. 3), desenhando-se, portanto, como “o cenário ideal para a auto-organização racional de uma comunidade de risco zero” (DUNKER, 2009, p. 3). Eles seriam zonas de exceção estritamente organizadas, onde “o antagonismo social, que se elide com as cercas, retorna sob forma de compulsão legislativa” (DUNKER, 2009, p. 5). Dentro dessa lógica, ganha destaque a função de manejo do descontentamento que se concentra na figura do síndico, gestor encarregado da organização do condomínio.

A vida entre muros propiciaria modalidades peculiares de formação de sintomas, experienciados como fenômenos intrusivos em um território caracterizado pelo rigoroso controle dos fluxos (de pessoas, de relações, de afetos), de modo que tais arranjos sintomáticos operariam em especularidade à lógica condominial. Em consequência, a elaboração destes sintomas condominiais é problemática, uma vez que dependeria de narrativas capazes de fazer reconhecer e legitimar tipos específicos de sofrimento aos quais as vias ateóricas da psicopatologia contemporânea ofereceriam formas de linguagem empobrecidas, reduzidas a classificações descritivas (DUNKER, 2015DUNKER, C. I. L. Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo, 2015., p. 33).

Em trabalho subsequente, Reinvenção da intimidade (DUNKER, 2017DUNKER, C. I. L. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu, 2017.), é apresentada a ideia de condomínio digital, uma retomada da noção que a estende às interações via meios digitais:

A vida no condomínio digital cria muros de indiferença baseados na seletividade de oferecimentos, filtrados por targets e bigdata, repetindo escolhas anteriores, tornando cada vez mais invisível a diferença. Isso reduz o tamanho do mundo, o que acaba por aumentar o volume proporcional do eu. A exclusão do outro perturbador, a recusa da diversidade e o bullying digital são signos dessa patologia da gramática da demanda. (DUNKER, 2017DUNKER, C. I. L. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu, 2017., p. 140).

O condomínio digital articular-se-ia a uma forma de intimidade que regula o encontro com alteridades potencialmente perturbadoras à economia narcísica. Para Dunker, a intimidade seria um jogo entre determinação - relações administradas com reflexos narcísicos - e indeterminação - relações potencialmente desalojadoras provocadas por um não-saber. Como na articulação lacaniana entre saber e verdade, onde esta se caracteriza como uma impossibilidade irredutível de apreensão pelo saber, a intimidade é concebida como portando em seu cerne um ponto de não-saber que a torna resistente à absorção por técnicas prescritivas. Seguindo o que seria uma tendência contemporânea, porém, os espaços de condomínio digital incitariam à produção controlada da intimidade:

Ocorre que essa intimidade administrada torna-se assim mais um exercício narcísico do que a elaboração coletiva da falta de saber sobre si mesmo. Acompanhando sites de relacionamento ou plataformas que visam conectar pessoas, observa-se a recorrência de um discurso cujo cerne é a produção de identificações. Mesmos gostos, mesmas orientações, mesmos estilos de vida, como se nossas escolhas fossem determinadas por agrupamentos definidos por uma mesma equação [...]. (DUNKER, 2017DUNKER, C. I. L. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu, 2017., p. 82).

Assim, a apreensão técnica da intimidade procederia a partir da conexão entre pares baseada em uma compatibilidade ou semelhança supostamente objetiváveis. O trecho acima destaca sites e aplicativos de relacionamento, mas seu raciocínio se estende às redes sociais, cujos algoritmos favorecem a formação de bolhas virtuais - um tipo de ajuste que faz com que os usuários publiquem, visualizem e interajam dentro de um circuito estrito, marcado pela uniformidade de ideias, interesses, argumentos e padrões de consumo. Dentro dessa hipótese, a particularização da experiência diria respeito à criação de um ambiente digital narcísico que promove o encontro com o mesmo e a supressão da diferença.

Na terminologia lacaniana, a alteridade imaginária é designada como outro, em minúsculo. Considerando o eu como formado pela assunção precipitada de uma imagem bem acabada do outro, o par a-a’ - que compõe o eixo imaginário dos esquemas L e R (LACAN, 1957-1958/1998LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-1958). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.) - trata da relação estruturante do eu, imagem de si, com seus duplos especulares. Estes correspondem, em um polo, às alteridades com as quais o sujeito se identifica (a’1, a’2, a’n) e, em outro, àquelas que ele objetifica (a1, a2, an). Dotados de consistência imaginária, são objetos que deslizam, metonimicamente, sobre o lugar do objeto causa de desejo, o pequeno a. Esses polos balizam a realidade particular do sujeito a partir de seu próprio narcisismo, na medida em que seus objetos e seus pares seriam compostos por projeções do próprio eu.

O pequeno a é, na obra de Lacan, inicialmente empregado para designar esse outro imaginário (do francês autre). Em um segundo momento, porém, torna-se o objeto a, hiância no campo do saber e causa do desejo. Sendo assim, o a guarda uma função dupla na instável álgebra lacaniana: ele é tanto a letra que designa uma metonímia de objetos imaginários (o outro, correspondente narcísico), quanto o vazio que lhes é subjacente. Trata-se da articulação entre uma hiância e as imagens que a cobrem. No raciocínio de Dunker, baseado nessa dupla dimensão do a, à indeterminação seria atribuída a potência de esvaziamento e relativização dos excessos de determinação imaginária que estagnariam o desejo - o que emerge como questão privilegiada nas ficções acima abordadas. Segundo o autor, “isso dificulta a produção de espaços de indeterminação [...] na qual o compartilhamento desse não saber faz função de causa do encontro e de laço amoroso” (DUNKER, 2017DUNKER, C. I. L. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu, 2017., p. 82). Aproxima-se, assim, a lógica psicanalítica do desejo, baseada na noção de objeto a como hiância, daquela do laço amoroso, um encontro que resistiria a qualquer previsão de compatibilidade ou sucesso.

Esse problema é também abordado por Safatle, em O circuito dos afetos (2016SAFATLE, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do Indivíduo. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.), obra preponderantemente destinada a pensar as potências políticas da destituição do indivíduo. Nela, o autor propõe que, longe de ser a mitigação de uma deriva ontológica, como se apresenta em algumas das ficções acima percorridas, o amor despossui os indivíduos de seus predicados e, por isso, provoca uma experiência de desconhecimento e desamparo. Assim como faz Dunker, o filósofo lança mão do objeto a para pensar o vínculo amoroso como um espaço de desmesura radical, experiência de abertura a uma alteridade que provoca destituição subjetiva - e não um bom encaixe baseado em compatibilidades. Segundo Lacan, essa desmesura é provocada por objetos que “não têm imagem especular, ou, dito de outra maneira, alteridade” (LACAN, 1960/1998LACAN, J. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998., p. 832), que rompem tanto a boa forma do eu quanto as suas correspondências imaginárias.

A partir desses elementos teóricos, faz-se possível uma análise de outras ficções, como White Christmas, também episódio de Black mirror, que aborda as consequências sociais do Z-eye, um dispositivo de realidade aumentada que controla e filtra os sentidos da audição e da visão. Isso cria a possibilidade de que pessoas sejam bloqueadas umas pelas outras, tornando-se tão somente vultos cujas vozes não podem ser ouvidas. Se, no ambiente digital, o bloqueio age sobre um usuário ou um perfil, a exacerbação tecnológica proposta pelo seriado permite um bloqueio mais contundente: o das próprias pessoas. Explorando a crescente impregnação do cibernético (e das suas possibilidades) na vida cotidiana - o que Sibilia chama de “digitalização da realidade” (SIBILIA, 2002SIBILIA, P. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002., p. 13) ou “virtualização do espaço” (SIBILIA, 2002HARAWAY, D. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, D.; KUNZRU, H. ; TADEU, T. (orgs). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p. 33-118., p. 58) -, White Christmas apresenta esse bloqueio como forma de punição. No episódio, um homem sofre pelo bloqueio aplicado a ele pela sua ex-esposa, de modo que fica impedido de interagir com esta e com a própria filha. Outro personagem, por sua vez, condenado por graves crimes, termina perpetuamente bloqueado de todas as pessoas. Na emblemática cena que encerra o episódio, ele encontra-se completamente isolado em uma praça repleta de pessoas para quem é tão somente um borrão inaudível. O episódio promove questões de relevância clínica: em uma época na qual a interação digital desponta como meio privilegiado de socialização haveria alguma especificidade no sofrimento derivado desse insulamento nas redes sociais? Que novas experiências de solidão e isolamento emergem a partir da digitalização do cotidiano e, consequentemente, das possibilidades de bloqueio que ela oferece? No episódio discutido, a criação de uma realidade narcisicamente controlada passa do meio digital para o social. Trata-se de um futuro possível ou de mecanismos de exclusão já vigentes atualmente?

A ampliação dos ambientes digitais em forma de condomínio e a realização dessa inflação narcísica articulam-se pelo excesso de determinação de espaços de intimidade orientados ao encontro com o mesmo. É um tema também reverberado no filme O lagosta (2015O LAGOSTA. Direção: Yorgos Lanthimos. Irlanda, Reino Unido, Grécia, França, Países Baixos, Estados Unidos da América: Film4, Screen Ireland, 2015.), de Yorgos Lanthimos, onde uma curiosa situação é apresentada: adultos solteiros, necessariamente definidos como hétero ou homossexuais - sem margem para indeterminações -, são compulsoriamente direcionados, por política de Estado, a encontrar alguém para casar em 45 dias, sob pena de serem transformados em animais - isto é, banidos da condição humana. O filme - que, ao contrário dos acima abordados, não explora tecnologias fictícias - retrata uma incitação ao encontro do mesmo, do par ideal como baseado em semelhanças, uma vez que os casais se formam exclusivamente a partir de características comuns as mais banais como, por exemplo, miopia. Um grupo de rebeldes contrários a esse regime vive escondido na selva, fora do meio urbano e da própria lei. Entre suas ações, destacam-se atos de resistência destinados a atacar as falhas do sistema vigente, como quando expõem uma pessoa que, buscando sustentar seu casamento para evitar a pena máxima, simulava um sangramento no nariz comum à sua parceira. Longe de serem apresentados como razoáveis, os rebeldes são exemplo de uma forma extrema do individualismo. Nas suas festas, obrigatoriamente usam fones de ouvido para que cada um escute e dance sozinho a própria música; relações amorosas são absolutamente interditas e duramente punidas; a autonomia é estimulada a ponto de cada indivíduo ser obrigado a cavar a própria cova e inclusive a desenvolver um método de enterrar a si mesmo.

Ainda que o argumento central do filme não envolva a utilização de dispositivos digitais, O lagosta aponta para duas vias consequentes da lógica narcísica do condomínio que buscamos destacar: ou o outro coincide com o eu (incitação ao encontro com o mesmo) ou será excluído para que o eu permaneça igual a si mesmo (elisão da diferença).

Inferimos que a prática de formação de casais retratada em O lagosta trabalha com a hipótese de que duas pessoas já seriam, a priori, compatíveis ou não, como se os relacionamentos não dependessem de pactos ou ajustes ou como se apaixonamentos fora da curva identitária - e as modificações subjetivas que eles acarretam - não pudessem ser experiências desejáveis. Como vimos, essa ideia tem sido explorada em diversas ficções recentes, que pensam tecnologias destinadas a calcular a compatibilidade amorosa entre duas pessoas. Trata-se de um desdobramento da paixão pelo autômato que diz respeito à paixão através do autômato, mediada por ferramentas digitais, dispositivos cibernéticos e algoritmos. É o que foi abordado acima de maneira articulada ao sentido mais literal do termo, isto é, da paixão pelo autômato como apaixonamento por robôs, androides e afins. Até então, nas ficções onde essa paixão ocorre, isso parecia se dar, predominantemente, devido ao encantamento produzido em um humano por uma criatura supra-humana, perfeita. Em produções mais recentes, porém, surgem robôs cujas qualidades não seriam necessariamente devidas à sua perfeição, mas à sua adaptabilidade, à possibilidade de serem configuráveis de acordo com os gostos e inclinações de cada usuário. Os parceiros ideais não seriam forçosamente perfeitos, mas, antes, compatíveis, isto é, perfeitos para alguém.

Tais descontinuidades no campo da ficção, que pudemos identificar e abordar à luz de conceitos psicanalíticos, não devem ser tomadas como independentes do contexto onde ocorrem. Entendemos que elas expressam, em parte, uma reconfiguração dos nossos horizontes científicos, mas não necessariamente o que nossas possibilidades materiais já realizam, e, sim, seus projetos e ambições que são ora o produto ora a matéria-prima de nossas fantasias e ficções. Como veremos a seguir, a própria ideia que fazemos de nós mesmos como humanos será relançada.

NOVOS HORIZONTES CIENTÍFICOS E SEUS EFEITOS NO PATHOS CONTEMPORÂNEO

A descrição de Sibilia (2002SIBILIA, P. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.), da passagem de uma ciência de tradição prometeica para uma de aspiração fáustica, reconfigurando o horizonte científico humano, articula-se ao campo das ficções em uma leitura do pathos contemporâneo. Segundo a autora, a orientação prometeica trataria de potencializar as capacidades humanas sem, contudo, aspirar ao divino, isto é, aos terrenos então considerados para além do domínio humano, como a criação e os mistérios da vida. A corrente fáustica, por sua vez, seria infinitista, no sentido de que não reconheceria limites naquilo que a ciência pode manipular. Segundo a autora, “a ameaça do castigo dos deuses só conseguiria assustar Prometeu; não é o caso do ambicioso Fausto” (SIBILIA, 2002SIBILIA, P. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002., p. 155). Essa descontinuidade se daria a partir da junção da informática com as biotecnologias, formando um campo de saber que “já conhece e desvendou, sim, os segredos da natureza” (SIBILIA, 2002SIBILIA, P. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002., p. 155), “localizados no substrato micromolecular do corpo” (SIBILIA, 2002SIBILIA, P. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002., p. 186) e circunscrevendo toda a causalidade à programação genética. O humano, não diferente de qualquer software, seria em sua essência um código ao alcance da bioinformática de orientação fáustica. Não somente sua propensão a doenças - e à própria morte - poderia ser reconfigurada, mas mesmo sua limitante organicidade poderia ser superada. Os ecos dessa comunhão da biologia com a informática começam a se fazer audíveis com a emergência, no campo da ficção, da erótica maquínica. O enlace entre humanos e robôs, ou entre humanos mediado por algoritmos, pressupõe uma digitalização do humano, isto é, a dissolução - ou, no mínimo, redescrição - daquilo que distingue humanos e máquinas.

Se, ao longo do século XX, a relação entre autômatos e humanos nas produções audiovisuais demarcava-se, predominantemente, pela rivalidade parricida ou filicida, herdeira direta do prometeico Frankenstein (SHELLEY, 1816/2007SHELLEY, M. Frankenstein ou o Prometeu moderno: edição comentada (1816). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2017.), e pela rigorosa interdição do sexo interespécies, o século XXI concebe uma nova possibilidade de relação - apenas relativamente assombrada pelo caráter trágico do enlace amoroso, como em Ela, Zoe ou Be right back. Começa até mesmo a se insinuar a possibilidade de que humanos e autômatos possam gerar uma prole híbrida, conforme observado em Blade Runner 2049 (2017BLADE Runner 2049. Direção: Denis Villeneuve. Estados Unidos da América, Reino Unido, Canadá, Espanha: Alcon Entertainment, Columbia Pictures, Sony, 2017.) - onde a dúvida sobre a humanidade de Deckard, lançada 30 anos antes, não é resolvida nem mesmo após termos notícia do nascimento de um bebê, fruto de seu relacionamento com a replicante Rachael. Como correlato do fim da oposição bruta entre humanos e máquinas e da passagem da ciência prometeica à fáustica, a própria figura mecânica do autômato estaria dando lugar ao modelo da informação digitalizada:

Junto com o declínio da sociedade industrial e seus corpos disciplinados, dóceis e úteis, é possível constatar a consequente decadência da figura do autômato, do robô, do homem-máquina, uma imagem que alimentou muitas metáforas e inspirou abundantes ficções e realidades nos últimos dois séculos. Hoje proliferam, entretanto, outros modos de ser. A figura do cyborg, misto de organismo e cibernética, poderia se tornar um emblema inspirador das novas configurações [...]. (SIBILIA, 2002SIBILIA, P. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002., p. 18).

O ciborgue esperado por Sibilia, porém, já é uma realidade. Pelo menos é isto que defende Donna Haraway, em seu Manifesto ciborgue: “Somos todos quimeras, híbridos - teóricos e fabricados - de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues” (HARAWAY, 2009HARAWAY, D. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, D.; KUNZRU, H. ; TADEU, T. (orgs). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p. 33-118., p. 37). O que a filósofa propõe, valendo-se dessa figura mítica que mescla realidade social com ficção, é a experiência de pensar para além das dicotomias tradicionais. A concepção do sujeito moderno se erige com base em oposições características da própria Modernidade: a oposição entre o humano e o divino, colapsada após Nietzsche redigir o obituário de Deus; a oposição entre o humano e o animal, abalada após a jornada de Darwin a bordo do Beagle; e, finalmente, a oposição entre o humano e o artificial, que gradualmente começa a se dissolver nas produções da ficção. Para Haraway, o ciborgue representa o distanciamento da pretensão de uma suposta natureza originária que figuraria, por exemplo, os gêneros como determinação biológica - mas, ao mesmo tempo, também rejeitaria a maquinaria moderna como um novo “deus protético”, para utilizar a expressão de Freud (1930/2010FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, 18), p. 52).

Ao contrário do sujeito moderno, definido a partir da cisão em sua relação ao divino, ao animal e ao maquínico, a condição do sujeito contemporâneo é, predominantemente, ciborgue: cercados e atravessados, orgânica e psiquicamente, por implantes, dispositivos, produtos da biotecnologia. Embora possamos suspeitar que toda tecnologia constitui, em certa medida, uma forma de prolongar o próprio corpo - e isso incluiria o momento em que o primeiro hominídeo usou um pedaço de pau para ampliar a força de seu braço e abater sua presa -, na contemporaneidade, o próprio corpo torna-se objeto e alvo privilegiado da intervenção tecnológica, em uma escala absolutamente inédita. De prosaicos óculos para miopia a remédios para hipertensão, de joelhos de titânio a aparelhos auditivos, de abdominoplastias a aparelhos ortodônticos, passando por drogas recreativas, doping, ansiolíticos, marca-passos e aplicativos para smartphones destinados a programar alarmes para lembrar o horário da injeção de insulina, o sujeito contemporâneo consome e é consumido, produz e é produzido, por todo tipo de artifício conectado em maior ou menor grau a essa instância mutável e decadente que chamamos de corpo.

Trazemos à baila a figura do ciborgue porque ela se revela triplamente interessante à psicanálise. Em primeiro lugar, como propõe Haraway, concebermo-nos como ciborgues implica recusar as fantasias de unidade, assumindo a clivagem estrutural do sujeito e sua manifestação através de “identidades permanentemente parciais e posições contraditórias” (HARAWAY, 2009HARAWAY, D. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, D.; KUNZRU, H. ; TADEU, T. (orgs). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p. 33-118., p. 46). Em segundo lugar, a ideia de uma condição ciborgue - ou seja, de um hibridismo constituinte - responderia à emergência, nas produções da ficção, do amor entre humanos e máquinas. Afinal, exercida em seu sentido literal, essa paixão (do humano) pelo autômato resultaria na gestação de uma prole mista, parte anthropos, parte mekhanaí, que mesclaria o cibernético ao orgânico. Em outras palavras, seria possível ler a figura do ciborgue como um mito de origem do sujeito contemporâneo, atravessado, implacavelmente, por uma relação com a digitalização da realidade. E, em terceiro lugar, a condição ciborgue, advogada por Haraway como uma postura irônica - compreendida, aqui, como sustentar tensões, suportar contradições, permanecer com o problema (HARAWAY, 2016HARAWAY, D. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016.) -, oferece uma abordagem original em relação à paixão através do autômato.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não é raro que, entre especialistas, se verifique um posicionamento alarmista, quando não trágico e nostálgico, acerca dos mencionados aplicativos de relacionamentos: um olhar cético sobre a utilização da tecnologia como catalizador do Eros, acrescentando, a isso, o vaticínio sobre a efemeridade das relações, a liquidez do amor e a abolição das suas estruturas tradicionais. O que frequentemente se argumenta, nesses casos, é que as relações mediadas por aplicativos, assim como aquelas entre humanos e máquinas, circunscrevem a erótica a uma experiência de excesso de determinação, presumida na capacidade dos algoritmos de obturarem o desejo, na medida em que respondem às demandas do cliente. É possível, porém, que se exprima, aí, certa dose de amnésia: antes da cibernética não havia casamentos arranjados por conveniência ou por utilitarismo, amores construídos com base em comunicação epistolar, encontros transitórios em bailes de máscaras, namoros firmados em programas de auditórios e reality shows? Aparentemente, nem estes, nem os novos sites e aplicativos de encontros foram capazes de absorver a potente singularidade de cada encontro. Além disso, é inegável reconhecer que os aplicativos de encontros, ao menos parcialmente, entregam o que prometem - um fato por vezes desprezado pelos mais enérgicos críticos dos dispositivos. Por meio desses aplicativos, as pessoas têm encontrado parceiros ocasionais ou duradouros, explorado fantasias, se permitido experienciar mais livremente sua sexualidade - algo que, por um lado, atesta a eficácia da determinação algorítmica e, por outro, evidencia que os dispositivos virtuais não eliminam a potência de indeterminação que viabiliza o enlace do desejo. O que se sugere aqui, portanto, não é que os enlaces amorosos aconteçam por causa ou apesar da paixão pelo autômato, mas, sim, que eles são afetados por isso que reconhecemos como um elemento do pathos de nosso tempo.

Isso não significa tomar o pathos erótico contemporâneo de maneira uniforme, a partir de uma chave de leitura unívoca, onde o desejo é considerado como que capturado pelo narcisismo. Ora, que haja uma incitação ou tendência nesse sentido - ou mesmo que isso seja colocado como uma desejável possibilidade tecnológica exprimida nas ficções - é justamente o que se buscou demonstrar neste artigo. Tanto quanto esse empuxo, porém, reconhece-se a impossibilidade radical de sua realização - o que também assinalamos nas obras comentadas. Se nos referimos à irredutível hiância que causa desejo, foi com o intuito de destacar sua incontornável resistência à apreensão. Se o desejo, em última instância, não se conforma a prescrições e ideais que, em contrapartida, parecem dar forma às alteridades que se apresentam como miragens de sua realização, propomos não ser possível ignorar tais miragens sob a justificativa da inapreensibilidade do desejo, pois são nelas que se expressam as incidências contemporâneas da paixão pelo autômato.

REFERÊNCIAS - Publicações

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- Filmes

  • 2001: uma odisséia no espaço. Direção: Stanley Kubrick. Reino Unido, Estados Unidos da América: Metro-Goldwyn-Mayer, Stanley Kubrick Productions, 1968.
  • BE Right Back. In: Black Mirror. Criação de Charlie Brooker. Direção de Owen Harris. Reino Unido: Zeppotron, Channel 4 Television Corporation, Babieka, 2013. 48 min, son., color. Temporada 2, episódio 1. Série exibida pela Netflix. Acesso em: 01 jun. 2019.
  • BLADE Runner 2049. Direção: Denis Villeneuve. Estados Unidos da América, Reino Unido, Canadá, Espanha: Alcon Entertainment, Columbia Pictures, Sony, 2017.
  • ELA. Direção: Spike Jonze. Estados Unidos da América: Annapurna Pictures, Stage 6 Films, 2013.
  • HANG the DJ. In: Black Mirror. Criação de Charlie Brooker. Direção de Timothy Van Patten.. Reino Unido: Zeppotron, Channel 4 Television Corporation, Babieka, 2017. 51 min, son., color. Temporada 4, episódio 4. Série exibida pela Netflix Acesso em: 01 jun. 2019.
  • MATRIX. Direção: Lilly Wachowski e Lana Wachowski. Estados Unidos da América, Austrália: Warner Bros., Village Roadshow Pictures, Groucho Film Partnership, 1999.
  • O EXTERMINADOR do Futuro. Direção: James Cameron. Reino Unido, Estados Unidos da América: Cinema ‘84, Euro Film Funding, Hemdale, 1984.
  • O LAGOSTA. Direção: Yorgos Lanthimos. Irlanda, Reino Unido, Grécia, França, Países Baixos, Estados Unidos da América: Film4, Screen Ireland, 2015.
  • OSMOSIS.. Criação de Audrey Fouché França: Capa Drama, 2019, son., color. Série exibida pela Netflix. Acesso em:01 jun. 2019.
  • WHITE Christmas. In: Black Mirror. Criação de Charlie Brooker. Direção de Carl Tibbetts. Reino Unido: Zeppotron, Channel 4 Television Corporation, Babieka, 2014. 73 min, son., color. Temporada 2, episódio 4. Série exibida pela Netflix. Acesso em: 01 jun. 2019.
  • ZOE. Direção: Drake Doremus. Estados Unidos da América: Aperture Media Partners, Global Road Entertainment, Scott Free Productions, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2019
  • Aceito
    29 Maio 2022
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