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NAS BORDAS DA CLÍNICA: PESQUISA E ALTERIDADE EM PSICANÁLISE

Prezadas e prezados leitores, com imensa alegria publicamos o volume 25.1 da Revista Ágora - Estudos em Teoria Psicanalítica, comemorativo dos nossos 25 anos de dedicação à produção e divulgação de conhecimento comprometido com a comunidade acadêmica e com os problemas sociais desta época, os quais nos convocam à extensão das nossas práticas. Ainda sob forte impacto das investidas contra as políticas públicas de financiamento à pesquisa científica e ao ensino superior no país, agudizadas com os recentes cortes no orçamento direcionados ao Ministério da Educação, algumas fissuras permitem que continuemos a respirar, a produzir e a fazer circular o viço do trabalho de pesquisadoras e pesquisadores brasileiros e estrangeiros.

Nesta edição, trazemos ao público artigos que exploram as bordas da clínica psicanalítica através de diferentes práticas e linhas teóricas, apontando, por um lado, para a inequívoca relação entre clínica e política, tal qual sublinhado por Freud desde Psicologia das massas e análise do eu (1921/2020FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). Belo Horizonte: Autêntica, 2020.), e, por outro, para a diversidade constituinte do saber psicanalítico.

Em Por que a clínica como paradigma da pesquisa psicanalítica?, Andrea Guerra percorre a obra de Freud e Lacan com vistas à extração de lógicas da verdade em relação ao real, objetivando mostrar a clínica como fundamento paradigmático da pesquisa psicanalítica, inclusive aquela cujo objeto são os fenômenos sociais complexos.

Fernanda Barros Moreira e Viviana Velasco Martinez, no artigo O primado do outro na prática analítica: contribuições de Jean Laplanche, retomam, a partir do autor, a cena da sedução presente nos escritos freudianos para assinalar a importância da relação intersubjetiva na constituição psíquica e, por conseguinte, as implicações teóricas e subjetivas na prática clínica do analista, posto que este, ao manter o enigma, restaura a sedução originária, possibilitando novas construções, dentre elas, a transferência como reabertura ao originário.

A função vitalizadora do analista e a palavra viva na sala de análise: reflexões a partir de Thomas Ogden, de autoria de Fátima Flórido Cesar e Marina Ferreira da Rosa Ribeiro, apresenta ao leitor algumas das ideias de Thomas Ogden sobre a importância dos sentimentos de vitalidade e desvitalização, como medida fundamental para o entendimento do que ocorre no processo analítico. Através de vinhetas clínicas, as autoras produzem uma articulação perspicaz entre práxis e teoria, destacando o encaminhamento para um encontro vitalizado entre analista e paciente por meio de uma linguagem viva, visando a busca da verdade emocional conectada à vitalidade da sessão.

A importância do outro na constituição dos sujeitos retorna ao debate, agora sob a forma da identificação, na discussão de Leonardo Danziato em Práticas do ato: considerações sobre as identificações nos quadros de violência autoinfligida. Neste artigo, o autor busca situar o ponto lógico na estrutura do sujeito, ali onde se localizaria o fracasso no processo de identificação, como determinante em certos casos clínicos que apresentam o que se denomina de “práticas do ato”, ou seja, alguns tipos de violência autoinfligida, desde o maltrato da imagem narcísica aos cortes na pele etc. Para tanto, Danziato faz um retorno às definições de identificações de Lacan (2003LACAN, J. A Identificação: seminário 1961-1962 (1961-1962). Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife. Publicação não comercial exclusiva para os membros do CEF. 2003.), cujo objetivo situa-se na tentativa de demonstrar que essas práticas se originam em uma falha no processo de extração do objeto que funda a estrutura, produzindo efeitos para a posição do sujeito diante do outro.

O recurso à clínica como método de pesquisa em psicanálise também está presente no artigo Perpetual past. Psychoanalytic effects on the temporal logic in a case of psychosis - Passado perpétuo. Efeitos psicanalíticos da lógica temporal em um caso de psicose -, no qual Julio Guillén e Julia Martin apresentam um caso clínico de sintomatologia psicótica em que a dimensão temporal assume perspectiva privilegiada, através dos efeitos da representação. Assim, os autores analisam os diferentes momentos da terapia ligados a uma nova integração da dimensão temporal, considerando os “efeitos subjetivos” específicos que orientam o tratamento como ligados às diversas intervenções com o objetivo de destacar os fundamentos lógicos da prática psicanalítica.

Em Quem paga o Pathos? Psicanálise e clínica social, Fernanda Pacheco-Ferreira e Roberta de Oliveira Mendes alinhavam clínica e política ao tecer considerações sobre a intensificação dos desamparos, tanto nas esferas individuais como coletivas, cujo efeito no campo psicanalítico tem sido percebido a partir de um reposicionamento da psicanálise, que se coloca, para as autoras, mais sensível ao contexto social, disposta a sair dos consultórios para reencontrar seu lugar nos espaços públicos. Mediante o resgate histórico das clínicas públicas da primeira geração de psicanalistas, bem como após trazer o debate e os testemunhos em torno de múltiplas experiências de uma clínica expandida da psicanálise, as autoras marcam algumas características centrais de uma atuação psicanalítica comprometida com a dimensão político-social, assim como para as linhas de força de sua possível expansão.

Juan Pablo Sánchez Domínguez, Claudia Inés Campo e Lubia del Carmen Castillo Arcos procedem a uma análise de literatura sobre masculinidade hegemônica e sua interseção com a violência em casais gays no artigo Hegemonic masculinity and violence in gay couples: a psychoanalytic reading - Masculinidade hegemônica e violência em casais gays: uma leitura psicanalítica -, a fim de tornar evidente a construção histórica, social e cultural da masculinidade hegemônica. Segundo os autores, a tentativa de imposição desta forma de masculinidade sobre outras masculinidades “contaminadas pelo feminino” utiliza de vários mecanismos de violência, muitas vezes imperceptíveis por quem as vive. A partir da análise de um caso, os autores nos oferecem um modelo metodológico para investigar o problema para além dos parâmetros heteronormativos.

A potência do dispositivo analítico na compreensão de fenômenos sociais complexos ganha toda o seu vigor no artigo “Morrer de vergonha”: uma investigação psicanalítica sobre vergonha, humilhação e abjeção na migração de retorno, escrito por Davids Giannica e Gabriel Inticher Binkowski. A partir de duas vinhetas clínicas, retiradas de uma pesquisa conduzida no Senegal entre 2014 e 2019, os autores abordam a experiência do migrante de retorno em sua comunidade de origem, cenário esse que o expõe aos olhares de alteridade que apontam para a fragilidade tanto de seus ideais egóicos como daqueles partilhados com o grupo cultural, particularmente quando o retorno se faz “com as mãos abanando”, de modo que tal experiência é vivenciada pelos sujeitos a partir dos sintagmas da vergonha, humilhação e abjeção, condenados a um espaço marginal de entre-dois migratório.

No artigo Subject and subjectivity: reflections on the relation between structure and history - Sujeito e subjetividade: reflexões sobre estrutura e história - Diego Tolini discute a oposição entre o sujeito e sua causação pela estrutura e pela linguagem, bem como a subjetividade e sua produção pelo poder e pela história a partir das obras de Nietzsche e Freud, em especial a concepção do poder evidenciada por eles. Essa concepção postulará a gênese do sujeito a partir de um ponto de vista que propõe uma relação entre estrutura e história, livre dos critérios transcendentes e antitéticos que têm prevalecido no tratamento dessa questão.

Vera Pollo e Maria Luísa Rodrigues Sant’Ana, no artigo As três versões do Pai: o parricídio, o nome e o dizer, desenvolvem as respostas freudianas à questão “O que é um pai?” partindo da observação de Lacan no Seminário, livro 11, segundo a qual Freud (1913/1976FREUD, S. Totem e tabu (1913). São Paulo: Imago, 1976. (Edição standard das obras completas de Sigmund Freud, 13)) teria encontrado a regulação do seu desejo nos mitos da morte do pai. As autoras ressaltam a criação de um novo mito por Freud, e lembram que Totem e tabu representa o retorno do Pai como nome de filiação. Referem-se à pluralização dos Nomes-do-Pai como etapa teórica que conduz à definição final do “Pai do nome” como o quarto elo, necessário para a distinção entre os três registros: Real, Simbólico e Imaginário, enquanto o “Pai que nomeia” é um dizer contingencial.

Fechamos esta edição com a instigante pergunta-título Autômatos sonham com amantes cibernéticos? Neste artigo, Vitor Hugo Couto Triska, Gustavo Caetano de Mattos Mano e Amadeu de Oliveira Weinmann exploram o conceito de paixão pelo autômato a fim de pensar o pathos erótico atual, a partir da análise de duas ordens de produções culturais contemporâneas, evidenciando, por um lado, o conceito de condomínio digital (tendência à formação de bolhas narcísicas) e, por outro, o conceito de ciborgue (tendência à dissolução da cisão moderna homem/máquina), colocando em evidência os destinos da alteridade na constituição dos sujeitos e dos laços sociais.

Desejamos uma agradável e proveitosa leitura a todos, a todas e a todxs.

REFERÊNCIAS

  • FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
  • FREUD, S. Totem e tabu (1913). São Paulo: Imago, 1976. (Edição standard das obras completas de Sigmund Freud, 13)
  • LACAN, J. A Identificação: seminário 1961-1962 (1961-1962). Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife. Publicação não comercial exclusiva para os membros do CEF. 2003.
  • LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. (O seminário, 11)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022
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