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VIVÊNCIAS PARENTAIS NO CONTEXTO DA PREMATURIDADE: DA UTIN AO PRIMEIRO ANO DE VIDA DO BEBÊ

Parental experiences in the context of prematurity: from the NICU to the baby’s first year of life.

RESUMO:

A prematuridade e a internação em Unidade de Tratamento Intensivo Neonatal (UTIN) têm efeitos sobre pais e filhos, podendo obstaculizar essa relação e a constituição psíquica da criança. Esse estudo qualitativo objetivou compreender as vivências parentais na prematuridade, da internação do bebê até os 12 meses de vida. Realizaram-se entrevistas semiestruturadas com pais de quatro bebês prematuros durante sua internação na UTIN, após a alta e aos 12 meses de vida utilizando-se a análise temática, que gerou cinco grandes temas. Evidenciaram-se obstáculos vivenciados pelos pais, contudo, fortaleceram-se e retomaram a capacidade de cuidar, investir e sentirem-se investidos pelos filhos

Palavras-chave:
prematuridade; Unidade de Tratamento Intensivo Neonatal; psicanálise; parentalidade

Abstract:

Prematurity and admission to the Neonatal Intensive Care Unit (NICU) have effects on parents and children, which can hinder their relationship and the child’s psychic constitution. This qualitative study aimed to understand parental experiences with prematurity from the baby’s hospitalization up until 12 months old. Semi-structured interviews were conducted with parents of four premature babies during their NICU stay, after discharge and at 12 months of life, using thematic analysis, which generated five major themes. Although obstacles experienced by the parents were evidenced, they strengthened and resumed the ability to care, invest and feel invested by their children.

Keywords:
prematurity; Neonatal Intensive Care Unit; psychoanalysis; parenting

INTRODUÇÃO

A parentalidade envolve questões sociais, culturais, a relação do casal, a história infantil e familiar dos pais, e suas representações sobre o bebê antes mesmo de nascer (MORO, 2016MORO, M. R. Os ingredientes da parentalidade: compreender, sustentar e cuidar. In: RABELLOS, S.; BIALER, M. (orgs.). Laço mãe bebê: intervenções e cuidados. São Paulo: Primavera Editorial, 2016.; ZORNIG, 2015ZORNIG, S. A.-J. Parentalidade: uma via de mão dupla. In: PLUCIENNINK, G. A.; LAZZARI, M. C.; CHICARO, M. F. (orgs.). Fundamentos da família como promotora do desenvolvimento infantil: parentalidade em foco. São Paulo: Fundação Maria Cecília Souto Vidigal-FMCSV, 2015.). Contam as condições e a contribuição do bebê às interações, assim, situações adversas como a prematuridade não facilitam a tarefa dos pais (MORO, 2016MORO, M. R. Os ingredientes da parentalidade: compreender, sustentar e cuidar. In: RABELLOS, S.; BIALER, M. (orgs.). Laço mãe bebê: intervenções e cuidados. São Paulo: Primavera Editorial, 2016.; ZORNIG, 2015ZORNIG, S. A.-J. Parentalidade: uma via de mão dupla. In: PLUCIENNINK, G. A.; LAZZARI, M. C.; CHICARO, M. F. (orgs.). Fundamentos da família como promotora do desenvolvimento infantil: parentalidade em foco. São Paulo: Fundação Maria Cecília Souto Vidigal-FMCSV, 2015.). A World Health Organization (WHO, 2018World Health Organization Preterm birth [online]. https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/preterm-birth. 2018.
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) estima que nascem 15 milhões de prematuros (˂37 semanas gestacionais) por ano, representando mais que um a cada dez nascimentos e colocando o Brasil em 10º lugar nesse ranking.

Do lado do prematuro, há sua pouca condição de ter relações recíprocas nas primeiras semanas de vida, menor abertura à interação, maior reatividade a estímulos e à dor, criando defesas arcaicas (CAMAROTTI, 2011CAMAROTTI, M. O bebê na Unidade de Terapia Neonatal: dor e psiquismo precoce. In: LAZNIK, M. C.; COHEN, D. (orgs.). O bebê e seus intérpretes: clínica e pesquisa. São Paulo: Instituto Langage, 2011, p. 129-136.; PONTES; CANTILLINO, 2014PONTES, G. A. R.; CANTILLINO, A. A influência do nascimento prematuro no vínculo mãe-bebê. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 63, n. 4, p. 290-298, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0047-2085000000037. Acesso em:24 out. 2020.
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). É adotado pela equipe havendo descontinuidade nos cuidados e ritmos corporais, é submetido a exames, aspirações e cuidados, sofrendo hiperestimulação sensorial (DRUON, 1999DRUON, C. Ajuda ao bebê e aos seus pais em terapia intensiva neonatal. In: WANDERLEY, D. B. (org.). Agora eu era o rei: os entraves da prematuridade. Salvador: Ágalma, 1999.).

Do lado dos pais, as expectativas, sonhos, fantasias e desejos de um filho saudável chocam-se com o bebê real, exigindo um luto (PAIM, 2005PAIM, B. J. P. Vínculo pais-bebê em UTI Neonatal: a educação de pais e a posição mãe canguru. Canoas: Editora Ulbra, 2005.). A internação e o temor da perda podem dificultar a relação com o bebê (MARCIANO, 2017MARCIANO, R. P. Representações maternas acerca do nascimento prematuro. Revista da SBPH, v. 20, n. 1, p. 143-164, 2017. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-08582017000100009&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 30 out 2020.). O desconhecido e complexo ambiente da Unidade de Tratamento Intensivo Neonatal (UTIN) gera estresse, ansiedade e medo; adia-se a alta e a apresentação à família e não se pode amamentar (Moreira et al., 2003MOREIRA, M. E. L.; RODRIGUES, M. A.; BRAGA, N. A.; MORSCH, D. S. Conhecendo uma UTI neonatal. In: MOREIRA, M. E. L.; BRAGA, N. A.; MORSCH, D. S. (orgs.). Quando a vida começa diferente: o bebê e sua família na UTI neonatal [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2003. (Coleção Criança, Mulher e Saúde, 2003). Disponível em: https://doi.org/10.7476/9788575413579. Acesso em: 01 nov. 2020.
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; MOTTA; COSTA; CHATELARD, 2007MOTTA, L. A.; DA COSTA, K. S.; CHATELARD, D. S. O diário do bebê: relato de uma experiência em uma unidade de terapia intensiva neonatal. Encontro Revista de Psicologia, v. 6, n. 16, p. 167-174, 2007. Disponível em: Disponível em: https://revista.pgsskroton.com/index.php/renc/article/view/2567/2451 . Acesso em:01 nov. 2020.
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; PONTES; CANTILLINO, 2014PONTES, G. A. R.; CANTILLINO, A. A influência do nascimento prematuro no vínculo mãe-bebê. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 63, n. 4, p. 290-298, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0047-2085000000037. Acesso em:24 out. 2020.
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). As idas e vindas da UTIN e a sensação de serem visitantes do filho, bem como,sua imaturidade podem frustrá-los (MARCHETTI; MOREIRA, 2015MARCHETTI, D.; MOREIRA, M. C. Vivências da Prematuridade: a aceitação do filho real pressupõe a desconstrução do bebê imaginário? Revista Psicologia e Saúde, v. 7, n. 1, p. 82-89, 2015. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S2177-093X2015000100011 . Acesso em: 31 out. 2020.
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).

A UTIN, as limitações do bebê, os cuidados especializados, prescrições e protocolos podem tamponar o saber parental, apagando o desejo e a singularidade (SANTOS; VORCARO, 2016SANTOS, L. C.; VORCARO, A. M. R. Implicações da patologia e da hospitalização do bebê ao nascer: a contribuição da psicanálise e de seu método clínico. Estilos da Clínica, v. 21, n. 2, p. 282-301, 2016. Disponível em:https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v21i2p282-301. Acesso em:24 out. 2020.
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). Escutar os aspectos transgeracionais e conteúdos internos envolvidos na parentalidade ajuda a compreender o lugar do bebê no imaginário dos pais e as reações frente à internação e ao bebê real (BALTAZAR; GOMES; CARDOSO, 2010BALTAZAR, D. V. S.; GOMES, R. F. S.; CARDOSO, T. B. D. Atuação do psicólogo em unidade neonatal: rotinas e protocolos para uma prática humanizada. Revista da SBPH, v. 13, n. 1, p. 02-18, 2010. Disponível em:Disponível em:http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-08582010000100002 . Acesso em: 02 nov. 2020.
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). O prematuro pode não se constituir como aquele que concretizará os sonhos dos pais (WANDERLEY, 1999bWANDERLEY, D. B. Agora eu era o rei. In: WANDERLEY, D. B. (org.). Agora eu era o rei: os entraves da prematuridade. Salvador: Ágalma, 1999b.).

Estudos com pais de prematuros referem sintomas de estresse, depressão e ansiedade, identificando sentimentos de medo, tristeza, dor, angústia, sofrimento, insegurança, raiva, sensação de perda e impotência (LIMA et al., 2013LIMA, A.; SANTOS, R.; SILVA, S.; LAHM, J. Sentimentos maternos frente à hospitalização de um recém-nascido na UTI neonatal. Revista da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba, v. 15, n. 4, p. 112-115, 2013. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/RFCMS/article/view/15163 . Acesso em:31 out. 2020.
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; FAVARO; PERES; SANTOS 2012FAVARO, M. S. F.; PERES, R. S.; SANTOS, M. A. Avaliação do impacto da prematuridade na saúde mental de puérperas. Psico-USF, v. 17, n. 3, p. 457-465, 2012. Disponível em:https://doi.org/10.1590/S1413-82712012000300012. Acesso em: 01 nov. 2020.
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; PADOVANI et al., 2004PADOVANI, F. H. P. et al. Avaliação de sintomas de ansiedade e depressão em mães de neonatos pré-termo durante e após hospitalização em UTI-Neonatal. Brazilian Journal of Psychiatr y, v. 26, n. 4, p. 251-254, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1516-44462004000400009. Acesso em: 01 nov. 2020.
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; PINTO et al., 2018PINTO, K. R. T. F.; PINHATTI, E. D. G.; ZANI, A. V.; PARADA, C. M. G. L. Sentimentos maternos frente à hospitalização do filho prematuro: análise de conteúdo. Online Brazilian Journal of Nursing, v. 16, n. 4, p. 439-447, 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/5646/pdf_1 . Acesso em:24 out. 2020.
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). A visão da UTIN, do bebê frágil e cheio de equipamentos os deixou assustados e desesperados (IONIO et al., 2016IONIO, C. et al. Mothers and fathers in NICU: the impact of preterm birth on parental distress. Europe’s Journal of Psychology, v. 12, n. 4, p. 604-621, 2016. Disponível em:https://doi.org/10.5964/ejop.v12i4.1093. Acesso em: 31 out. 2020.
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; LIMA et al., 2013LIMA, A.; SANTOS, R.; SILVA, S.; LAHM, J. Sentimentos maternos frente à hospitalização de um recém-nascido na UTI neonatal. Revista da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba, v. 15, n. 4, p. 112-115, 2013. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/RFCMS/article/view/15163 . Acesso em:31 out. 2020.
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; FAVARO; PERES; SANTOS, 2012FAVARO, M. S. F.; PERES, R. S.; SANTOS, M. A. Avaliação do impacto da prematuridade na saúde mental de puérperas. Psico-USF, v. 17, n. 3, p. 457-465, 2012. Disponível em:https://doi.org/10.1590/S1413-82712012000300012. Acesso em: 01 nov. 2020.
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; PADOVANI et al., 2004PADOVANI, F. H. P. et al. Avaliação de sintomas de ansiedade e depressão em mães de neonatos pré-termo durante e após hospitalização em UTI-Neonatal. Brazilian Journal of Psychiatr y, v. 26, n. 4, p. 251-254, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1516-44462004000400009. Acesso em: 01 nov. 2020.
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; PINTO et al., 2018PINTO, K. R. T. F.; PINHATTI, E. D. G.; ZANI, A. V.; PARADA, C. M. G. L. Sentimentos maternos frente à hospitalização do filho prematuro: análise de conteúdo. Online Brazilian Journal of Nursing, v. 16, n. 4, p. 439-447, 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/5646/pdf_1 . Acesso em:24 out. 2020.
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).

É relevante atentar-se para o impacto dos equipamentos da UTIN para o bebê e à relação pais-bebê (LIMA et al., 2016). O sofrimento psíquico na primeira infância remete a rupturas na relação inicial pais-bebê (ZORNIG, 2015ZORNIG, S. A.-J. Parentalidade: uma via de mão dupla. In: PLUCIENNINK, G. A.; LAZZARI, M. C.; CHICARO, M. F. (orgs.). Fundamentos da família como promotora do desenvolvimento infantil: parentalidade em foco. São Paulo: Fundação Maria Cecília Souto Vidigal-FMCSV, 2015.). As evidências de vulnerabilidade dos pais de prematuros requerem práticas de sustentação à construção da parentalidade; cuidando-se de quem cuida do bebê, favorece-se a relação (ZORNIG, 2015).

Partindo disso, este artigo objetivou compreender as vivências parentais no contexto da prematuridade, desde a internação do bebê na UTIN até o primeiro ano de vida da criança.

MÉTODO

O estudo foi inserido na Plataforma Brasil, com parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa nº 2.616.567 e aprovado sob nº CAAE 86671018.6.0000.5344. Foi aprovado pelo Hospital co-partícipe e seguiu as recomendações da Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2016BRASIL. (2016). Resolução n° 510. 2016, 7 de abril. Disponível em: Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf . Acesso em: 19 set. 2020.
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). Teve enfoque qualitativo visando a compreender e aprofundar os fenômenos pelo ponto de vista dos participantes (SAMPIERI; COLLADO; LUCIO, 2013SAMPIERI, H. R.; COLLADO, F. C.; LUCIO, P. B. M. Metodologia de pesquisa. Porto Alegre: Penso, 2013.).

Local de pesquisa e participantes

A pesquisa foi realizada na UTIN de um hospital do interior do Rio Grande do Sul, acompanhando pais de quatro bebês prematuros extremos (<28 semanas) e muito prematuros (de 28 a 32 semanas): Antônio, Bruno, Caio e Daniela (nomes fictícios). Os pais precisavam estar com os bebês na UTIN por, no mínimo, 15 dias, terem 18 anos de idade ou mais, não apresentarem comprometimentos cognitivos e/ou psicopatológicos severos e residirem na cidade da UTIN. Na Figura 1, apresenta-se a caracterização dos participantes.

Procedimentos e instrumentos

Quando os pais aceitaram participar da pesquisa, realizou-se, na UTIN, o preenchimento do Termo de Consentimento Livre Esclarecido, da Ficha de Dados Obstétricos e Sociodemográficos da Família e do Roteiro de Entrevista Pais: UTIN. Na alta, coletaram-se dados clínicos do bebê no Prontuário Médico padrão da UTIN. Após a alta, aplicou-se o Roteiro de Entrevista Pais: Primeira consulta Pós-alta, em local escolhido pela família. Entre os onze e 12 meses do bebê, na casa das famílias, aplicou-se o Roteiro de Entrevista Pais: Consulta 12 meses Pós-alta. As entrevistas foram gravadas em áudio, com transcrição feita na íntegra, sem correção ortográfica e com tempo médio de 41-47 min. A coleta ocorreu entre agosto de 2018 e dezembro de 2019.

Figura 1
Caracterização dos participantes quanto aos aspectos clínicos e demográficos.

Análise dos dados

O Prontuário e a Ficha de Dados Obstétricos e Sociodemográficos da Família serviram para caracterizar os casos. Nas entrevistas, utilizou-se a análise temática, um método flexível que sistematiza um grande conjunto de dados destacando semelhanças e diferenças. As fases da análise são: 1) Familiaridade com os dados; 2) Codificação inicial dos dados como um todo; 3) Agrupamento dos códigos por temas; 4) Revisão de temas; 5) Definição e nomeação de temas; e 6) Produção do relatório (BRAUN; CLARKE, 2006BRAUN, V.; CLARKE, V. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, v. 3, n. 2, p. 77-101, 2006. Disponível em:https://doi.org/10.1191/1478088706qp063oa. Acesso em: 02 nov. 2020.
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).

Após a leitura de forma transversal (por fase), elegeu-se a mais extensa da UTIN para iniciar-se a análise e, após, seguiu-se a ordem cronológica. Criaram-se 35 codificações agrupadas por proximidade temática, conferidas e organizadas em cinco grandes temas. As falas foram organizadas em planilha eletrônica, reagrupadas por tema e conferidas, elegendo-se em cada tema as que melhor o ilustrassem.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Por serem prematuros extremos e muito prematuros, não era incomum que viessem a óbito nas primeiras semanas de vida (ocorreu com os gêmeos de Antônio e Daniela), sendo difícil abordar os pais. Além de frágeis, as mães permaneciam pouco na UTIN pela cesariana. Antônio, Caio e Daniela estavam na “sala restrita”, onde ficam os mais graves; inclusive, os pais verbalizaram a inexistência de cadeiras (movimentapais. A maioria das falas é das mães, que participaram mais das entrevistas (ver Figura 1).

Tema 1: O primeiro encontro com o bebê

Este tema só emergiu na primeira entrevista, quando os bebês estavam internados. Os pais descrevem o impacto de ver o bebê pequeno e frágil (parto ou UTIN) e de entrar em uma UTIN. O termo “visita”, frequentemente usado na UTIN, marca o lugar dos pais junto ao bebê como “estranhos”, o que, evidentemente, não ocorre sem efeitos para ambos.

As mães falaram da divergência do parto imaginado e do parto real em que houve o adiamento do primeiro encontro pela urgência de internação do bebê. Questão referida pela mãe de Bruno: “[...] Eu vi só aquele bebezinho saindo de costa e todo enroladinho dentro de uma incubadora e só o chorinho [...]. A gente precisa desse primeiro encontro [...]”.

Para Vanier (2016VANIER, C. O devir dos prematuros. In: RABELLO, S.; BIALER, M. (orgs.). Laço mãe bebê: intervenções e cuidados. São Paulo: Primavera Editorial , 2016.), um parto prematuro sempre é difícil, pois a urgência dos cuidados médicos arranca o bebê da mãe sem que haja tempo para falar e para certificarem-se de que seu filho está vivo. A pressa de entubar, ventilar e levar à UTIN para ligar o bebê a máquinas faz com que seja preciso afastá-lo de sua mãe, gerando nela angústia (VANIER, 2016VANIER, C. O devir dos prematuros. In: RABELLO, S.; BIALER, M. (orgs.). Laço mãe bebê: intervenções e cuidados. São Paulo: Primavera Editorial , 2016.).

Quanto a entrar na UTIN e deparar-se com a bebê na incubadora, a mãe de Daniela expressa:

[...] Foi... tipo um choque assim, né porque tuu não imagina que vê daquele tamanho com todo aquele monte de aparelho [...]. Eu olhei assim e comecei a chorá, assim porque é muuito pequena, aí tu via assim tão frágil assim [...]. Era aparelho pra respirá, era soro, eraa... muita coisa ao mesmo tempo [...].

O ambiente hospitalar, novo e assustador, gera nos pais angústia e incerteza quanto à sobrevivência do bebê, principalmente porque se deparam com um bebê frágil, de maturação biológica incompleta e cheio de aparelhos (MARCHETTI; MOREIRA, 2015MARCHETTI, D.; MOREIRA, M. C. Vivências da Prematuridade: a aceitação do filho real pressupõe a desconstrução do bebê imaginário? Revista Psicologia e Saúde, v. 7, n. 1, p. 82-89, 2015. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S2177-093X2015000100011 . Acesso em: 31 out. 2020.
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). O prematuro expressa a impotência em garantir sua segurança (BERNARDINO et al., 2012BERNARDINO, L. F.; SANTOS, C.; PEDRALI, C. M.; DIONÍSIO, M. W. A escuta psicanaliticamente orientada em uma UTI Neonatal. In: KUPFER, M. C.; BERNARDINO, L. M.; MARIOTTO, R. M. (orgs.). Psicanálise e ações de prevenção na primeira infância. São Paulo: Escuta/Fapesp, 2012.), situação expressa pelo pai de Antônio: “[...] O primeiro impacto assim é o pior né, quando tu vê ali que tu não pode fazer nada, que tá eles ali dentro daquela incubadora, cheio de aparelho, cheio de coisa e gente simplesmente não pode fazer nada, a gente tem que só olhar [...]”.

O contato com os pais fica mediado pela incubadora, podendo haver receio de tocar no bebê, sobretudo porque sua aparência e equipamentos causam medo e estranheza (JOAQUIM et al., 2018JOAQUIM, R. H. V. T. et al. Interações entre mães e bebês prematuros: enfoque nas necessidades essenciais. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, v. 26, n. 3, p. 580-589, 2018. Disponível em:https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoao1051. Acesso em: 31 out. 2020.
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). Podem sentir que abandonaram o filho, pois sua sobrevivência depende dele (JOAQUIM et al., 2018). Os pais costumam ficar intimidados, impotentes e culpados por sentirem que é a equipe que sabe sobre o bebê, questionando sua capacidade de cuidar (PAIM, 2005PAIM, B. J. P. Vínculo pais-bebê em UTI Neonatal: a educação de pais e a posição mãe canguru. Canoas: Editora Ulbra, 2005.; BERNARDINO et al., 2012BERNARDINO, L. F.; SANTOS, C.; PEDRALI, C. M.; DIONÍSIO, M. W. A escuta psicanaliticamente orientada em uma UTI Neonatal. In: KUPFER, M. C.; BERNARDINO, L. M.; MARIOTTO, R. M. (orgs.). Psicanálise e ações de prevenção na primeira infância. São Paulo: Escuta/Fapesp, 2012.).

A mãe de Caio traz uma questão interessante quanto à reação dele (ou que supõe) diante sua presença no primeiro encontro: “[...] Ele se agitô tanto, que eu não pude ficá ali [...]. Porque... no dia em que eu ganhei ele, ele não me viu mais [...]. Não ouvia minha voz quando ele ouviu minha voz, ele ficô enlouquecido”.

Referindo-se aos três registros que ordenam a estruturação subjetiva (Real, Simbólico e Imaginário), Jerusalinsky (2008JERUSALINSKY, J. Temporalidade e clínica com bebês. In: ATEM, L. M. (org.). Cuidados no início da vida - Clínica, instituição, pesquisa e metapsicologia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008.) trata desse movimento parental como uma temporalidade simbólica (“futuro anterior”), sustentando o bebê em uma posição que ainda não pode ocupar pela imaturidade Real de seu corpo. Para ela, em um ato de antecipação, os pais1 1 Não são os pais da realidade, mas no exercício das funções parentais. imaginam que o bebê é capaz de realizações, demandando, assim, desse bebê, o qual, posteriormente, se precipitará nessas realizações. Se suas produções não são sustentadas por um Outro2 2 Lugar simbólico constituído pelos pais e círculo próximo à criança, o que é condição para o sujeito ([xref ref-type="bibr" rid="r8"]CRESPIN, 2016[/xref]). encarnado, podem ser tomadas como signos patológicos, obstaculizando a estruturação (JERUSALINSKY, 2008JERUSALINSKY, J. Temporalidade e clínica com bebês. In: ATEM, L. M. (org.). Cuidados no início da vida - Clínica, instituição, pesquisa e metapsicologia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008.).

No primeiro tempo da constituição psíquica, há uma alienação do bebê ao Outro (LACAN, 1964/2008LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. (O Seminário, 11).), evidenciando-se uma onipotência do agente materno colocando-se em uma posição de suposição e imposição de seu saber e desejo sobre o filho (PAIM, 2005PAIM, B. J. P. Vínculo pais-bebê em UTI Neonatal: a educação de pais e a posição mãe canguru. Canoas: Editora Ulbra, 2005.). Entretanto, viu-se um deslizamento da onipotência para a impotência em relação ao exercício parental, pelas questões da internação e o risco de vida dos bebês. É fundamental a intermediação de um analista que auxilie no resgate da suposição parental, evitando obstáculos à constituição psíquica.

Tema 2: Lidando com a imaturidade biológica do bebê

Ilustra a percepção dos pais quanto ao bebê prematuro, sobretudo quanto às preocupações com sua saúde e os desafios da prematuridade. Na hospitalização, surgiu a incerteza pela vida, como expressa o pai de Antônio (ambos gêmeos vivos): “[...] Tão vivos, nasceram com vida, mas o quadro deles é bem grave... lá vai sê feito tudo que pode ser feito, mas né não... a gente não tem garantia de nada [...]”.

Esse pai refere à pouca reação do bebê na incubadora: “[...] No início assim tu, ele não tem muita reação nenhuma, acontece tudo e tal e ele não tem, só fica ali [...]”. Os pais não são indiferentes a isso porque, como sinalizam Marchetti e Moreira (2015MARCHETTI, D.; MOREIRA, M. C. Vivências da Prematuridade: a aceitação do filho real pressupõe a desconstrução do bebê imaginário? Revista Psicologia e Saúde, v. 7, n. 1, p. 82-89, 2015. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S2177-093X2015000100011 . Acesso em: 31 out. 2020.
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), a relação com o bebê é influenciada pelas respostas dele.

Um aspecto presente nos três momentos foi a lenta evolução do prematuro. Na UTIN, a mãe de Antônio diz: “[...] O pior realmente... é tuu ter que vir todos os dias, tu não sabe como ele vai tá, daí ele tá bem, aí daqui a pouco não tá mais e aquilo te desgasta [...]”. Na chegada em casa, a mãe de Bruno refere: “[...] Prematuro é bem o que os médicos te dizem né, ‘hoje tá bem, amanhã tu não sabe’ [...]”. Aos 12 meses de Bruno, a mãe retoma esse ponto: “[...] A gente torce que acabe isso porque é uma rotina cansativa né [...]. Continua naquele negócio de ‘ah e o peso, ah e isso, ah e aquilo, ah é um medo’ [...]”.

A preocupação com a saúde do bebê foi expressa nos três momentos. Na UTIN, a mãe de Daniela fala da necessidade de ir ver a filha: “Aí se eu noto que tem alguma coisa errada eu fico vindo né [...]”. Na alta de Caio, a mãe traz o temor pelo futuro: “Por sê prematuro a gente tem um medo assim, que tenha ficado alguma sequela [...]”. Aos 12 meses de Bruno, a mãe preocupa-se: “É eu fico meio preocupada [...] tudo ele com... ele contrai [...]. Eles são muito sensíveis [...]”.

O bebê com algum problema dificulta aos pais a sustentação de seu futuro por uma interrogação de como ele será; pode-se perder as coordenadas simbólicas, e a antecipação, na qual o bebê se ancora, fracassa (JERUSALINSKY, 2008JERUSALINSKY, J. Temporalidade e clínica com bebês. In: ATEM, L. M. (org.). Cuidados no início da vida - Clínica, instituição, pesquisa e metapsicologia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008.). Os planos desmoronam porque não se sabe se a criança irá andar, falar, ir à escola e ser independente; assim, só após a superação das dificuldades iniciais é que os pais poderão descobrir que o filho não é tão diferente como pensavam, desfrutando da nova realidade (PÉREZ-LÓPEZ; SÁNCHEZ-CARAVACA; BOLSANELLO, 2012PÉREZ-LÓPEZ, J.; SÁNCHEZ-CARAVACA, J.; BOLSANELLO, M. A. Atenção precoce em crianças pré-termo: aspectos educacionais, psicológicos e familiares. In: RIECHI, T. I. J. S.; MOURA-RIBEIRO, M. V. L. (orgs.). Desenvolvimento de crianças nascidas pré-termo. Rio de Janeiro: Revinter, 2012.).

Durante a internação, descreveram medo de cuidar e se relacionar com o filho: “Ahh eu queria muito pegá ele no colo, muito. Mas até ele no colo eu fico nervosa assim porque ele é muito molezinho, ele é muito pequenininho [...]” (mãe de Antônio). Há medo de prejudicar o bebê: “[...] A gente tinha medo de abrir ali e entrar frio pra ele, tinha medo de passar uma bactéria pra ele [...]” (mãe de Bruno).

Nesse momento, não têm visão otimista da saúde do bebê, provavelmente pela incerteza da vida. Na entrevista pós-alta, quando Antônio está estável, a mãe percebe evolução: “[...] Ele tá muito melhor, beem melhor. Elee... ele tá se desenvolvendo bem, ele tá crescendo, ele tá ganhando peso [...]”. É interessante que, aos 12 meses, vários meses da alta, o pai de Caio faz uma retrospectiva positiva de sua percepção sobre o filho: “[...] A gente sempre viu muita evolução e muitoo o esforço dele né... éé desde, desde lá (UTIN) [...]”.

Na prematuridade, o luto simbólico do bebê imaginário excede-se porque os pais se deparam com o risco da perda e do luto concreto (BALTAZAR; GOMES; CARDOSO, 2010BALTAZAR, D. V. S.; GOMES, R. F. S.; CARDOSO, T. B. D. Atuação do psicólogo em unidade neonatal: rotinas e protocolos para uma prática humanizada. Revista da SBPH, v. 13, n. 1, p. 02-18, 2010. Disponível em:Disponível em:http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-08582010000100002 . Acesso em: 02 nov. 2020.
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). Ficam em estado de alerta, podendo dificultar o investimento afetivo no bebê, o que merece atenção (BALTAZAR; GOMES; CARDOSO, 2010BALTAZAR, D. V. S.; GOMES, R. F. S.; CARDOSO, T. B. D. Atuação do psicólogo em unidade neonatal: rotinas e protocolos para uma prática humanizada. Revista da SBPH, v. 13, n. 1, p. 02-18, 2010. Disponível em:Disponível em:http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-08582010000100002 . Acesso em: 02 nov. 2020.
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).

Além da dissemetria entre o filho real e o filho imaginário, há uma espécie de suspensão do investimento parental até que haja melhora do bebê. Possivelmente, as respostas do bebê (re)ativam o exercício das funções parentais.

Tema 3: A rotina na UTIN

Refere-se às vivências na UTIN, à percepção dos pais quanto aos cuidados recebidos e à relação com a equipe profissional. Trouxeram, em conformidade com a literatura, visão da UTIN como assustadora e pouco acolhedora (LIMA et al., 2013LIMA, A.; SANTOS, R.; SILVA, S.; LAHM, J. Sentimentos maternos frente à hospitalização de um recém-nascido na UTI neonatal. Revista da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba, v. 15, n. 4, p. 112-115, 2013. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/RFCMS/article/view/15163 . Acesso em:31 out. 2020.
https://revistas.pucsp.br/RFCMS/article/...
; MARCIANO, 2017MARCIANO, R. P. Representações maternas acerca do nascimento prematuro. Revista da SBPH, v. 20, n. 1, p. 143-164, 2017. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-08582017000100009&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 30 out 2020.). Comumente, a visão do bebê pequeno, frágil e cheio de aparelhos gera angústia e desespero nos pais, inclusive a UTIN pode ser associada à morte e a sentimentos negativos (LIMA et al., 2013LIMA, A.; SANTOS, R.; SILVA, S.; LAHM, J. Sentimentos maternos frente à hospitalização de um recém-nascido na UTI neonatal. Revista da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba, v. 15, n. 4, p. 112-115, 2013. Disponível em: Disponível em: https://revistas.pucsp.br/RFCMS/article/view/15163 . Acesso em:31 out. 2020.
https://revistas.pucsp.br/RFCMS/article/...
; MARCIANO, 2017MARCIANO, R. P. Representações maternas acerca do nascimento prematuro. Revista da SBPH, v. 20, n. 1, p. 143-164, 2017. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-08582017000100009&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 30 out 2020.).

Na primeira entrevista, falam do espanto de conhecer a UTIN, precisando se adaptarem a esse ambiente desconhecido e complexo, como ilustra o pai de Antônio: “[...] Quando tu começa a ver... primeiro tu tem essa... tu começa a se habituar com tudo, com os equipamento, com os barulho, com tudo aquilo ali, com aquele local [...]”. Após a alta de Antônio, a mãe fala da angústia de não ter notícias na UTIN e, ao mesmo tempo, temor de que sejam ruins: “[...] Tu não qué conversa com médico também, porque os médicos só vão te dá as piores notícias [...]. Tu qué que a enf, que a técnica te dê uma informação e elas não te dão, não te falam nada”.

Referem incômodo de não poder ficar todo o tempo na UTIN, gerando preocupação pela saúde do bebê, como ilustra a mãe de Bruno aos 12 meses dele: “[...] Tu tá lá dentro aí daqui a poquinho ‘heim mãe, te retira’, aí tu já não sabe se é com teu filho, porque tu já não viu se aconteceu alguma coisa, e já entra em desespero [...]”.

Falam da árdua rotina de idas e vindas da UTIN pela longa internação do bebê. As mães não podem se recuperar do parto como deveriam e tão logo se acham em condições vão para a UTIN, enquanto os pais (homens) se revezam entre os cuidados à esposa, o trabalho e a atenção ao bebê. Contudo, esse esforço não lhes autoriza a cuidar do filho, precisam adaptar-se às rotinas da UTIN, assim como o bebê tem seus ritmos determinados por aparelhos e procedimentos que não, necessariamente, correspondem às suas necessidades.

Durante a internação, a mãe de Bruno fala dessa difícil etapa: “[...] De tá dentro dum hospital a cabeça acaba cansando muito mais que o corpo. E às vezes a cabeça cansada te deixa exausta totalmente [...]”. Após a alta de Antônio, a mãe lembra das dificuldades: “[...] É muito complicado ter que ir todos os dias pra UTI... é difííícil tu não sabe o que esperá, tu chegá lá tenso [...]”.

Aos 12 meses de Bruno, a mãe evoca a dificuldade em se despedir dele na UTIN: “[...] Aquilo ali era uma separação, a pior da minha vida. Ee de tu tê que vim pra tua casa [...] eu odiava oo... a noite, eu não gostava de, de noite porque eu sabia que eu ia tê que vim pra casa e ele nãoo [...]”.

Na internação, surge a impossibilidade de cuidar dos bebês, como expõe a mãe de Bruno: “[...] A parte de não pegá ele e elas (equipe) pegá dói taaanto que eu digo, na hora dum banho que elas pegam assim e enrolam eles no lençol e tão com ele no colo, aquilo ali ainda dói, porque eu digo ‘eu ainda não fiz isso né’ [...]”.

Trouxeram o desejo de levar o filho para casa e de não precisar seguir as rotinas da UTIN, como traz a mãe de Caio após a alta: “[...] Já tava batendo aquele desespero, eu quero levá ele pra casa porque eu não quero que ele mame de três em três horas [...]. E eu não quero me despedi dele [...]”.

Fica clara a sensação dos pais da UTIN como uma interditora do contato com o bebê, sendo que o estabelecimento dessa relação é, desde o início, primordial para ambos, sobretudo para o bebê, que carece de significações nesse ambiente que nada diz sobre quem ele é, o que sente ou pensa. Para Valansi e Morsch (2004VALANSI, L.; MORSCH, D. S. O psicólogo como facilitador da interação familiar no ambiente de cuidados intensivos neonatais. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 24, n. 2, p. 112-119, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1414-98932004000200012. Acesso em: 25 out. 2020.
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), é fundamental que a equipe auxilie os pais a descobrir formas de interação pelo reconhecimento de expressões faciais, toques, cheiros ou olhares, permitindo o surgimento de traços de familiaridade e de filiação a fim de criar vínculo afetivo.

Após a alta, a opinião de que os filhos foram bem cuidados na UTIN foi unânime, principalmente em relação às profissionais da enfermagem, expondo que eram “carinhosas”, “humanas” e “atenciosas”. A mãe de Bruno diz: “[...] As enfermeiras, técnica... hum, bah, assim, eles são filhos pra elas né, nossos filhos são delas. Elas cuidam [...]”. A intervenção de uma técnica de enfermagem, sensível à dor da mãe, auxiliou-a a continuar investindo no filho:

[...] Uma coisa que me marcô po, positivamente foi a primeira vez que ele botô ropinha [...]. E aí eu tava tipo “ahhh, todo mundo dá alta, menos o Antônio”, aí a (nome da técnica de enfermagem) assim...“tu tem roupinha dele ai?”, e eu “tenho”. E ela...“vamo bota roupinha nele?” e eu “ahhh, eu nem sabia que podia, mas vamo!”, aí a gente botô...“ohhh, eu tenho as foto” [...]. (Mãe de Antônio).

Pergher, Cardoso e Jacob (2014PERGHER, D. N. Q.; CARDOSO, C. L.; JACOB, A. V. Nascimento e internação do bebê prematuro na vivência da mãe. Estilos da Clínica, v. 19, n. 1, p. 40-56, 2014. Disponível em:Disponível em:http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-71282014000100003&lng=pt&tlng=pt . Acesso em:24 out. 2020.
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) enfatizam o papel da equipe na vinculação pais-criança porque oferece à mãe cuidados, traduzindo e decodificando suas necessidades e as do bebê, auxiliando-a a sentir-se segura e confiante, o que pode (re)posicionar a função materna. Se ocorre a perda do contato simbólico intermediado pelos pais, o bebê corre o risco de ficar preso aos significantes que envolvem a prematuridade e às questões médicas, trazendo entraves à sua constituição (PAIM, 2005PAIM, B. J. P. Vínculo pais-bebê em UTI Neonatal: a educação de pais e a posição mãe canguru. Canoas: Editora Ulbra, 2005.). Por outro lado, comparece o papel da UTIN como interditora do contato pais-bebê, sendo essa colocada como o primeiro estranho na vida do bebê.

Tema 4: Tornando-se pais

Aborda-se a experiência de paternidade e de maternidade, enfatizando-se os desafios de se tornarem pais no contexto da prematuridade e os sentimentos associados. Emergiu o amadurecimento do casal como pais, o que só apareceu após a alta do bebê. Foi necessário que o bebê estivesse estável e em casa para que os pais pudessem refletir (e até se posicionarem) sobre suas funções.

Quanto a se sentir fortalecida após a alta de Daniela, a mãe expressa:

[...] Depois dee, de tudo que ela passô, eu aprendi a agi, sabe, pensar antes de agir. Jáá, mudei bastante sabe. E eu acho que eu me tornei um pouquinho diferente assim, sabe, não é friia, como a gente fala, mas forte [...]. Não é a mesmaaa...depois de passá todo aquele tempo ali dentro (UTIN) [...] (mãe da Daniela).

Aos 12 meses de Antônio, a mãe traz semelhante visão: “Antes eu nãooo... bahh, eu tinha medo de ficá sozinha com ele assim, tipo, meu Deus. Hoje em dia tranquilíssimo, eu sei todos os choros [...]”.

Expuseram a visão de parentalidade e a responsabilidade de serem pais referindo a um amadurecimento. Isso se mostra na fala da mãe quando Bruno tinha 12 meses: “[...] A gente assumiu a nossa maternidade, paternidade [...] a gente não foi pra casa de ninguém, a gente veio pra nossa casa e cuidô do noss... a gente cuidô e cuida do nosso filho, da nossa maneira, do jeito que a gente acha que é o certo [...]”.

Sobre os efeitos da prematuridade e da UTIN na vida dos pais, ressalta-se que, antes do nascimento, o bebê está implicado em uma família e uma historicidade, com conflitos expressos e latentes ocupando uma posição particular no desejo parental (AGMAN; DRUON; FRICHET, 1999AGMAN, M.; DRUON, C.; FRICHET, A. Intervenções psicológicas em neonatologia. In: WANDERLEY, D. B. (org.). Agora eu era o rei: os entraves da prematuridade. Salvador: Ágalma, 1999.). Portanto, nem sempre a prematuridade rompe o projeto familiar. Cada sujeito envolvido responde de forma singular e, inclusive, pode suscitar no casal maior capacidade de vinculação ao bebê devido a uma comoção e ao desejo de proteção (SANTOS; VORCARO, 2018SANTOS, L. C.; VORCARO, A. M. R. Implicações da doença e da hospitalização ao nascer. In: VORCARO, A. M. R.; SANTOS, L. C.; MARTINS, A. O. (orgs.). O bebê e o laço social: uma leitura psicanalítica. Belo Horizonte: Editora Artesã, 2018.).

Aos 12 meses do bebê, os pais referem que ele se tornou a prioridade e o “centro” da vida deles, como aborda a mãe de Bruno: “Hoje, a gente vivi pro nosso filho. Que antes a gente vivia eu digo, pr... pra nossa div... no nosso mundo [...]”. Sobre a relação do casal após o nascimento do bebê, a mãe de Caio vê de forma positiva:

[...] Todo mundo diz que piora, qui, que não existe o casamento, que as pessoas se esquecem depois do nascimento do fiiilho e que vira só o pai e a mãe, não mudô, né, pelo contrário [...]. Eu admiro o homem que ele é como pai, né. Ele me admira como mãe e a gente se admira como homem e mulher [...].

As mães mencionaram apoio do marido, principalmente no caso de Bruno e Caio. Na UTIN, a mãe de Bruno diz: “[...] Acho que, pra mim, não fica fff... não tê umaaa, uma depressão de tá só chorando ele foi muito forte pra tá comigo [...]”. Após a alta de Caio, a mãe conta: “[...] Eu lido bem com as coisas porque eu tenho apoio dele [...] ele conseguiu me fazê enxergá as coisas assim de uma maneira mais leve do que era [...]”. Contudo, a mãe de Daniela fala da ausência do marido que, pelas viagens de trabalho, participa pouco dos cuidados da filha: “Quase nada [riso] porque ele nunca tá quase [...]”.

Ao contrário, os pais (homens) de Bruno e Caio referiram dividir com a esposa os cuidados do bebê. O pai de Antônio avalia-se criticamente, dizendo não corresponder às suas expectativas: “[...] Eu não tôôô como eu queria estar assim com relação a ele [....]. Ela [esposa] cuida muito mais do que eu, tem muuito mais paciência do que eu, tem muito maisss...sei lá, mais jeito [...]”.

A participação paterna foi pequena (Figura 1), sobretudo pela licença paternidade reduzida, o que pode refletir na participação dos pais (homens) no cuidado do bebê. Na prematuridade, a presença do pai é fundamental, pois, geralmente, é o primeiro a interagir e a descobrir as singularidades do filho (DRUON, 1999DRUON, C. Ajuda ao bebê e aos seus pais em terapia intensiva neonatal. In: WANDERLEY, D. B. (org.). Agora eu era o rei: os entraves da prematuridade. Salvador: Ágalma, 1999.; MATHELIN, 1999MATHELIN, C. O sorriso da Gioconda. Rio de Janeiro: Companhia Freud, 1999.; VALANSI; MORSCH, 2004VALANSI, L.; MORSCH, D. S. O psicólogo como facilitador da interação familiar no ambiente de cuidados intensivos neonatais. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 24, n. 2, p. 112-119, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1414-98932004000200012. Acesso em: 25 out. 2020.
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). A comumente mencionada função “separadora” do pai se inverte; ele apresentará o bebê à mãe e a ajudará a aproximar-se dele (MATHELIN, 1999), funcionando como um intermediário da relação mãe-bebê (DRUON, 1999). Precisará cuidar das necessidades do bebê na UTIN até que a mãe possa se fazer presente (VALANSI; MORSCH, 2004). Todavia, a maior parte da literatura dá enfoque às experiências maternas, colocando o pai como coadjuvante na relação com o bebê.

Tema 5: A vida fora da UTIN

Aborda os relatos dos pais sobre as experiências fora da UTIN, enquanto estavam com os filhos internados e após a alta. Eles trouxeram questões dos cuidados em casa, dos tratamentos e acompanhamentos. Ilustra a percepção do desenvolvimento do bebê no primeiro ano de vida.

Surgiu uma mudança na percepção de vida após a experiência da UTIN. Enquanto Antônio estava internado, a mãe expõe o desinteresse “pela vida lá fora”: “[...] Eu tenho vontade de vir pro hospital e sair do hospital e ir pra casa dormi duma vez pra já chega no outro dia pra vir pro hospital [...]”. Ela trouxe a sensação de sentir que “tudo continuava igual para os outros”: “[...] Acho muito estranho, no início, que a vida não muda, a vida, as pessoas... segue tudo a mesma coisa [...]. Só a nossa vida mudô radicalmente [...]”.

Logo após a alta do bebê, os pais expressam o temor de não saber cuidar dele: “Apavorada [risos] [...]. Não tem nada de aparelho, não tem ninguém assim pra te ajuda [...]” (mãe de Daniela). Falam do misto de estranheza e alegria de, finalmente, ter o filho em casa: “[...] Foi muito estranho [...]. Não sei descrevê o sentimento, era uma felicidade com uma... incredulidade porque parecia que não era real [...] que ele não ia i pra casa nunca [...]” (mãe de Antônio).

A experiência da alta e da chegada em casa é, muitas vezes, permeada por sentimentos contraditórios para os pais porque a desejam, contudo, sentem-se inseguros e com medo de assumir a responsabilidade dos cuidados (BRAGA; SENA, 2017BRAGA, P. P.; SENA, R. R. Devir cuidadora de prematuro e os dispositivos constituintes da continuidade da atenção pós-alta. Texto & Contexto - Enfermagem, v. 26, n. 3, e3070016, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0104-07072017003070016. Acesso em:02 nov. 2020.
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; MARCIANO, 2017MARCIANO, R. P. Representações maternas acerca do nascimento prematuro. Revista da SBPH, v. 20, n. 1, p. 143-164, 2017. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-08582017000100009&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 30 out 2020.). Além da necessidade de uma reorganização das rotinas familiares, há o temor de reinternação (BRAGA; SENA, 2017; MARCIANO, 2017).

Contam da nova rotina em casa, após meses de internação, como um período de difícil adaptação. A mãe de Caio refere-se a isso no momento após a alta: “[...] Nos primeiros dias, foii tudo, tudo atravessado assim, quando a gente ia vê era uma hora da madrugada e eu tava com ele aqui na sala [...]”. Aos 12 meses de Antônio, a mãe fala de forma similar da dificuldade da alta: “Tenso! Tenso noo, tenso porque foi tudo muito novo assim [...]. Eu percebi que eu não tava minimamente preparada pra sê mãe [...]”..

Após a alta, a mãe de Antônio fala dos desafios: “[...] Antes deu engravidar eu tinha uma vida, né, uma vida bem boa, inclusive [risos]. Nossa, agora penso que eu não durmo mais [...]. Desde que eles nasceram é uma vida de UTI [...]. E aíí depois agora, então em cada fase é um desafio novo [...]”.

A alta é um momento difícil para os pais porque precisarão cuidar sozinhos do bebê frágil, que pode apresentar sequelas (WANDERLEY, 1999aWANDERLEY, D. B. Prefácio. In: WANDERLEY, D. B. (org.). Agora eu era o rei: os entraves da prematuridade. Salvador: Ágalma, 1999a.). A prematuridade faz com que a história do bebê seja determinada pelos aspectos clínicos, precisando-se resgatar a capacidade de cuidá-lo, o que era delegado a terceiros (MORSCH; BRAGA, 2007MORSCH, D. S.; BRAGA, M. C. A. À procura de um encontro perdido: o papel da “preocupação médico-primária” em UTI neonatal. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 10, n. 4, p. 624-636, 2007. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1415-47142007000400005. Acesso em: 01 nov. 2020.
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). É como se o saber inconsciente dos pais, transmitido de geração em geração, não tivesse valor diante da “criança dos médicos”, podendo obstaculizar a relação pais-bebê (WANDERLEY, 1999a).

Após a alta, apareceu a preocupação pelo desenvolvimento futuro e risco de sequelas. A mãe de Antônio expressa: “[...] Ele parece um bebê muito normal, só o que todo mundo me fala ‘é só o tempo vai dizé’ [...]”. Aos 12 meses, os bebês não referem inquietações, possivelmente porque não apresentam maiores dificuldades no desenvolvimento: “[...] A gente esquece que ele é prematuro [...]. Quando a gente conversa contigo [pesquisadora] a gente para e pensa assim ‘meu Deus, o Caio é um prematuro extremo’ [...]” (mãe de Caio).

O único que precisou de tratamentos e “cuidados especiais” foi Antônio. Após a alta, a mãe conta a extensa rotina: “[...] Ele tem acompanhamento com a fisio e com a fono toda semana, ele tem gastro eee nutróloga [...]. Ele tem o neurocirurgião a cada três meses, ele tem o neuropediatra por mês, ele tem a pediatra a cada quinze dias e ele tem a oftalmo [...]”.

Após a alta de Antônio, preocupou a “superestimulação” como forma de compensar o déficit do desenvolvimento e prevenir sequelas. A mãe conta: “[...] Estimulo muuuito ele, que é pra quii, né... o neuro me falôô ‘ahh, o cérebro dele pode compensá essas partes mortas’ [...]. Então é só o que eu faço [...]. Pra tentá diminui a sequela [...]”. No entanto, aos 12 meses, eles mencionam que passaram a tratá-lo como um “bebê normal”.

Não é incomum que os pais procurem aparatos, técnicas e profissionais que compensem o atraso para falar, andar, brincar, concentrar-se e ter hábitos diários na tentativa de resgatar o bebê perfeito (WANDERLEY, 1999bWANDERLEY, D. B. Agora eu era o rei. In: WANDERLEY, D. B. (org.). Agora eu era o rei: os entraves da prematuridade. Salvador: Ágalma, 1999b.). Há risco de distanciarem-se do contato íntimo com o filho, adquirindo um discurso médico e um “saber fazer” (WANDERLEY, 1999bWANDERLEY, D. B. Agora eu era o rei. In: WANDERLEY, D. B. (org.). Agora eu era o rei: os entraves da prematuridade. Salvador: Ágalma, 1999b.). Ocorre uma “preocupação médica primária”, em que os pais se ocupam mais da função médica do que da maternal (AGMAN; DRUON; FRICHET, 1999AGMAN, M.; DRUON, C.; FRICHET, A. Intervenções psicológicas em neonatologia. In: WANDERLEY, D. B. (org.). Agora eu era o rei: os entraves da prematuridade. Salvador: Ágalma, 1999.), colocando em risco a constituição subjetiva do bebê (SANTOS; VORCARO, 2016SANTOS, L. C.; VORCARO, A. M. R. Implicações da patologia e da hospitalização do bebê ao nascer: a contribuição da psicanálise e de seu método clínico. Estilos da Clínica, v. 21, n. 2, p. 282-301, 2016. Disponível em:https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v21i2p282-301. Acesso em:24 out. 2020.
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). Todavia, essa atitude inicial pode ser apenas uma viabilização das trocas afetivas, um rito de passagem próprio da UTIN visando restituir o encontro perdido (MORSCH; BRAGA, 2007MORSCH, D. S.; BRAGA, M. C. A. À procura de um encontro perdido: o papel da “preocupação médico-primária” em UTI neonatal. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 10, n. 4, p. 624-636, 2007. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1415-47142007000400005. Acesso em: 01 nov. 2020.
https://doi.org/10.1590/S1415-4714200700...
).

A filiação do bebê parece ocorrer após a chegada em casa, quando então os pais apropriam-se dos cuidados, despindo-se dos protocolos médicos e achando uma forma própria de cuidar. Possivelmente, a partir disso, “adotam” efetivamente os bebês, como ilustrado pela mãe de Caio após a alta: “[...] Na UTI ele [pai] dizia ‘a gente é só pai biológico... nós somos só os pais biológicos do Caio’ [...] depois que ele vier pra casa é que a gente vai virar os pais de verdade porque a gente ia lá e visitava o nosso filho [...] quem cuidava... eram elas”.

Na Figura 2, apresenta-se uma síntese dos resultados quanto aos assuntos que mais emergiram. Consideraram-se os cinco grandes temas e, concomitantemente, a evolução dos conteúdos das entrevistas ao longo do tempo.

Na primeira fase, quando o bebê estava na UTIN, as questões centraram-se nas preocupações com sua sobrevivência, na percepção da lenta evolução do prematuro e nos obstáculos da UTIN quanto à aproximação e cuidados com o bebê. Expressaram o estranhamento de não ter os mesmos interesses de antes do parto, voltando-se mais para as experiências parentais. As mães trouxeram a importância do apoio do marido.

Após a alta, as preocupações se voltaram para os cuidados em casa, o medo de cuidar do bebê e os desafios da nova rotina. Surgiram reflexões acerca da parentalidade; os pais veem-se mais maduros e fortalecidos, até mesmo como casal. Retornaram a preocupação da lenta evolução do bebê, pensando nas possíveis sequelas da prematuridade quando não há mais risco de vida. Voltaram as lembranças da UTIN quanto à percepção do filho, dos cuidados recebidos e da equipe profissional.

Finalmente, aos 12 meses do bebê, retomam questões trazidas na fase um e dois. Abordam a preocupação com a evolução do filho, ressaltando os cuidados especiais de que necessita, a percepção da UTIN, de si mesmos como pais e das dificuldades com a rotina e cuidados com o bebê. Expressam melhor a visão de maternidade/paternidade e as mudanças ocorridas em suas vidas após a chegada do bebê. Aparecem falas mais otimistas sobre a parentalidade, a capacidade de cuidar do filho e as mudanças na vida do casal.

Em síntese, a emergência dos temas deu-se de acordo com as preocupações que os pais enfrentaram em cada fase: UTIN, Pós-alta e 12 meses. Preocupações, como a saúde e/ou desenvolvimento futuro do bebê, perpassaram as três etapas; o que é plausível por serem prematuros extremos e muito prematuros. Frequentemente, isso gera preocupação e requer intervenções. Com o tempo, as barreiras à relação e à capacidade de cuidar do bebê foram vencidas e os pais se fortaleceram com o amparo da equipe, com o apoio um do outro e, até, com as respostas do bebê que retroalimentavam o investimento parental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Evidenciou-se que os pais, mesmo com preocupações, medos e inquietações, descobriram a capacidade de gestar fora do útero e de cuidar. Atravessados pelas respostas do bebê e por suas vivências, oscilaram entre momentos de otimismo e investimento no filho e outros de desamparo, em que nenhum saber técnico ou médico pôde garantir como seria o futuro dessas crianças que estiveram tão perto da morte. Possivelmente, o acolhimento que os pais receberam da equipe da UTIN favoreceu o estabelecimento da relação com o bebê.

Como limitação do estudo, destaca-se que, embora a pesquisa longitudinal seja rica para compreender os fenômenos psíquicos, é mais propensa a descontinuidades na coleta. A prematuridade e a internação são, comumente, vivências dolorosas para os pais, sendo preciso respeitar seu tempo até que pudessem participar, não permitindo mais participantes.

Figura 2
Síntese dos resultados.

Amparados pelas tecnologias das UTINs, o número de prematuros sobreviventes aumenta. Isso é animador, mas é um campo de incertezas quanto aos efeitos disso para os pais, ao desenvolvimento e à constituição subjetiva das crianças. Embora a bibliografia sobre prematuridade seja vasta, estudos futuros com mais sujeitos e que proponham intervenções na UTIN são essenciais para a compreensão e favorecimento da relação pais-bebê.

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  • 1
    Não são os pais da realidade, mas no exercício das funções parentais.
  • 2
    Lugar simbólico constituído pelos pais e círculo próximo à criança, o que é condição para o sujeito ([xref ref-type="bibr" rid="r8"]CRESPIN, 2016[/xref]).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2021
  • Aceito
    29 Set 2022
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