Acessibilidade / Reportar erro

QUAL DISCURSO AO CAPITALISMO?

RESUMO:

Freud demarca em sua obra o quanto subjetividade e cultura se afetam mutuamente, algo que a teoria lacaniana dos discursos permite explorar com rigor. Pretendemos abordar alguns efeitos discursivos do capitalismo a partir da teoria dos discursos de Jacques Lacan, avançando no debate acerca de qual matema melhor expressaria tais efeitos, o discurso universitário, denominado em 1970 como discurso do mestre moderno com seu estilo capitalista, ou o discurso do capitalista, proposto em 1972 em Milão. Apostamos que não se trate de uma opção exclusiva, mas que ambos possam fornecer ricas contribuições para a exploração dos efeitos discursivos do capitalismo.

Palavras-chave:
psicanálise; discurso; capitalismo; ciência

Abstract:

Freud emphasizes in his works how much subjectivity and culture affect each other, something that Lacanian theory allows to explore more rigorously. The present article intended to consider some discursive effects of capitalism using as a reference Jacques Lacan’s discourse theory, moving forward in the debate on which matheme describes best such effects: the discourse of the university, designated in 1970 as the modern master’s discourse with its capitalist style, or the discourse of the capitalist, proposed in 1972 in Milan. Instead of exclusively choosing between the two, our bet is that both can provide rich contributions to the exploration of the discursive effects of capitalism.

Keywords:
psychoanalysis; discourse; capitalism; science

INTRODUÇÃO

Ao abordar os efeitos entre a moral sexual civilizada e a doença nervosa moderna, Freud (1908/2015FREUD, S. A moral sexual “cultural” e o nervosismo moderno (1908). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. (Obras completas, 8, p. 359-389)) demarca o quanto cultura e subjetividade se afetam mutuamente. A indicação lacaniana aos analistas, de “Que antes renuncie a isso, portanto, quem que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época” (LACAN, 1953/1998LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998., p. 322), segue a trilha freudiana, tomando como inevitável ao analista a tarefa de abordar os aspectos da subjetividade de seu tempo. Pouco mais de quinze anos após fornecer tal indicação, Lacan elabora uma refinada contribuição para essa missão com a teoria dos discursos (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17)). No presente artigo, destacamos os efeitos discursivos do capitalismo como ponto a ser abordado nessa relação entre cultura e subjetividade, avaliando o quanto a teoria dos discursos permite uma valiosa exploração de tais efeitos, com ênfase na questão acerca de qual modalidade discursiva - discurso universitário ou discurso do capitalista - melhor os expressaria.

Do ponto de vista da teoria dos discursos, Lacan associa o surgimento da ciência moderna ao matema do discurso universitário, ficando, nesse momento, o advento do capitalismo associado a essa modalidade discursiva. Cerca de dois anos depois, Lacan apresenta o matema do discurso do capitalista, em uma conferência em Milão (LACAN, 1972/1978LACAN, J. Du discours psychanalytique (1972). Lacan in Italia. Milão: La Salamandra, 1978, p. 32-55.), surgindo uma delicada e relevante questão. O discurso universitário seria a modalidade discursiva que melhor articularia o impacto discursivo do capitalismo ou isso caberia ao discurso do capitalista proposto em 1972? A formulação dessa questão sob a forma de um “ou ... ou” não é o que tomamos como direção, pois entendemos que os efeitos discursivos do capitalismo podem ser explorados a partir dos dois matemas sem que isso represente descartar um deles.

Discurso: subjetividade e cultura

A teoria lacaniana dos discursos traz uma magistral articulação entre a discursividade e os adventos significativos da cultura, sem, no entanto, constituir-se como uma teoria histórica do laço social. Os quatro discursos apresentados em O avesso da psicanálise (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17)) não representam uma cronologia do laço social, ao mesmo tempo em que não são modalidades discursivas que permanecem absolutamente indiferentes às mudanças significativas na economia de gozo da cultura, valendo o mesmo para o discurso do capitalista apresentado em 1972.

Com sua hipótese mítica acerca da origem da civilização, do laço social, em Totem e tabu, Freud (1912-1913/2012FREUD, S. Totem e tabu (1912-1913). São Paulo: Companhia das Letras , 2012. (Obras completas, 11, p. 13-244)) localiza como sua condição uma renúncia de ordem pulsional, que se traduz na semântica lacaniana como renúncia ao gozo, perda irreparável que põe o aparato discursivo ao trabalho em práticas de recuperação (LACAN, 1968-1969/2008LACAN, J. De um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009. (O Seminário, 18), p. 113). O laço social é o que estrutura o modo em que se organizam as práticas de recuperação.

Na montagem dos quatro discursos, Lacan parte das atividades delimitadas por Freud como impossíveis - educar, curar e governar (FREUD, 1925/2011FREUD, S. Prefácios e textos breves: prólogo à Juventude abandonada, de August Aichhorn (1925). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. (Obras completas, 16, p. 347-350), p. 347), acrescentando o fazer desejar (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17), p. 164-165) -, relacionando-as, respectivamente, aos discursos universitário, do analista, do mestre e da histérica. A estrutura dos discursos parte de quatro termos (S1, S2, a e ) e quatro lugares, definindo-se algumas regras (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17), p. 43). A primeira dessas regras se refere à ordem entre os termos, que não se altera mesmo quando estes mudam de lugar: S1, S2, a e . Os lugares também são fixos e cada um deles, exceção feita ao lugar da verdade, recebe mais de um nome ao longo das elaborações de Lacan. Destacamos suas duas principais montagens:

Além dos termos e lugares, há operadores essenciais na estrutura: as barras, as setas e a barreira. Há a barra do recalque, a impossibilidade no nível superior (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998., p. 166) e a barreira da impotência no nível inferior (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17), p. 101):

Um ponto essencial a ser destacado é que, em qualquer dos quatro discursos, a permanece apartado de , seja pela barra, pelo impossível ou pela impotência. A divisão subjetiva se mantém, índice da castração, e o objeto a permanece como visado, todavia, nunca atingido.

Cada modalidade discursiva surge a partir de um quarto de giro dos termos pelos lugares. Dentre as quatro modalidades discursivas, o discurso do mestre se afigura como forma canônica, inaugural do discurso. Não à toa, é a partir do discurso do mestre que Lacan analisa os giros discursivos.

Modernidade: a aliança entre capitalismo e ciência moderna

No corte na cultura que inaugura a Modernidade, a ciência moderna surge como resposta a uma interrogação radical em relação ao Pai, que Descartes encarnou de modo emblemático, interrogação histérica que põe o mestre a trabalhar em busca de respostas: “O que conduz ao saber é [...] o discurso da histérica [...] Como terá chegado o filósofo [Descartes] a inspirar o desejo de saber ao senhor?” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17), p. 21, colchetes nossos). No discurso da histérica, o sujeito como agente comanda o mestre ao trabalho, à produção de respostas:

A destituição do mestre se caracteriza por um movimento - que se instaura nesse corte e vai se consolidando até o Iluminismo - de recusa a qualquer autoridade sobre o pensamento. A Razão se propõe como soberana, tentando se livrar do jugo dos dogmas religiosos ou dos significantes-mestres da tradição. O sujeito cartesiano - em posição histérica, como sujeito dividido, não unívoco - interroga o Pai, convocando o mestre a produzir algum saber para lidar com o crescente desamparo.

Quanto menos o saber produzido pelo mestre ameniza o desamparo do sujeito diante da queda da cosmovisão aristotélica (KOYRÉ, 1957/2006KOYRÉ, A. Do mundo fechado ao universo infinito (1957). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.), a interrogação se torna mais feroz e radical, abalando cada vez mais a hegemonia do discurso do mestre como modo prevalente de tratamento ao gozo. Partindo do discurso do mestre, temos, no sentido horário, o giro que gera o discurso da histérica, posição de Descartes com sua radical interrogação. Diante do silêncio do Pai, o saber baseado na Razão - diferente do saber do escravo no discurso do mestre - passa a ocupar o lugar de dominante, como ilustra o discurso universitário:

Ao não obter resposta, a interrogação histérica acaba por intensificar o desamparo no sujeito, favorecendo, no mesmo golpe, o giro anti-horário do discurso do mestre ao discurso universitário, em uma tentativa de responder ao desamparo pela via do saber científico: “Por mais paradoxal que seja a asserção, a ciência ganha impulso a partir do discurso da histérica” (LACAN, 1970a/2003LACAN, J. Radiofonia (1970a). In: LACAN, J.Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 2003., p. 436). De qualquer forma, destaca-se a aliança visceral entre ciência e capitalismo:

É da chamada ciência que se trata, para nós, de apreciar a contribuição no discurso do capitalismo [...] Vemos aí, na medida dos dois quartos de volta opostos com que se engendram duas transformações complementares, que a ciência, a nos fiarmos em nossa articulação, prescindiria, para se produzir, do discurso universitário, o qual, ao contrário, se confirmaria em sua função de cão de guarda para reservá-la a quem de direito. (LACAN, 1970b/2003LACAN, J. Alocução sobre o ensino (1970b). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003., p. 307, grifo nosso).

A amplificação do desamparo na Modernidade também alimenta o funcionamento do capitalismo, cuja marca primordial no campo do gozo é a tentativa de forclusão da castração (LACAN, 1971-1972/2011LACAN, J. Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne (1971-1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011., p. 88), prometendo uma satisfação não mais em um além da vida, mas ao alcance das mãos, nas prateleiras, no mercado, no consumo.

Do ponto de vista da teoria dos discursos, o capitalismo é abordado primeiramente por Lacan pela via da aliança visceral entre ciência e capitalismo. A concomitância entre os adventos do capitalismo e da ciência moderna não é puro acaso; há uma simbiose entre ambos, o que leva Lacan a indicar, no giro discursivo do discurso do mestre ao discurso universitário, a mutação capital que confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17), p. 159-160).

Marie-Jean Sauret indica que o corte operado pela ciência moderna não se dá sem uma crise pânica, que provoca uma mutação subjetiva (SAURET, 2009SAURET, M. J. Malaise dans le capitalisme. Toulouse: Presse Universitaire du Mirail, 2009., p. 225), afetando discursivamente a cultura. Um dos efeitos discursivos mais evidentes do discurso universitário é o fato de o saber ocupar o lugar de dominante, de agente, destituindo o significante-mestre dessa função: “[...] o que se opera entre o discurso do senhor antigo e o do senhor moderno, que se chama capitalista, é uma modificação no lugar do saber” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17), p. 29-30). A cada mudança de lugar no discurso há uma mudança no estatuto do próprio termo que se desloca. O sujeito que passa do lugar da verdade no discurso do mestre ao de produção no discurso universitário não é mais o mesmo, tampouco o saber, ao passar do lugar do trabalho ao de agente (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17), p. 33). Dois pontos significativos, certamente articulados, decorrem dessa mudança no campo do saber: a espoliação do saber do trabalhador, que Karl Marx denuncia como alienação do trabalho (MARX, 1867/2013MARX, K. O processo de produção do capital (1867). São Paulo: Boitempo, 2013. (O capital: crítica da economia política, 1)), e o viés cada vez mais quantitativo, matemático, desprovido de qualidades, do saber, índices de uma desumanização da relação do sujeito ao saber (TEIXEIRA, 2007TEIXEIRA, A. A soberania do inútil e outros ensaios de psicanálise e cultura. São Paulo: Annablume, 2007.).

A alienação do trabalho tem como correlata na estrutura dos discursos a mudança de S2 do lugar do trabalho ao de agente. Opera-se uma diferença entre o escravo, que detinha o saber, e o proletário, desprovido deste, processo que Marx não deixa de relacionar com o avanço da ciência:

[...] todos os meios para o desenvolvimento da produção se convertem em meios de dominação e exploração do produtor, mutilam o trabalhador, fazendo dele um ser parcial, degradam-no à condição de um apêndice da máquina, aniquilam o conteúdo de seu trabalho ao transformá-lo num suplício, alienam ao trabalhador as potências espirituais do processo de trabalho na mesma medida em que a tal processo se incorpora a ciência como potência autônoma, desfiguram as condições nas quais ele trabalha. (MARX, 1867/2013MARX, K. O processo de produção do capital (1867). São Paulo: Boitempo, 2013. (O capital: crítica da economia política, 1), p. 720, grifo nosso).

A passagem do modo de produção feudal ao modo de produção capitalista propicia a superação da produção artesanal pela manufatura e, em seguida, pela indústria. A alta produtividade passa a ser um imperativo ao qual a manufatura se oferece como primeira solução, sobretudo pelo aumento significativo desta proporcionado pela divisão do trabalho, que acarreta algo inusitado, isto é, “que o trabalhador parcial não produz mercadoria” (MARX, 1867/2013MARX, K. O processo de produção do capital (1867). São Paulo: Boitempo, 2013. (O capital: crítica da economia política, 1), p. 429). O trabalhador torna-se uma máquina a serviço da produção, ou melhor, uma peça de máquina, não mais produzindo mercadorias, mas peças ou partes de peças.

Se, no discurso do mestre, o saber opera no lugar do trabalho, no discurso universitário o proletário é espoliado do saber acerca de seu trabalho, ficando trabalho e saber não somente apartados, mas em uma relação tal que o saber passa a comandar o trabalho, instaurando uma nova tirania do saber (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. (O Seminário, 16), p. 30). Tal tirania se amplia na passagem da manufatura à grande indústria, intensificando-se ainda mais a alienação do trabalho, sendo o trabalhador transformado em mero acessório autoconsciente de uma máquina parcial (MARX, 1867/2013MARX, K. O processo de produção do capital (1867). São Paulo: Boitempo, 2013. (O capital: crítica da economia política, 1), p. 554). O enorme aumento de produtividade que a indústria consolida amplia a eficiência do grande objetivo do modo de produção capitalista, a produção de mais-valor1 1 Embora o termo “mais-valia” tenha sido consagrado ao longo do tempo na tradução do termo original Mehrwert, optamos pela tradução mais literal do termo - mais-valor -, seguindo a edição mais recente d’O capital, pela Boitempo Editorial (2013). , excedente produzido pelo trabalhador e não pago pelo capitalista, que funciona como causa de todo o processo.

Duas questões norteiam a investigação de Marx, que culmina na redação d’O capital: como surge o valor? Como se estabelece a equivalência entre mercadorias diferentes? Resposta: pelo trabalho. Entretanto, o trabalho tem duas dimensões: valor de uso - com a qualidade de gerar valor de uso a partir da ação sobre os meios de produção - e valor de troca - desprovido de qualidades, medido pela quantidade, sendo sua unidade o tempo. É nessa segunda dimensão que o trabalho é tomado como trabalho humano abstrato, mero dispêndio de energia por determinado tempo. Mercadorias qualitativamente diferentes podem ser comparadas quantitativamente a partir do tempo de trabalho que cada uma delas leva para ser produzida. Pois bem, se a força de trabalho se torna ela mesma uma mercadoria, a mesma lógica se aplica a ela, isto é, a força de trabalho vale o tempo de trabalho necessário para ser produzida. Como se produz a força de trabalho? Pela subsistência do trabalhador, dando-lhe o mínimo necessário para sobreviver e voltar no dia seguinte para vender novamente sua força de trabalho. Assim se define, majoritariamente, o salário. No entanto, o salário representa somente uma parcela do tempo de trabalho executado pelo trabalhador, a outra parcela é um excedente que se destina ao capitalista que comprou sua força de trabalho: o mais-valor.

Economia se refere, principalmente, à produção e distribuição de bens. A questão é que os bens, uma vez produzidos, não devem ficar imóveis, são um excedente a ser eliminado, vendido, consumido. Economia é, então, uma forma de lidar com um excesso, uma tentativa de regulação desse excesso. A economia psíquica descrita por Freud é um modo de lidar com o excesso pulsional, enquanto a economia política de Marx trata de lidar com o excesso de mercadorias. Ao tratar da economia de gozo, Lacan substitui a referência à energética pela referência à economia política, propondo uma homologia entre mais-de-gozar e mais-valor (LACAN, 1968-1969/2008LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. (O Seminário, 16)), sendo ambos excedentes que operam como causa. O gozo se apresenta como um excesso que gera trabalho ao psiquismo, mas que, uma vez excluído como perda, resto, passa a operar como causa, mais-de-gozar que incita o aparato discursivo ao trabalho, ao passo que o mais-valor é um excedente produzido pelo trabalhador e que se constitui como a causa última do modo de produção capitalista.

Ao afirmar que “[...] o capital, quando põe a ciência a seu serviço, constrange sempre à docilidade o braço rebelde do trabalho” (MARX, 1867/2013MARX, K. O processo de produção do capital (1867). São Paulo: Boitempo, 2013. (O capital: crítica da economia política, 1), p. 509, grifo nosso), Marx concede certa dominância do capitalismo em relação à ciência, o que não condiz com a concepção lacaniana - com a qual concordamos - que localiza o advento da ciência moderna como um evento discursivo, e não como mero resultado dos interesses capitalistas. Por outro lado, o estilo capitalista que Lacan atribui ao discurso universitário indica que o próprio capitalismo gera impactos discursivos. A maquinaria do modo de produção capitalista e a maquinaria discursiva afetam-se mutuamente.

Destacamos o impacto no campo do saber. Desprovido do saber acerca do que faz, mera peça da engrenagem, o trabalhador realiza, torna real, o apagamento do singular, sendo a alienação do trabalho a expressão de uma mudança - que não se restringe ao saber técnico laboral - no próprio campo do saber e na relação do sujeito com o saber.

Outro impacto muito significativo se refere ao próprio estatuto do saber, que se altera ao passar do lugar do trabalho ao de agente, baseando-se em um mundo de puras verdades matemáticas, visando à contabilização de tudo. Uma das bases da aliança entre capitalismo e ciência é a quantificação da realidade, seja no campo do saber, seja no campo mercantil, sendo o empuxo a fazer contas uma marca da curiosa copulação do capitalismo com a ciência (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. (O Seminário, 16), p. 103), o que faz com que a realidade capitalista não se dê nada mal com a ciência (LACAN, 1968-1969/2008LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. (O Seminário, 16), p. 38). A colocação da realidade em números por parte da ciência se articula de modo magistral ao empuxo contábil capitalista. À ciência interessa a colocação do saber em números para higienizar sua transmissão de qualquer contaminação subjetiva. No capitalismo, a mercadoria não é produzida para ser útil, mas para ser vendida; ela não é produzida por seu valor de uso, mas por seu valor de troca, que traz atrelado a si o mais-valor a ser extraído. O trabalho como mercadoria, como trabalho humano abstrato, é a fina flor desse movimento no campo produtivo, caindo os trabalhadores no turbilhão homogeneizante da quantificação, tornando-se, também eles, meras cifras na contabilidade capitalista.

Outro aspecto essencial a ser refletido ao se pensar nos efeitos discursivos da aliança entre ciência e capitalismo se refere ao próprio sujeito. Diante do desamparo que se intensifica no advento da Modernidade, a ciência tenta responder pela via de um saber próprio - numérico, matemático - não mais remetido à tradição, para o qual a singularidade do sujeito tende a se apagar, em uma operação que Lacan denomina como forclusão do sujeito (LACAN, 1965/1998LACAN, J. A ciência e a verdade (1965). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1998.). Paradoxalmente, o que ocupa o lugar de produto no discurso universitário é justamente o , ou seja, ao não querer saber da divisão do sujeito, em suas tentativas de tamponá-la pela via do saber, a ciência acaba por produzir ainda mais divisão no sujeito, consequência da qual ela nada quer saber. Uma vez que a divisão não é suturada, o que testemunhamos clinicamente é o mal-estar que retorna, diante do qual, oportunamente, o saber científico se oferece como capaz de tamponá-lo, em um movimento incessante na tentativa de remediar o irremediável.

A dimensão de gozo é aquela com a qual a ciência não quer se haver de forma alguma, já que o gozo é refratário à contabilidade, furando o ideal científico do saber absoluto ao não se permitir ser capturado pelo saber, escapando à trama significante, logo, aos cálculos.

A tentativa de capturar o gozo na contabilidade é uma aspiração partilhada tanto pela ciência quanto pelo capitalismo. Enquanto a ciência o tenta pela via de um saber que visa colocar a realidade em números, no capitalismo essa busca se dá pelo mais-valor, que não escapa à contabilidade, retornando ao sistema, permanecendo homogêneo ao capital. Embora Lacan proponha uma homologia entre o mais-valor e o mais-de-gozar, há uma diferença importante no que tange ao modo como o psiquismo opera junto ao mais-de-gozar e a forma como o modo de produção capitalista toma o mais-valor. No funcionamento discursivo, o a localiza o gozo que escapa à contabilização, que resiste à simbolização, não sendo recoberto pelo significante. Em seu afã por fazer contas - ponto de concordância com a ciência moderna -, o capitalismo visa contabilizar também o mais-de-gozar para realizar seu acúmulo, como indica Lacan ao se referir ao discurso universitário: “Alguma coisa mudou no discurso do mestre a partir de certo momento da história [...] a partir de certo dia, o mais-de-gozar se conta, se contabiliza, se totaliza. Aí começa o que se chama acumulação de capital” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17), p. 169). O mais-valor é, então, uma tentativa capitalista de contabilização do mais-de-gozar, é mais-de-gozar contabilizado.

Poderíamos supor, então, que o capitalismo prospera naquilo que a ciência fracassa, a saber, na captura do gozo? Entendemos que não, pois, assim como o saber não é mais o mesmo ao mudar de lugar, o mesmo se passa com o mais-de-gozar: “Passando um estágio acima, o mais-de-gozar não é mais-de-gozar, ele se inscreve simplesmente como valor a registrar ou deduzir de uma totalidade do que se acumula” (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17), p. 76). O gozo segue refratário à contabilização diante do empuxo contábil capitalista e científico, o que não impede que a mercadoria tente ocupar o lugar de causa de desejo, latusas (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17), p. 153-154) que povoam as vitrines e telas de televisões e computadores, travestindo seu valor de troca em um valor de uso maquiado como uma necessidade urgente, como aquilo que vai dar ao sujeito o que lhe falta. Contudo, algo escapa tanto ao valor de uso quanto ao valor de troca, um gozo que não se deixa apreender, que resta como impossível, inacessível.

Além da mudança no campo do saber e do sujeito, a mutação do discurso do mestre que gera o discurso do mestre moderno com seu estilo capitalista - o discurso universitário - produz ainda duas interessantes consequências, o esvaziamento da barreira da impotência, e o significante-mestre como anônimo, mais inatacável:

Vocês não sentem, em relação ao que enunciei há pouco sobre a impotência fazendo a junção entre o mais-de-gozar e a verdade do mestre, que aqui o passo ganha? Não digo que o último seja o decisivo, mas a impotência dessa junção é de repente esvaziada [...] O que há de chocante, e que não parece ser visto, é que a partir daquele momento o significante-mestre, por terem sido dissipadas as nuvens da impotência, aparece como mais inatacável, justamente na sua impossibilidade. (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17), p. 169, grifos nossos).

No discurso do mestre, a impotência separa - no nível inferior - a e $, sendo uma barreira ao acesso do sujeito ao gozo. Com a subida de a ao nível superior, essa barreira perde consistência, é esvaziada entre $ e a, que, entretanto, permanecem separados pela barra. A impossibilidade deixa de se referir ao comando do significante-mestre sobre o saber, passando a exprimir a não plenitude da missão científica de abarcar o gozo pelo saber. O significante-mestre cede seu lugar ao saber científico e passa ao lugar da verdade, tornando-se mais inatacável, isto é, anônimo, o que parece muito congruente com a ideia do capital como significante-mestre no capitalismo, capital que não tem nome, nacionalidade, religião ou etnia, não à toa sendo o S1 no lugar da verdade um ponto de coincidência entre os matemas do discurso universitário e do discurso do capitalista, que veremos a seguir.

DISCURSO DO CAPITALISTA

Em uma conferência em Milão, em 1972, Lacan propõe um matema próprio ao discurso do capitalista, surgindo uma questão. Estaria Lacan substituindo o discurso universitário pelo discurso do capitalista como aquele que melhor representaria os efeitos discursivos do capitalismo?

Entre a formulação do discurso universitário e sua associação ao capitalismo, em 1970, e a proposição do matema do discurso do capitalista de 1972, Lacan indica que “uma coisinha de nada que gira e o discurso do mestre de vocês mostra-se tudo o que há de mais transformável no discurso do capitalista.” (LACAN, 1971/2009LACAN, J. De um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009. (O Seminário, 18), p. 47, grifo nosso). O giro indicado em 1971 se refere à mutação capital citada em 1970, isto é, ao giro do discurso do mestre ao discurso universitário? Difícil afirmar com precisão. No início de 1972, Lacan assim se refere ao discurso do capitalismo:

Mas a história mostra que ele viveu durante séculos, esse discurso [do mestre], de maneira lucrativa para todo mundo, até um certo desvio em que, em razão de um ínfimo deslizamento, que passou despercebido dos próprios interessados, tornou-se o discurso do capitalismo, do qual não teríamos a menor ideia se Marx não se houvesse empenhado em completá-lo, em lhe dar seu sujeito, o proletário [...] O que distingue o discurso do capitalismo é isto: a Verwerfung, a rejeição para fora de todos os campos do simbólico, com as consequências de que já falei - rejeição de quê? Da castração [...] Foi justamente por isso que, dois séculos depois desse deslizamento - vamos chamá-lo de calvinista, por que não? -, a castração fez, enfim, sua entrada irruptiva, sob a forma do discurso analítico” (LACAN, 1971-1972LACAN, J. Du discours psychanalytique (1972). Lacan in Italia. Milão: La Salamandra, 1978, p. 32-55., p. 88, grifos e colchete nossos).

A indicação de que o discurso analítico surja dois séculos depois desse deslizamento faz com que este possa ser entendido como o quarto de giro DM → DU, concomitante ao nascimento da ciência moderna. Por outro lado, Lacan propõe o matema do discurso do capitalista propriamente dito apenas quatro meses após a citação acima, o que poderia dar a entender que, ao tratar do deslizamento e, sobretudo, da forclusão da castração, já estaria antecipando a inversão de lugares entre S1 e $ que configura a seguinte mutação:

Fica evidente que não é fácil definir uma posição unívoca com relação a esse tema. Uma interpretação possível seria a de que, ao se referir ao impacto discursivo do capitalismo, Lacan partiu da ideia do discurso universitário como discurso capitalista (1970) até concluir depois (1972) que o discurso capitalista teria um matema próprio. Essa é a posição de Sauret: “[...] este [o discurso capitalista] corrige o discurso do mestre e é essa correção que Lacan substitui ao discurso universitário” (SAURET, 2009SAURET, M. J. Malaise dans le capitalisme. Toulouse: Presse Universitaire du Mirail, 2009., p. 277, tradução e colchete nossos). Claro que isso não significa que o discurso universitário deixe de operar, mas que seu matema não seria mais o que melhor representaria os efeitos discursivos do capitalismo.

Outra interpretação possível seria a de que o matema do discurso do capitalista não se sustente enquanto discurso, logo, não possa representar os efeitos discursivos do capitalismo. De fato, esse matema surge como um hapax legomenon - palavra ou expressão que surge uma única vez nos registros de uma língua, sem qualquer registro posterior - em Lacan, como indicam Carlos Faig (2000FAIG, C. El discurso del capitalista em Lacan: um hápax. Imago Agenda, n. 45, 2000. Disponível em:Disponível em:http://www.imagoagenda.com/articulo.asp?idarticulo=1689 . Acesso em:10 ago. 2020.
http://www.imagoagenda.com/articulo.asp?...
) e Néstor Braunstein (2010BRAUNSTEIN, N. O discurso capitalista: quinto discurso? O discurso dos mercados (PST): sexto discurso? A PESTE: Revista de Psicanálise e Sociedade e Filosofia, v. 2, n. 1, p. 143-165, 2010.). Discordamos dessa interpretação, julgando que, embora o estatuto discursivo do discurso do capitalista seja discutível, sua exploração se revele bastante recompensadora.

Entendemos, sobretudo, que não se trate de uma opção exclusiva entre o discurso universitário e o discurso do capitalista, podendo ambos os matemas fornecer importantes contribuições para a reflexão acerca dos efeitos discursivos do capitalismo. Acompanhemos mais de perto o matema do discurso do capitalista.

Este matema surge em uma conferência proferida em maio de 1972 na Universidade de Milão, quando Lacan o aponta como substituto do discurso do mestre, localizando em seu funcionamento, de forma paradoxal, a abertura de uma crise ao mesmo tempo em que indica seu sucesso:

[...] a crise, não do discurso do mestre, mas do discurso capitalista, que é seu substituto, está aberta. Não é que eu lhes diga que o discurso capitalista seja mau, ao contrário, é algo extremamente astucioso, hein? Extremamente astucioso, mas fadado ao colapso [...] Enfim, é tudo o que se fez de mais astucioso como discurso [...] É que ele é insustentável [...] porque, o discurso capitalista está aí, vocês o veem [...] uma pequena inversão simplesmente entre o S1 e o $ ... que é o sujeito ... será suficiente para que isso ande como se estivesse sobre rodas, isso não tem como andar melhor, mas justamente isso anda rápido demais, isso se consome, isso se consome tão bem que isso se consuma. (LACAN, 1972/1978LACAN, J. Du discours psychanalytique (1972). Lacan in Italia. Milão: La Salamandra, 1978, p. 32-55., p. 48, tradução e grifos nossos).

Quatro meses antes da escrita do matema do discurso do capitalista, Lacan destaca a forclusão da castração como aquilo a que o discurso capitalista visa. Seria esse um ponto de inflexão que levou Lacan a formular o matema do discurso do capitalista?

Outros pontos que já surgem no Seminário 17 também parecem encontrar eco no matema do discurso do capitalista: o esvaziamento da barreira da impotência e o significante-mestre como inatacável. Enfim, diante do silêncio posterior de Lacan sobre o tema, não há resposta segura a essa questão, restando-nos uma aposta, à qual não nos furtaremos.

Para tal, recorremos a Marx. O Livro I d’O capital aborda o processo de produção do capital, um esforço colossal para desvelar o único segredo do capitalismo: a formação de mais-valor (MARX, 1885/2014MARX, K. O processo de circulação do capital (1885). São Paulo: Boitempo, 2014. (O capital: crítica da economia política, 2), p. 426). O Livro II aborda o processo de circulação do capital, que ocorre após a produção da mercadoria, a qual traz em si o mais-valor que precisa ser realizado com sua venda. Ousamos uma interpretação.

O discurso universitário parece ser mais apropriado para se entender o processo de produção do capital, onde surge o mais-valor como contabilizado, ficando destacada a figura do sujeito como proletário espoliado de seu saber e produtor de mais-valor. Esse discurso permite explorar muito bem questões vivas e pertinentes do capitalismo, como a alienação do trabalho, e a aliança visceral entre capitalismo e ciência, com o paradoxo de a ciência visar tamponar o sujeito ao mesmo tempo em que produz um sujeito dividido, em conjunto com a promessa capitalista de dar ao sujeito o que lhe falta pela via do consumo, da mercadoria.

Entendemos, por outro lado, que o discurso do capitalista forneça ricos meios para abordar a promessa capitalista de forclusão da castração e o processo de circulação do capital. Na circulação, destaca-se o modo como o mais-valor se realiza ao capitalista pelo viés do consumo, ganhando relevo a figura do sujeito como consumidor, sujeito barrado ao qual se dirige a promessa do rechaço da castração pela via da mercadoria, a, do consumo.

A circulação compreende a parte do ciclo do capital que se dá fora da esfera da produção. Na produção, é gerada a mercadoria fertilizada de mais-valor (MARX, 1885/2014MARX, K. O processo de circulação do capital (1885). São Paulo: Boitempo, 2014. (O capital: crítica da economia política, 2), p. 120), mas, para que a rotação do capital (produção + circulação) se complete, é preciso que a mercadoria, prenhe de mais-valor (MARX, 1885/2014MARX, K. O processo de circulação do capital (1885). São Paulo: Boitempo, 2014. (O capital: crítica da economia política, 2), p. 110), seja vendida, sendo o consumo a sala de parto que fornece o mais-valor ao capitalista, que deve reinvesti-lo no sistema. No contexto atual do capitalismo, “os homens não devem mais entrar em acordo com os valores simbólicos transcendentes, simplesmente devem se dobrar ao jogo da circulação infinita e expandida da mercadoria” (DUFOUR, 2005DUFOUR, D. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005., p. 13). Instaura-se a continuidade como modo de funcionamento imperativo, estrutural, do modo de produção capitalista. Entendemos que essa continuidade, essa retroalimentação se apresenta na estrutura discursiva pela circularidade, pela falta de corte, de ponto de basta, que o matema do discurso do capitalista apresenta.

A mutação no lado esquerdo do discurso do mestre, com a inversão de lugares entre S1 e $, além de mudar a ordem dos termos, gera uma radical mudança nos operadores. A seta da impossibilidade - típica do laço social em jogo no discurso - desaparece, bem como a barreira da impotência no nível inferior.

Em qualquer dos quatro discursos, a produção não tem relação direta com a verdade (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17), p. 166), evitando que o circuito se feche, mantendo o aparelho discursivo em trabalho na busca, impossível de ser plenamente realizada, de recuperação. A impotência tenta ocultar esse impossível, tendo uma função de proteção (LACAN, 1969-1970/1992LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17), p. 166). A dissipação das nuvens da impotência, que se inicia no discurso universitário, consolida-se radicalmente no discurso do capitalista, desaparecendo a barreira da impotência. O lugar da produção/perda fica separado do lugar da verdade somente por $, barreira transposta pelo consumo, tornando-se o sujeito como consumidor mero meio de passagem do mais-valor ao capital: a → $ → S1.

Isso remete à forclusão da castração, marca distintiva do capitalismo no campo do gozo, engendrando-se uma promessa ao sujeito de evitar a falta pela via do consumo, da mercadoria, instaurando-se um imperativo de consumo excessivo e incessante.

Marx denuncia que o proletário é espoliado não somente do saber acerca do trabalho, mas, sobretudo, daquilo que ele próprio produz, que passa a pertencer integralmente àquele que comprou sua força de trabalho, o capitalista. Aqui incide a promessa de forclusão da castração, cujo cumprimento tem na mercadoria - que se vende como mais-de-gozar ao sujeito - seu meio privilegiado. Porém, o mais-de-gozar não retorna ao sujeito, sempre escapando, deixando-o na sede pela próxima mercadoria; o que se produz é a falta e não a saciedade: “Pois esse caurim, a mais-valia, é a causa do desejo do qual uma economia faz seu princípio: o da produção extensiva, portanto insaciável, da falta-de-gozar [manque-à-jouir]” (LACAN, 1970a/2003LACAN, J. Radiofonia (1970a). In: LACAN, J.Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 2003., p. 434). A fabricação da falta é uma especialidade do modo de produção capitalista, cuja estrutura não produz sujeitos satisfeitos, mas sedentos, logo, abertos ao consumo. O capitalismo produz, ao mesmo tempo, a mercadoria e o sujeito como falta-de-gozar, astuciosamente gerando oferta e procura no mesmo golpe. A forclusão da castração pode até não ser bem-sucedida, levada a cabo, mas o discurso que a veicula sem dúvida o é. Vemos aí sua astúcia, pois é justo por não cumprir sua promessa que o movimento se relança imediatamente, em um ciclo que se aproxima do perpetuum mobile.

O acesso às mercadorias não traz a satisfação almejada, restando o gosto amargo do mal-estar, o que não impede que logo surja no mercado um novo remédio que prometa aplacá-lo. Embora a se ligue diretamente ao $, isso não significa que o sujeito consiga acessar o mais-de-gozar supostamente contido na mercadoria, pois, tão logo o sujeito compre a mercadoria, o mais-de-gozar salta para a mercadoria seguinte, incitando um consumo incessante.

Cabe refletir, no entanto, que a promessa de forclusão da castração só se sustenta por haver algo no lado do sujeito que faça eco a ela: “[...] o discurso capitalista tem êxito em transformar a insatisfação constitutiva do desejo humano em uma insatisfação comandada pelo mercado” (LUSTOZA, 2009LUSTOZA, R. O discurso capitalista de Marx a Lacan: algumas consequências para o laço social. Revista Ágora, v. 12, n. 1, p. 41-52, 2009. Disponível em:Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/agora/v12n1/03.pdf . Acesso em: 10 jan. 2023.
http://www.scielo.br/pdf/agora/v12n1/03....
, p. 47). A insatisfação constitutiva do desejo humano faz eco à promessa capitalista de forclusão da castração, e a astúcia do discurso capitalista é oferecer a mercadoria como fonte de suposta satisfação.

Nesse discurso, o sujeito ocupa o lugar de agente, mas não comanda nada, sendo, ao contrário, comandado pela mercadoria, a → $. O sujeito ora trabalha produzindo mais-valor para outrem, ora consome, buscando um mais-de-gozar que não chega, prevalecendo a dimensão de gozo sobre a dimensão desejante. O capital como S1 ocupa o lugar da verdade e põe o saber científico, S2, a trabalhar incessantemente, bem ilustrando o movimento interminável e desmedido (MARX, 1867/2013MARX, K. O processo de produção do capital (1867). São Paulo: Boitempo, 2013. (O capital: crítica da economia política, 1), p. 227-228) do capital.

O que o discurso do capitalista visa é uma relação do sujeito (consumidor) com o objeto (mercadoria) não pela via da fantasia, $ ◊ a, mas por uma ligação direta e imediata, literalmente sem mediações, a → $. Todavia, a contingência do objeto pulsional se opõe à massificação da mercadoria, permanecendo o sujeito insatisfeito.

Afinal, que discurso ao capitalismo?

Da mutação do discurso do mestre que gera o discurso universitário, discurso do mestre moderno com seu estilo capitalista, evidenciam-se os impactos no campo do saber e no estatuto do sujeito. Ao passar à dominante, o saber científico não é mais o mesmo do escravo, é saber quantificado, contábil, aparelhado matematicamente, o que também resulta na alienação do trabalho, sendo o trabalhador espoliado não somente dos meios de produção, mas também do saber acerca de seu trabalho. O sujeito surge como esvaziado de qualidades, efeito do significante, $, mas a ciência se esmera em tentar suturá-lo pela via do saber, intensificando sua aliança com o capitalismo.

A mutação do discurso do mestre ao discurso do capitalista, com a inversão dos lugares de S1 e $, acarreta diferentes consequências, como o desaparecimento da seta no nível do impossível, bem como da barreira da impotência. Com isso, instaura-se um funcionamento circular, sem tropeços, o que coaduna com o caráter desmedido, contínuo, sem ponto de basta do modo de produção capitalista. Outra importante consequência se dá na ligação direta entre a e $ - o que não ocorre em nenhum dos outros quatro discursos -, algo que representa bem a marca distintiva do capitalismo no campo do gozo, a forclusão da castração.

Dessa forma, com relação à questão de qual modalidade discursiva melhor representaria o capitalismo, entendemos que tanto o discurso universitário quanto o discurso do capitalista contribuam de forma essencial para a exploração dos efeitos discursivos do capitalismo, estando o primeiro mais próximo ao processo de produção do capital, enquanto o segundo bem represente o processo de circulação do capital, processo cada vez mais em evidência com o avanço do neoliberalismo. Parece-nos, a bem dizer, que seja possível entender o matema do discurso do capitalista como bem expressando os efeitos discursivos do avanço do neoliberalismo, no qual “a mercadoria, como os capitais, com efeito, deve poder circular sem entraves nas fronteiras e se possível sem fronteiras […] A narrativa da mercadoria se quer sem fronteiras” (DUFOUR, 2005DUFOUR, D. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005., p. 75-76, grifo nosso). No entanto, essa última reflexão merece ser realizada de forma mais cuidadosa em futura pesquisa.

REFERÊNCIAS

  • BRAUNSTEIN, N. O discurso capitalista: quinto discurso? O discurso dos mercados (PST): sexto discurso? A PESTE: Revista de Psicanálise e Sociedade e Filosofia, v. 2, n. 1, p. 143-165, 2010.
  • DUFOUR, D. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.
  • FAIG, C. El discurso del capitalista em Lacan: um hápax. Imago Agenda, n. 45, 2000. Disponível em:Disponível em:http://www.imagoagenda.com/articulo.asp?idarticulo=1689 Acesso em:10 ago. 2020.
    » http://www.imagoagenda.com/articulo.asp?idarticulo=1689
  • FREUD, S. A moral sexual “cultural” e o nervosismo moderno (1908). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. (Obras completas, 8, p. 359-389)
  • FREUD, S. Prefácios e textos breves: prólogo à Juventude abandonada, de August Aichhorn (1925). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. (Obras completas, 16, p. 347-350)
  • FREUD, S. Totem e tabu (1912-1913). São Paulo: Companhia das Letras , 2012. (Obras completas, 11, p. 13-244)
  • KOYRÉ, A. Do mundo fechado ao universo infinito (1957). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
  • LACAN, J. A ciência e a verdade (1965). In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1998.
  • LACAN, J. Alocução sobre o ensino (1970b). In: LACAN, J. Outros escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
  • LACAN, J. De um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009. (O Seminário, 18)
  • LACAN, J. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. (O Seminário, 16)
  • LACAN, J. Du discours psychanalytique (1972). Lacan in Italia Milão: La Salamandra, 1978, p. 32-55.
  • LACAN, J. Estou falando com as paredes: conversas na Capela de Sainte-Anne (1971-1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011.
  • LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
  • LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1992. (O Seminário, 17)
  • LACAN, J. Radiofonia (1970a). In: LACAN, J.Outros escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , 2003.
  • LUSTOZA, R. O discurso capitalista de Marx a Lacan: algumas consequências para o laço social. Revista Ágora, v. 12, n. 1, p. 41-52, 2009. Disponível em:Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/agora/v12n1/03.pdf Acesso em: 10 jan. 2023.
    » http://www.scielo.br/pdf/agora/v12n1/03.pdf
  • MARX, K. O processo de produção do capital (1867). São Paulo: Boitempo, 2013. (O capital: crítica da economia política, 1)
  • MARX, K. O processo de circulação do capital (1885). São Paulo: Boitempo, 2014. (O capital: crítica da economia política, 2)
  • SAURET, M. J. Malaise dans le capitalisme Toulouse: Presse Universitaire du Mirail, 2009.
  • TEIXEIRA, A. A soberania do inútil e outros ensaios de psicanálise e cultura São Paulo: Annablume, 2007.
  • 1
    Embora o termo “mais-valia” tenha sido consagrado ao longo do tempo na tradução do termo original Mehrwert, optamos pela tradução mais literal do termo - mais-valor -, seguindo a edição mais recente d’O capital, pela Boitempo Editorial (2013).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2022
  • Aceito
    22 Fev 2023
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistaagoraufrj@gmail.com