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O GRUPO DE BOSTON E SUAS PROPOSTAS PARA O DESENVOLVIMENTO DA PRÁTICA PSICOTERÁPICA

The Boston Group and its proposals for the development of the psychoanalytic psychotherapeutic practice

RESUMO:

Neste artigo nos dedicamos a retomar criticamente a proposta do Grupo de Boston (que propôs um paradigma unificado para as práticas psicoterápicas), composto por psicanalistas, pediatras, desenvolvimentistas e outros pesquisadores da situação e desenvolvimento da relação mãe-bebê no período perinatal, ressaltando em que sentido suas contribuições - colocando em destaque a necessidade de “algo a mais do que a interpretação”, a realidade afetiva do encontro entre o analisa e o paciente, as comunicações verbais e não verbais, os conteúdos explícitos e implícitos nas relações psicoterápicas - podem levar ao desenvolvimento da teoria e da prática psicoterápica, especialmente a psicanalítica.

Palavras-chave:
Psicoterapia; Psicanálise; interpretação; encontro; paradigmas

Abstract:

In this article we critically take up the proposal of the Boston Group (which proposed a unified paradigm for psychotherapeutic practices), made up by psychoanalysts, pediatricians, developmentalists, and other researchers related to the situation and development of the mother-baby relationship in the perinatal period. It emphasizes in which sense their contributions - notably the need for “something beyond interpretation”, the affective reality of the encounter between analyst and patient, verbal and non-verbal communications, the explicit and implicit contents in psychotherapeutic relationships - may lead to the development of psychotherapeutic theory and practice, especially the psychoanalytic one.

Keywords:
Psychotherapy; Psychoanalysis; interpretation; encounter; paradigms

INTRODUÇÃO

O Grupo de Estudo sobre os Processos de Mudança nos Tratamentos Psicoterápicos de Boston (Grupo de Boston), fundado em 1994, é um grupo de psicanalistas, pesquisadores do desenvolvimento, estudiosos e clínicos das relações perinatais mãe-bebê, e pediatras que tem proposto uma série de análises visando o desenvolvimento das práticas psicoterápicas, seja do ponto de vista da psicanálise seja no de outras perspectivas (teoria sistêmica, comportamentalista, centrado na teoria do apego). O Grupo publicou, além de diversos artigos, o livro Change in Psychotherapy. a unifying paradigm (BOSTON, 2010aBOSTON, G. [THE BOSTON CHANGE PROCESS STUDY GROUP] Change in Psyhcotherapy: a unifying paradigm. New York: W. W. Norton & Company, 2010a.), no qual propõe um novo paradigma para as práticas psicoterápicas, unificando saberes advindos de diversos sistemas teóricos. Identificam-se como sendo o Grupo de Boston (cf. http://www.changeprocess.org), dedicado ao estudo dos processos de modificação psicoterápica, sendo uma expressão consolidada de pensadores consistentes e rigorosos nos seus campos. Abertos à utilização de todo conhecimento que possa contribuir para uma maior compreensão dos fatos e o desenvolvimento necessário das práticas psicoterápicas - não prisioneiros de identidades narcísicas associadas a emblemas de pertinência institucional, ou seja, pensadores livres para criticar e para modificar o que não funciona bem -, eles propõem articular, em um novo paradigma, contribuições advindas da psicanálise, da teoria do apego, da teoria sistêmica e dos teóricos do desenvolvimento, tendo, como objetivo, uma unificação paradigmática elaborada em função de conseguir um maior poder heurístico da teoria aplicável às práticas psicoterápicas.

A proposta do Grupo de Boston já foi comentada por profissionais de reconhecida importância na psicanálise e nas pesquisas sobre o relacionamento infantil mãe-bebê. A revista Infant Mental Health Journal, em 1999, dedicou um número especial para comentar o simpósio Interventions that affect change in psychotherapy (v. 19, n. 3), como diversos artigos deste grupo e os comentários de três renomados profissionais (Peter Fonagy, Beatrice Beebe, Arnold H. Model), que retomo em seus aspectos gerais, com o objetivo de caracterizar os aspectos gerais dessa proposta e sua importância para a ciência.

Peter Fonagy (University College London, United Kingdom), afirma, no primeiro parágrafo de seu artigo dedicado à análise deste livro:

É sem dúvida uma honra e também um grande prazer poder discutir o produto deste trabalho único, articulando contribuições de importantes pesquisadores atuais sobre a infância com a de experientes médicos e psicanalistas de adultos, em uma iniciativa conjunta que visa expandir nossa compreensão da natureza do processo de mudança nas psicoterapias psicanalíticas. Cada um dos capítulos desse livro é uma pérola, e juntos forneçam uma linha brilhante de entendimentos, que vão enriquecer o pensamento psicanalítico. Os artigos são notáveis por sua coerência, facilitando a tarefa de discussão. (FONAGY, 1999FONAGY, P. Moments of change in psychoanalytic theory: discussion of a new theory os psychic change. Infant Mental Health, v. 19, n. 3, p. 346-353, 1999., p. 347, tradução nossa).

Concluindo, ao final de seu artigo:

Essas ideias contêm muitas coisas inovadoras e estimulantes. De uma forma altamente coerente, um novo modelo do processo de mudança psicoterapêutica é proposto. Muitos escreveram sobre a importância dos fatores de relacionamento na terapia, mas poucos traduziram esta afirmação em um modelo psicológico válido no desenvolvimento. As ideias são novas, desafiadoras e maduras para exploração empírica e técnica. Espero que a edição especial desta revista possa contribuir para o início deste importante processo científico. (FONAGY, 1999FONAGY, P. Moments of change in psychoanalytic theory: discussion of a new theory os psychic change. Infant Mental Health, v. 19, n. 3, p. 346-353, 1999., p. 352).

Beatrice Beebe (N.Y.S. Psychiatric Institute, New York, New York), por sua vez, se propõe a colocar em destaque o seguinte:

Operando amplamente fora do campo da consciência, o modo processual de processamento foi negligenciado em psicoterapia e psicanálise, ainda que seja fundamental para nossa compreensão da ação terapêutica. Este grupo deu uma importante contribuição para uma teoria procedimental da ação terapêutica, integrando alguns dos conceitos atuais mais importantes na pesquisa sobre a infância (psicologia cognitiva, teorias de sistemas, e psicanálise de adultos). O modo procedimental de “conhecimento relacional implícito” é colocado no contexto do momento-a-momento, no modelo da mútua regulação de trocas co-construídas. A teoria da dinâmica não linear dos sistemas influenciou intensamente sua “teoria da mudança”. A peça central é o conceito de “momento de encontro” de Louis Sander. Embora o conceito de intersubjetividade seja central em todos os artigos, os múltiplos usos do termo sugerem que um reexame cuidadoso das definições de intersubjetividade seja extremamente necessário. Devemos agora integrar o trabalho deste grupo com outras teorias procedimentais atuais de ação terapêutica. (BEEBE, 1999BEEBE, B. A procedural theory of therapeutic action: commentary on the symposium “Interventions that effect Change in Psychotherapy”. Infant Mental Health Journal, v. 19, n. 3, p. 333-340, 1999., p. 333).

No início de sua análise, ela faz o seguinte destaque:

Trabalhar com a suposição de que algo mais do que a interpretação é necessário para fazer mudanças na psicoterapia e na psicanálise, foi o que este ilustre grupo propôs, numa importante e criativa teoria da ação terapêutica. Eles começam com a observação de que a maioria dos pacientes lembra de momentos especiais do processo psicoterápico, enfatizando a conexão pessoal autêntica vivida com seus terapeutas. Este momento especial é explicado pelo conceito de “momento de encontro”, de Sander, um momento de reconhecimento recíproco. Este “encontro” é um fato elaborado, de diversas formas, por diversos autores ao longo da história. Sander foi, originalmente, influenciado pela descrição que Martin Buber fez do “relacionamento eu-tu”; como também pela posição de Buber afirmando que toda cura verdadeira (e toda vivência) ocorre no “encontro” entre duas pessoas. Este grupo [Grupo de Boston] fez uma descrição teórica da mudança psicoterapêutica, integrando alguns dos conceitos atuais mais importantes na pesquisa infantil, na psicologia cognitiva, na teoria dos sistemas e no tratamento psicanalítico de adultos. (BEEBE, 1999BEEBE, B. A procedural theory of therapeutic action: commentary on the symposium “Interventions that effect Change in Psychotherapy”. Infant Mental Health Journal, v. 19, n. 3, p. 333-340, 1999., p. 334, tradução nossa).

Arnold Modell (Harvard Medical School, Boston, Massachusetts), por sua vez, assim caracteriza a proposta e sua avaliação crítica geral:

Os artigos do Change Process Study Group de Boston abordam um problema conceitual não resolvido: como codificar estados intersubjetivos? A transferência de conceitos da pesquisa infantil para a díade terapêutica do adulto é mais do que uma analogia, pois certos aspectos primitivos da mente aparecem na infância, mas persistem por toda a vida. A regulação da consciência é um exemplo notável. A díade terapêutica adulta e a díade mãe-bebê podem ser vistas como sistemas dinâmicos autorreguladores que também são autorreparativos. O conceito de conhecimento relacional implícito é oferecido como uma forma alternativa de pensar sobre as relações objetais internas. (MODELL, 1999MODELL, A. H. Review of Infant Mental Health Papers. Infant Mental Health Journal, v. 19, n. 3, p. 341-345, 1999., p. 341).

Ele também destaca quais são os pontos, clínicos e teóricos, que considera centrais na proposta desse grupo:

Por trás do enigma da mudança terapêutica, há um problema conceitual não resolvido: como codificar estados intersubjetivos? Os artigos do Change Process Study Group de Boston podem ser vistos como uma tentativa de construir uma nova maneira de pensar sobre o processo intersubjetivo dentro da díade terapêutica adulta a partir da perspectiva das mudanças de desenvolvimento dentro da díade mãe-bebê. (MODELL, 1999MODELL, A. H. Review of Infant Mental Health Papers. Infant Mental Health Journal, v. 19, n. 3, p. 341-345, 1999., p. 342).

Estes três comentadores mostram a importância e a qualidade deste grupo para o desenvolvimento das práticas psicoterápicas, sejam as psicanalíticas sejam as de outras perspectivas.

O que pretendemos, aqui, nessa resenha crítica, é não só retomar o valor e o conteúdo histórico dessa proposta, cujos efeitos ainda estão sendo observados e estudados, tanto na psicanálise como noutras disciplinas, como também, analisando suas propostas, indicar alguns dos seus desenvolvimentos ainda não citados, bem como abordar o problema epistemológico que diz respeito à dificuldade de colocar em diálogo sistemas teórico-semânticos díspares, o que ainda não foi abordado na literatura dedicada ao estudo das propostas do Grupo de Boston.

História e propósito do Grupo de Boston

O Grupo de Boston, fundado em 1994 - composto por psicanalistas (Alexander Morgan, Jeremy Nahum, Louis Sander, Daniel Stern, Alexandra Harrison), teóricos do desenvolvimento, especialmente os adeptos da teoria do apego (Karlen Lyons-Ruth, Edward Tronick) e pediatras (Nadia Bruschweiler-Stern) - e compartilhando a crença de que “o estudo do desenvolvimento precoce era uma fonte rica e única de contribuições para a psicanálise” (BOSTON, 2010bBOSTON, G. [THE BOSTON CHANGE PROCESS STUDY GROUP] Introduction. Placing the Work in context: Origins of the Boston Change Process Study Group. In: BOSTON, G. [THE BOSTON CHANGE PROCESS STUDY GROUP]Change in Psyhcotherapy: a unifying paradigm. New York: W. W. Norton & Company, 2010b., p. xii), dedicou-se a pensar e desenvolver, teórica e praticamente, quais eram as transformações e o desenvolvimento das práticas psicoterápicas, procurando esclarecer como ocorrem as mudanças nos processos psicoterapêuticos, considerando, então, todo o conjunto de transformações que o campo do atendimento perinatal exigia (seja focado no bebê, na mãe, pai, casal, ou ambiente de cuidados na situação perinatal), ou seja, considerando as necessidades (de holding) que esta nova clientela necessitava.

Este grupo de profissionais, clínicos e pesquisadores queria aproveitar todos os estudos sobre o desenvolvimento dos bebês, sobre a psicoterapia (seja de base psicanalítica, comportamental, sistêmica e do ponto de vista da teoria do apego) utilizada no cuidado dos bebês e suas mães, para compreender e ampliar o conhecimento sobre os processos de mudança nas psicoterapias, suas necessidades práticas e suas enunciações teóricas sobre o quê e como fazer psicoterapia (evidentemente, a psicanálise tem aí um lugar de diálogo central).

O atendimento psicoterápico, especialmente das mães de recém-nascidos, mostrava claramente que o método psicanalítico padrão (divã, associação livre, escuta flutuante, representações da situação edípica clássica, importância dada à sexualidade, abstinência como lugar do analista etc.) não era adequado, exigindo muitas adaptações e modificações. Serge Lebovic é um dos professionais que pode agrupar e fazer modificações importantes, apresentando uma nova maneira de cuidar clinicamente destes pacientes ou destas situações. Sem que precisemos nos alongar nessa análise, basta indicar o fato de que as mães, neste momento, precisam muito mais de um holding afetivo e que lhes dê confiança, do que interpretações sobre sua vida fantasmática edípica sexualizada (STERN, 2010STERN, D. Être avec Stern. Youtube, 2010. Disponível em:Disponível em:https://youtu.be/gSX_t-zPBA0 . Acesso em: 14 mar. 2023.
https://youtu.be/gSX_t-zPBA0...
).

Além disto, o conjunto de estudos sobre a situação inicial dos bebês, sua maturidade e imaturidade, suas necessidades para o desenvolvimento - seja do ponto de vista de comportamentalistas e adeptos da teoria do apego (tais como Brazelton, Lyons-Ruth e Tronick), seja em uma perspectiva integrando psicanálise com outros aportes, como fez Daniel Stern (1985/2000) -, mostrava um bebê diferente, em maturidade e capacidades, do que a teoria psicanalítica clássica (com S. Freud, A. Freud e Margareth Mahler) tinha considerado.

Outras influências, considerando todo o desenvolvimento da psicanálise ao longo do século XX, também deveriam ser citadas, dado que os componentes deste grupo eram e são autores que estão a par da história da psicanálise, mas isto nos levaria a um outro tipo de análise, em um tipo de arqueologia do pensamento, que não é nossa intenção, dado que buscamos apresentar o grupo e suas propostas gerais.

Este grupo elenca, então, na sua própria apresentação, quais são os temas que se colocaram como objeto para estudo e desenvolvimento:

Nosso trabalho tem ocorrido no contexto de uma série de aspectos relacionados à mudança psicoterapêutica. São eles: (a) a oscilação pendular [da atenção] em uma psicologia [focada] em uma pessoa, para uma psicologia [focada] em duas pessoas; (b) O papel crescente da investigação na compreensão do desenvolvimento [socio-emocional; advindo do campo das teorias do desenvolvimento]; (c) a compreensão da intersubjetividade na troca terapêutica; d) A importância da comunicação implícita, distinta da comunicação explícita baseada na língua [na comunicação falada]; e) A contribuição do pensamento sistêmico dinâmico; e (f) o papel da intenção como regulador primário do intercâmbio interativo. Além disso, temos todas as razões para supor que esse modelo será consistente [de acordo] com o que está surgindo em campos tais como a neurociência atual e os estudos de imagem cerebral, dentre outros. (BOSTON, 2010bBOSTON, G. [THE BOSTON CHANGE PROCESS STUDY GROUP] Introduction. Placing the Work in context: Origins of the Boston Change Process Study Group. In: BOSTON, G. [THE BOSTON CHANGE PROCESS STUDY GROUP]Change in Psyhcotherapy: a unifying paradigm. New York: W. W. Norton & Company, 2010b., p. xiii)1 1 A tradução, bem como os acréscimos entre colchetes, são de nossa responsabilidade. .

Neste contexto de problemas, estudo e pesquisa, o Grupo de Boston destacou alguns temas e teorias que lhes serviram de referência para seu pensamento e desenvolvimento: as psicoterapias pensadas em termos da relação de duas pessoas ou em termos de três pessoas (quando o terceiro já pode ser concebido afetiva e cognitivamente pelo paciente) que, por sua vez, remete ao tema já posto por Rickman (1957RICKMAN, J. Number and the human science. The International Psycho-Analytical Library, n. 52, p. 218-223, 1957.) quando analisa estruturalmente (na psicanálise) a dinâmica relacional em termos de duas ou três pessoas, tendo destacado, em suas análises, a importância do “aqui e agora” que acontece na sala de consulta psicoterapêutica; a consideração e adoção, como uma de suas referências, da teoria do apego, inicialmente proposta por John Bowlby e Mary Ainsworth, mas desenvolvida por diversos pediatras e pesquisadores do desenvolvimento (tais como Sander, Gerald Stechler, Daniel Stern, Lyons-Ruth, Beatrice Beebe, T. Berry Brazelton, Robert Emde, Tronick); a teoria dos sistemas dinâmicos (DST) (de Esther Thelen e Linda Smith); as trocas e interações intersubjetivas (Colwyn, Trevarthen, pensadores da Escola Relacional [Robert Stolorow, Beatrice Beebe e Frank Lachmann, Steven Knoblauch]); o reconhecimento e a importância dados às comunicações que ocorrem por processos não-verbais, também denomináveis comunicações implícitas, nos relacionamentos intersubjetivos; e, por último, mas não em último, a consideração da intencionalidade dos comportamentos e sentimentos do homem, na sua individualidade ou nas suas relações.

Para eles, cada um destes temas e teorias é tomado como uma linha que, tecidos adequadamente, podem fornecer um novo modelo teórico e clínico para pensar e agir, tanto no que se refere ao desenvolvimento quanto no que se refere aos processos psicoterápicos:

Em resumo, o trabalho do Grupo de Boston tem sido um esforço para levar esses fios, encarná-los ainda mais, e tricotá-los em um modelo coerente que destaca a riqueza da troca de terapêutica. Temos todos os motivos para considerar que esse modelo será consistente com o que está surgindo na neurociência atual, com os estudos de imagem cerebral, com a ciência cognitiva e os campos relacionados a estas pesquisas. (BOSTON, 2010bBOSTON, G. [THE BOSTON CHANGE PROCESS STUDY GROUP] Introduction. Placing the Work in context: Origins of the Boston Change Process Study Group. In: BOSTON, G. [THE BOSTON CHANGE PROCESS STUDY GROUP]Change in Psyhcotherapy: a unifying paradigm. New York: W. W. Norton & Company, 2010b., p. xvi).

Trata-se, pois, para eles, de considerar que suas propostas dão origem a um paradigma unificar das teorias e das práticas.

Os temas e problemas de base estudados pelo Grupo de Boston

Alguns pontos de partida, problemas e fenômenos estão na base do pensamento deste grupo. Em primeiro, isto diz respeito às limitações encontradas no uso da interpretação no processo de tratamento psicanalíticos, dado que a experiência clínica mostrava tanto sua insuficiência como uma série de tentativas dos analistas para dar conta deste problema, constatando que era necessário “algo mais do que interpretar”.

Outro fenômeno clínico considerado por eles, colocado como um problema a ser melhor entendido, teorizado, para uso nos processos psicoterápicos, diz respeito às comunicações e determinantes relacionais “implícitos”, ou seja, não expressos verbalmente por palavras. Este fenômeno pode receber um aporte importante advindo da análise da comunicação e interpelação mãe-bebê, especialmente com os estudos baseados em gravações de microfilmagens destas relações.

A clínica psicoterápica no atendimento aos bebês e suas mães apresentava problemas sérios para a teoria e o método de tratamento psicanalítico, dado que a aplicação de uma psicanálise padrão, tal como era aplicada no tratamento de adultos neuróticos (associação livre, interpretação dos conteúdos inconscientes no quadro do cenário edípico, ou, ainda, no quadro das posições esquizo-paranóide e depressiva, abstinência do analista), mostrava-se inadequada para tratar das mães de recém-nascidos... elas precisavam de outro tipo de suporte e holding. Tal como já ocorrera em outros momentos da história da psicanálise, os novos tipos de pacientes (crianças, adolescentes, psicóticos, borderlines, pacientes psicossomáticos) obrigaram a psicanálise a modificar-se tanto teórica como clinicamente e, agora, a clínica perinatal mãe-bebê lançava novos problemas técnicos e teóricos da psicanálise.

Além desses pontos, o Grupo de Boston retoma a noção de “encontro” como sendo um aspecto fundamental do processo que leva às transformações psicoterápicas. Eles se referem ao conceito de “momento de encontro” de Sander que, por sua vez, tem influência de Martin Buber. A noção de encontro está presente no quadro das psicoterapias existencialistas, tal como comenta Ellenberger:

Na terapêutica existencialista, o fenômeno do encontro tem um papel importante, e alguns vão, até mesmo, considerá-lo como o agente mais eficaz, comparando seu papel ao da transferência em psicanálise. O paciente, para o qual falte a experiência da presença imediata, “existencial”, de um de seus semelhantes, tem essa experiência sob a forma do “encontro” no curso do processo psicoterapêutico. O terapeuta deve, então, ser capaz de produzir no seu paciente a experiência do encontro. (ELLENBERGER, 1961/1995ELLENBERGER, H. F. A clinical introduction to psychiatric phenomenology and existential analysis. In: MAY, R.; ANGEL, E.; ELLENBERGER, H. F. (Orgs.). Existence: a new dimension in psychiatry and psychology. New York: Basic Books, 1958., p. 414).

A psicoterapia existencialista, ao invés do uso da transferência psicanalítica, prefere empregar outra experiência interpessoal, o “encontro”. Em geral, o encontro não consiste tanto numa entrevista casual nem num primeiro contato entre os indivíduos, mas sim na experiência interior decisiva resultante de seu tratamento com um dos interlocutores (ou com ambos). Revela-se algo novo, abrem-se novos horizontes, revisa-se a concepção que se tem do mundo, e, em certas ocasiões, se reestrutura toda a personalidade. Tais encontros podem apresentar distintas e múltiplas facetas: podem ocorrer talvez com um filósofo que revela uma nova maneira de pensar, com um homem com grande experiência de vida, com o conhecimento prático da natureza humana, ou de uma personalidade independente ou de realizações heroicas. Um encontro pode levar a uma liberação repentina de certas ignorâncias ou ilusões, ampliar o horizonte espiritual e inspirar um novo sentido da vida. (ELLENBERGER, 1958ELLENBERGER, H. F. A clinical introduction to psychiatric phenomenology and existential analysis. In: MAY, R.; ANGEL, E.; ELLENBERGER, H. F. (Orgs.). Existence: a new dimension in psychiatry and psychology. New York: Basic Books, 1958., p. 119).

O que o Grupo de Boston percebe é que o relacionamento pessoal e verdadeiro (encontro intersubjetivo, encontro interpessoal, encontro entre o paciente e o analista) corresponde a um tipo de acontecimento afetivo necessário ao processo de mudança psicoterápica, não tanto pelos conteúdos revelados, mas pela experiência de um tipo especial de contato (comunicação e intimidade) entre o paciente e o analista.

O livro Change in Psychotherapy: a unifying paradigm - um tipo de manifesto de origem e convite para o desenvolvimento da prática clínica (envolvendo a psicanálise com outras perspectivas, tais como a teoria do apego, a teoria sistêmica, os avanços das neurociências etc.) - tem os seguintes capítulos:

  1. Mecanismos não interpretativos em terapia psicanalítica: O “Algo a Mais” do que a Interpretação;

  2. Conhecimento relacional implícito: um conceito central em mudança psicoterapêutica;

  3. “Eu sinto que você sente que eu sinto ...”: Processo de reconhecimento de Sander e movimentos relacionais no setting psicoterápico;

  4. Explicando o implícito: o nível local e o microprocesso de mudança na situação analítica;

  5. “O ‘Algo a Mais’ do que a Interpretação” revisitado: descaso e co-criatividade no encontro psicanalítico;

  6. O nível fundamental do significado psicodinâmico: processo implícito em relação ao conflito, defesa e inconsciente dinâmico;

  7. Formas de significado relacional: questões nas relações entre os domínios “Implícito” e “Reflexivos-Verbal”;

  8. Uma abordagem de processo relacional implícito para a ação terapêutica.

Este é o quadro de problemas, temas e propostas do BCPSG, que passamos a comentar criticamente.

Análise das propostas do Grupo de Boston

A análise crítica, detalhada, das propostas do Grupo de Boston é uma tarefa ampla ainda a ser feita e que exigiria um esforço teórico e epistemológico que excede, em muito, nossa proposta, a qual visa apenas dar o enquadre geral das soluções propostas por este grupo. Não obstante tal dificuldade, podemos retomar alguns aspectos do capítulo 7, onde eles apresentam, de forma sucinta, os principais aspectos fenomenológicos a partir dos quais fazem suas elaborações teóricas e práticas. Vamos retomar a maior parte destes pontos, dado que este “centro fenomenológico” pode também ser tomado como problema para cada um dos campos teóricos envolvidos (sem que seja necessário propor uma síntese ou uma unificação de paradigmas). Estes aspectos fenomenológicos incitariam cada sistema a, considerando-os, encontrar suas soluções regionais (FULGENCIO, 2020FULGENCIO, L. Incommensurability between paradigms, revolutions and common ground in the development of psychoanalysis. The International Journal of Psychoanalysis, v. 101, n. 01, p. 13-41, 2020.). No próximo item, finalizando este artigo, analisaremos os aspectos epistemológicos da proposta do Grupo de Boston.

O “centro fenomenológico” dos problemas enunciados pelo Grupo de Boston se refere: aos sentidos, significados e a intencionalidade dos comportamentos e pensamentos, sejam os aferidos e realizados por processos verbais seja por processos não-verbais, que, necessariamente, devem ser considerados; ao pensamento que ocorre por meio e uso de palavras e ao pensamento que ocorre de modo não-verbal; ao pensamento consciente e reflexivo, e ao pensamento inconsciente não necessariamente reflexivo; à reflexão como um processo que pode ou não ocorrer com o uso de processos verbais; ao lugar da experiência no processo psicoterápico, associado ou para além da interpretação, co-ação psicoterapêutica; ao conhecimento relacional implícito e ao explícito nos processos psicoterápicos.

É neste contexto que o Grupo de Boston proporá um novo paradigma, unificando saberes, para dar lugar operativo a todos estes problemas, colocando-os para funcionar clinicamente.

A retomada de suas análises e suas propostas de unificação estenderia nossa análise em demasia, nos afastando do objetivo de dar uma visão geral crítica do que eles propuseram. Optamos, então, por comentar apenas uma passagem, na qual eles retomam a questão da intencionalidade, considerando a questão do desdobramento da intenção, a saber:

O processo de desdobramento da intenção é a forma que permite que as intenções e os motivos surjam na consciência e ganhem significado. O papel fundamental para este processo torna possível que as intenções, independentemente de sua apresentação, fluam da mesma fonte e sejam compreensíveis. Consequentemente, alguma continuidade de significado de um nível para outro não é simplesmente facilitada, mas é garantida. Que observações e ideias existem para apoiar esta visão?

Precisamos aprofundar a definição de intenção dada acima. A intencionalidade se refere à sensação subjetiva de puxar ou ser puxado, ou empurrar ou ser empurrado em direção a um objetivo ou estado final - ou inferir outro sendo puxado ou empurrado. É coextensivo com a noção de Freud do desejo ou do desejo; com a noção dos etologistas de ativação motivacional e estados de meta; com a visão de valor das ciências cognitivas; e com a noção leiga e legal de um motivo. Todos eles fornecem o motor, a direção, os meios e as metas para o comportamento motivado, tornando-o coerente. Inclui também o “alcance” mental de uma imagem ou ideia para trazê-la para o palco mental (BRENTANO, 1874/1973).

A ideia básica de um processo de desdobramento de intenção não é nova. A maioria dos filósofos fenomenológicos concorda que mesmo a experiência pré-reflexiva ou vivida é estruturada em torno de intenções. Além disso, essa experiência (implícita) é feita de partes diferenciadas e tem uma arquitetura temporal (por exemplo, HUSSERL, 1962HUSSERL, E. Ideas pertaining to a pure phenomenology and to a phenomenological philosophy: First book. General introduction to pure phenomenology. New York: Collier, 1962.; 1989/1930). Em outras palavras, alguma estrutura de processo fundamental (não verbal), como uma intenção que se desdobra em tempo real, deve existir.

Observações recentes do desenvolvimento sugerem que, mesmo para bebês pré-verbais (até aproximadamente 18 meses), onde a experiência é, por padrão, implícita e não consciente, nem refletida - a principal tarefa ao observar o comportamento humano é compreender a intenção (“por trás” dos atos). A intenção torna os atos vistos coerentes e significativos.

(BOSTON, 2010bBOSTON, G. [THE BOSTON CHANGE PROCESS STUDY GROUP] Introduction. Placing the Work in context: Origins of the Boston Change Process Study Group. In: BOSTON, G. [THE BOSTON CHANGE PROCESS STUDY GROUP]Change in Psyhcotherapy: a unifying paradigm. New York: W. W. Norton & Company, 2010b., p. 167-168).

A sensação ou impressão de que há uma síntese sendo feita, com associações conceituais que guardam seus referentes empíricos de forma coerente, é significativa; ainda que o trabalho epistemológico que implicaria em verificar se estes autores citados (e os termos por ele utilizados, às vezes o mesmo termo como, por exemplo, intencionalidade) estão, de fato, referindo-se às mesmas realidades, aos mesmos fenômenos. Não é garantido que estejam. O uso do mesmo termo não garante que estejamos nos referindo ao mesmo referente ou realidade fenomênica, como fica evidente, por exemplo, quando usamos os termos inconsciente ou sexualidade, que têm sentido muito diferentes em sistemas semânticos conceituais diferentes (tais como, a psicanálise, o behaviorismo, a psicologia analítica etc.). Não obstante, o exemplo acima mostra como eles procedem na sua proposta de apresentar um paradigma unificado.

Agrupando e colocando a comunicação e o encontro humano no centro de suas preocupações clínicas, o Grupo de Boston apresenta uma possibilidade de compreensão e de interrelação do que ocorre realizado pelos processos verbais e os que ocorrem não-verbalmente, do que está implícito e o que é explícito nos relacionamentos psicoterápicos, sempre reconhecendo a presença determinante das intenções dos modos de ser e se comunicar do ser humano. Retomemos, sinteticamente, como eles avaliam estes fenômenos entrelaçados no processo analítico:

Na situação clínica, sempre haverá múltiplas intenções e significados em qualquer ato de comunicação. Vemos essas comunicações sem script como propriedades emergentes de um processo dinâmico composto de três componentes que criam uma gestalt:

  1. A intenção é experienciada implicitamente.

  2. Uma versão reflexivo-verbal dessa experiência implícita é baseada nos conceitos não-verbais mentais / corporais contidos no domínio implícito. A fundamentação é baseada na filogenia, ontogenia e cultura.

  3. Há uma disjunção inevitável entre o implícito e o reflexivo-verbal. Isso não é uma falta ou um problema, é apenas outra propriedade da gestalt emergente.

Todos os três vêm juntos durante um processo que chamamos de “processo de desdobramento da intenção”. Durante este processo, uma gestalt de todas as três, tomadas em conjunto, emerge e é capturada em uma compreensão intuitiva. É essa gestalt que fornece as múltiplas intenções e significados que podem mudar e mudar ao longo da contemplação contínua e repetida. (BOSTON, 2010bBOSTON, G. [THE BOSTON CHANGE PROCESS STUDY GROUP] Introduction. Placing the Work in context: Origins of the Boston Change Process Study Group. In: BOSTON, G. [THE BOSTON CHANGE PROCESS STUDY GROUP]Change in Psyhcotherapy: a unifying paradigm. New York: W. W. Norton & Company, 2010b., p. 185-186).

Não vamos, aqui, analisar estas propostas, mas tão somente trazê-las para que o leitor possa entender o seu contexto, os problemas que procura abordar e em que sentido uma proposta de um paradigma unificado foi feita.

Ressalvas epistemológicas da proposta do Grupo de Boston para construção de um paradigma unificado

Dado este contexto, gostaríamos de analisar o problema epistemológico que diz respeito à possibilidade ou impossibilidade de fazer sínteses entre sistemas semântico-teóricos diferentes.

Um aspecto que chama a atenção é a ausência de um capítulo sobre epistemologia e metodologia para a realização da unificação paradigmática, bem como a ausência de Thomas Kuhn nas referências bibliográficas, dado que o termo paradigma, na epistemologia das ciências, tem neste autor seu sentido e significado, já clássicos, como um instrumento teórico específico para pensar o desenvolvimento dos saberes, nas ciências e em outras áreas do conhecimento. O modo como procedem não é, no entanto, ingênuo, ou ainda, ignorante do fato de que seria impossível amalgamar todas as propostas semântico-teóricas para construção de um sistema que a todas as teorias amalgamassem, dado que eles não se propõem agrupar dialeticamente os sistemas teóricos, mas, sim, em outra direção, a considerar os aspectos fenomenológicos dos diversos sistemas (inconsciente, transferência, representação, apego, interação relacional etc.) para, a partir dos fenômenos, pensarem em um entendimento que possa compor estes aspectos fenomenológicos clínicos das psicoterapias e seus processos de transformação. A pergunta, não enunciada, que também fica sem resposta é: o Grupo de Boston está propondo uma nova perspectiva teórica da psicologia (ao lado da psicanálise, da teoria do apego, da teoria sistêmica e do comportamentalismo), ou está propondo entendimentos de que modelos que poderiam ser aplicados a cada uma destas perspectivas, desenvolvendo, cada uma delas, nas suas singularidades?

Considerando o problema da dificuldade de comunicação entre paradigmas diferentes, seja no que se refere à diversidade de sistemas teóricos na psicanálise seja no que se refere à relação entre a psicanálise e outras psicologias, a psicanálise e a filosofia - como analisam Bohleber et al. (2013BOHLEBER, W. et al. Towards a better use of psychoanalytic concepts: a model illustrated using the concept of enactment. The International Journal of Psychoanalysis, v. 94, n. 3, p. 501-530, 2013.) e Fulgencio (2020FULGENCIO, L. Incommensurability between paradigms, revolutions and common ground in the development of psychoanalysis. The International Journal of Psychoanalysis, v. 101, n. 01, p. 13-41, 2020.) -, temos o problema da incomensurabilidade entre sistemas diferentes, dado que acabam por referir-se a realidades fenomenológicas diferentes, sem possibilidade de tradução com sinonímia, ou seja, afirmando a impossibilidade de termos um paradigma unificado. Neste sentido, a proposta do Grupo de Boston acaba por também se deparar com este impasse: trata-se de um novo sistema ou trata-se de contribuições aplicáveis a todos os sistemas?

A proposta de construir um paradigma unificado apresenta obstáculos, pois cada sistema semântico teórico (da psicanálise nas diversas vertentes, das diversas psicologias, da teoria do apego, da filosofia, bem como de outras perspectivas que têm o homem como objeto) tem uma ontologia, por vezes excludentes umas das outras, o que torna impossível unificar ontologias. Uma ontologia estabelece sentidos gerais para a existência do homem, seja como impulsos básicos a serem procurados seja como um telos para a existência, para o desenvolvimento. Sendo assim, o sentido existencial (ontológico) que impulsiona essencialmente a natureza humana não é o mesmo para psicanalistas (freudianos, kleinianos, mahlerianos, lacanianos, winnicottianos), para os que abraçam a teoria do apego, os psicólogos sistêmicos, os comportamentalistas, os neurólogos (no quadro das neurociências) etc.; logo, o sentido e o significado geral, a própria intencionalidade dos comportamentos, sentimentos e pensamentos do ser humano, seja em relação a si mesmo seja em relação ao outro, são diferentemente considerados em cada um dos sistemas.

A unificação de paradigmas, no que se refere à sua ontologia, só seria possível se um dos paradigmas ou ontologias fosse dominante, fazendo todas os sistemas a adotarem, o que implicaria em um trabalho de reformulação e/ou redescrição daqueles que migram para uma nova ontologia, seja de forma total seja de forma parcial. Não nos parece que isto seja possível.

Um outro problema diz respeito à compreensão do que é e como se processa o desenvolvimento da unidade do sujeito psicológico, dado que, fenomenologicamente falando, todos parecem estar de acordo que a conquista do Eu; a possibilidade de apreender “Eu e outro” como dois, é uma conquista do processo de desenvolvimento. Neste sentido, a consideração das relações como sendo intersubjetivas (entre dois sujeitos), intrapsíquicas (no interior de um sujeito), interpessoais (entre pessoas que se apreendem a si e ao outro como pessoas totais, seja referindo-se a relações vividas e apreendidas como sendo a dois [relação a dois corpos] seja a três [configurando, por exemplo, o cenário edípico]), ou, ainda, totalmente subjetivas (sem a apreensão do outro) ou transicionais (quando o eu e o outro são vividos e apreendidos, paradoxalmente, como tendo existência, necessariamente, como sendo juntos, constituindo um mesma unidade conjugdada, e separados um do outro, como entidades distintas uma da outra). Enfim, há no campo de problemas e fenômenos colocados pelo Grupo de Boston como referindo-se à intersubjetividade, para o qual seria necessário considerar essas distinções que, por sua vez, também estão associadas à diversidade semântico-teórica da psicanálise, das psicologias etc.

Por outro lado, manter as descobertas e conhecimentos - feitos pela psicanálise nas suas diversas vertentes, pela psicologia sistêmica, pelos comportamentalistas, pelos desenvolvimentistas, pelos adeptos da teoria do apego, pelas neurociências, pela filosofia etc., bem como pelo aprofundado trabalho de análise e descrição e teorização feita pelo Grupo de Boston - parece também ser uma alternativa inviável, um tipo de cisão ou esquizofrenia da qual o saber sofreria. Ante a este impasse, talvez seja possível um caminho de comunhão paradoxal da incomensurabildiade dos conhecimentos, ou seja, enquanto não temos um paradigma hegemônico (mais poderoso que todos os outros para enunciar e resolver os problemas empíricos e teóricos do campo das psicoterapias, que seria então, adotado pela comunidade de psicoterapeutas), cada sistema (ou paradigma) se desenvolveria delimitado por seu enquadre teórico-epistemológico-epistemológico-metodológico, mas tomaria dos outros sistemas o conjunto de descobertas empíricas (fenomenológicas) que eles teriam feito para, então, integrá-las nos seus sistemas singulares - cf. uma análise desta alternativa em Fulgencio (2020FULGENCIO, L. Incommensurability between paradigms, revolutions and common ground in the development of psychoanalysis. The International Journal of Psychoanalysis, v. 101, n. 01, p. 13-41, 2020.). Trata-se de aprofundar um conselho dado por Bion a André Green:

No início dos anos 1980, eu me lembro de ter lamentado com Bion sobre a situação babeliana da psicanálise. Na sua sabedoria, ele me respondeu que antes de chegar a uma linguagem comum e única na psicanálise, dever-se-ia chegar aos extremos de cada idioma singular; teoricamente falando, isso é uma decorrência natural. Hoje a psicanálise parece com uma linguagem falada em diversos idiomas. Mas, na maior parte do tempo, as pessoas pretendem se compreender ou, ao menos, dar a impressão de que se compreendem com a finalidade de salvar a própria cara, sobretudo nos congressos regionais e internacionais. Na realidade, não há uma verdadeira discussão. (GREEN, 2005GREEN, A. Winnicott en transition, entre Freud et Melanie Klein. In: GREEN, A. Jouer avec Winnicott. Paris: PUF, 2005., p. 44).

Esta proposta de comunhão paradoxal da incomensurabildiade dos conhecimentos precisa ser realizada ponto a ponto, fenômeno a fenômeno, problema a problema, levando, então, um determinado sistema a incorporar ou considerar um determinado aspecto fenomenológico (que ainda não havia sido considerado) no seu quadro teórico e prático. É neste sentido que caberia tomar, por exemplo, o enunciado e as análises feitas pelo Grupo de Boston sobre “Algo a mais do que a interpretação” e verificar que consequências elas trariam para um determinado sistema (a psicanálise de Freud, Klein, Bion, Winnicott ou Lacan), exigindo trabalhos específicos de análise crítico-histórica-comparativa em cada perspectiva, em um diálogo com as descobertas e observações fenomenológicas propostas pelo Grupo de Boston.

Deixaremos o problema da unificação dos paradigmas enunciado nesses termos, sem, no entanto, aprofundar nossa análise sobre o desenvolvimento das propostas do Grupo de Boston, ou, ainda, a crítica sobre suas possibilidades, seja como novo sistema da psicologia para as psicoterapias seja como instrumentos a serem utilizados por todos os sistemas (ainda que eles estejam propondo um paradigma unificado, o que nos remeteria às dificuldades de sínteses ante a Babel Psicanalítica e a Babel dos Psicólogos).

Cabe ressaltar e insistir no fato de que estas dificuldades epistemológicas não desfazem em nada o valor das propostas do Grupo de Boston, dado que, com elas, temos não só uma melhor enunciação dos problemas, como uma objetificação fenomenológica de uma série de fatos e dinâmicas relacionais que, necessariamente, devem fazer parte dos processos psicoterápicos.

A nosso ver, talvez, a análise de temas específicos - tais como a transferência e “para além dela”, que nos parece ser não só o ponto de partida, mas um problema fundamental a partir do qual o Grupo de Boston fez suas elaborações - pode aprofundar estas discussões, seja em termos práticos seja em termos do diálogo e articulação da compreensão deste problema, colocando em diálogo aquilo que o Grupo de Boston analisou e propôs sobre estes temas, e o que outros diversos autores e sistemas teóricos propuseram. O que fica dado como um horizonte e um próximo passo para este tipo de análise e pesquisa à qual estamos nos dedicando.

REFERÊNCIAS

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    A tradução, bem como os acréscimos entre colchetes, são de nossa responsabilidade.
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    Este artigo deriva de pesquisa de pós-doutorado de Sylvia Labrunetti (de 2019 a 2022) com supervisão de Leopoldo Fulgencio, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2022
  • Aceito
    27 Fev 2023
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