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“O ANIMISTA É SEMPRE O OUTRO”: O ENCANTAMENTO DOS OBJETOS E A EXPERIÊNCIA ANALÍTICA

RESUMO:

O objetivo do artigo é revisitar a noção de animismo em psicanálise a partir das provocações do perspectivismo ameríndio. Trata-se de abrir espaço para conceber formas de alteridade não apenas ancoradas no totemismo e na divisão moderna entre natureza e cultura. As considerações de Winnicott sobre o self e os objetos servirão de ponto de apoio para reverberar na teoria e na clínica psicanalíticas as torções em nossas próprias bases sustentadas no animismo e no totemismo. Espera-se interpolar a ancoragem psicanalítica no pensamento moderno colonialista e, pelo encantamento dos objetos, entrever algo que escapa ao nosso próprio espelho - afinal, o animista nem sempre é o outro.

Palavras-chave:
animismo; totemismo; psicanálise; antropologia; perspectivismo

ABSTRACT:

This article aimed to revisit the concept of animism in psychoanalysis through the provocations of Amerindian perspectivism. This involves creating space to conceive forms of alterity not solely anchored in totemism and the modern division between nature and culture. Winnicott’s considerations on the self and objects serve as a fulcrum to resonate within psychoanalytic theory and practice the twists in our own foundations rooted in animism and totemism. The intention is to interpose the psychoanalytic anchoring in modern colonialist thought and, through the enchantment of objects, glimpse something that eludes our own reflection. After all, the animist is not always the other.

Keywords:
animism; totemism; psychoanalysis; anthropology; perspectivism

Não nos parece equivocado afirmar que “o mercado ficou em polvorosa” ou mesmo que a “inteligência artificial forneceu determinada solução para um problema”. Em ambas as assertivas, aqueles dotados de intencionalidade1 1 Faz-se importante destacar que a noção de intencionalidade utilizada ao longo do artigo remete à tradição fenomenológica, mais especificamente às considerações de Merleau-Ponty que, por sua vez, marcam linhas de continuidade e diferença com a fenomenologia de Husserl. O projeto filosófico iniciado por Husserl se inscreve como alternativa às filosofias centradas na atividade da consciência entendida como potência ou substância pensante distanciada do mundo. As concepções do chamado “segundo Husserl”, consolidadas em torno da noção de Lebenswelt, abrem espaço para uma filosofia da experiência vivida, do contato ante predicativo ou pré-reflexivo com o mundo. A concepção de uma intencionalidade da consciência vai na contramão da consciência em estado puro e se articula ao próprio ato de conhecimento. Merleau-Ponty, por sua vez, sobretudo em seus últimos escritos, lançou mão de um diálogo franco com a psicanálise, deslocando uma filosofia originada na tradição das filosofias da consciência para uma filosofia da intercorporeidade e do inconsciente. Para um melhor aprofundamento na definição de intencionalidade e no diálogo entre a psicanálise e Merleau-Ponty, ver: Coelho Jr. (1991). não coincidem com agentes humanos - são, de uma maneira geral, coisas. Ora, que estranha possibilidade: em um mundo regido pela razão iluminada, conceder intencionalidade a objetos supostamente inanimados. Enquanto atributo exclusivo do humano, a intencionalidade pertence ao sujeito universal do conhecimento considerado um observador neutro do mundo que, por sua vez, na condição de objeto, deve ser conhecido. A consciência é animada, mas as coisas são inertes nesta equação - cada um no seu lugar: sujeito e objeto. Dotar as coisas de intencionalidade extrapola o escopo da ciência. As perspectivas que sustentam esta atitude acabam por ser relegadas à condição de cosmologias primitivas, mágicas ou exóticas. Sob a ótica da epistemologia objetivista ou naturalista, a atitude intencional do mundo indica uma solução equivocada ou simplista que ignora processos e leis científicas elementares - a palavra animismo é muitas vezes sinônimo de primitivismo. Ainda que o mercado esteja em polvorosa, o animista é sempre o outro.

Neste contexto, a suposta universalidade do sujeito do conhecimento moderno se ancora na deslegitimação de outras cosmologias. Sua consolidação ocorreu associada à secularização burguesa do pensamento europeu e à experiência do modo de produção capitalista, eurocentrado, que sustentou o conhecimento moderno imposto ao sul global. A epistemologia moderna, por conseguinte, está intimamente articulada ao colonialismo, tornando-se mundialmente hegemônica em conjunção com o domínio colonial. Sua pretensa neutralidade, ancorada em uma separação entre sujeito e objeto do conhecimento e outros pares de opostos, localiza-se na esteira da construção de um discurso hegemônico fortemente racista que consagrou a Europa como epicentro de enunciação a partir do qual foram esboçados padrões de civilização e de produção de conhecimento. Trata-se de uma divisão entre razão moderna e razões outras, homem moderno e existências outras - existências de corpos e de lugares subalternizados pela colonialidade (FANON, 1952/2008FANON, F. Peles negras, máscaras brancas (1952). Salvador: EDUFBA, 2018.). A negação da alteridade epistêmica é, portanto, um dos aspectos importantes do colonialismo que se perpetua até os dias de hoje (CASTRO-GÓMEZ, 2005CASTRO-GÓMEZ, S. La poscolonialidad explicada a los niños. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2005.).

A problemática da alteridade é central nesse contexto: para Viveiros de Castro, se os europeus se interessavam pelos povos indígenas porque viram neles objetos a serem explorados, os tupis, por sua vez, se aproximaram destes “em sua alteridade plena” (VIVEIROS DE CASTRO, 1992VIVEIROS DE CASTRO, E. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. Revista de Antropologia, [S. l.], v. 35, p. 21-74, 1992., p. 26). Dito de outra forma, a presença dos europeus pode ter sido experimentada como uma possibilidade de autotransfiguração, isto é, de alargamento das concepções de si mesmo e do mundo. Uma conhecida parábola de Lévi-Strauss (1952/1993LÉVI-STRAUSS, C. Raça e história (1952). In: LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. p. 328-366.; 1955/2020LÉVI-STRAUSS, C. Tristes Trópicos (1955). Trad. Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Rio de Janeiro, 2020.) ajuda a delinear diferenças entre estas perspectivas no que concerne à alteridade. Segundo o autor (LÉVI-STRAUSS, 1952/1993LÉVI-STRAUSS, C. Raça e história (1952). In: LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. p. 328-366.), nas Antilhas, enquanto os espanhóis investigavam a ausência ou presença de alma nos corpos indígenas através da conversão, estes últimos tratavam de submergir os brancos para verificar se seus corpos apodreciam tal como os corpos de seus semelhantes. Enquanto, para os europeus, as possibilidades de semelhança e diferença eram atributos da alma, para os indígenas, a problemática residia no corpo. Os europeus parecem não ter colocado em questão o corpo, afinal, os animais também o têm. No que concerne aos povos originários, a alma dos europeus não foi o ponto de dúvida - os animais, alguns artefatos e espectros dos mortos também são animados (VIVEIROS DE CASTRO, 2015aVIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas Canibais - elementos para uma antropologia pós-estrutural (2015a). São Paulo: Cosac & Naify, 2015.). Conforme indica Viveiros de Castro, “a despeito de uma igual ignorância a respeito do outro, o outro do Outro não era exatamente o mesmo que o outro do Mesmo” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015aVIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas Canibais - elementos para uma antropologia pós-estrutural (2015a). São Paulo: Cosac & Naify, 2015. p.36).

O termo “alma” provém do latim anima - sopro, princípio vital. Ao colonizador, único animado pelo sopro divino, nada mais “natural” do que explorar o mundo ao redor que, objetificado, ganha vida pela ação dos “homens da mercadoria”, para usar uma expressão de Kopenawa (KOPENAWA; ALBERT, 2015KOPENAWA, A.; BRUCE, D. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.). Em contrapartida, a possibilidade de atribuir um princípio vital a outros seres foi circunscrita, por parte da antropologia evolucionista, como uma forma “primitiva” de pensamento chamada de animismo por Edward Tylor (STUTZMAN, 2023STUTZMAN, R. O Animismo hoje. Revista Cult. Ed. 273. São Paulo. Disponível em:Disponível em:https://revistacult.uol.com.br/home/o-animismo-hoje/ . Acesso em: 22 ago. 2023.
https://revistacult.uol.com.br/home/o-an...
). O descentramento do sopro vital da figura do humano colocava-se na contramão do evolucionismo que marcava a antropologia da época, relegando o animismo ao primitivismo, isto é, a uma forma de crença inferior ao pensamento científico, moderno e europeu.

Ora, a psicanálise faz parte de um arcabouço epistemológico que guarda a marca da modernidade inseparável da colonialidade (PAVÓN-CUÉLLAR, 2021PAVÓN-CUÉLLAR, D. Rumo a uma descolonização da psicologia latino-americana: condição pós-colonial, virada decolonial e luta anticolonial. Cad. PROLAM/USP, vol. 20, n. 39, p. 95-127, 2021.). Por outro lado, também revela e sustenta o limite inerente à racionalidade europeia moderna diante da qual a descoberta freudiana aparece como fenda - essa tensão não será diferente no que concerne ao animismo. As considerações freudianas sobre o animismo e o totemismo deixam entrever paradoxalmente linhas de continuidade e de ruptura com a tradição moderna. Com o subtítulo “Alguns pontos de concordância entre a vida mental dos selvagens e dos neuróticos”, Totem e tabu (FREUD, 1913/2012FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: FREUD, S. Totem e Tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (Obras completas, 11).), texto freudiano cuja presença da antropologia evolucionista2 2 Domiciano e Dunker (2021) fizeram uma pesquisa no índex alemão dos nomes citados por Freud, considerando a totalidade da obra, e revelam a profusão de citações sobretudo de autores da chamada antropologia evolucionista. Foram encontradas duas citações a Lewis Morgan (1818-1881), seis a Edward Tylor (1832-1917), 13 a William Robertson Smith (1846-1894) e 31 a James Frazer (1854-1941), sendo 27 apenas em Totem e tabu. é notável, diz respeito a um exemplo importante de sustentação do pensamento moderno colonialista. Por outro lado, também engendra possibilidades de deslocamentos deste, ao deixar aberto um caminho na contramão da lógica desenvolvimentista teleológica que visa a superação do primitivismo. Isso porque, ao indicar que a “comparação entre a psicologia dos povos primitivos e a psicologia dos neuróticos está destinada a encontrar numerosos pontos de concordância” (FREUD, 1913/2012FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: FREUD, S. Totem e Tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (Obras completas, 11)., p. 20), Freud sustenta que o animismo, presente nos “povos primitivos”, este outro estranho ao sujeito moderno europeu, não é superado, mas permanece produzindo efeitos, tal como se observa nos sintomas neuróticos. Dotar as coisas de alma não remeteria apenas a um outro estranho, mas a todos nós. A estranheza é mais familiar do que o pensamento moderno europeu pode conceber.

Os compromissos assumidos por Freud com os teóricos evolucionistas, por sua vez, revelam o ponto nodal de suas considerações ancoradas no sujeito moderno e neurótico. Nesse contexto, o animismo, considerado como um sistema de pensamento, assim como a religião e a ciência, seria o mais primitivo destes. A magia, enquanto técnica animista, remeteria, nas suas palavras, a um “equívoco que a leva a substituir as leis da natureza por leis psicológicas” (FREUD, 1913/2012FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: FREUD, S. Totem e Tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (Obras completas, 11)., p. 106). Este mecanismo é análogo à satisfação alucinatória de desejos e à onipotência de pensamento; “para resumir, pode-se dizer, então, que o princípio que dirige a magia, a técnica da modalidade animista de pensamento, é o princípio da ‘onipotência de pensamento’” (FREUD, 1913/2012FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: FREUD, S. Totem e Tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (Obras completas, 11)., p. 108). Na lógica animista, a onipotência está a serviço de si mesmo: a atribuição de alma às coisas é análoga à tentativa de controlá-las. Ainda que o texto sobre o narcisismo tenha sido publicado apenas no ano seguinte, em Totem e tabu

[...] a fase animista corresponderia à narcisista, tanto cronologicamente quanto em seu conteúdo; a fase religiosa corresponderia à fase de escolha de objeto, cuja característica é a ligação da criança com os pais; enquanto que a fase científica encontraria uma contrapartida exata na fase em que o indivíduo alcança a maturidade, renuncia ao princípio do prazer, ajusta-se à realidade e volta-se para o mundo externo em busca do objeto de seus desejos. (FREUD,1913/2012FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: FREUD, S. Totem e Tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (Obras completas, 11)., p. 113).

Para o homem da ciência, a intencionalidade não pode remeter a um objeto externo - a atribuição de encantamento às coisas é considerada uma atitude primitiva, um centramento em si mesmo projetado no mundo. Nesse contexto, a possibilidade de relação com os objetos depende de uma operação análoga ao pensamento científico que os considera externalidade imóvel, separada do sujeito do conhecimento. O animista estaria preso no seu próprio espelho - a “alma” das coisas refletiria uma tentativa onipotente de dominá-las. Nas palavras de Freud: “Na época animista, o reflexo do mundo interno está fadado a obscurecer a outra representação do mundo, aquela que nós parecemos perceber” (FREUD,1913/2012FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: FREUD, S. Totem e Tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (Obras completas, 11)., p. 108).

Em Totem e tabu (FREUD, 1913/2012FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: FREUD, S. Totem e Tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (Obras completas, 11).), o animismo, portanto, é considerado análogo ao pensamento primitivo, sendo sobreposto, mas não eliminado, pela organização totêmica, que funda a ordem do símbolo e instaura um corte entre natureza e cultura. É o assassinato do pai da horda primeva e o estabelecimento de uma fraternidade totêmica que circunscreve um limite à onipotência - a operação de identificação com o pai assassinado, figurada pela refeição totêmica, marca a sobreposição do primitivismo. Filogeneticamente, o animismo dá lugar ao totemismo; na ontogênese, a onipotência é barrada pela lei paterna, mas os sintomas neuróticos deixam entrever sua insistência. A antropologia evolucionista serve, portanto, de ponto de ancoragem para traçar os pontos de concordância, apontados no subtítulo, entre “a vida mental dos selvagens e dos neuróticos”.

A antropologia desenvolvida por autores citados por Freud, como Tylor e Frazer, foi, por sua vez, questionada por diferentes figuras deste campo ao longo do século XX, sobretudo com o advento da etnografia, que teve Malinowski como um de seus principais expoentes. Um dos aspectos fortemente questionados diz respeito ao ponto de partida etnocêntrico que, ao tomar como referencial o homem moderno europeu, acaba por circunscrever outras formas de pensamento como primitivas - ora, aqueles presos em seu próprio espelho não eram bem os animistas... No entanto, apesar destas críticas, o diálogo entre a psicanálise e a antropologia continuou central para os dois campos. É assim que, anos mais tarde, Lévi-Strauss fornece um encaminhamento para o impasse levantado anteriormente por Malinowski, reconfigurando a própria noção de totemismo ao deslocá-la da antropologia evolucionista. O totemismo, na antropologia estrutural de Lévi-Strauss, deixou de ser uma instituição, passando a ser um método de classificação e um sistema de significação. Esta, por sua vez, foi uma das principais bases teóricas a partir das quais Lacan operou um retorno à obra freudiana, circunscrevendo a lei paterna como ordem simbólica articulada à linguagem.

Enquanto a ênfase de Lévi-Strauss se deu sobretudo em uma revisão do totemismo, o conceito de animismo permaneceu fora do centro das atenções, tanto na antropologia quanto na psicanálise. Uma reabilitação importante deste aparece com Philippe Descola (1986DESCOLA, P. La nature domestique: Symbolisme et praxis dans l’écologie des Achuar. Paris: Maison des Sciences de l’Homme/Fondation Singer-Polignac, 1986.) em sua monografia sobre os Achuar da Amazônia equatoriana. Descola (1986DESCOLA, P. La nature domestique: Symbolisme et praxis dans l’écologie des Achuar. Paris: Maison des Sciences de l’Homme/Fondation Singer-Polignac, 1986.) sustenta que o animismo, e não apenas o totemismo, revela uma forma de relação social, forma esta que estende o campo das relações humanas a uma esfera muito mais ampla do que unicamente a dos seres humanos - o que implica em questionamentos da divisão moderna entre natureza e cultura, atualizada nas concepções de animismo e totemismo (DESCOLA, 2016DESCOLA, P. La nature domestique: Symbolisme et praxis dans l’écologie des Achuar. Paris: Maison des Sciences de l’Homme/Fondation Singer-Polignac, 1986.).

É, no entanto, a partir da discussão alavancada por Viveiros de Castro sobre o perspectivismo ameríndio que o animismo é interpelado no que concerne às descontinuidades entre as séries natural e cultural, destacando seu ancoramento na epistemologia moderna e colonialista. Partindo da divisão entre corpo sensível e alma, o animismo, interpretado como projeção da socialidade humana sobre o mundo não-humano, permanece cativo de uma leitura “totêmica” ou classificatória. Em outras palavras, a ideia de que humanos e animais estão ligados por uma sociabilidade comum depende contraditoriamente de uma descontinuidade ontológica primeira que considera a excepcionalidade humana como ponto de partida - humano, nesse sentido, é sinônimo de homem branco, moderno e europeu, capaz de deslocar-se do primitivismo. Ora, animismo e totemismo são, portanto, duas faces da mesma moeda - moeda feita do ouro manchado de sangue do colonialismo.

A crítica do próprio conceito de animismo, sobretudo quando vinculado ao narcisismo, como propõe Viveiros de Castro, consiste, então, em um caminho aberto para a decolonização do pensamento, posto que coloca em xeque o excepcionalismo humano e a pretensão de uma ontologia exclusiva do homem moderno, branco e europeu. Para o autor, nem animismo, que afirma uma semelhança substancial ou analógica entre animais e humanos, nem totemismo, que sustenta uma semelhança formal ou homológica entre diferenças interespecíficas. O perspectivismo ameríndio evoca tanto a economia da corporeidade no seio das ontologias indígenas quanto a possibilidade de circunscrever algumas das implicações do estatuto não marcado da dimensão virtual (a alma) dos existentes como uma poderosa estrutura intelectual indígena capaz de contra descrever sua própria imagem projetada pela antropologia ocidental e, por essa via, devolver-nos, “uma imagem de nós mesmos na qual nós não nos reconhecemos” (VIVEIROS DE CASTRO, 1996VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas Canibais - elementos para uma antropologia pós-estrutural (2015a). São Paulo: Cosac & Naify, 2015., p. 41). O perspectivismo é uma espécie de corolário etno-epistemológico do animismo e aponta para um anti-narcisismo, ao menos enquanto pensado como onipotência, posto que a perspectiva do outro nos devolve outra forma de nós mesmos - o espelho nunca é idêntico a si.

Ora, a partir dessas considerações, ao ignorarmos as questões colocadas pela antropologia contemporânea para a psicanálise, não estaríamos endossando o pensamento moderno e colonialista? Como podemos repensar o animismo na obra freudiana e sua relação com o narcisismo a partir das provocações engendradas pelo perspectivismo ameríndio? Nós, psicanalistas, desde Freud, temos a indicação de que a imagem no espelho sempre guardará a estranheza de um outro. E se olharmos nossa metapsicologia pela perspectiva de outros campos de saber, outras cosmologias, ou mesmo, outros seres?

O objetivo desse artigo consiste em revisitar a noção de animismo em psicanálise a partir das provocações engendradas pelo perspectivismo ameríndio. Trata-se de abrir espaço para conceber outras formas de alteridade que incluam não apenas uma dimensão calcada em um regime simbólico, ancorado no totemismo, mas articulada à intencionalidade das próprias coisas. O caminho ainda é extenso, as veredas perigosas e habitadas por seres desconhecidos; como ponto de partida dessa travessia, percorreremos com mais detalhes algumas considerações do perspectivismo ameríndio que permitem um deslocamento da articulação entre animismo e primitivismo. Em seguida, as considerações de Winnicott sobre o self e os objetos servirão de ponto de apoio para fazermos reverberar, na teoria e na clínica psicanalíticas, as torções engendradas pelo perspectivismo ameríndio em nossas próprias bases sustentadas no animismo e no totemismo. Esperamos que, através deste caminho, nós, psicanalistas, possamos ter acesso à contra descrição de nossa própria metapsicologia projetada em conjunção com o pensamento moderno colonialista. E também, pelo encantamento dos objetos, entrevermos algo que escapa de nosso próprio espelho - afinal, o animista nem sempre é o outro.

Perspectivismo: corolário étnico-epistemológico do animismo

Se o animismo é um conceito provindo da antropologia evolucionista para designar uma forma de pensamento diferente daquela engendrada pela modernidade europeia, trata-se, conforme vimos, de um produto da própria cosmologia moderna que tem como referencial o homem branco e europeu. É justamente nesse sentido que o animista é sempre o outro, ou seja, o primitivo, aquele que atribui alma às coisas e se difere do homem da ciência. É interessante destacar que, no prefácio do livro de Kopenawa e Albert, A queda do céu, Viveiros de Castro afirma que o mundo yanomami, assim como outras formas de pensamento, sobretudo dos povos amazônicos, é um “um plenum anímico” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015VIVEIROS DE CASTRO, E. Who’s afraid of the ontological wolf: some comments on an ongoing anthropological debate (2015b). Cambridge Anthropology, v. 33, n. 1, p. 2-17, 2015.b, p. 14) capaz de revelar-se uma espécie de “contra antropologia arguta e sarcástica dos Brancos” (ibidem, p. 27). O perspectivismo, como corolário étnico-epistemológico do animismo, acaba por engendrar uma “torção assimétrica” (ibidem, p. 15): enquanto o animismo pressupõe uma atribuição de uma característica supostamente exclusiva da espécie humana às coisas, o perspectivismo parte do pressuposto de que a intencionalidade é aquilo que é comum a todos os seres. Nesse sentido, os deslocamentos trazidos pelo perspectivismo ameríndio em relação ao conceito de animismo sustentam-se sobretudo na questão fundamental da diferença entre aquilo que é “próprio do homem” e aquilo que é, ao contrário, uma propriedade existente em geral - problemática que remete à divisão moderna entre natureza e cultura.

Distanciando-se do animismo concebido como uma forma de pensamento primitivo, o perspectivismo, enquanto um dispositivo intelectual transindividual, faz do pensamento uma atividade e um efeito da relação entre o pensador e o pensado. Partindo de etnografias com os povos amazônicos, Viveiros de Castro (2013VIVEIROS DE CASTRO, E. Who’s afraid of the ontological wolf: some comments on an ongoing anthropological debate (2015b). Cambridge Anthropology, v. 33, n. 1, p. 2-17, 2015.) alega que as teorias perspectivistas provocam uma espécie de inversão da antropologia de herança moderna, uma antropologia às avessas, o que escapa de se reduzir a mais um caso de sistematização artificiosa de um antropólogo ou a um retrato caricato de uma das múltiplas culturas possíveis. Não se trata, todavia, de um rompimento absoluto com a antropologia que a antecede. As considerações trazidas pelo perspectivismo ameríndio, apesar de marcarem uma diferença, guardam uma linha de continuidade com a antropologia estrutural de Lévi-Strauss. Para Viveiros de Castro (2013VIVEIROS DE CASTRO, E. Who’s afraid of the ontological wolf: some comments on an ongoing anthropological debate (2015b). Cambridge Anthropology, v. 33, n. 1, p. 2-17, 2015.), é possível encontrar antípodas do estruturalismo na própria obra straussiana, e essa questão reside justamente na discussão em torno do totemismo. O contraste paradigmático entre “totemismo” e “sacrifício”, sustentado tanto em O totemismo hoje (LÉVI-STRAUSS, 2018LÉVI-STRAUSS, C. O Totemismo hoje. São Paulo: Edições70, 2018.) quanto em O pensamento selvagem (LÉVI-STRAUSS, 1990LÉVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. São Paulo: Papirus editora, 1990.), remete a uma oposição generalizada entre mito e ritual. Enquanto o totemismo postula uma homologia entre duas séries paralelas (natureza e grupos sociais), isto é, uma divisão metafórica; o sacrifício remete à metonímia (não é difícil entrever as discussões levadas adiante por Lacan). A mediação real e não reversível entre dois termos, humanos e divindades, realizada pelo sacrifício, configura uma espécie de sistema de operações. O caminho traçado por Viveiros de Castro, apoiado na filosofia de Deleuze e Guattari (1972DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1972). O anti-Édipo. São Paulo: Editora 34, 2010./2010), busca repensar a antropologia em linhas semelhantes a partir do sacrifício. Ou seja, assim como os filósofos sustentaram uma crítica ao paradigma neurótico e edípico, busca-se deslocar o referencial do mito para o sacrifício na antropologia, enfatizando o campo de virtualidades dinâmicas que o sacrifício mobiliza enquanto processo.

O anti-narcisismo de Viveiros de Castro estaria na esteira de um redimensionamento do animismo, enquanto perspectivismo, como um “verdadeiro operador antitotêmico” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015VIVEIROS DE CASTRO, E. Who’s afraid of the ontological wolf: some comments on an ongoing anthropological debate (2015b). Cambridge Anthropology, v. 33, n. 1, p. 2-17, 2015.a, p. 101). Para o autor, o canibalismo ritual dos tupinambás consiste em um ponto de apoio importante na sustentação desta tese, posto que realiza uma transformação virtualmente recíproca, implicando um movimento de criação de uma zona de indiscernibilidade entre matadores e vítimas, devoradores e devorados. Essa zona indefinida é comportada justamente pela mistura de diferentes pontos de vistas incompatíveis. Nas suas palavras: “a visão que os humanos têm de si mesmos e de seus ambientes é diferente daquela que os animais têm dos humanos, como a visão que os animais têm de si mesmo (e de seu ambiente) é diferente da visão que os humanos têm dos animais, e assim por diante” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015aVIVEIROS DE CASTRO, E. Who’s afraid of the ontological wolf: some comments on an ongoing anthropological debate (2015b). Cambridge Anthropology, v. 33, n. 1, p. 2-17, 2015., p. 102).

Enquanto, habitualmente, os antropólogos realizam uma comparação explícita entre os diversos modelos de concepção do mundo a partir do que consideram aspectos culturais dos nativos, o perspectivismo ameríndio pressupõe “[...] uma comparação implícita entre os modos pelos quais diferentes espécies de corpos experimentam ‘naturalmente’ o mundo como multiplicidade afectual” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015VIVEIROS DE CASTRO, E. Who’s afraid of the ontological wolf: some comments on an ongoing anthropological debate (2015b). Cambridge Anthropology, v. 33, n. 1, p. 2-17, 2015.a, p. 104). As diferenças entre os pontos de vistas ou corpos consistem justamente no fator no qual a multiplicidade de perspectivas se sustenta. Não se trata, todavia, de um multiculturalismo que asseveraria um ponto de vista subjetivo de diferentes espécies: “o que ele afirma não é a existência de uma multiplicidade de pontos de vista, mas a existência do ponto de vista como multiplicidade” (VIVEIROS DE CASTRO, 2013VIVEIROS DE CASTRO, E. Who’s afraid of the ontological wolf: some comments on an ongoing anthropological debate (2015b). Cambridge Anthropology, v. 33, n. 1, p. 2-17, 2015., p. 105). Os discursos dos chamados nativos não falam apenas de suas necessidades ou de suas mentes, não refletem uma forma específica de conceber uma natureza ou conceitos representados por determinado panorama cultural, mas são formas de criação de mundos que devem ser considerados essencialmente distintos do nosso.

Essa diversidade de perspectivas resulta em um chamado multinaturalismo, isto é, não a afirmação da variedade de naturezas, mas a naturalidade da variação. Se, no mononaturalismo que caracteriza a modernidade, sujeito e objeto são polos distintos no que concerne à intencionalidade, o multinaturalismo concebe o objeto como “um sujeito incompletamente interpretado” (VIVEIROS DE CASTRO, 2013VIVEIROS DE CASTRO, E. Xamanismo transversa: Lévi-Strauss e a cosmopolítica amazônica”. In: LÉVI-STRAUSS, C. (2013). Leituras brasileiras. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 360). O ponto de vista não cria o objeto, mas o próprio sujeito; dito de outra forma, não é o sujeito que cria a perspectiva, mas a perspectiva que cria o sujeito. Ora, nesse sentido, todos conhecem o mundo, mas o mundo que eles conhecem não é o mesmo - a epistemologia é constante, já a ontologia é variável. O conceito de animismo é, portanto, colocado em perspectiva: não se trata de atribuir alma às coisas, mas de colocar em questão como existem as próprias coisas. Ou seja, não se trata de um sujeito que, separado do objeto, pode conhecer o mundo através do pensamento, mas de perspectivas que fazem deslocar os lugares de sujeito e de objeto - tudo o que existe no cosmos pode ser sujeito, mas não de forma simultânea.

O perspectivismo serve de operador anti-narcísico da própria antropologia, deixando entrever que o conceito de animismo, herança da antropologia evolucionista, quando articulado à onipotência narcísica, nos faz presos em nossos próprios espelhos. A antropologia passa a ser considerada uma espécie de metafísica experimental, ou melhor, experiencial, posto que tem lugar na experiência com o pensamento alheio. Trata-se de colocar tanto seu (antropólogo) ponto de vista quanto o do outro (nativo) em questão - aspectos que só podem ser concebidos em relação. Uma decolonização permanente consiste em deixar de considerar a perspectiva do outro como uma forma de pensamento primitiva, mas em sua alteridade plena, isto é, passível de transformar nossa própria imagem, de deslocar nossos mundos.

Self e objeto no pensamento de Winnicott- natureza humana e seus paradoxos

A partir da impossibilidade de prescindir do descentramento de si mesmo enquanto polo exclusivamente intencional para a constituição de si e do mundo, presente no perspectivismo ameríndio, teceremos articulações com o pensamento de Winnicott de modo a deixar entrever alguns caminhos abertos para o deslocamento, na psicanálise, das referências ao animismo e ao totemismo como base. Trata-se de um primeiro passo para uma extensa e constante travessia, à qual outros psicanalistas podem se somar, no sentido da decolonização permanente do pensamento.

Como vimos, para Freud (1913/2012FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: FREUD, S. Totem e Tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (Obras completas, 11).), animismo e narcisismo possuem certas afinidades recíprocas. Passível de muitas leituras, podemos dizer que o conceito de narcisismo traz em seu bojo a problemática da alteridade, posto que deixa entrever a indissociabilidade do outro na formação de si mesmo. Ao contrário de uma noção solipsista e interiorizada de narcisismo, vinculada a certas concepções sobre o narcisismo primário (BALINT, 1993BALINT, M. A falha básica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.), o caminho aberto por Freud, quando este se ocupa do papel do narcisismo parental para a constituição narcísica do infans, nos incita a deslocar o terreno da experiência de si para um campo de indeterminação no interjogo do terreno relacional. Nessa direção, Winnicott oferece uma leitura a respeito do início da vida e das relações sujeito/objeto, a qual difere da leitura freudiana em alguns aspectos que servem a nossa discussão. Apesar de pouco referidas e desenvolvidas no contexto acadêmico brasileiro, majoritariamente dominado pela psicanálise freudo-lacaniana - literatura na qual encontramos críticas relativas a uma suposta visada desenvolvimentista e simplificadora do psiquismo -, as ideias de Winnicott vêm sendo retomadas por diversos autores das ciências humanas, especialmente no campo das ciências sociais e políticas (KELLOND, 2019KELLOND, J. ‘Present-day troubles’: Winnicott, counter-culture and critical theory today. Psychoanalysis, Culture and Society, v. 24, n. 3, p. 323-343, 2019.).

Em seu livro Natureza humana3 3 Tendo uma primeira versão iniciada e terminada em 1954 e muitas revisões e modificações até a sua morte, em 1971, o livro Natureza humana permaneceu inacabado. É o único dos trabalhos de Winnicott explicitamente pensado para ser uma obra, sendo seus outros livros coletâneas de artigos avulsos, dirigidos a diferentes plateias. , reconhecido por alguns autores como tendo uma função reflexiva axial4 4 Cf. Assoun, 2006, p. 63. , simétrica à da metapsicologia de Freud, Winnicott insiste na deflexão de binômios clássicos como nature e nurture, interno e externo, corpo e psiquismo, para apresentar uma ideia de natureza humana que acolha de outro modo tais termos, habitualmente considerados conflitantes ou polares. Também não se trata, para ele, de propor uma complementariedade artificial entre estes possíveis polos, mas de insistir na manutenção de um campo de indeterminação que torne determinados paradoxos vivos. Isso fica explícito em sua concepção de self como uma forma de emergência constituída pela interrelação inicial entre um bebê e seu ambiente. Para Winnicott, em linhas gerais, ao mesmo tempo em que tal emergência é produzida pela interação com o entorno, o que emerge aí adquire a capacidade de transformação do mundo, mesmo em momentos muito precoces da vida. Vale relembrar que, no caso de Winnicott (1971/1975aWINNICOTT, D. W. A criatividade e suas origens (1971). In: WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1975.), desenvolvimento não é sinônimo de cumprimento automático de um programa sequencial de etapas com um fim previsível; o self emerge como o produto da jornada do ser vivo em sua interação com o mundo, mas essa jornada não é automática ou programada. Seu pensamento inclui a ideia de emergências processuais como base para uma progressiva separação relativa ou uma união relativa com o ambiente, valorizando a aquisição de potencialidades que requerem e dependem da qualidade facilitadora deste último.

Nesta visada, ressalta-se a mobilidade perlaborativa do self que, por sua vez, depende das potencialidades desenvolvidas em certas condições ambientais, sempre sob o risco de que possam não ocorrer. Nesse sentido, David-Ménard (2006DAVID-MÉNARD, M. Human Nature or Human Condition? In: CYSSAU et al (org.) La nature humainde à l’épreuve de Winnicott. Paris: PUF, 2006. pp. 159-164.) considera que a expressão “natureza humana”, tal como empregada por Winnicott, aproxima-se do que Hannah Arendt denominou de “a condição humana”, e que a autora propõe traduzir por “condição do humano”. “A insistência sobre as condições é de tal forma decisiva e sutil, para o psicanalista, que o caráter teleológico da potencialidade é como que esquecido” (DAVID-MÉNARD, 2006DAVID-MÉNARD, M. Human Nature or Human Condition? In: CYSSAU et al (org.) La nature humainde à l’épreuve de Winnicott. Paris: PUF, 2006. pp. 159-164., p. 161-162).

Ao direcionar sua atenção para o que denominou como “natureza humana”, Winnicott promove uma significativa reconfiguração na estrutura conceitual do edifício psicanalítico. É pertinente observar que sua abordagem naturalista diverge consideravelmente do naturalismo freudiano, o qual se concentra na descrição de um aparelho psíquico regido por pulsões e mecanismos psíquicos em conflito com as demandas culturais. Mais do que um quadro de oposição e conflito entre natureza e cultura,

[...] Winnicott descreve um acoplamento estrutural entre um polo e outro, que se expressa nos processos naturais de maturação do indivíduo biológico em direção à construção do ser social, a partir da díade mãe-bebê. A mãe expressa tanto os aspectos naturais universalmente presentes na constituição de um indivíduo humano como também aquilo que na natureza humana difere do universo natural darwiniano, ou seja, tudo aquilo que se refere à simbolização e à significação da experiência. (BEZERRA, 2007BEZERRAJr, B. Winnicott e Merleau-Ponty: o continuum da experiência subjetiva. In: BEZERRA JR, B.; ORTEGA, F. (orgs.) Winnicott e seus interlocutores. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2007, pp.35-65., p. 41).

Segundo Phillips (1988PHILLIPS, A. Winnicott. Cambridge: Harvard University Press, 1998.), Winnicott reverte a equação darwiniana, sugerindo que o desenvolvimento humano, ao contrário de uma necessidade imperativa de adaptação, consiste também em uma luta contra a conformidade ou a submissão ao meio. Com a ideia de que o ambiente também deve adaptar-se e favorecer o desenvolvimento da criança através de sua resposta de sustentação, ele introduz a possibilidade de reciprocidade e mutualidade no desenvolvimento do ser humano, revisando parte da contribuição de Darwin.

Assim, a subjetividade não é produto do “ambiente” ou produto da subjetividade da “mãe”, bem como a experiência de relativa indiferenciação no início da vida não é sinônimo de união ou de fusão entre sujeito e objeto. Ao invés disso, a experiência sugerida é a de um estado em que o eu e o outro “ambos estão lá, iguais e não iguais” (MILNER, 1987, p. 290 apudORLIE, 2017ORLIE, M. The Psychoanalytic Winnicott We Need Now: On the Way to a Real Ecological Thought. In: BOWKER, M.H.; BUZBY, A. (eds). D.W. Winnicott and Political Theory. Londres: Palgrave MacMillian, 2017.). Segundo Orlie (2017ORLIE, M. The Psychoanalytic Winnicott We Need Now: On the Way to a Real Ecological Thought. In: BOWKER, M.H.; BUZBY, A. (eds). D.W. Winnicott and Political Theory. Londres: Palgrave MacMillian, 2017.), união e fusão expressam a ideia de que sujeito e objeto estão unidos a partir de uma perspectiva de processo secundário, que já pressupõe entidades distintas e um sentido mais estável para estas figuras. Comunicar e interpretar a experiência sensorial indiferenciada, que ocorre antes da consolidação da noção de separação, representa uma tarefa desafiadora. Daí, a adoção de terminologias específicas, como “going on being” (a experiência de persistir ao longo do tempo), notavelmente distante dos princípios da metapsicologia freudiana clássica. Esta expressão, aliás, como lembra Ogden (2006OGDEN, T.H. Maintenir et contenir, être et rêver. In: GREEN, A (dir). Les voies nouvelles de la thérapeutique psychanalytique. Le dedans et le dehors. Paris: PUF , 2006, p. 860-877.), é propositalmente sem sujeito, de modo a enfatizar a presença de um sentimento de estar vivo anterior ao momento em que o bebê se tornará um sujeito.

Podemos inferir que a descontinuidade paulatina em relação ao outro, fonte basilar do processo de diferenciação deste futuro sujeito no mundo, ocorre sobre possibilidades permanentes de partilhar e se misturar com o outro, sem que isso denote fusão ou riscos à singularização, em condições favoráveis. A partilha funda um campo relacional e não pode ser abandonada como terreno primário de experiência. Isto torna Winnicott um pensador das formas de dependência (determinada por essa partilha fundadora) o que, em nossa visão, contribui para que possamos pensar uma crítica aos modelos de subjetividade pautados no valor da autonomia individualista, oriundos da colonialidade.

Neste sentido, ainda que Winnicott utilize diversas vezes o termo narcisismo primário para caracterizar o início do desenvolvimento emocional, cabe lembrar que, para ele, o início da vida psíquica é marcado por um tipo de experiência que poderia ser qualificada como pré-subjetiva e cujas especificidades são mais bem compreendidas em referência aos conceitos de objeto subjetivo e de criatividade primária, apresentadas como uma interpolação na teoria freudiana da experiência primária de satisfação, referida a uma espécie de alucinação.

No entender de Winnicott (1971/1975aWINNICOTT, D. W. A criatividade e suas origens (1971). In: WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1975.), seria mais interessante pensar em termos de ilusão e não de alucinação do objeto para o desdobramento da dinâmica desejante ou da experiência de estar vivo. Em sua teoria da criatividade primária, o bebê não pode ser apenas um objeto de excitações provindas do interior ou do exterior (mesmo que ele ainda não consiga distinguir esse “onde”). Os objetos significativos para ele serão aqueles cuja existência simboliza, de algum modo, sua participação ativa na criação. É aí que a noção de ilusão se mostra precisa. A ilusão, ao contrário da alucinação, se caracteriza por uma transformação do campo sensoperceptivo a partir de um objeto prévio sentido como real ou partilhável. O bebê tem a ilusão de criar o objeto (tomando como paradigma o seio), mas algo lhe é verdadeiramente oferecido para que a experiência de ilusão prospere como fonte de vitalidade. Uma “percepção sem objeto”, como muitas vezes é definida a alucinação, extenuaria o infans em sua tarefa de criar um objeto sobre um campo sensoperceptivo vazio. Deste modo, é criado um objeto subjetivo (nome que se dá a esta operação), o qual ainda não se distingue do sujeito, pois este não possui um conjunto de representações, sensações e experiências capazes de efetuar uma distinção operativa entre si mesmo e objeto. É esse modo de conceber as primeiras relações entre o bebê e o meio ambiente que permite a Winnicott fazer sua famosa assertiva de que o bebê não existe.

Neste contexto, é oportuno retomarmos nossa discussão sobre o animismo. Segundo Winnicott, o início da vida é experimentado como uma espécie de universo mágico, de superposição entre sonho e realidade, no qual o bebê, tendo as funções de proteção e de suporte garantidas de forma confiável pelo meio, tem a ilusão de que encontra no mundo justamente o que necessita. Sendo assim, a intencionalidade das coisas é uma das bases de nossa vitalidade e de nossa criatividade, se levarmos à sério as hipóteses de Winnicott. Um campo comum precisa ser criado, uma partilha deve permanecer disponível e operante para um mundo pessoal poder ser estabilizado e usufruído. A premissa da intencionalidade dos objetos humanos e não humanos, sejam estes animados ou inanimados, definidora da lógica animista, nada tem de primitiva em seu sentido pejorativo, simplório ou depreciado. Pelo contrário, trata-se de um modo complexo e sofisticado de interação viva com o mundo que desloca e transforma sujeito e objeto. O encantamento das coisas, nessa visada, cria um universo aberto para que, com ele, possamos nos misturar e nos diferenciar. Ele não pode ser abandonado, sob pena de a vida perder todo o seu frescor. Isto porque não vivemos nem dentro e nem fora de nós mesmos. O espaço temporalizado do fluxo da vida é outro.

Para Winnicott, o self não emerge da vida pulsional, mas da relação inicial de mutualidade, ou seja, de uma sustentação na qual a “coisa principal é uma comunicação entre bebê e mãe em termos da anatomia e fisiologia de corpos vivos” (WINNICOTT, 1989WINNICOTT, D. W. A experiência mãe-bebê de mutualidade (1989). In: WINNICOTT, D. W. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas , 1994./1994, p. 200). Vê-se que Winnicott concebe a existência do verdadeiro self, esta espécie de qualidade viva de um corpo, antes mesmo da integração do self ter-se estabilizado. Um corpo (psico-soma) pode experimentar ser, mesmo antes do que Winnicott define como processo de personalização. Aliás, o verdadeiro self, como acertadamente define Bollas (1996BOLLAS, C. Les forces de la destinée. Paris: Calmann-Lévy, 1996.), não é uma entidade (com uma significação inconsciente), ele é a própria experiência da qual depende para sua expressão, pois existe unicamente através dela. É provável que a verdadeira experiência do self nunca perca sua relação com as primeiras experiências de relativa indiferenciação e mistura com o outro. Isso significa que, ao longo da vida, nossa compreensão mais profunda de nós mesmos ainda está conectada às primeiras experiências em que não éramos capazes de distinguir claramente entre o eu e o não-eu, entre o self e o mundo externo. Essas experiências iniciais de indiferenciação desempenham um papel fundamental na formação de nossa identidade e na maneira como experimentamos a nós mesmos e o mundo ao nosso redor. Ao contrário das conotações de fusão ou de união, a referência à indiferenciação e à desintegração não nega a experiência da criança de um “mundo interpessoal” (STERN, 1991STERN, D. El mundo interpersonal del infante. Buenos Aires: Paidós, 1991.).

Aqui, devemos nos perguntar o que seria esse mundo interpessoal, ou, para nos mantermos fiéis ao nosso propósito neste artigo, o que é cultura para Winnicott. Mais para o final de sua vida, Winnicott dedicou parte de sua pesquisa ao que ele denominou de experiência cultural. Nas suas palavras, “utilizando a palavra ‘cultura’ estou pensando na tradição herdada. Estou pensando em algo que pertence ao fundo comum da humanidade, para o qual indivíduos e grupos podem contribuir, e do qual todos nós podemos fruir, se tivermos um lugar para guardar o que encontramos” (WINICOTT, 1971/1975bWINNICOTT, D. W. O lugar em que vivemos (1971). In: WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago . 1975., p. 137-138).

Winnicott insiste que as experiências culturais estão em continuidade direta com o brincar, lembrando que ele faz questão de frisar que se trata do brincar daqueles que ainda não ouviram falar em jogos! O brincar e a criatividade são a permanência por toda a vida de algo que diz respeito à experiência inicial do bebê: a capacidade de criar o mundo.

O interesse não recai em uma definição teórica ou canônica sobre o que seria a cultura humana em contraposição a uma suposta natureza na qual estamos enraizados. Sua definição prosaica de cultura como herança com base na tradição, sem a preocupação de defini-la de modo mais artificialmente robusto, é o célebre exemplo no qual “menos é mais”. Ao deflacionar a cultura - polo freudiano decisivo da segunda tópica, na contraposição às pulsões - em favor da experiência cultural, certos dualismos perdem o poder de sedução e são focalizadas o que se pode denominar de áreas de transição psíquicas.

Quando Winnicott (1971/1975aWINNICOTT, D. W. Objetos transicionais e fenômenos transicionais (1971). In: WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago , 1975.) publicou seu estudo seminal, Transitional Objects and Transitional Phenomena, não havia na literatura psicanalítica qualquer relato referente ao espaço existente entre o interior e o exterior, entre o subjetivo e o objetivo. A explicação freudiana sobre a passagem do princípio do prazer para o princípio da realidade não abordou tal caminho, o que, na pena de Winnicott, caracteriza os processos transicionais. O conceito de fenômeno transicional diz respeito a uma dimensão do viver que não depende nem da realidade interna, nem da realidade externa; mais propriamente, é o espaço em que ambas as realidades se encontram e se separam do interior e do exterior. Winnicott emprega diferentes termos para referir-se a essa dimensão - terceira área, área intermediária, espaço potencial, local de repouso e localização da experiência cultural que reúne o passado, o presente e o futuro; resgata o tempo e o espaço.

A literatura psicanalítica, segundo Winnicott, não fornece uma resposta à pergunta onde todos nós passamos nossas vidas do dia a dia. “Não se trata apenas do que fazemos. Outra pergunta precisa ser feita: onde estamos (se é que estamos em algum lugar)? Usamos os conceitos de interno e de externo, mas agora queremos mais um conceito. Onde estamos quando fazemos o que, na realidade, ocupa grande parte de nosso tempo?” (WINNICOTT, 1971/1975cWINNICOTT, D. W. O lugar em que vivemos (1971). In: WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago . 1975., p. 170).

Este é o “lugar” onde estamos na maior parte das vezes em que experimentamos a vida. E não é sempre que podemos usufruir de estarmos vivos. Podemos, ao contrário, estar encarcerados dentro de nós mesmos, com pouca esperança de encontro com o outro, ou permanecermos completamente reagindo ao que o ambiente exige de nós, sem trégua. Nossas possibilidades criativas, entre elas o que Winnicott define como experiência cultural, são muito limitadas nessas condições. É somente na potencialidade aberta pela transicionalidade, na qual as fronteiras são menos requeridas, que nos é permitido descansar das exigências de estarmos radicalmente apartados do outro ou satisfazermos defensivamente as suas exigências. Assim, podemos experimentar o continuar a ser que nos une e nos separa da tradição que herdamos. Nessa configuração, a pergunta “somos seres de natureza ou de cultura?” perde todo o seu interesse. E ficamos liberados para usufruir dos encontros e desencontros inerentes à presença de um corpo no mundo.

O processo de encontro e de desencontro com uma dimensão que podemos chamar, tomando de empréstimo a expressão de Donna Haraway (2021HARAWAY, D. O manifesto das espécies companheiras - Cachorros, pessoas e alteridade significativa. Tradução de Pê Moreira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.), de materialidade sensível, deixa entrever a constante possibilidade de transformação de si mesmo e do mundo - tornando ambos sempre em tensão, inconstantes, tal como o pensamento selvagem.

O encantamento dos objetos e a experiência analítica: abrindo caminhos para alteridades outras

Na contramão do desencantamento do mundo, denunciado por Weber, os objetos encantados consistem em uma poderosa forma de criar caminhos diferentes da objetificação e da generalização universalista, descentrando o sujeito moderno, branco e europeu de seu próprio espelho - considerações que trazem reverberações interessantes para a experiência analítica e sua dimensão política.

É interessante notar que David-Ménard (2022DAVID-MÉNARD, M. A vontade das coisas: O animismo e os objetos. São Paulo: Ubu Editora, 2022.) lembra que o mercado em polvorosa é apenas uma camada de uma perspectiva animista denegada, mas que está na base da modernidade, a saber: a concepção que a noção de propriedade privada subsidia sobre um indivíduo separado auto identicamente dos outros. Procurando se desviar de um realismo ingênuo, a autora recupera a potência da materialidade dos objetos encantados e seus efeitos políticos. Fornecer intencionalidade aos objetos é entrever a permeabilidade entre os corpos e seres que compõem diferentes atores políticos na constituição de nós mesmos e do mundo.

Assim como o perspectivismo ameríndio acaba por engendrar uma antropologia - e, por conseguinte, uma etnografia - às avessas, conceber intencionalidade aos objetos, na psicanálise, implica ampliar a experiência analítica nas fronteiras transformativas entre diferentes agentes. Trata-se, portanto, de repensar as heranças da epistemologia moderna, concebendo um processo no qual analista e analisando - e (por que não?) outros seres - estão engajados na possibilidade de tornar-se mais plenamente si mesmo através de deslocamentos alteritários.

Para tal, é preciso deslocar-se de uma universalidade que deixa de responder à particularidade de diferentes ontologias e que não está disposta a se reformular a partir das condições sociais e culturais que inclui no seu escopo de aplicação. A universalidade, nesse contexto, pode assumir um caráter de violência; não à toa, Winnicott afirma que a experiência da ilusão pode se tornar marca da loucura quando o adulto força a credulidade alheia. Para o psicanalista, “o ditador [...] exerce seu poder oferecendo uma vida livre de dúvidas” (WINNICOTT, 1950/1989WINNICOTT, D. W. Algumas reflexões sobre o significado da palavra “democracia” (1950). In: WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989., p. 204) - ora, a universalidade abstrata da colonialidade promete o fim do paradoxo da criação de mundos - promete somente a semelhança em um processo que é necessariamente de diferença e semelhança.

Retomando as narrativas dos colonizadores sobre os tupinambás, é interessante trazer à tona a metáfora utilizada por Padre Antônio Vieira sobre as estátuas de mármore e de murta, através da qual Viveros de Castro (1992VIVEIROS DE CASTRO, E. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. Revista de Antropologia, [S. l.], v. 35, p. 21-74, 1992.) fornece potência para a inconstância da alma selvagem. Enquanto as estátuas de mármore são esculpidas uma única vez, as estátuas de murta precisam ser constantemente podadas para que mantenham a forma. O processo de colonização dos tupis foi comparado pelo jesuíta às estátuas de murta: uma atividade constante de ações violentas para moldar os hábitos - afinal, os costumes europeus eram absorvidos e transformados pelos povos indígenas.

A ideia de cultura sustentada pelo pensamento moderno europeu, por sua vez, é cravada em mármore de Carrara, ou como a expressão foi transformada em solo brasileiro: pressupõe que o outro seja esculpido e escarrado. A cultura é concebida como uma preservação de costumes dos sujeitos coletivos que se impõe ao mundo, esculpindo uma pedra bruta. Sem o escultor, a pedra bruta de nada serve, posto que a intencionalidade está no sujeito que molda o objeto. A murta, por sua vez, espalha seus ramos envolvendo e tomando as formas junto com as coisas - o pensamento dos tupinambás comporta uma constante abertura ao outro.

Ora, quem sabe as provocações engendradas pelo perspectivismo ameríndio possam nos fazer conceber não apenas alguns pontos de concordância entre a vida mental dos selvagens e dos neuróticos, mas contra descrever a nossa própria imagem projetada na “vida mental dos selvagens”, neste outro animista e primitivo, devolvendo-nos uma imagem de nós mesmos na qual não nos reconhecíamos. Para tal, é preciso deixar de considerar a perspectiva do outro como uma forma de pensamento primitivo, anormal, patológico, imoral ou perverso, mas tomá-la em sua alteridade plena, isto é, passível de transformar nossa própria imagem, nossos próprios conceitos, em suma, nosso próprio mundo. Na contramão de grandes divisores - nós e os outros, os humanos e os animais, natureza e cultura, animismo e totemismo -, trata-se de proliferar as multiplicidades. Na direção oposta do narcisismo das pequenas diferenças, que relega ao outro o primitivismo, a aposta está na esteira do “anti-narcisismo das variações infinitesimais” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015VIVEIROS DE CASTRO, E. Who’s afraid of the ontological wolf: some comments on an ongoing anthropological debate (2015b). Cambridge Anthropology, v. 33, n. 1, p. 2-17, 2015.a, p. 23).

Como escreve Ailton Krenak, “quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo de humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista” (KRENAK, 2019KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora: Companhia das Letras, 2019., p. 34). Em outras palavras, quando desanimamos o mundo, o deixamos à mercê de um poder mortífero. Para interpolar sua herança colonialista, é preciso que a experiência analítica implique verdadeiramente uma abertura à inquietante estranheza, não apenas de nossa imagem no espelho, mas do agenciamento entre diferentes seres encantados, ao mesmo tempo inteligíveis e radicalmente outros

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  • WINNICOTT, D. W. A criatividade e suas origens (1971). In: WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1975.
  • WINNICOTT, D. W. A experiência mãe-bebê de mutualidade (1989). In: WINNICOTT, D. W. Explorações psicanalíticas Porto Alegre: Artes Médicas , 1994.
  • WINNICOTT, D. W. Algumas reflexões sobre o significado da palavra “democracia” (1950). In: WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa São Paulo: Martins Fontes, 1989.
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  • WINNICOTT, D. W. O lugar em que vivemos (1971). In: WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade Rio de Janeiro, RJ: Imago . 1975.
  • 1
    Faz-se importante destacar que a noção de intencionalidade utilizada ao longo do artigo remete à tradição fenomenológica, mais especificamente às considerações de Merleau-Ponty que, por sua vez, marcam linhas de continuidade e diferença com a fenomenologia de Husserl. O projeto filosófico iniciado por Husserl se inscreve como alternativa às filosofias centradas na atividade da consciência entendida como potência ou substância pensante distanciada do mundo. As concepções do chamado “segundo Husserl”, consolidadas em torno da noção de Lebenswelt, abrem espaço para uma filosofia da experiência vivida, do contato ante predicativo ou pré-reflexivo com o mundo. A concepção de uma intencionalidade da consciência vai na contramão da consciência em estado puro e se articula ao próprio ato de conhecimento. Merleau-Ponty, por sua vez, sobretudo em seus últimos escritos, lançou mão de um diálogo franco com a psicanálise, deslocando uma filosofia originada na tradição das filosofias da consciência para uma filosofia da intercorporeidade e do inconsciente. Para um melhor aprofundamento na definição de intencionalidade e no diálogo entre a psicanálise e Merleau-Ponty, ver: Coelho Jr. (1991).
  • 2
    Domiciano e Dunker (2021) fizeram uma pesquisa no índex alemão dos nomes citados por Freud, considerando a totalidade da obra, e revelam a profusão de citações sobretudo de autores da chamada antropologia evolucionista. Foram encontradas duas citações a Lewis Morgan (1818-1881), seis a Edward Tylor (1832-1917), 13 a William Robertson Smith (1846-1894) e 31 a James Frazer (1854-1941), sendo 27 apenas em Totem e tabu.
  • 3
    Tendo uma primeira versão iniciada e terminada em 1954 e muitas revisões e modificações até a sua morte, em 1971, o livro Natureza humana permaneceu inacabado. É o único dos trabalhos de Winnicott explicitamente pensado para ser uma obra, sendo seus outros livros coletâneas de artigos avulsos, dirigidos a diferentes plateias.
  • 4
    Cf. Assoun, 2006, p. 63.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2023
  • Aceito
    18 Nov 2023
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