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CAUSALIDADE EM LACAN: OBJETO A ENTRE A CAUSA E O QUE ELA AFETA

CAUSALITY IN LACAN: OBJECT A BETWEEN THE CAUSE AND THAT WHICH IT AFFECTS

Resumo:

O presente trabalho investiga como se estabeleceu a relação de causa e efeito para o campo de estudos psicanalíticos de orientação lacaniana datado dos anos 1960, período em que Jacques Lacan inaugurou e desenvolveu, ao longo dos seminários 10 e 11, importantes formulações acerca do objeto a. A partir dessas investigações e perpassando as elaborações freudianas sobre a causalidade inconsciente, desenvolve-se a hipótese de que, para a psicanálise de orientação lacaniana, a relação de causa e efeito pode ser interpretada como uma operação de negativização atravessada pela potência desarticuladora do objeto a.

Palavras-chave:
causalidade; inconsciente; objeto a

Abstract:

This paper investigates how the relation of cause and effect was established for the field of Lacanian psychoanalytic studies from the 1960s, a period in which Jacques Lacan inaugurated and developed, throughout Seminars 10 and 11, important formulations about the object a. From these investigations and going through Freudian elaborations about unconscious causality, we develop the hypothesis that, for Lacanian psychoanalysis, the relation of cause and effect can be interpreted as an operation of negativization crossed by the disarticulating power of the object a.

Keywords:
causality; unconscious; object a

INTRODUÇÃO

A tentativa de divisão da obra lacaniana em fases ou períodos provoca controvérsias no campo de estudos psicanalíticos. Nota-se certa dificuldade em demarcar e nomear tais fases, estabelecendo seus marcos de início ou fim; afinal, a obra do autor se estabelece em um movimento de tessitura teórica que implica em avanços e retornos sobre lacunas de saber que interrogam e reinventam constantemente sua obra. Apesar de reconhecermos a transitoriedade dessa tentativa de divisão, apostamos em sua função e importância para a transmissão do complexo pensamento de Jacques Lacan, e a enxergamos como uma ferramenta de localização que permite ao leitor acompanhar o movimento de construção do pensamento teórico crítico do autor.

Tendo em vista essa consideração e contemplando nosso objeto de pesquisa - a articulação entre causa e efeito para a psicanálise lacaniana -, nos valemos, neste trabalho, da divisão proposta por Roseane Lustoza (2006LUSTOZA, R. Z. O problema da causalidade psíquica na psicanálise. Tese de doutorado, Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.) sobre o desenvolvimento da noção de causa ao longo da obra lacaniana. O primeiro recorte proposto é nomeado como “fase fenomenológico-existencial” (LUSTOZA, 2006LUSTOZA, R. Z. O problema da causalidade psíquica na psicanálise. Tese de doutorado, Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.) e é representado pelas investigações de Lacan datadas dos anos 1940. Nessa fase, os estudos lacanianos sobre a causalidade psíquica foram pautados pelos campos do sentido e da linguagem, estabelecendo-se que a práxis analítica pouco diz sobre o mundo dos fatos, entendidos como realidades acessíveis à observação. O que está em jogo, na clínica, é o sentido que os fatos vivenciados adquirem para o sujeito.

Podemos tomar como referencial bibliográfico à expressão dessa fase a comunicação Formulações sobre a causalidade psíquica (LACAN, 1946/1998LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do Eu (1949). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.). Trata-se de uma conferência proferida por Lacan durante a edição de 1946 do sempre instigante e controverso Colóquio de Bonneval. Ao longo deste congresso, demarcaram-se as discordâncias entre o autor e Henri Ey1 1 Henri Ey (1900-1977) foi um neurologista, psiquiatra e psicanalista contemporâneo de Jacques Lacan, com quem este manteve boas relações de trabalho até os anos de 1940. quanto às suas posições sobre a causalidade dos processos psíquicos. Na visão de Ey, a partir da proposta de sua teoria organo-dinamicista, a atividade psíquica estaria a serviço da adaptabilidade do ser humano à realidade, o que, consequentemente, o levou a defender a causalidade dos processos psíquicos a partir de uma análise sobre a realidade do Eu. O sofrimento mental seria justificado a partir de lesões, em nível biológico, que comprometeriam o funcionamento dito normal do aparelho psíquico.

Em sua conferência, Lacan é enfático e nada sutil ao tecer suas críticas às teorias organicistas sobre a loucura. O psicanalista acusa tais teorias de serem conceitualizações incompletas, falsas e incapazes de remeter à gênese do distúrbio mental como tal. Segundo Lacan, o organo-dinamicismo proposto por Ey repousa a gênese do distúrbio mental sobre uma “interação molecular dentro da modalidade da extensão “partes extra partes’” (LACAN, 1946/1998LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do Eu (1949). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998., p. 153), aos moldes da física clássica, o que exprime uma relação determinista entre função e variável, entre causa e efeito. Deste modo, ao ler os sintomas como efeitos de causalidades deterministas, a responsabilização do sujeito diante do mal-estar do qual ele se queixa, premissa que orienta o tratamento analítico desde os tempos de Freud, é apagada em nome de uma relação pré-determinada entre causa e efeito, o que não permite ao sujeito dizer sobre a causalidade de seu sintoma.

No registro indeterminista do sentido, defendido por Lacan, uma dada causalidade pode promover diversos efeitos possíveis, assim como um determinado efeito pode ser oriundo de diversas causas possíveis, pois a causalidade do sofrimento psíquico é alcançada a partir de “um ato livre de doação de sentido por parte do sujeito”, conforme nos elucida Lustoza (2006LUSTOZA, R. Z. O problema da causalidade psíquica na psicanálise. Tese de doutorado, Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006., p. 45). Demonstra-se, assim, como, no psiquismo, operamos com a imprevisibilidade, derradeira de todo e qualquer cálculo causal. No psiquismo, há uma lacuna que se preenche pelo ato do sujeito, graças ao qual advém o sentido que permite uma construção sobre a causalidade dos processos psíquicos (LUSTOZA, 2006LUSTOZA, R. Z. O problema da causalidade psíquica na psicanálise. Tese de doutorado, Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.). Nesse primeiro momento do ensino lacaniano, essa lacuna psíquica se inscreve pelas hiâncias das vias simbólicas, à medida que o inconsciente é estruturado como linguagem. Mais tarde, ela ganhará contorno pelas vias do objeto a.

A segunda divisão do ensino lacaniano sobre o desenvolvimento da noção de causa é nomeada como “fase estruturalista” (LUSTOZA, 2006LUSTOZA, R. Z. O problema da causalidade psíquica na psicanálise. Tese de doutorado, Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.). Nesse período, a partir do encontro de Lacan com a obra de Lévi-Strauss e Ferdinand de Saussure, o sentido passa a ser subordinado às leis estruturais da linguagem, instituindo uma nova concepção de significado, não mais pautada por um ato livre de atribuição de sentido por parte do sujeito, mas por bases estruturais regentes do funcionamento da instância inconsciente: “desalojado de seu privilégio de intérprete livre dos acontecimentos, o sujeito encontra-se assujeitado à estrutura” (LUSTOZA, 2006LUSTOZA, R. Z. O problema da causalidade psíquica na psicanálise. Tese de doutorado, Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006., p. 97) e, assim, não é mais tomado como causa de significação, mas como efeito da linguagem. O cuidado que se demanda nesse tempo estrutural de orientação do trabalho clínico analítico é para que não se promova o apagamento do sujeito em detrimento da articulação de leis estreitas sobre o funcionamento do aparelho psíquico.

Expressa pelos estudos lacanianos dos anos 1960, a terceira fase nomeada por Lustoza (2006LUSTOZA, R. Z. O problema da causalidade psíquica na psicanálise. Tese de doutorado, Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.) é a “fase de elaboração da noção de objeto a”, na qual demarca-se o uso particular que Lacan faz da noção de causa, localizando o objeto a como objeto causa de desejo. O psicanalista insere no campo da causalidade um objeto indeterminado por excelência, excedente ao campo dos significantes e do sentido. A articulação da noção de objeto a faz fracassarem as tentativas de explicação do psiquismo em termos de leis estruturalistas e impulsiona as investigações sobre a causalidade psíquica, pautadas pelo registro do Real. Os seminários 10 (1962-1963/2005) e 11 (1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11)) são o marco teórico desses estudos. Neles, localiza-se a passagem de um Lacan estruturalista a um Lacan que valoriza, prioritariamente, o aspecto descontinuísta ou “não realizado” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11)) da instância inconsciente e da articulação entre causa e efeito.

Nas investigações que se apresentam neste trabalho, nos dedicamos a esmiuçar as passagens desses dois seminários, nos quais Lacan desenvolve acerca da relação de causa e efeito, considerando o aspecto descontinuísta da causalidade inconsciente e a potência desarticuladora do objeto a que atravessa a causa e o que ela afeta. É importante ressaltar que as investigações causais lacanianas orientadas pelo registro do Real não se esgotam na comunicação desses seminários; elas impulsionaram-se ao longo dos anos 1960 e 1970, orientadas pelo campo do gozo e articuladas com a noção de “letra”, tomada como materialidade significante desarticulada do campo do sentido. Na impossibilidade de perpassar todas essas formulações, os seminários 10 e 11 são o recorte deste estudo.

Entre a causa e o que ela afeta há sempre claudicação

Entre as 20 lições reunidas ao longo do Seminário 11 (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11)), dedicado a tratar dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise - inconsciente, repetição, transferência e objeto a -, destacam-se duas centrais ao desenvolvimento da relação de causa e efeito na obra lacaniana. Na primeira delas, intitulada O inconsciente freudiano e o nosso, o autor articula a noção freudiana de inconsciente, tomada como “algo da ordem do não-realizado” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 28), àquela inaugurada por seu ensino: a noção do inconsciente estruturado como linguagem. O psicanalista introduz, na hiância em que o inconsciente se produz, a lei do significante. Porém, seu esforço não diz respeito a uma tentativa de tamponamento da hiância causal por vias significantes; Lacan defende a noção do inconsciente estruturado como uma linguagem como uma conceitualização central à explicação causal, tomando os significantes como suportes, oferecidos pela natureza, a partir dos quais as relações humanas não só se organizam, mas se inauguram. A linguística é tomada nessa lição como estrutura que fornece estatuto ao inconsciente: “É ela, em cada caso, que nos garante que há sob o termo de inconsciente algo de qualificável, de acessível, de objetivável” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 26), o que inaugura à psicanálise a possibilidade de se estabelecer como teoria no campo de estudos psíquicos.

É importante ressaltar que, à medida que Lacan avança em seu ensino, ele se afasta das referências à linguística estrutural sem, porém, abandonar suas referências à linguagem. Dessa forma, o conceito de inconsciente, no caminhar dos estudos lacanianos, avança de sua estruturação simbólica e se expressa também através da dimensão real dos processos da linguagem, extrapolando a cadeia significante. Nesse ponto, “o significante se torna uma linguagem privada, singular de cada sujeito, ou seja, alíngua”, conforme localiza Trindade (2008TRINDADE, M. L. A. A estrutura de linguagem do inconsciente e os novos sintomas. Dissertação de mestrado, Programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2008., p. 53).

Seguindo nessa lição, dando continuidade às suas interrogações sobre o estatuto do inconsciente na teoria psicanalítica, Lacan o aborda a partir da hiância constitutiva entre “a causa e o que ela afeta” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 27), recuperando assim um debate antigo, iminente ao campo filosófico: a articulação entre causa e efeito tomada como categoria do entendimento humano. A partir da teoria kantiana sobre tal articulação, Lacan elabora alguns pontos fundamentais sobre o conceito de causalidade para a psicanálise. Entre estes citamos: (1) “a hiância, que, desde sempre, a função da causa oferece a todo saque conceitual” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 26); (2) “trata-se de um conceito, no fim das contas, inanalisável - impossível de compreender pela razão” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 26-27); (3) a causa “se distingue do que há de determinante numa cadeia, dizendo melhor, da lei” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 27); (4) “entre a causa e o que ela afeta há sempre claudicação” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 27); e (5) “só existe causa para o que manca” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 27).

Por ora, não nos preocuparemos em esmiuçar o entendimento de todos esses pontos, afinal, grande parte das pontuações elencadas será elucidada no desenrolar de nosso percurso teórico neste artigo. Por ora, faremos uma ressalva apenas no que diz respeito aos argumentos de número três e quatro acima referidos. A partir desses, elucidamos que a causa se distingue da lei à medida que a última determina uma cadeia em que não há hiância ou intervalo; ela enfeixa uma regularidade. Afinal, uma lei estrutura a ordem e o funcionamento dos fatores em uma cadeia, enquanto a articulação entre causa e efeito emerge a partir de uma falta simbólica, ou seja, de uma “claudicação”, de um tropeço, como pontuado por Lacan (1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11)). Esse tropeço, essa impossibilidade de determinação dos fenômenos observados, é o que nos faz interrogar sobre suas causalidades.

Posto isso, recuperando nos estudos kantianos a impossibilidade de apreensão da causalidade de um evento, por vias unicamente determinista, conceituais e racionais, Lacan (1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11)) situa o inconsciente freudiano sobre a hiância constitutiva entre a causa e o que ela afeta. O autor ressalta que, desde as buscas freudianas por uma etiologia das neuroses (FREUD, 1895/1996FREUD, S. Estudos sobre a histeria (1895). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 2)), a interrogação sobre a causa dos sintomas histéricos culminou na hiância, na fenda, por onde a neurose se conforma a um real. É a partir dessa hiância, desse ponto de claudicação entre causa e efeito, tomado como expressão da instância inconsciente, que o impasse da causalidade é introduzido no ensino lacaniano nos anos 1960.

Segundo Lacan, a dimensão do inconsciente tomada como “algo da ordem do não realizado” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 28) emerge a partir do encontro de Freud com os sonhos, atos falhos e chistes de seus analisandos. O “pai da psicanálise” surpreende-se pelo “modo de tropeço pelo qual eles aparecem” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 29) e enxerga nestes fenômenos algo a se realizar. Assim, o que se produz na hiância entre causa e efeito é um achado, ou melhor, um “reachado”, segundo Lacan; afinal, o inconsciente “sempre está prestes a escapar de novo, instaurando a dimensão da perda” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 30). A “descontinuidade”, o “tropeço”, a “ruptura”, o “desfalecimento”, a “rachadura” são as formas com as quais Lacan nos apresenta o inconsciente freudiano na referida lição II de seu Seminário 11 (1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11)); afinal, este “manifesta-se sempre como o que vacila num corte do sujeito - donde ressurge um achado que Freud assimila ao desejo - desejo que situaremos provisoriamente na metonímia desnudada do discurso em causa, em que o sujeito se saca em algum ponto inesperado” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 32).

Ilustrando essa premissa, Lacan (1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11)) se vale do célebre exemplo do esquecimento de Freud a respeito do nome do pintor Signorelli, criador dos afrescos da catedral de Orvieto, na Itália (FREUD, 1901/1987FREUD, S. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901). Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 6)). A causa de seu esquecimento não é tomada como simples acaso ou casualidade, mas como fruto de trabalho inconsciente. Posto sobre interpretação, esse esquecimento revela as bases estruturais do desejo a ele submersas, revelando o inconsciente como sujeito da enunciação: “é sempre ele quem nos põe seu enigma, e que nos fala”, reforça Lacan (1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 31).

Assim, o inconsciente tomado como “não realizado”, a partir de Freud, é expressão de uma causalidade correlata da relação do desejo ao real, não mais edificada como origem e determinação, conforme proposto pelas leis científicas. Há um hiato, uma lacuna entre a causa e o efeito, e é por essas vias, apontadas por Freud e pelos estudos filosóficos, que Lacan segue, a fim de discorrer sobre a articulação entre causa e efeito no Seminário 11.

Ablata causa, tollitur effectus

Dando continuidade aos estudos sobre a articulação entre causa e efeito no ensino lacaniano dos anos 60, chegamos até a lição X, A presença do analista, do referido Seminário 11 (1964/1993). Essa lição é dedicada, prioritariamente, à abordagem do conceito de transferência, tomado como uma relação conotada sobre um “signo de reserva particular” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 120) sobre o qual se estruturam, na figura do analista, as relações particulares do sujeito.

Nos interessa em especial a segunda parte dessa lição, na qual Lacan, reiterando seu compromisso em “renovar sua aliança com a descoberta freudiana” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 123) e, assim, “devolver ao inconsciente freudiano seu lugar” (ibidem, p. 121), retoma a noção de causa inconsciente tomada como “causa perdida” (ibidem, p. 123), destacando que o emprego do termo ‘causa’: “deve ser tomado em sua ambiguidade, causa a ser sustentada, mas também função da causa no nível do inconsciente” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 123). Ao tomar o inconsciente como causa perdida, Lacan interpreta as repetições do sujeito como tentativas falhas de alcançar esta causa, por pressuposto, faltosa. Ao tentar alcançá-la, o sujeito lança-se ao gozo mortífero da repetição.

Desenvolvendo ainda a noção de causa inconsciente tomada como causa perdida, Lacan (1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11)) retoma, na terceira parte dessa lição, a expressão latina “ablata causa, tollitur effectus”, traduzida pelo autor como: “os efeitos só se comportam bem na ausência da causa” (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 124). Ele joga com a significação dessa expressão, subvertendo seu sentido, traduzido por alguns dicionários em língua portuguesa como: “Eliminada a causa, desaparece o efeito” (DICIONÁRIO DE LATIM, 2021DICIONÁRIO DE LATIM ONLINE. Disponível em: Disponível em: https://www.dicionariodelatim.com.br/sublata-causa-tollitur-effectus/ . Acesso em: 2. jun. 2022.
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), ou seja, não existiriam efeitos senão em relação determinista com os fenômenos causais.

A subversão proposta por Lacan reforça o hiato constitutivo entre a causa inconsciente e seus efeitos, já proposto ao longo da lição II, O inconsciente freudiano e o nosso (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11)). Elucida-se, assim, que os efeitos, ao obedecerem a uma ordem causal inconsciente, são atemporais e, assim, expressam-se ou comportam-se bem mesmo na ausência da causa (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11)).

O objeto a entre a causa e o que ela afeta

Esboçada a desarticulação entre causa e efeito para o campo de estudos psicanalíticos, consequência do atravessamento do inconsciente na causalidade dos sintomas, abordaremos os estudos lacanianos estabelecidos ao longo do Seminário 10 (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O Seminário, 10)), buscando extrair deste algumas formulações sobre o conceito de objeto a. Na lição XVI, O que não engana, do referido seminário, Lacan reconhece as inúmeras dificuldades que o isolamento da noção de causa produziu ao longo dos anos no campo epistemológico e todos os impasses inaugurados sobre esse conceito, que há tanto já demonstrou sua insuficiência para tratar os problemas de ordem ôntica, sendo abandonado pelo campo científico. O autor, porém, justifica sua aposta nesse conceito apontando-nos a dimensão a partir da qual ainda é válido utilizá-la:

Não é a primeira vez, nem será a última, que terei que assinalar que, se a função da causalidade se mantém, após dois séculos de apreensão crítica, é justamente por estar em um lugar diferente daquele em que a refuto. Se há uma dimensão em que devemos buscar a verdadeira função, o verdadeiro peso, o sentido da manutenção da função de causa, é na direção da abertura da angústia. (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O Seminário, 10), p. 88).

Pois bem, seguindo as proposições lacanianas, é na angústia que localizaremos a verdadeira função da causa, à medida que esta é tomada como a abertura da fenda do sujeito, de sua “claudicação” - como nos diz Lacan em seu Seminário 11 (1964/1993) -, daquilo que lhe falta e que excede o trabalho simbólico. O sujeito angustiado é aquele que se pergunta sobre a causalidade de seus sintomas, que interroga seu mal-estar à medida que este torna-se insuportável e lhe pede, em sacrifício, sua “libra de carne” (LACAN. 1962-1963/2005LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O Seminário, 10), p. 139). A angústia se manifesta no encontro do sujeito com o objeto a, no ponto onde faltam, no Outro, anteparos simbólicos e imaginários capazes de recobrir a falta constituinte do sujeito, produto da operação simbólica da castração (-φ).

Ainda no Seminário 10 (1962-1963/2005LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O Seminário, 10)), Lacan sustenta a cisão existente entre os objetos do desejo e o objeto causa de desejo. Os primeiros podem tomar as mais variadas formas: o sujeito anseia por uma casa, um carro, “um sapatinho, o seio, seja lá o que for” (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O Seminário, 10), p. 116), porém, ele só deseja à medida que é causado pelo objeto a. O objeto a é, assim, um vazio estrutural propulsor do desejo, a partir do qual o sujeito se lança em um movimento infindável por satisfação. Os objetos do desejo, conforme nos aponta Viola a respeito do termo lacaniano, “tentam recobrir o vazio do a com os véus que são seus atributos, mas são sempre tentativas vãs, daí a perene insatisfação do desejo” (VIOLA, 2009VIOLA, D. A formulação do objeto a a partir da teorização lacaniana acerca da angústia. Revista Mal-estar e Subjetividade, Fortaleza, v. 19, n. 3, p. 867-903, 2009., p. 899).

Deste modo, a novidade introduzida por Lacan diz respeito à mediação do Outro na relação entre o sujeito e os objetos de desejo existentes na realidade. A dimensão do Outro é expressa pela via significante, por meio da qual o objeto a, causa de desejo, é apreendido como resto resistente à simbolização. A relação do sujeito com o Outro propulsiona, para além de sua inserção no campo da linguagem, a apreensão de sua imagem especular, o que Lacan nos elucida no seguinte trecho:

Quanto mais o homem se aproxima, cerca e afaga o que acredita ser objeto de seu desejo, mais é, na verdade, afastado, desviado dele. Tudo que ele faz nesse caminho para se aproximar disso, dá sempre mais corpo ao que no objeto de desejo representa a imagem especular. (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O Seminário, 10), p. 51).

A imagem especular, referenciada por Lacan (1962-1963/2005LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O Seminário, 10)), oferece uma consistência senão faliciosa ao Eu, à medida que se sustenta por um vazio intransponível à significação: o objeto a. As formulações do autor sobre esse objeto no referido Seminário 10 caminham em consonância com suas articulações anteriores sobre a constituição imagética do Eu e suas articulações no campo do desejo, a partir do jogo de identificação imaginária denominado estádio do espelho, formalizado por ele anos antes. Nesse jogo, a criança diante do espelho convoca o olhar do Outro para que este ratifique a imagem ali refletida, criando, assim, o que Lacan (1949/1998LACAN, J. Formulações sobre a causalidade psíquica (1946). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.) chama de sua “imagem especular” [i(a)].

Greco (2011GRECO, M. Os espelhos de Lacan. Revista Opção Lacaniana, v. 2, n. 6, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero6/texto9.html . Acesso em: maio 2020.
http://www.opcaolacaniana.com.br/nranter...
) ao comentar o texto lacaniano (1949/1998), nos aponta que a imagem especular da criança ocupa o lugar de “eu-ideal” e antecipa uma unidade em seu corpo desfragmentado a partir do olhar do Outro. Trata-se aqui de um corpo virtual marcado pelo significante e habitado pela libido:

[...] a visão do corpo inteiro no espelho desperta manifestações de júbilo na criança, que, imediatamente, olha para o adulto para encontrar, no olhar do outro, a confirmação do que vê no espelho, que passa a ser admirado por ela como seu eu ideal. (GRECO, 2011GRECO, M. Os espelhos de Lacan. Revista Opção Lacaniana, v. 2, n. 6, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero6/texto9.html . Acesso em: maio 2020.
http://www.opcaolacaniana.com.br/nranter...
, p. 4.).

Essa imagem é, de partida, uma imagem ilusória, na qual a criança se aliena e que necessita ser reiteradamente autenticada pelo Outro para ganhar seus contornos. Desse modo, à menor distância que o sujeito toma do campo do Outro, ele corre o risco de desfragmentar-se, pois, conforme pontua Vieira, “nosso corpo vem do Outro” (VIEIRA, 2018VIEIRA, M. A.; DE FELICE, T. A arte da escrita cega: Jacques Lacan e a letra. Rio de Janeiro: Subverso, 2018., p. 147) e também do pequeno outro: a alteridade representada no espelho. Porém, é o Outro da linguagem que nos garante o distanciamento do plano imaginário da rivalidade narcísica. Lacan desenvolve essa ideia na lição IX do Seminário 10, por meio dos fenômenos de despersonalização, que são a seu ver, “os fenômenos mais contraditórios da estrutura do eu como tal” (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O Seminário, 10), p.134).

“A despersonalização começa pelo não reconhecimento da imagem especular” (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O Seminário, 10), p. 134), quando o sujeito não se encontra diante do espelho e, no lugar de -φ (menos phi), emerge uma hiância, um furo de significação incapaz de recobri-lo, revelando aquilo que não se projeta na imagem especular. Esse resto não simbolizável, produto da operação de constituição subjetiva do sujeito, é nomeado por Lacan como objeto a: “é na relação do sujeito com o Outro que ele [o objeto a] se constitui como resto” (LACAN, 1962-1963/2005LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O Seminário, 10), p. 128, colchetes nossos).

Seguindo esses pressupostos, Colette Soler, em seu Seminário de leitura do texto lacaniano (2012SOLER, C. Seminário de Leitura de texto ano 2006-2007: seminário “A angústia”, de Jacques Lacan. São Paulo: Escuta, 2012.), nos ajuda a elucidar a inscrição a partir da qual deriva o termo i(a), tomado como expressão da imagem especular. Ele é composto por duas inscrições: ‘i’ é expressão do primeiro investimento libidinal na imagem, enquanto ‘(a)’ representa o resto inassimilável deste investimento, já que “nem tudo se investe na imagem” (SOLER, 2012SOLER, C. Seminário de Leitura de texto ano 2006-2007: seminário “A angústia”, de Jacques Lacan. São Paulo: Escuta, 2012., p. 29). Há um resíduo não imaginado do corpo, uma presença irrepresentável na imagem, nomeada como objeto a. O jogo de constituição imagética do eu fica assim submetido a esse resto operador, furo escavado no real pela linguagem e fundamento do sujeito desejante, pois isto que está perdido e não se projeta na imagem especular do sujeito é o que lhe garante a propulsão dos movimentos que o apetecem (SOLER, 2012SOLER, C. Seminário de Leitura de texto ano 2006-2007: seminário “A angústia”, de Jacques Lacan. São Paulo: Escuta, 2012.).

Posto isso, com Costa-Moura (2006COSTA-MOURA, F. O inconsciente entre a causa e o que ela afeta. Revista Psychê, São Paulo, ano X, n. 19, p. 81-94, 2006. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psyche/v10n19/v10n19a06.pdf . Acesso em: 2. jun. 2022.
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), podemos pensar que Lacan opera uma reviravolta na noção da causa ao inseri-la, pelas vias da angústia, no campo da “objetalidade” deste objeto advindo de um corte que o significante incide no corpo por meio das tentativas reiteradas do sujeito em apreender sua imagem virtual.

Assim, elucida-se que o que leva Lacan a se valer da noção de causa, nesse tempo de seu ensino, é sua aplicação ao campo dos problemas éticos, não ônticos. O campo dos problemas éticos na psicanálise é, prioritariamente, o campo de expressão do desejo. Assim, ao adotar a noção de causa em sua obra, Lacan a localiza neste ponto de claudicação, de fratura do campo simbólico, denominado como objeto a. A partir dele, o desejo é causado, vivifica-se e impulsiona-se em busca de satisfação. Com essa formulação, Lacan reitera a desarticulação entre causa e efeito, a partir não só da hiância entre estas duas instâncias, mas desse ponto de não inscrição simbólica radical, responsável pela divisão estrutural do sujeito, a partir do qual a noção de causa passa a ser pensada.

Conclusão: “só existe causa para o que manca”

O percurso de investigação teórica realizado ao longo deste trabalho nos revelou a hiância característica da relação de causa e efeito, propulsora da desarticulação radical entre essas duas instâncias. Enquanto Freud localiza nessa hiância as bases indeterministas de funcionamento inconsciente, tomando este registro como expressão do não realizado, como conteúdo latente a se realizar, senão, pelos furos da linguagem, Lacan seguirá pelos trilhamentos freudianos para pensar essa (des)articulação acrescentando a esta sua novidade: o objeto a tomado como objeto causa de desejo e desarticulado radicalmente ao sentido.

O esquema abaixo ilustra essa novidade operada pelo psicanalista. Nele, a causa inconsciente e sobredeterminada - indicada pelo termo (N), uma simbologia utilizada no campo das matemáticas como expressão do conjunto infinito de números naturais, ou seja, expressão do número infinito de causas possíveis à expressão do sintoma - opera mais além da ação do recalque, subvertendo a proposta freudiana, e instaura-se a partir do atravessamento do objeto causa de desejo, inscrito sobre a nomeação a ou (-φ). Ainda que o objeto a seja tomado como objeto causa, sua completa desarticulação com o campo do sentido ou com qualquer tentativa de localização simbólica nos faz apostar em representá-lo no esquema em meio a diversas setas, expressão do lugar qualquer sobre o qual esse logro pode se instaurar, provocando a cisão entre a causa e o que ela afeta. Considerando essa prerrogativa, os círculos representantes dessas duas instâncias encontram-se desarticulados no esquema e o campo dos efeitos é representado pelo advento do sujeito barrado e de seu sintoma, tomados como efeitos do trabalho inconsciente e da ação do recalque.

Figura 1
Esquema da relação entre causa e efeito na obra lacaniana.

Assim, ao inserir o objeto a no registro da causa, Lacan revela a hiância constitutiva do registro causal do desejo, indo mais além da proposta freudiana que localiza a ação do inconsciente como ponto desarticulador entre causa e efeito. A hiância constitutiva do registro causal, instaurada pelo objeto a causa de desejo, impede que este se articule com uma representação simbólica capaz de assegurar uma causalidade determinista aos fenômenos interrogados. Qualquer representação, tomada como causa, abarcará, por pressuposto, uma falta inerente ao registro simbólico, esboço do ponto de claudicação da relação entre causa e efeito. Essa claudicação sinaliza não somente a hiância constitutiva dessa relação, mas expressa o encontro do sujeito com a desarticulação do registro do sentido, de seu encontro com o real, o que o faz tropeçar, mancar, queixar-se. “Só há causa para o que manca”, como nos diz Lacan (1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11), p. 27). A mancada expressa a impossibilidade do sujeito em localizar a causa de seu sintoma, afinal, esta é atravessada pelas vias inconscientes do desejo, vias estas “não realizadas” ou prestes a se realizar em consequência da ação do recalque (LACAN, 1964/1993LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11)).

Esboça-se assim que, se atrelarmos a causa em psicanálise a um fato objetivo, cuja existência independe do sujeito, ele pouco se implicará na causalidade de seus sintomas. Porém, ao se deparar com esse tropeço, com a impossibilidade de predizer uma causa específica para os efeitos que arrebatam seu corpo, o sujeito é convocado a se implicar no mal-estar do qual ele se queixa e, assim, tomar-se como efeito de causas inconscientes.

Com Lustoza (2006LUSTOZA, R. Z. O problema da causalidade psíquica na psicanálise. Tese de doutorado, Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.), podemos pensar que a relação entre causa e efeito em psicanálise é, assim, inseparável da posição assumida pelo sujeito, sendo este responsável por aquilo que o causa. A causa, tomada como objeto a, não pertence ao registro objetivo, sendo, antes, aquilo que há de êxtimo no registro subjetivo do sujeito. Assim, “se há algo do qual o sujeito não pode se eximir, alegando ter sido vitimado por uma fatalidade que o constrangeu, é o campo do desejo e do gozo” (LUSTOZA, 2006LUSTOZA, R. Z. O problema da causalidade psíquica na psicanálise. Tese de doutorado, Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006., p. 182) instaurados pelo objeto a.

Deste modo, considerando a dimensão real que atravessa a causalidade dos fenômenos em psicanálise, podemos pensar a relação de causa e efeito como uma operação de negativização estruturada a partir da disjunção constitutiva instaurada pelo objeto a. Para a psicanálise, a relação de causa e efeito se constitui a partir dessa perda primitiva não significantizável que resta como corpo vivo, inquietando e impelindo o circuito pulsional dos desejos.

REFERÊNCIAS

  • COSTA-MOURA, F. O inconsciente entre a causa e o que ela afeta. Revista Psychê, São Paulo, ano X, n. 19, p. 81-94, 2006. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psyche/v10n19/v10n19a06.pdf Acesso em: 2. jun. 2022.
    » http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psyche/v10n19/v10n19a06.pdf
  • DICIONÁRIO DE LATIM ONLINE. Disponível em: Disponível em: https://www.dicionariodelatim.com.br/sublata-causa-tollitur-effectus/ Acesso em: 2. jun. 2022.
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  • FREUD, S. Estudos sobre a histeria (1895). Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 2)
  • FREUD, S. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901). Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 6)
  • GRECO, M. Os espelhos de Lacan. Revista Opção Lacaniana, v. 2, n. 6, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero6/texto9.html Acesso em: maio 2020.
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  • LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. (O Seminário, 10)
  • LACAN, J. Formulações sobre a causalidade psíquica (1946). In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
  • LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do Eu (1949). In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
  • LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 1993. (O Seminário, 11)
  • LUSTOZA, R. Z. O problema da causalidade psíquica na psicanálise Tese de doutorado, Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.
  • SOLER, C. Seminário de Leitura de texto ano 2006-2007: seminário “A angústia”, de Jacques Lacan. São Paulo: Escuta, 2012.
  • TRINDADE, M. L. A. A estrutura de linguagem do inconsciente e os novos sintomas Dissertação de mestrado, Programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2008.
  • VIEIRA, M. A.; DE FELICE, T. A arte da escrita cega: Jacques Lacan e a letra. Rio de Janeiro: Subverso, 2018.
  • VIOLA, D. A formulação do objeto a a partir da teorização lacaniana acerca da angústia. Revista Mal-estar e Subjetividade, Fortaleza, v. 19, n. 3, p. 867-903, 2009.
  • 1
    Henri Ey (1900-1977) foi um neurologista, psiquiatra e psicanalista contemporâneo de Jacques Lacan, com quem este manteve boas relações de trabalho até os anos de 1940.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Jun 2022
  • Aceito
    09 Nov 2023
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