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Um caso de bilingüismo: a construção lexical, pragmática e semântica

A bilingualism case: a lexical, pragmatic and semantics construction

Resumos

OBJETIVO: relatar a atuação fonoaudiológica em um caso de bilingüismo precoce. MÉTODOS: relato de caso de paciente do sexo masculino, bilíngüe desde a infância. Encaminhado para atendimento fonoaudiológico, aos 2:4 meses, com a queixa familiar de não se comunicar verbalmente. Descrição através de dados da avaliação e terapia fonoaudiológica ao longo de 2:3 meses de acompanhamento. RESULTADOS: a avaliação fonoaudiológica, baseada na observação informal, constatou presença de formas comunicativas intencionais elementares, caracterizando um atraso simples de linguagem, tendo o bilingüismo como causa. A terapia moldou-se e modificou-se conforme as evoluções do paciente. O paciente obteve crescimento relacionado ao uso do português nos aspectos pragmático, semântico e lexical, atingindo o objetivo principal das intervenções. CONCLUSÃO: a fonoterapia mostrou-se efetiva, contribuindo para proporcionar uma melhor qualidade de comunicação e fala ao paciente, essencialmente no que diz respeito ao uso da língua portuguesa.

Fala; Multilinguismo; Desenvolvimento da Linguagem


PURPOSE: to report on speech therapy performance in a precocious bilingualism case. METHODS: report of a male patient case, bilingual since his childhood. Referred to a speech therapy attendance, with the age of two years and four months, with a familiar complaint about his non-verbally communication. Description through assessment data and speech language therapy for three months. RESULTS: the speech language therapy assessment, based on informal observation, found out some elementary intentional aspects of communication forms, characterizing a simple lateness of language, having the bilingualism as a cause. The therapy adapted and changed itself according to the patient evolutions. The patient gained development related with the use of Portuguese in pragmatic, semantics and lexical aspects, achieving the main purpose of interventions. CONCLUSION: the speech language therapy was efficient, contributing to afford a better quality of communication and speech to the patient, essentially with regards to the use of Portuguese language.

Speech; Multilingualism; Language Development


LINGUAGEM

RELATO DE CASO

Um caso de bilingüismo: a construção lexical, pragmática e semântica

A bilingualism case: a lexical, pragmatic and semantics construction

Bianca Correia FerronattoI; Erissandra GomesII

IFonoaudióloga da Prefeitura Municipal de Feliz – RS; Especialização em Linguagem pelo CEFAC – Saúde e Educação

IIFonoaudióloga; Docente do Curso de Fonoaudiologia do Centro Universitário Metodista IPA; Mestre em Ciências Médicas: Pediatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rua Barão de Teffé, 130/302 Porto Alegre – RS CEP: 90160-150 Tel: (51) 91131359 E-mail: bcf.ez@terra.com.br

RESUMO

OBJETIVO: relatar a atuação fonoaudiológica em um caso de bilingüismo precoce.

MÉTODOS: relato de caso de paciente do sexo masculino, bilíngüe desde a infância. Encaminhado para atendimento fonoaudiológico, aos 2:4 meses, com a queixa familiar de não se comunicar verbalmente. Descrição através de dados da avaliação e terapia fonoaudiológica ao longo de 2:3 meses de acompanhamento.

RESULTADOS: a avaliação fonoaudiológica, baseada na observação informal, constatou presença de formas comunicativas intencionais elementares, caracterizando um atraso simples de linguagem, tendo o bilingüismo como causa. A terapia moldou-se e modificou-se conforme as evoluções do paciente. O paciente obteve crescimento relacionado ao uso do português nos aspectos pragmático, semântico e lexical, atingindo o objetivo principal das intervenções.

CONCLUSÃO: a fonoterapia mostrou-se efetiva, contribuindo para proporcionar uma melhor qualidade de comunicação e fala ao paciente, essencialmente no que diz respeito ao uso da língua portuguesa.

Descritores: Fala; Multilinguismo; Desenvolvimento da Linguagem

ABSTRACT

PURPOSE: to report on speech therapy performance in a precocious bilingualism case.

METHODS: report of a male patient case, bilingual since his childhood. Referred to a speech therapy attendance, with the age of two years and four months, with a familiar complaint about his non-verbally communication. Description through assessment data and speech language therapy for three months.

RESULTS: the speech language therapy assessment, based on informal observation, found out some elementary intentional aspects of communication forms, characterizing a simple lateness of language, having the bilingualism as a cause. The therapy adapted and changed itself according to the patient evolutions. The patient gained development related with the use of Portuguese in pragmatic, semantics and lexical aspects, achieving the main purpose of interventions.

CONCLUSION: the speech language therapy was efficient, contributing to afford a better quality of communication and speech to the patient, essentially with regards to the use of Portuguese language.

Keywords: Speech; Multilingualism; Language Development

INTRODUÇÃO

Existem numerosas definições para o termo bilingüismo, uma vez que os critérios para se considerar um sujeito bilíngüe são muito variados 1-3. A visão atual define o bilíngüe como sendo o falante que possui competência bilíngüe calcada em um sistema reestruturado com propriedades articulatórias e acústicas próprias as quais dependem da interação de muitas variáveis, inclusive da interação dos sistemas fonéticos das duas línguas 1. O bilingüismo precoce - bilingüismo de infância ou consecutivo - refere-se à aquisição simultânea de mais de uma língua durante o período de aquisição e desenvolvimento da linguagem primária, incluindo os primeiros cinco anos de vida 4. Dessa forma, os termos língua nativa ou língua mãe acabam por não se adequar ao contexto da criança bilíngüe de infância, já que, interagindo com mais de uma língua desde o início da aquisição da linguagem, nenhuma delas pode ser considerada a primeira ou a mais sabida 1. Nesse sentido, para efeito deste estudo de caso, a definição da criança bilíngüe precoce parece estar mais próxima do que se considera um bilíngüe.

Segundo a literatura, não existem bilíngües perfeitos, pois ninguém consegue ter o mesmo nível de conhecimento e expressão em duas línguas distintas 2,3. Embora não existam estatísticas precisas, na atualidade a aquisição bilíngüe simultânea constitui fato comum, sendo resultante de inúmeras situações, tais como: casamentos entre membros de grupos lingüísticos diversos, pressões sócio-econômicas, migrações maciças das populações, primeira geração de filhos de imigrantes, dentre outras. A aquisição simultânea de duas línguas é provavelmente muito comum, não devendo ser considerada excepcional quando analisada em confronto com os ambientes de aprendizado da primeira linguagem dispersos culturalmente por todo o mundo 4.

O desenvolvimento da linguagem bilíngüe em crianças pré-escolares pode divergir do desenvolvimento monolíngüe em aspectos superficiais, mas fundamentalmente os processos são idênticos. As crianças bilíngües empregam as mesmas estratégias de aquisição que as crianças monolíngües, sendo, porém, capazes de utilizar seus sistemas lingüísticos em desenvolvimento de maneira diferenciada sob o ponto de vista contextual 4.

Embora não mantenham dois códigos lingüísticos inteiramente separados, a competência lingüística do bilíngüe não pode ser mensurada com base nos padrões de proficiência dos monolíngues 1. Nesse sentido, alguns bilíngües cometem erros resultantes das interferências de traços pertencentes a uma língua, enquanto falam ou escrevem outra 5. Tais erros são considerados marcas daquilo que está sendo re-arranjado na produção lingüística da criança, sendo que a "reorganização" dos erros demonstra uma reflexão da criança sobre a língua 6. Assim, a possibilidade de efeitos da interação e suas implicações durante a aquisição simultânea de duas línguas têm constituído preocupações essenciais nas pesquisas sobre o desenvolvimento bilíngüe precoce. Da mesma forma, no que se refere às diferenças individuais (idade, estilo cognitivo, personalidade, tipo e proporção de exposição, atitudes e motivação) na aquisição da segunda língua 4.

No processo inicial de aquisição da linguagem existirão diferenças individuais entre crianças desenvolvendo-se com duas ou mais línguas. O ambiente de input lingüístico mais rico leva a um melhor desenvolvimento das habilidades relevantes para a discriminação fonêmica 1. Assim, crianças expostas ao ambiente bilíngüe desenvolvem habilidades perceptuais que as habilitarão a distinguir entre as suas duas línguas. Quanto mais cedo as crianças são expostas a duas línguas distintas, maiores serão suas habilidades na competência lingüística e menores suas dificuldades para estabilizar o sistema fonológico dessas línguas 7. A aquisição bilíngüe não prejudica a consciência fonológica do português 8. Entretanto, meios desfavoráveis à criança, no período de desenvolvimento crítico da linguagem, podem acarretar atraso 9,10. Para que a linguagem seja adquirida no tempo esperado o ambiente deve oferecer estimulação suficiente. Nesse sentido, o meio no qual há escassez de estimulação ou exagero na superproteção, torna-se contraproducente 9,10.

Por fim, o objetivo desse trabalho é descrever a intervenção fonoaudiológica em uma criança exposta à aquisição de duas línguas diferentes, simultaneamente e com dificuldades, durante o período de aquisição e desenvolvimento da linguagem. A intervenção fonoaudiológica inclui a avaliação, as etapas do desenvolvimento da terapia e a evolução apresentada pelo paciente.

MÉTODOS

O fator em estudo é a terapia fonoaudiológica num caso de bilingüismo precoce, incluindo a avaliação e a descrição da terapia realizada durante 2:3 meses, uma vez por semana. O desfecho é a evolução que a criança vai apresentando ao longo da intervenção. O estudo é experimental, não comparado e considera o aspecto analítico dos eventos.

O caso apresentado é de um paciente atendido em consultório multidisciplinar localizado na cidade de Feliz/RS. Os atendimentos fonoaudiológicos foram realizados por uma fonoaudióloga que compreendia e falava o dialeto alemão, característico desta região do estado do Rio Grande do Sul. O paciente foi acompanhado pela fonoaudióloga dos 2:3 meses até 4:6 meses de idade.

A anamnese realizada, de acordo com o protocolo utilizado no Serviço de Fonoaudiologia, coletou os seguintes dados: identificação, queixa principal, resumo das principais intercorrências no período pré, peri e pós-natal, desenvolvimento da linguagem (início das vocalizações, balbucio, primeiras palavras), sociabilidade (cuidadores, com quem convive/contato), antecedentes fisiopatológicos, uso de medicação contínua, uso de outro idioma na residência, rotina diária da criança e tratamentos anteriores. O paciente, sem queixas auditivas, apresentava histórico de uma criança saudável, com potencial intelectual e desenvolvimento cognitivo de acordo com sua faixa etária. Não possuía alterações neurológicas ou de sistema sensório motor oral, tendo sido exposto, desde a nascença, a duas línguas diferentes: o português e o dialeto alemão. Não havia a presença de deficiência mental e/ou indícios de transtornos psicológicos evidentes. A avaliação psicológica e neurológica foi realizada por profissionais especializados.

A análise dos dados da anamnese identificou paciente do sexo masculino, filho único, encaminhado com a queixa de não estar se comunicando verbalmente. Residindo em área rural, era ausente do convívio com outras crianças, permanecendo, durante o dia, sob os cuidados da avó e do tio. Membro de uma família de origem alemã, a qual faz uso do dialeto alemão para se comunicar/ em casa/ e na comunidade, usava gestos de apontar e movimentos de cabeça para indicar afirmação ou negação, a fim de se comunicar com a família e buscar o que desejava ou tinha necessidade.

A avaliação da linguagem foi baseada na observação comportamental informal, seguindo tópicos sugeridos por alguns autores 11-15. Durante as atividades lúdicas que foram propostas, considerou-se as fases de desenvolvimento da linguagem, a função simbólica e os indicadores do desenvolvimento no decurso do segundo ano de vida 11. Não foi possível aplicar uma avaliação objetiva em decorrência das características individuais do paciente.

Nos primeiros contatos entre a terapeuta e o menino, com 2:4 meses de idade, sob avaliação fonoaudiológica, em observação comportamental informal 11-15, percebia-se logo que era uma criança tímida, com adequado desenvolvimento psicomotor, sistema orofacial sem alterações e atenção auditiva. Entretanto, não compreendia nada do que lhe era comunicado verbalmente em português e, por isso, possuía dificuldades em permanecer no ambiente terapêutico, apresentando comportamentos atípicos.

Ao longo deste relato de caso apresentar-se-á os resultados, correlacionando-os com os dados da literatura. A presente pesquisa foi avaliada pelo Comitê de Ética e Pesquisa do CEFAC – Saúde e Educação, aprovada sob n°86/06 e considerada sem risco. Os pais concordaram com o estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS

A avaliação da linguagem, baseada na observação comportamental informal do paciente durante atividades lúdicas 11-15 constatou, aos 2:6 meses, fase inicial da terapia, que o paciente apresentava muitos procedimentos comunicativos intencionais elementares, envolvendo ações como apontar ou levar a mão do adulto ao objeto desejado, utilizando poucos gestos comunicativos convencionais 11. Essas constatações foram observadas na sala de espera enquanto a criança interagia com seu familiar, quando se buscava a criança para o atendimento e durante as várias sessões em que a criança solicitava os brinquedos desejados apenas para manipulá-los rapidamente e saciar sua curiosidade.

As únicas produções vocais que fazia eram o riso contextualizado, o choro e o grito em manifestação de contrariedade e protesto. A continuidade desse comportamento permaneceu durante várias sessões semanais. Aos poucos, mostrava-se ao menino que ele poderia utilizar a boca para provocar reações nos objetos (soprar o catavento para que girasse, soprar a corneta ou flauta para que emitissem sons) e, assim, obter prazer oral 16 e motivação 17,18. Essa estrutura de sessão, focada na motivação e na atenção conjunta, foi mantida durante aproximadamente 3 meses e durava, em média, 15 minutos. O paciente tinha liberdade para manipular qualquer brinquedo e fazia-o de forma sensório-motora, de acordo com sua faixa etária 19.

Após 4 meses de fonoterapia, começou a demonstrar interesse, durante as atividades lúdicas, pela carreta com animais (instrumento típico da região) em miniatura. Nesse momento, ainda sem trocas verbais comunicativas, começou a usar esse brinquedo como forma de interação contextualizada 17, compartilhando a atividade com o terapeuta, seguindo os preceitos do socio-interacionismo 13,17,20, modificando-se o enfoque da terapia e o material usado. Na sessão terapêutica, fazia-se referência aos animais chamando-os de "bichos", nomeando-os em português e depois correlacionando com o alemão gramatical. Produzia-se, também, a onomatopéia dos mesmos. Nesse momento, o paciente começou a gostar e a permanecer mais tempo nas sessões, as quais começavam a durar 30 minutos, estabelecendo vínculo terapêutico forte e imitando alguns dos sons que eram produzidos, tornando evidente o papel da imitação diferida e da fala imitativa 11,17. Surgia uma fala rudimentar.

Ao final do primeiro ano de terapia, fazendo uso de livros infantis com fotos de animais, ou de desenhos no quadro negro, era solicitada ao menino a nomeação das figuras, obtendo-se como resposta, para todos os animais: "bicho!". Apareciam as primeiras palavras com múltiplas significações 11. Em algumas situações, a criança produzia frases com várias palavras em alemão rudimentar, como quem quer contar algo. Esses momentos eram interpretados como funcionais, no intuito de estimular suas produções vocais.

Decorridos 1:6m de terapia, quando já estava com 3:9m de idade, a queixa da família passou a ser a de que o menino falava (dialeto alemão), mas como não se fazia compreender, ficava bravo e agressivo.

Depois de orientar, sem sucesso, a família a colocá-lo em contato com outras crianças ou numa creche 11 e a não atender prontamente suas manifestações gestuais, modificou-se a conduta terapêutica. O atendimento passou a ser feito conjuntamente com uma menina que falava o português e entendia o alemão, já que residia na mesma região que o paciente, e que possuía apenas algumas alterações em aspectos fonológicos. O paciente começou a diversificar o material que utilizava para brincar, fazendo várias trocas de brinquedos durante as sessões terapêuticas e competindo com sua parceira nos jogos que estimulavam a ampliação de vocabulário. Passou a usar mais intensamente a questão da imitação e da interação com a menina. Demonstrava interesse pelos lápis de cor e pela escrita (desenho). Ao final de 2:4 meses de terapia, seu vocabulário em português havia ampliado, já conseguindo nomear alguns animais. Usava muitas frases em alemão, agora inteligíveis e com alguns elementos em português. Começaram a aparecer as primeiras dificuldades de fala com o desenvolvimento da língua portuguesa.

Houve evolução do paciente com relação aos aspectos lingüísticos de pragmática, semântica e léxico. A pragmática desenvolveu-se à medida que foram criadas situações terapêuticas que provocavam uma necessidade de se comunicar para obter algo, atrair a atenção das pessoas ou manter a atenção conjunta. Esse desenvolvimento ocorreu, principalmente, com a inserção de um terceiro sujeito na sessão terapêutica. O léxico e a semântica desenvolveram-se simultaneamente quando a criança era envolvida em atividades lúdicas que empregavam brinquedos de seu interesse e figuras.

A Tabela 1 relaciona, de forma resumida, a evolução dos aspectos pragmáticos ao longo do processo terapêutico com a idade cronológica do paciente. Enquanto a Tabela 2 correlaciona as características lexicais e semânticas com a respectiva idade do paciente durante o período em que esteve em acompanhamento fonoaudiológico.

DISCUSSÃO

A terapia baseou-se no sócio-interacionismo 13,17 com atividades lúdicas, envolvendo o brincar e o jogar. Estudos apontam para a importância das atividades lúdicas na construção do conhecimento, no desenvolvimento cognitivo e na formação social da criança. A criança que brinca experimenta frustrações, alegrias e aprende a ter limites. O papel do adulto na brincadeira consiste em favorecer um ambiente facilitador de descobertas e crescimento 21,22. A evolução no modo de brincar está relacionada com o desenvolvimento cognitivo e lingüístico da criança 12,19 com sua faixa etária 22. Quando se está entusiasmado com a brincadeira, a linguagem verbal torna-se mais fluente 21.

A linguagem se estabelece quando a criança domina três aspectos importantes: o pragmático, que corresponde à intenção social da comunicação; o semântico, que é o conteúdo a ser comunicado; e o gramatical, que se subdivide em sintaxe, morfologia e fonologia. A sintaxe diz respeito às regras que regem as sentenças que falamos; a morfologia, às menores unidades significativas de nossa língua; e a fonologia, aos sons ou fonemas 23. Devido a esses fatores, foram enfocados no presente estudo de caso os aspectos pragmáticos, lexicais e semânticos. A criança que possui dificuldades de expressão e produção verbal pouco inteligível pode ter como origem de seu problema déficits de vocabulário que restringem suas produções de fala e déficits gramaticais que a impedem de se expressar de acordo com as regras implícitas da comunicação 16.

As crianças com atraso simples de linguagem são geralmente normais no plano afetivo, intelectual, neurológico e auditivo, no entanto, falam menos em quantidade e qualidade. Tais crianças não apresentam problemas para imitar e sua comunicação costuma ser realizada com muitos gestos e onomatopéias, porquanto sua linguagem receptiva é bem superior à expressiva 10,11. As causas podem ser: o ambiente sem estimulação ou com estímulos impróprios, o bilingüismo (quando há presença de uma segunda língua sem o domínio de uma primeira), a relação mãe-filho inadequada, fatores hereditários, dentre outras 10.

A evolução no desenvolvimento lingüístico do sujeito da pesquisa ocorreu da seguinte forma: aos 30m de idade apresentava formas comunicativas intencionais elementares (apontar o objeto, levar a mão do adulto ao local desejado) esperadas para a idade de 8-12m 11; aos 36m continuava com essa conduta, tendo incorporado outras que seriam apropriadas a uma criança com cerca de 24m (condutas instrumentais e uso convencional dos objetos) 11; por volta dos 48m começou a usar palavras com múltiplas significações, próprias para uma criança entre 18-24m 11, enquanto já formava frases rudimentares em alemão. Aos 4:6m já incorporava enunciados de dois elementos e novas palavras com a omissão de letras no português, comportamento lingüístico aceitável para crianças de 24-36m 11. Nessa época, apareceram frases fluentes em alemão. Ao final da terapia, a criança já havia aumentado sua expressão verbal, fazendo uso ora do dialeto alemão, ora da língua portuguesa para se comunicar. Também se socializou, interagindo com pessoas estranhas e aprendendo certos limites sociais, como guardar o brinquedo após usá-lo.

Há um estudo que se refere à intervenção precoce como efetiva, quando se busca amenizar as conseqüências ou prejuízos que situações específicas geram no curso evolutivo da linguagem. As dificuldades na evolução da expressão verbal podem persistir em função das características da criança, da família ou do meio 11. Características individuais do paciente fizeram com que ele demorasse muito para estabelecer vínculo e engajar-se na terapia, o que prolongou o tempo de atendimento. No momento que ele começou a participar ativamente, evoluiu rapidamente na expressão verbal, conseguindo equiparar-se a uma criança de sua faixa etária, comprovando a importância e eficiência das intervenções precoces.

A resistência da família em aderir às orientações para usar somente o idioma português com o paciente, retardando também o tempo de terapia, é explicada através de estudos sobre a preservação da língua símbolo da origem de uma família. Eleger a língua que representa a origem de um grupo familiar, de forma consistente, como língua primordial no espaço da casa, parece ser a maneira mais eficiente de contribuir para o desenvolvimento da competência comunicativa. Essa postura é perfeitamente visível em famílias de cultura tradicional. A imposição do uso da língua de origem em casa atende a duas necessidades expressas pelos adultos: a primeira refere-se ao desejo de assegurar a manutenção da identidade e do vínculo com a terra de origem; a segunda manifesta a garantia de preservar a autoridade paterna/materna na dinâmica das relações interpessoais no contexto familiar, mantendo a estabilidade na hierarquia de poder entre as gerações 24.

O desenvolvimento lexical sofre interferência do ambiente lingüístico e das condições sócio-econômico-culturais da criança 25. O input lingüístico dos familiares e as habilidades cognitivas da criança podem contribuir para seu crescimento 26, uma vez que, antes de ocorrer a explosão do vocabulário, quase metade das palavras usadas pelas crianças são de nomes de objetos familiares 27. O paciente do estudo iniciou suas produções verbais em português na terapia, a partir da nomeação de objetos que representavam sua realidade, acompanhados de seus respectivos significados, denunciando que seu ambiente e seu input lingüístico familiar não eram suficientemente estimulantes nesse sentido e, por isso, suas evoluções eram lentas. Os aspectos pragmáticos da linguagem são desenvolvidos à medida que a criança apresenta uma razão ou motivação para se comunicar, quando surgem situações que provocam uma necessidade comunicativa 23 e quando ocorre a satisfação dessa necessidade, após o uso da expressão verbal. A terapia foi conduzida de acordo com esses aspectos alcançando, então, resultados positivos.

O paciente em questão expressava-se melhor em alemão do que em português ao final do período de terapia relatado. Assimetrias dessa natureza podem revelar diferenças de exposição e de possibilidades de uso de uma língua em relação à outra 2. Isso sugere que a melhor performance em alemão pode significar que não houve exposição suficiente ao português até o momento e que o uso desse idioma ainda está muito pouco presente na rotina desta criança.

Dificuldades afetivas e sociais são freqüentemente encontradas em indivíduos que não conseguem falar ou se expressar de modo a serem compreendidos 11, o que acaba gerando constante frustração. A frustração gera raiva e agressão, o que foi percebido nos primeiros contatos com o paciente. A agressividade por meio de ataque, protesto ou rebeldia não só faz com que o paciente minimize, temporariamente, sua dificuldade, como também o faz desfrutar da vingança em reconhecer pontos fracos nos outros, atacando aqueles que tornam sua realidade desagradável 16. Talvez o mais frustrante de tudo seja a incapacidade de utilizar a fala como meio de expressão de si mesmo 16. Nesses casos, ao invés de contestar diretamente a raiva do paciente, a literatura sugere que o terapeuta, sem exigir que o paciente fale, solicite sua ajuda para realizar uma tarefa da qual ele é capaz 16. De forma semelhante agiu-se com o paciente desse estudo, oportunizando atividades orais lúdicas estimulantes.

Independente das diversas concepções sobre inteligência e sua relação com a aprendizagem, fica evidente que primeiro o indivíduo deve estar motivado a aprender algo. Estimular a motivação é aproveitar ao máximo as potencialidades de cada um 18. Exatamente por isso, a motivação foi um dos principais focos na terapia realizada.

CONCLUSÃO

O tratamento fonoaudiológico demonstrou eficácia: houve aumento significativo nas trocas verbais entre a criança e seus interlocutores e ampliação do léxico, acompanhado do respectivo conteúdo semântico das palavras. Nos aspectos sociais, verificou-se melhora na qualidade da interação paciente-terapeuta e diminuição das atitudes de rebeldia/agressividade.

A partir desse estudo é possível perceber a importância da intervenção fonoaudiológica precoce nas crianças com atraso simples de linguagem e expostas a duas línguas distintas desde o início de seu desenvolvimento, como forma de prevenir graves dificuldades que poderiam surgir com o início da escolarização, caso a criança não recebesse atendimento prévio.

Recebido em: 16/01/2007

Aceito em: 04/02/2008

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Mar 2008

    Histórico

    • Recebido
      16 Jan 2007
    • Aceito
      04 Fev 2008
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