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Editorial II - disfagia orofaríngea: panorama atual, epidemiologia, opções terapêuticas e perspectivas futuras

EDITORIAL II

Disfagia orofaríngea: panorama atual, epidemiologia, opções terapêuticas e perspectivas futuras

A atuação no campo da disfagia orofaríngea vai muito além dos conceitos técnicos que envolvem este importante sintoma e suas repercussões. Atinge âmbitos filosóficos de valorização e luta pela vida, buscando oferecer condições prazerosas aos pacientes sempre que possível, além do respeito ao indivíduo e seus familiares. Sem dúvida é uma desafiadora experiência de crescimento e reflexão, que nos instiga ao estudo e à busca de alternativas, sem nos esquecermos dos conceitos éticos que permeiam nossas condutas, assim como o manejo do impacto desse contexto no universo do indivíduo disfágico.

Manifestando-se clinicamente por emagrecimento, desnutrição, desidratação e broncopneumonia aspirativa, a disfagia orofaríngea é assunto de grande importância na prática médica e fonoaudiológica, entre outras áreas envolvidas. Causa impacto na saúde pública, uma vez que afeta um número significativo de indivíduos, aumentando a morbidade e a mortalidade de pacientes com qualquer condição clínica de base.

Avanços relacionados ao entendimento fisiopatológico da disfagia e aos métodos de avaliação existentes têm proporcionado seu diagnóstico precoce e escolha de melhores opções terapêuticas, clínicas e/ou cirúrgicas frente ao paciente disfágico. Atualmente são discutidas questões relacionadas à melhora de sua qualidade de vida e à redução de potenciais complicações, por meio de programas de promoção de educação e saúde.

Observamos, neste contexto, que estudos sobre a epidemiologia da disfagia na nossa população são ainda escassos e pouco explorados. Epidemiologia é uma ferramenta muito poderosa e se utilizada adequadamente, permite dados imprescindíveis à avaliação criteriosa e metodológica do processo fisiopatológico fundamental da disfagia, aumentando a velocidade, a eficiência e eficácia da investigação científica e, conseqüentemente, embasando nossas propostas terapêuticas.

Conceitos epidemiológicos de prevalência, incidência, fatores de risco, fatores de proteção, odds ratio e risco relativo garantem que a intuição se torne ciência. Estudos de prevalência e incidência auxiliam o sensato planejamento estratégico de alocação de recursos designados à pesquisa na área da saúde, mais especificamente à disfagia orofaríngea. Já o conhecimento de fatores de risco e de proteção melhora o tratamento e diagnóstico das afecções relacionadas à disfagia, incentivando medidas preventivas.

Freqüentemente a disfagia associa-se a doenças sistêmicas ou neurológicas, acidente vascular cerebral (AVC), câncer em território de cabeça e pescoço, efeitos colaterais de medicamentos ou quadro degenerativo próprio do envelhecimento. Acomete 16% a 22% da população acima de 50 anos, alcançando índices de 70% a 90% de distúrbios de deglutição nas populações mais idosas. Estima-se que 20% a 40% dos pacientes após AVC apresentam disfagia, sendo identificada aspiração em até 55% destes. Acomete mais de 95% dos pacientes com Doença de Parkinson, sendo que apenas 15% a 20% percebem sua limitação funcional, queixando-se espontaneamente. Vale ressaltar que a broncopneumonia aspirativa é a principal causa de mortalidade na população parkinsoniana.

Observa-se que existe uma gama enorme de condições clínicas associadas à presença da disfagia. Para se ter o completo conhecimento da epidemiologia da disfagia, seria necessário conhecer dados de prevalência, incidência, fatores de risco e proteção da disfagia para cada condição clínica que cursa com a mesma. Sabemos que estes dados não são muito fáceis de serem obtidos. Alguns deles por nossa responsabilidade, no momento do preenchimento de dados hospitalares e prontuários médicos, comprometendo a confecção de um completo e atualizado banco de dados. Outros dados se perdem quando muitos dos nossos pacientes são avaliados em esquema de Home Care ou em Casas de Repouso, e acabam não contabilizados.

Fato relevante é o aumento da incidência da disfagia como diagnóstico principal ou secundário nos prontuários de pacientes hospitalizados. Contudo não sabemos se este achado se dá por um real aumento do número de pacientes disfágicos, ou à maior atenção destinada à presença do sintoma e sua documentação nos prontuários médicos. É provável que a resposta correta seja atribuída à somatória das duas hipóteses, uma vez que efetivamente os profissionais de todas as áreas da saúde, compondo as equipes multidisciplinares dentro dos hospitais, estão cada vez mais coesos frente à importância das ações preventivas, do diagnóstico precoce e da terapêutica adequada. Além disso, o número de indivíduos disfágicos aumenta como conseqüência ao aumento da expectativa de vida da população e aumento de afecções clínicas que cursam com disfunções da deglutição; além do aumento de sobrevida de indivíduos, em especial prematuros e idosos, frente a dramáticas condições, graças ao avanço tecnológico de medicações e equipamentos em unidades de terapia intensiva e ao aprimoramento técnico das equipes que atuam junto a estes pacientes.

Existem muitas possibilidades de tratamento frente ao paciente disfágico, desde questões relacionadas à via alternativa de alimentação (SNE, gastrostomia, jejunostomia), reabilitação fonoterápica e todo o seu universo de atuações: alterações dietéticas, manobras de proteção, terapias sensoriais, utilização de válvula de fala, entre outras. Até condutas clínicas, medicações xerostômicas, tratamento clínico da doença do refluxo gastroesofágico, aplicação de toxina botulínica em glândulas salivares e músculo cricofaríngeo. Além de uma gama de condutas cirúrgicas, propostas em uma minoria de casos em que o tratamento de reabilitação fonoterápica e condutas conservadoras falham no controle da aspiração, podendo-se citar: miotomia do m. cricofaríngeo, tireoplastia, aproximação tireo-hióidea, submandibulectomia e ligadura dos ductos parotídeos, separação laringo-traqueal, até a laringectomia total. Vale ressaltar que se trata de um campo novo de atuação, onde a literatura ainda é relativamente escassa, a indicação cirúrgica é rara, os resultados ainda são mais qualitativos do que quantitativos, sendo necessários mais estudos de análise de segmento, eficácia e custo X benefício de tais propostas cirúrgicas. Tudo isso sem contar o respeito à vontade dos pacientes e/ou familiares. Apesar de todas estas opções terapêuticas, ainda não chegamos ao controle ideal do problema.

Fortuitamente no Brasil, o envolvimento de pesquisadores com a disfagia orofaríngea, passou a ocorrer com maior ênfase a partir da década de 90, atingindo placares expressivos recentemente. Existe uma crescente atenção para questões que envolvem a disfagia, sendo que a literatura em nosso meio suporta esta impressão. Consultando a base de dados Lilacs (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências de Saúde) encontramos 31 artigos com o descritor "disfagia orofaríngea", sendo que 23 deles são de autoria brasileira. Na base de dados Scielo (Scientific Eletronic Library Online) encontram-se 15 artigos, sendo 13 desenvolvidos no Brasil. Já no Medline (PubMed) encontramos 31.840 artigos, totalizando 228 quando associamos os descritores "oropharyngeal dysphagia and Brazil". Embora nossa produção científica seja robusta, ainda necessitamos de muito investimento, estudo e dedicação à temática.

E onde esperamos chegar? Esperamos que os conhecimentos que tateamos hoje, referentes aos estudos de neuroplasticidade, ressonância funcional, biologia molecular e células tronco, nos permitam enxergar o trampolim para atingir um patamar de controle da disfagia, possibilitando oferecer a esta população alternativas arrojadas e eficazes de reabilitação e uma qualidade de vida digna.

O estudo aprofundado do assunto, visando abordagem multidisciplinar do paciente disfágico, representa a maneira mais ética e elegante de se atuar neste desafiante campo da medicina.

Patrícia Paula Santoro

Médica Otorrinolaringologista

Doutora em Medicina pela FMUSP

Responsável pelo Ambulatório de Disfagia da Divisão de Clínica ORL – Hospital das Clínicas da FMUSP

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  • 2. Bastian RW. Contemporary diagnosis of the dysphagic patient. Otolaryngol. Clin. North Am. 1998; 31(3): 489-506.
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  • 4. Kuhlemeier KV. Epidemiology and dysphagia. Dysphagia. 1994; 9:209-17.
  • 5. Santoro PP, Bohadana SC, Tsuji DH. Tratado de otorrinolaringologia. Sociedade Brasileira de Otorrinolaringologia. Fisiologia da Deglutição. São Paulo: Roca; 2002 p.768-82.
  • 6. Furkin AM, Santini CS, organizador. Disfagias orofaríngeas. São Paulo: Pró-Fono; 2008.
  • 7. Murry T, Carrau RL, Eibling DE. Epidemiology of swallowing disorders. In: Carrau RL, Murry T, organizador. Comprehensive management of swallowing disorders. San Diego: Singular Publishing Group, Inc.; 1999. p.3-7.
  • 8. Base de dados Lilacs (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências de Saúde); 2008
  • 9. Base de dados Scielo (Scientific Eletronic Library Online); 2008
  • 10. Base de dados Medline (PubMed); 2008

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jul 2008
  • Data do Fascículo
    2008
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