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Características comuns à narrativa oral de crianças na pré-alfabetização

Common characteristics of verbal narratives of children in pre-literacy

Resumos

OBJETIVO: analisar aspectos constitutivos das narrativas de histórias e relatos em crianças de 5 e 6 anos. MÉTODOS: participaram deste estudo 50 crianças, de ambos os sexos, sendo 23 meninos e 27 meninas das classes de pré-alfabetização de quatro Escolas Particulares da Praia do Canto, bairro de classe média alta da cidade de Vitória-Espírito Santo. A amostra foi constituída da narrativa de uma história e de um relato, numa interação informal em que foi solicitada à criança que narrasse a história de "Chapeuzinho Vermelho", por ser uma história das mais conhecidas, e fizesse um relato de uma situação vivida. Os critérios de análise foram baseados em Perroni (1992) e em Brandão e Spinillo (2001). RESULTADOS: a população apresentou conhecimento da estrutura da narrativa; domínio satisfatório da relação temporal entre eventos narrados; utilização de orações que expressam a dependência temporal com verbos de ação no pretérito (perfeito e imperfeito); utilização de operadores narrativos com predominância de "aí" e "depois"; utilização de pontos de referência temporal e espacial com propriedade; relações espaço-temporais bem organizadas e as causais em fase de estruturação. Apontou, ainda, a importância da participação do interlocutor na construção das narrativas. CONCLUSÃO: as crianças apresentaram maior facilidade na produção da história que no relato; respondem a todo tipo de pergunta eliciadora; a maior parte precisou de mediação apenas no relato; respeitam a seqüência temporal tanto na história, usando as figuras da história de maneira correta, quanto no relato e utilizam principalmente o "aí" como elemento de coesão causal e temporal.

Narração; História; Linguagem; Criança


PURPOSE: to analyze composing aspects of verbal narratives of 5 and 6-year-old children. METHODS: 50 children took part in this research. There were 23 boys and 27 girls in pre-school classes of four private schools in Praia do Canto, an upper class neighborhood of Vitoria, Espirito Santo. The sample is composed of a verbal narrative of a story and personal account in a formal interaction in which the child was asked to tell the story Little Red Riding Hood, as it is a well-known story, and make a personal narrative. The analysis criteria were based on Perroni (1992) and Brandão & Spinillo (2001). RESULTS: the analyzed group displayed knowledge of narrative structures; satisfactory domain of temporal relations in narrated events; use of clauses which express temporal dependence with action verbs in past tenses; use of connectors with the predominance of "'aí" (a colloquial form similar to then) and "depois" (after that); proper use of time and space reference points; well-organized space-time relations and causative relations being developed. The study also pointed out the importance of the participation of an interlocutor in structuring the narratives. CONCLUSION: the children showed more ease in structuring the story rather than the personal narrative; they answered all kinds of eliciting questions; most of them needed mediation only in the personal narrative; they followed the time sequence not only in the story, using correctly the story-related flashcards, as for the personal narrative, they use "aí" as the main connector for causative and temporal cohesion.

Narratives; Story; Language; Child


ARTIGO ORIGINAL

LINGUAGEM

Características comuns à narrativa oral de crianças na pré-alfabetização

Common characteristics of verbal narratives of children in pre-literacy

Eliane Varanda DadaltoI; Márcia GoldfeldII

IFonoaudióloga; Professora do Curso de Fonoaudiologia do Centro Universitário Vila Velha, ES; Mestre em Fonoaudiologia pela Universidade Veiga de Almeida

IIFonoaudióloga; Professora Adjunta do Mestrado Profissionalizante em Fonoaudiologia da Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro, RJ; Professora Adjunta do Curso de Fonoaudiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela Universidade Federal de São Paulo

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Eliane Varanda Dadalto Rua Constante Sodré, 750 sala 1106 Vitória - ES CEP: 29055-420 E-mail: elianedadalto@yahoo.com.br

RESUMO

OBJETIVO: analisar aspectos constitutivos das narrativas de histórias e relatos em crianças de 5 e 6 anos.

MÉTODOS: participaram deste estudo 50 crianças, de ambos os sexos, sendo 23 meninos e 27 meninas das classes de pré-alfabetização de quatro Escolas Particulares da Praia do Canto, bairro de classe média alta da cidade de Vitória-Espírito Santo. A amostra foi constituída da narrativa de uma história e de um relato, numa interação informal em que foi solicitada à criança que narrasse a história de "Chapeuzinho Vermelho", por ser uma história das mais conhecidas, e fizesse um relato de uma situação vivida. Os critérios de análise foram baseados em Perroni (1992) e em Brandão e Spinillo (2001).

RESULTADOS: a população apresentou conhecimento da estrutura da narrativa; domínio satisfatório da relação temporal entre eventos narrados; utilização de orações que expressam a dependência temporal com verbos de ação no pretérito (perfeito e imperfeito); utilização de operadores narrativos com predominância de "aí" e "depois"; utilização de pontos de referência temporal e espacial com propriedade; relações espaço-temporais bem organizadas e as causais em fase de estruturação. Apontou, ainda, a importância da participação do interlocutor na construção das narrativas.

CONCLUSÃO: as crianças apresentaram maior facilidade na produção da história que no relato; respondem a todo tipo de pergunta eliciadora; a maior parte precisou de mediação apenas no relato; respeitam a seqüência temporal tanto na história, usando as figuras da história de maneira correta, quanto no relato e utilizam principalmente o "aí" como elemento de coesão causal e temporal.

Descritores: Narração; História; Linguagem; Criança

ABSTRACT

PURPOSE: to analyze composing aspects of verbal narratives of 5 and 6-year-old children.

METHODS: 50 children took part in this research. There were 23 boys and 27 girls in pre-school classes of four private schools in Praia do Canto, an upper class neighborhood of Vitoria, Espirito Santo. The sample is composed of a verbal narrative of a story and personal account in a formal interaction in which the child was asked to tell the story Little Red Riding Hood, as it is a well-known story, and make a personal narrative. The analysis criteria were based on Perroni (1992) and Brandão & Spinillo (2001).

RESULTS: the analyzed group displayed knowledge of narrative structures; satisfactory domain of temporal relations in narrated events; use of clauses which express temporal dependence with action verbs in past tenses; use of connectors with the predominance of "'aí" (a colloquial form similar to then) and "depois" (after that); proper use of time and space reference points; well-organized space-time relations and causative relations being developed. The study also pointed out the importance of the participation of an interlocutor in structuring the narratives.

CONCLUSION: the children showed more ease in structuring the story rather than the personal narrative; they answered all kinds of eliciting questions; most of them needed mediation only in the personal narrative; they followed the time sequence not only in the story, using correctly the story-related flashcards, as for the personal narrative, they use "aí" as the main connector for causative and temporal cohesion.

Keywords: Narratives; Story; Language; Child

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, pesquisadores das mais diversas áreas têm mostrado interesse pelo estudo das narrativas e, em especial, por sua estrutura 1 e muitos desses estudos registram a importância do desenvolvimento das narrativas no processo de desenvolvimento do discurso oral e da escrita 2-8 .

Tais trabalhos apresentaram o assunto sob abordagens teóricas diferentes, entre os quais, em maior número, apareciam os cognitivistas e os sociointeracionistas e, dentre eles, destaca-se um estudo nacional 9 com pressupostos discursivos, valorizando situações interacionais e relações dialógicas como constitutivas da narrativa infantil tendo, assim, adulto e criança, papéis ativos.

Estudos realizados com crianças de quatro a oito anos mostraram que a habilidade de narrar é adquirida gradativamente 10,11, não sendo uma tarefa muito simples de ser realizada visto que implica considerar o outro como interlocutor e considerar-se como narrador. Alguns dos estudos destacam resultados em que se verificou que, com o aumento da idade e da escolaridade, a narrativa de histórias tornava-se mais complexa e elaborada 6-15. Assim, evidencia-se que existe uma evolução quanto ao domínio das convenções e da estrutura próprias da contagem de história.

O discurso narrativo representa, na experiência lingüística oral da criança, uma (e talvez a mais importante) passagem obrigatória do diálogo para o monólogo para a construção de um texto cuja significação pode representar a culminação de um processo em que a criança atinge uma maior autonomia discursiva 8.

Narrar serve a necessidades cognitivas, estruturando e processando a experiência pessoal e necessidades sociais, compartilhando tais experiências 16 .

Um estudo longitudinal, voltado para o desenvolvimento do discurso narrativo de duas crianças brasileiras de classe socioeconômica média, entre dois e cinco anos, em ambiente familiar realizado na década de 80 9 permitiu reconhecer as características de estruturas narrativas nas diferentes fases do desenvolvimento. Nesse trabalho, a autora põe em foco o que ela própria chama de "visão processual do desenvolvimento"; valoriza a criança como um ser ativo na relação diádica; enfatiza o papel do adulto na interação, no diálogo, enfim, no processo de desenvolvimento do discurso narrativo.

Constatou-se ainda, assim como autores em outros trabalhos 9,13,14,16-18, que o adulto tem importante papel na construção do discurso infantil, assumindo turnos de interação com a criança por meio de perguntas chamadas eliciadoras, quando a criança ainda não tem domínio de seu discurso.

Outra autora 19 chama atenção para o papel da interação social na aquisição da estrutura narrativa e para as diferenças culturais que se refletem no estilo conversacional. Alguns estudos 4,17,20 ainda correlacionam o estilo conversacional dos pais com o desempenho narrativo das crianças, mostrando como um estilo que envolva mais perguntas e comentários pode favorecer o desenvolvimento do discurso narrativo das crianças. Esses mesmos autores em outro trabalho reforçam estudo anterior mostrando como é possível ensinar os pais a interagirem com seus filhos de forma mais produtiva no que diz respeito ao desenvolvimento da narrativa, ensinando-os a conversar com os filhos freqüentemente; enfatizando questões contextuais do evento; ouvindo atentamente à criança; encorajando a criança a falar mais, dando respostas de feedback ou repetindo a fala da criança; conversando sobre tópicos do interesse da criança.

Muitos dos estudos que vêm sendo realizados acerca do desenvolvimento da narrativa de histórias em crianças têm considerado determinados padrões de construção para a análise que levam em conta a estrutura de elementos identificados e formalizados nas gramáticas de histórias. Por exemplo: a) início com uma abertura convencional (introdução da cena: informações sobre o tempo e lugar; personagens: suas características, motivações e metas a alcançar); b) meio (evento, trama, situação-problema) e c) final (resolução da situação-problema) com um fechamento convencional.

Outro exemplo citado é a adaptação do sistema de categorias 17,20-24 a partir de um estudo original. Essas categorias expressam diferentes níveis de desenvolvimento na aquisição de um esquema narrativo, e estão assim organizadas: I) produções que consistem em não-histórias por não apresentarem construções ou convenções próprias desse tipo de registro; II) introdução de cenas e personagens, com marcadores lingüísticos convencionais de início de história (era uma vez etc.); III) histórias incompletas com estrutura narrativa elementar. Apresentam introdução da cena e dos personagens com início convencional e ainda a presença de uma ação que sugere o início de uma trama; IV) semelhante à categoria III, apresentando ainda um desfecho ou uma resolução da trama subitamente resolvida sem explicação dos meios utilizados para tal. Uso de marcadores convencionais de final de histórias e V) histórias completas com estrutura narrativa elaborada.

Constatando a importância do discurso oral para o desenvolvimento lingüístico 25, cognitivo e social da criança, sendo também base para o aprendizado da língua escrita, considera-se relevante conhecer a produção narrativa oral de crianças no momento imediatamente anterior à sua entrada na classe de alfabetização.

O objetivo do estudo foi analisar aspectos constitutivos das narrativas de histórias e relatos em crianças de 5 e 6 anos.

MÉTODOS

O trabalho foi realizado com 50 crianças, de ambos os sexos, sendo 23 meninos e 27 meninas com idade média de 5 anos, das classes de pré-alfabetização de quatro Escolas Particulares da Praia do Canto, bairro de classe média alta da cidade de Vitória-Espírito Santo. Os participantes foram selecionados pela escola obedecendo ao critério de desenvolvimento lingüístico satisfatório, ou seja, não haver nenhuma queixa da família ou escola, quanto ao desenvolvimento e aprendizagem.

Foi coletada a narrativa de uma história e de um relato, numa interação informal entre a criança e a pesquisadora em que foi solicitada à criança que narrasse a história de "Chapeuzinho Vermelho", por ser uma história das mais conhecidas, e fizesse um relato de uma situação vivida. Os critérios de análise são os descritos no estudo longitudinal realizado na década de 80 9 e o de categorias 23. A análise quantitativa será demonstrada em tabelas para melhor visualização dos resultados.

A participação das crianças na pesquisa só ocorreu após a assinatura do Termo de consentimento, livre e esclarecido, de todos os responsáveis pelas crianças envolvidas, e autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Veiga de Almeida sob o nº 41/05.

RESULTADOS

As 50 crianças fizeram seus relatos em situação de diálogo e de monólogo, 22% (11 crianças) em diálogo e 78% (39 crianças) em monólogo. Cabe ressaltar que apenas uma criança usou todas as 16 figuras em um único monólogo.

É interessante notar que as figuras da história mais freqüentes são aquelas determinantes ao desenvolvimento da história (Tabela 1). A criança elege os elementos da síntese com muita propriedade. Pelos resultados, a síntese ficaria mais ou menos assim: "A mãe pede a Chapeuzinho para levar os doces para a vovó. Ela encontra o lobo que a aborda. O lobo chega primeiro na casa da vovó, come a vovó e se veste com as roupas dela para esperar Chapeuzinho. Ela chega, conversam e o lobo ataca Chapeuzinho que recebe ajuda dos caçadores".

A existência de dependência temporal entre eventos é fato marcante e evidente em todas as narrativas. As crianças pesquisadas apresentaram todos esses critérios, a saber: a dependência temporal, orações que expressam essa dependência temporal constituída essencialmente por verbos de ação e o emprego do tempo perfeito. Ou seja, as crianças pesquisadas, antes de serem expostas à alfabetização formal, já dominavam satisfatoriamente a relação temporal entre eventos narrados.

Pela análise quantitativa, nota-se que os operadores narrativos convencionais de abertura e fechamento perdem importância para as crianças pesquisadas. Isso pode ser facilmente verificado no exemplo 1. É possível que isso se deva ao fato de as crianças hoje terem mais contato com filmes em cinema ou DVD, cujas histórias não começam com "Era uma vez", e menor contato com os livros clássicos de histórias.

Exemplo 1:

A mãe de Chapeuzinho Vermelho falou assim: 'Chapeuzinho, vem pra cá. Eu só tenho que levar uma cesta pra vovó, ela está doente'. Aí, aí é:: ela pegou a cesta, aí ela saiu com a cesta, aí ela saiu com a cesta e foi pra casa da vovó (T - 5 anos).

A manutenção dessa dependência se dá geralmente pelo marcador "aí" que, além de partilhar de algumas das funções de conectivo da conjunção "e", atuou como organizador da seqüência narrativa, favoreceu a progressão do texto e contribuiu para a coesão seqüencial, indicando seqüências temporais e mudança de assunto. O conector "aí" pode ainda assumir duas funções: hesitação (o que falar?) e manutenção da fala (eu ainda estou falando) 7. Verificam-se, nas narrativas analisadas, essas mesmas funções. O elemento de coesão "aí", sem dúvida, predominou na maior parte das narrativas de histórias (Tabela 2).

No exemplo 2, além do aparecimento do conectivo "aí" e "depois", também podemos notar a presença de "primeiro", que aparece organizando, ordenando os acontecimentos.

Exemplo 2:

Era uma vez Chapeuzinho Vermelho. ela foi lá passear e encontrou um lobo. o lobo falou: ' Vão ver quem chega primeiro na casa da sua avó?'. ele chegou primeiro e depois, ele comeu a avó e depois deitou na cama da vó e fez é::: Fingiu que ele foi a vó. a Chapeuzinho chegou e::: (silêncio) ela bateu na porta e ele falou: 'a porta tá aberta'. ela falou: 'Por que você tem olhos tão grandes?'. 'Pra te vê melhor'. 'Por que você tem uma boca tão grande?'. 'É::: pra pra pra te comer'. ela foi lá e tava correndo, o caçador foi lá, tava ouvindo o grito e foi lá e matou o lobo e cortou, saiu a vó (M E - seis anos).

Todas as crianças demonstraram necessidade de feedback, evidenciando a escuta (exemplo 3).

Exemplo 3 (diálogo):

I - Ela teimou com a mamãe e passou e passou.

A mamãe falou: 'Porque lá por perto fica o lobo mau'. Aí ela teimou: 'Sim mamãe!'. E teimou com a mamãe e foi pelo caminho deserto.

P - Hum!

I - E aí ela encontrou o lobo. O lobo falou bem assim, fingindo de anjinho: ' Posso ir com você?'.

(I - cinco anos).

A importância da participação do adulto na narrativa pôde ser observada tanto nas histórias quanto nos relatos, mas de maneira distinta (Tabelas 3 e 4). Na história, conforme o exemplo 3, a criança sente necessidade de feedback, diferentemente do que ocorre nos relatos em que a necessidade é de diálogo.

Os dados evidenciam que o relato, como narrativa/monólogo, demora um pouco mais a aparecer do que a narrativa/história, pois, como pode ser observado no exemplo 4, os relatos ocorreram predominantemente em situação de diálogo, o que leva a considerar que a maior parte das crianças pesquisadas ainda se encontra numa etapa anterior ao monólogo, nesse tipo de narrativa.

Exemplo 4:

M - Eu fui viajar pra Niterói.

P - É mesmo?

M - Eu fui visitar a minha avó

P - É? E como é que foi?

M - Foi irado. Foi legal. Ela tem, 400 cães. Que até...(...)

P - O quê?

M - Ela tem mais que dez cães. Tem dois papagaiozinhos, tem quatro cachorros que...que morde e tem um gatinho que se chama ceguinho e outro palhacinho. Ele é muito legal e eu adoro ele porque ele tem (...).

Nos relatos, os achados indicaram o que já havia sido observado na narrativa de histórias, isto é, as crianças pesquisadas não apresentaram nenhum problema quanto à elaboração de espaço, tempo e causalidade nos relatos (exemplo 5). Aliás, o desempenho dessas noções no relato pode ser mais bem percebido do que nas histórias (Tabela 5). O desempenho apresentado das amostras permitiu verificar que, no geral, essas crianças se encontram organizadas em relação ao tempo, espaço e relações causais, pois elas mostraram-se capazes de ordenar os eventos numa sucessão temporal com compreensão dos vínculos causais, ou seja, as justificativas apresentadas são coerentes.

Exemplo 5:

Quando eu era pequena, estudava na Uirandê. Tinha duas cadeirinhas do ursinho, aí a gente andava, né? Só que agora a gente já cresceram, não precisa mais. A gente...quando a gente tá em Vitória, a gente não bota o cinto, quando tá, aí... quando chegou na estrada de Vitória a gente bota o cinto e vai lá pra Mimoso (J - cinco anos).

Em ambos os casos, história e relato, o resultado foi o mesmo. As 50 crianças analisadas demonstraram dominar satisfatoriamente a relação temporal entre eventos. O operador narrativo "aí" também aparece com freqüência, mas com uma diferença numérica acentuada, sendo utilizado 551 vezes na história e 152 vezes no relato. Infere-se que seja pelo fato de que a história ocorreu mais em situação de monólogo, o que explica a utilização em maior número de "aí", pois, na maioria das vezes, esse operador funciona na manutenção da dependência temporal atuando também como organizador da seqüência narrativa. Como os relatos aconteceram, em sua maioria, em situação de diálogo, participação do interlocutor e a própria seqüência de turnos, favorece a progressão da narrativa sem a necessidade de ocorrência de tantos operadores/conectivos. O "depois" ocorreu 92 vezes nas histórias e 48 vezes nos relatos. Como já exposto, o "sabe" apareceu em maior número no relato, como para garantir o conhecimento do interlocutor sobre o que estava sendo contado ou ainda como forma de partilhar o assunto. Tanto nas histórias quanto nos relatos, o "quando" aparece utilizado com pertinência (exemplo 6), construindo ponto de referência para a localização temporal, geralmente concreta, do evento.

Exemplo 6:

F - Foi muito legal. Mas o parque, quando eu ia falar com alguém, eu tinha que falar em português. Mas eles não entendiam. A única coisa que eu sei falar é só um pouquinho de coisa.

P - O que você sabe?

F - I love you, mommy, papy, yes, now e ...I love you e ...

Comparando as histórias e os relatos das 11 crianças que demandaram maior nível de mediação na história, o resultado revelou que quatro delas precisaram de uma participação mais efetiva do interlocutor e as outras sete tiveram um desempenho semelhante ao das demais crianças.

Quanto aos elementos prosódicos, observou-se que, no relato, todas as crianças usaram um elemento assim como nas histórias. No entanto, nota-se que existem diferenças interessantes, observáveis. No relato, a entoação/prosódia é quase sempre mais voltada para a manutenção da atenção, como querendo dizer: "Veja quanta coisa interessante tenho para contar", vindo acompanhados de outros elementos não-verbais, como a ilustração de um evento narrado (dramatização), gestos corporais e o olhar vago, como que buscando a lembrança do momento vivido com carga emocional. Na história, esses elementos são mais exagerados, com mudanças de vozes, tons ascendentes e descendentes e voz de suspense.

As crianças, tanto nas histórias quanto nos relatos, demonstraram necessidade de feedback, "cobrando" do interlocutor algum sinal de escuta. As expressões "ah", "sei", "é?" e "e aí?" foram usadas em ambos os casos. Observa-se que a relação com o interlocutor se modifica de acordo com o tipo de narrativa a ser explicitada e com o seu desenvolvimento lingüístico.

Perguntas eliciadoras, como Onde? Quem? O quê? Quando?, estiveram presentes tanto nas histórias quanto nos relatos (exemplo 7), porém de forma diferente. Nas histórias, elas ocorreram quando a criança precisou de mediação para a narrativa; no relato, na maior parte das vezes, elas aparecem como solicitação de dados para a referência do interlocutor (Tabela 4).

Exemplo 7:

P - O que o lobo respondeu?

Pe - 'É pra mim te ver melhor'. 'Por que esse nariz tão grande vovó?'. ' É pra mim te cheirar melhor!'. 'Pra que essa orelha tão grande vovó?'. ' Pra mim te ouvir melhor!'. 'Pra que essa boca tão grande vovó?'. ' Pra mim te come!'. Ela ... ela chamou o caçador que matou o lobo e tirou a vovó.

Pe - O lobo... aí ele encheu de pedra a barriga do lobo. O caçador e aí eles foram embora.

P - Quem foi embora?

Pe - o caçador.

DISCUSSÃO

O presente estudo evidencia que 82% das crianças têm bom domínio da estrutura da narrativa, necessitando de pouca mediação na narrativa de histórias. As histórias parecem fazer parte do dia-adia dessas crianças.

Um grupo de crianças fez uma narrativa inicial, necessitando depois da mediação do interlocutor em alguns momentos; e as crianças que precisaram da mediação ao longo da história tiveram monólogos em alguns momentos da narrativa.

Esse achado corrobora estudos anteriores 9 que apontam que o diálogo figura cronologicamente em primeiro lugar numa partilha da atividade de verbalização: um coloca questões, o outro responde, ou então, um introduz uma preposição e o outro aprova, recusa, acrescenta ou modaliza. Ao contrário, ser capaz de monologar, por exemplo, numa narrativa, é fazer outra coisa que encadear frases: é também a capacidade de organizar o 'isto é para dizer', 'isto é para não dizer' ou 'tendo dito isso, eu posso (ou eu devo) dizer aquilo' 7.

Estudos 16 apontam a narrativa como uma tarefa neurocognitiva que envolve uma multiplicidade de funções executivas, lingüísticas, atencionais, mnésicas e afetivas; e há de se considerar que nesse estudo também foi possível observar que narrar serve às necessidades cognitivas, estruturando e processando a experiência pessoal e as necessidades sociais, compartilhando experiências 15,20,22 .

Tanto nos relatos quanto na narrativa de histórias, as crianças pesquisadas não apresentaram nenhum problema quanto à elaboração de espaço, tempo e causalidade nos relatos. O desempenho apresentado das amostras permitiu verificar que, no geral, essas crianças se encontram organizadas em relação ao tempo, espaço e relações causais, pois elas mostraram-se capazes de ordenar os eventos numa sucessão temporal com compreensão dos vínculos causais, ou seja, as justificativas apresentadas são coerentes.

Os resultados corroboram estudos 9,18,22-25 que indicam que as crianças evoluem da elaboração de uma lista de ações temporalmente desorganizadas até a elaboração de narrativas que seguem a seqüência temporal dos eventos, mas terminam abruptamente no ponto culminante da história e que o padrão clássico de história aumenta com a idade e este padrão é mais comum aos seis anos. Isso também pode ser observado nesse estudo apesar da pequena variação na idade das crianças pesquisadas, lembrando ainda que as diferenças individuais também devam ser levadas em consideração, pois elas influem na produção narrativa.

O operador narrativo "aí" e "depois" apresentase como seqüenciador de episódios exprimindo, dentro deles, relações semânticas como tempo, causa, seqüência. Nota-se, no entanto, um enriquecimento vocabular gradual nas narrativas em que essas relações aparecem.

Nas narrativas analisadas, de maneira geral, predominaram os verbos de ação e os tempos verbais que orientaram as narrativas são o pretérito perfeito e o imperfeito. Tais verbos configuram uma situação narrativa e orienta no mundo narrado as coisas distantes, não imediatas.

No contexto da interação é consenso entre os sociointeracionistas a importância do adulto no desenvolvimento das habilidades narrativas e os resultados da pesquisa corroboram todos os estudos que evidenciam que os adultos exercem papel central na construção da linguagem e dos gêneros discursivos das crianças 9,13,14,18-20. O adulto colabora ao compartilhar noções de relevância narrativa; alocar turnos narrativos; suportar ou questionar a validade da história e da performance da criança e fazer perguntas eliciadoras.

CONCLUSÃO

Esta pesquisa teve como objetivo analisar aspectos constitutivos das narrativas de histórias e relatos em crianças de 5 e 6 anos e acredita-se ter cumprido o objetivo proposto.

Após a análise, pode-se afirmar que as crianças apresentaram maior facilidade na produção da história que no relato; responderam a todo tipo de pergunta eliciadora; a maior parte precisou de mediação apenas no relato; respeitaram a seqüência temporal tanto na história, usando as figuras da história de maneira correta, quanto no relato e utilizaram principalmente o "aí" como elemento de coesão causal e temporal.

Quanto à análise do sistema de categorias para a narrativa de histórias, conclui-se que as crianças pesquisadas encontram-se entre as categorias IV e V.

Torna-se importante enfatizar que a competência lingüística oral e, em especial, a narrativa desenvolvida na relação com os adultos e na interação social, de modo geral, é ponto de partida para a construção da escrita.

RECEBIDO EM: 26/02/2008

ACEITO EM: 23/09/2008

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  • Endereço para correspondência:

    Eliane Varanda Dadalto
    Rua Constante Sodré, 750 sala 1106
    Vitória - ES CEP: 29055-420
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Mar 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2009

    Histórico

    • Aceito
      23 Set 2008
    • Recebido
      26 Fev 2008
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