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Editorial II: fonoaudiologia e saúde da família

EDITORIAL II

Fonoaudiologia e saúde da família

Maria Teresa Pereira Cavalheiro

Fonoaudióloga graduada pela UNIFESP-EPM - Mestre em Psicologia Escolar - Especialista em Saúde Pública Especialista em Saúde Coletiva pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia - Docente do Curso de Fonoaudiologia da PUC-Campinas/SP - Fonoaudióloga do Departamento de Saúde da Prefeitura de Mogi Mirim/SP - Conselheira do Conselho Federal de Fonoaudiologia

"Durante a década de 60, o amplo debate realizado em várias partes do mundo, realçando a determinação econômica e social da saúde, abriu caminho para a busca de uma abordagem positiva nesse campo, visando superar a orientação predominantemente centrada no controle da enfermidade" 1.

Em 1977, na 30ª reunião anual da Assembléia Mundial de Saúde, os países participantes definiram como meta "a obtenção por parte de todos os cidadãos do mundo de um nível de saúde no ano 2000, que lhes permitirá levar vida social e economicamente produtiva" 2.

A necessidade de garantir o direito à saúde e promover o acesso de todos aos serviços de saúde, foi o cenário da realização da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários em Saúde, conhecida como Conferência de Alma Ata, em 1978 1. Partindo da meta de Saúde para todos no ano 2000, a Declaração de Alma Ata apontou, entre outras questões, a importância das ações intersetoriais, dos cuidados primários em saúde e da participação da população no planejamento e execução destes cuidados. Este documento enunciou os princípios que serviram de base para que, na Assembléia Mundial de Saúde em 1979, a Atenção Primária à Saúde fosse definida como:

"A Atenção essencial à saúde, baseada na tecnologia e métodos práticos, cientificamente comprovados e socialmente aceitáveis, tornando-se universalmente acessíveis a indivíduos e famílias na comunidade por meios aceitáveis para eles e a um custo que tanto a comunidade como o país possa arcar em cada estágio de seu desenvolvimento, um espírito de autoconfiança e autodeterminação. É parte integral de um sistema de saúde do país, do qual é função central, sendo o enfoque principal do desenvolvimento social e econômico global da comunidade. É o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, levando a atenção à saúde o mais próximo possível do local onde as pessoas vivem e trabalham, constituindo um primeiro elemento de um processo de atenção continuada à saúde" (OMS, 1978) 1.

Esses eventos/reuniões e todas as concepções/diretrizes que daí emanaram, foram fundamentais para os debates ocorridos na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, cujo relatório apontou os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), instituído na Constituição de 1988, que declarou a saúde como um direito de todo cidadão e um dever do Estado. Regulamentado pelas Leis Orgânicas da Saúde Nº 8080/90 e nº 8142/90 3, o SUS é concebido como uma rede integrada de serviços, que atribui grande importância à atenção primária. No âmbito do SUS, a denominação adotada para o modelo de atenção à saúde que incorpora a atenção primária à Saúde é a atenção básica 4.

"No SUS, o cuidado com a saúde está ordenado em níveis de atenção, que são a básica, a de média complexidade e a de alta complexidade. Essa estruturação visa à melhor programação e planejamento das ações e serviços do sistema. Não se deve, porém, considerar um desses níveis de atenção mais relevante que outro, porque a atenção à Saúde deve ser integral. A prioridade para todos os municípios é ter a atenção básica operando em condições plenas e com eficácia" 5.

A Atenção Básica caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde. As práticas gerenciais e sanitárias democráticas e participativas são dirigidas a populações de territórios bem delimitados. Utiliza tecnologias de elevada complexidade e baixa densidade, que devem resolver os problemas de saúde de maior frequência e relevância em seu território. É o contato preferencial dos usuários com os sistemas de saúde. Orienta-se pelos princípios da universalidade, da acessibilidade e da coordenação do cuidado, do vínculo, da continuidade, da integralidade, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social 5.

A Atenção Básica tem a Saúde da Família como estratégia prioritária para sua organização. Caracterizada como a porta de entrada preferencial do sistema de saúde, com território adscrito, deve permitir, entre outros, o planejamento e a programação descentralizada, e em consonância com o princípio da equidade; efetivar a integralidade em seus vários aspectos; desenvolver relações de vínculo e responsabilização entre as equipes e a população adscrita garantindo a continuidade das ações de saúde e a longitudinalidade do cuidado 5.

O Programa de Agentes comunitários de saúde (PACS) e o Programa de Saúde da Família (PSF) foram institucionalizados, respectivamente, em 1992 e 1994, a partir de experiências isoladas desenvolvidas em diversas regiões do Brasil.

"A partir de 1996, o Ministério da Saúde começa a romper com o conceito de programa que estava vinculado a uma idéia de verticalidade e transitoriedade, passando a utilizar a denominação de Estratégia de Saúde da Família (ESF) por considerá-la a estratégia escolhida para reorientação da atenção à saúde no país" 4.

A equipe mínima, que compõem a ESF, conta com um médico generalista, um enfermeiro, um técnico ou auxiliar de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Pode-se integrar à ESF a equipe de saúde da boca ou outros profissionais que o gestor local julgar necessários para melhorar a resolutividade.

Em 2008, foram comemorados os 20 anos do SUS, e os 15 anos de implantação da Saúde da Família, que hoje conta com 28.100 equipes de saúde da família, 218.330 ACS e 16.552 equipes de saúde da boca, em milhares de municípios brasileiros 6. Entretanto, o acesso a profissionais de outras especialidades e categorias da área da saúde, tem se constituído um desafio para a garantia da integralidade da atenção.

Buscando sua inserção na Atenção Básica, desde a implantação do SUS, a Fonoaudiologia tem aprofundado o debate sobre as possibilidades de atuação neste nível do sistema. Desde a década de 90, muitas experiências vêm sendo apontadas em publicações e eventos científicos. Considerando a importância do tema para a categoria, o Conselho Regional de Fonoaudiologia, com o apoio do Comitê de Saúde Pública da SBFa, promoveu, em 2002, um fórum com o objetivo de elaborar um documento, de forma participativa, que definiu uma "Proposta de Inclusão da Fonoaudiologia no Programa de Saúde da Família" 7.

O documento define objetivo, diretrizes e atribuições do profissional neste programa, tais como: atuar em equipe, no levantamento da situação de saúde geral da comunidade e busca de soluções dos problemas encontrados, potencializando a resolutividade das ações; inserir dados relativos à comunicação humana no cadastro da população; identificar prevalência das alterações da comunicação humana; assegurar o acesso progressivo das famílias atendidas pela ESF às ações de promoção, proteção da saúde, bem como tratamento e reabilitação dos agravos da comunicação humana; desenvolver instrumentos para avaliação do impacto das ações em consonância com as diretrizes da ESF; realizar visitas domiciliares, conhecendo os variados determinantes que possam gerar agravos à saúde geral e da comunicação humana; atuar em equipamentos educacionais e sociais da região, entre outras. Nesse documento, entregue ao Ministério da Saúde, foi proposta a incorporação de fonoaudiólogos às equipes de saúde da família, inicialmente, na proporção de 1 fonoaudiólogo para 3 equipes.

Desde a elaboração desse documento e apesar do relato de várias experiências na Atenção Básica e na ESF, o fonoaudiólogo vinha encontrando poucas bases legais para atuar neste contexto. Apesar da compreensão de que o princípio da integralidade valoriza a participação de diferentes categorias profissionais para sua garantia, o fonoaudiólogo é ainda reconhecido como um profissional, prioritariamente, da atenção especializada.

Em 2008, como uma das estratégias de fortalecimento da atenção básica, foram criados, pela Portaria 154 do Ministério da Saúde, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). O NASF tem como objetivo "ampliar a abrangência e o escopo das ações da atenção básica, bem como sua resolubilidade, apoiando a inserção da estratégia de Saúde da Família na rede de serviços e o processo de territorialização e regionalização a partir da atenção básica".

O NASF amplia o número de profissionais nas equipes da ESF e é constituído por equipes de diferentes áreas de conhecimento, de 13 diferentes ocupações (entre eles o fonoaudiólogo), compartilhando as práticas em Saúde nos territórios sob responsabilidade da equipe de saúde da família, aumentando seu alcance e sua eficiência 8.

O NASF não se constitui em porta de entrada do sistema, e a maior parte do tempo dos profissionais deverá ser dedicada a atividades junto às equipes, recomendando-se o compartilhamento de projetos terapêuticos. A responsabilização compartilhada entre as equipes de Saúde da Família e a equipe do NASF na comunidade prevê a revisão da prática do encaminhamento com base nos processos de referência e contra-referência, ampliando-a para um processo de acompanhamento longitudinal de responsabilidade da equipe de Atenção Básica/Saúde da Família, atuando no fortalecimento de seus atributos e no papel de coordenação do cuidado no SUS 8.

A operacionalização do NASF adota, entre algumas concepções, o conceito de matriciamento. O que se pretende, quando a equipe ou profissional de apoio matricial (do NASF) se encontra com a equipe de referência, é que o apoio matricial auxilie a equipe de referência na formulação/reformulação e execução de um projeto terapêutico singular para um sujeito individual ou coletivo, que necessita de uma intervenção em saúde, à qual a equipe de referência teve dificuldade 9. Este processo contribui para organização de uma linha de cuidado contínua, rompendo com a fragmentação do cuidado, que prejudica a integralidade da atenção.

"O matriciamento auxilia as equipes a pensar sua atuação, conhecer sua rede e ampliar seus conhecimentos e possibilidades de ação, já que permite o compartilhamento de saberes no encontro de múltiplos profissionais" 10.

Fruto da mobilização da categoria e contribuindo para a visibilidade das ações do fonoaudiólogo na atenção básica, a partir de novembro de 2008, a tabela de procedimentos do SUS incorporou modificações que favorecem o registro de procedimentos realizados por fonoaudiólogos. Nas versões anteriores da tabela, só era possível o registro de procedimentos de média e alta complexidade, que não evidenciavam nossas ações na atenção básica.

Finalizando, é importante reconhecer que o cenário atual das políticas públicas de saúde tem favorecido a ampliação das ações fonoaudiológicas no SUS. Desta forma, a efetiva inserção da categoria profissional em todo o sistema e, particularmente, na Estratégia de Saúde da Família, dependerá do envolvimento e educação permanente de cada profissional e da mobilização e articulação das entidades de classe da categoria.

  • 1
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Projeto Promoção da Saúde. As Cartas da Promoção da Saúde. Brasília/DF; 2001.
  • 2. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco, Ministério da Saúde; 2002.
  • 3. Brasil. Leis Orgânicas da Saúde: Lei 8080, Lei 8142, 1990.
  • 4. Corbo AD'A, Morosini MVGC. Saúde da família: história recente da reorganização da atenção à saúde. In: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, organizador. Textos de Apoio em Políticas de Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005.
  • 5. Brasil. Ministério da Saúde. O SUS de A a Z. garantindo saúde nos municípios/Ministério da Saúde, Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde. 3. ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2009.
  • 6. Brasil. Ministério da Saúde. Temático Saúde da Família. Ministério da Saúde. Brasília: Organização Pan-Americana de Saúde. 2008. Painel de Indicadores do SUS, 4.
  • 7. Conselho Regional de Fonoaudiologia - 2Ş região. Documento aborda inserção da Fonoaudiologia no Programa de Saúde da Família. Rev Fonoaudiol. 2002; (47).
  • 8. Conselho Federal de Fonoaudiologia. NASF: previsão de 500 vagas para fonoaudiólogos até 2011. Jornal do CFFa. 2008; 9(39).
  • 9. Oliveira GN. Apoio matricial como tecnologia de gestão e articulação em rede. In: Campos GWS, Guerrero AVP, organizadores. Manual de práticas de atenção básica: saúde ampliada e compartilhada. São Paulo: Hucitec; 2008.
  • 10. Brasil. Ministério da Saúde. Brasília. Rev Bras Saúde da Família. 2008; 9(19).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009
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