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Editorial II: a relevância da pesquisa científica na audiologia brasileira

EDITORIAL II

A relevância da pesquisa científica na audiologia brasileira

Iêda Chaves Pacheco Russo

Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela Universidade Federal de São Paulo - SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - SP Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo - SP Editora da Área de Audiologia da Revista CEFAC - Atualização Científica em Fonoaudiologia e Educação Presidente da International Society of Audiology

O progresso da tecnologia moderna vem propiciando, cada vez mais, a criação e a difusão de novos métodos e técnicas de investigação em várias áreas do conhecimento humano, mas o seu valor só pode ser assegurado por meio da pesquisa científica, que verifique a sua efetividade, especificidade e viabilidade. Este é exatamente o grande mérito dos artigos que compõem este suplemento da Revista CEFAC, dedicado à divulgação de 15 trabalhos realizados por destacados profissionais da área da Audiologia no país.

A Audiologia é uma ciência que estuda a audição e o equilíbrio e seus distúrbios, bem como os meios para prevenir, identificar, avaliar, diagnosticar e intervir na deficiência auditiva e nos distúrbios do equilíbrio, em crianças, adultos e idosos. Desenvolveu-se, em meados da década de 40, após a II Guerra Mundial, nos EUA e, a partir da década de 60, no Brasil. Seu desenvolvimento tem sido beneficiado por meio de diversas Portarias aprovadas pelos Ministérios da Saúde e do Trabalho e pelo elevado nível de produção científica de fonoaudiólogos que se dedicam a esta área de conhecimento.

A perda auditiva é uma deficiência que altera a funcionalidade e a estrutura do corpo, uma incapacidade que limita a atividade e restringe a participação do indivíduo nas situações de vida diária 1. É uma desvantagem que inicialmente não é percebida, especialmente na criança pequena que não pode dizer que não está ouvindo bem, pois se não detectada e tratada em tempo hábil, pode levar a um retardo sério no desenvolvimento de fala e linguagem, além de gerar problemas sociais, emocionais, educacionais e de saúde.

No Brasil, poucos estudos referem-se à prevalência e incidência da deficiência auditiva, não havendo dados precisos e fidedignos quanto à população total. Os resultados do Censo 2000 2 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostram que, aproximadamente, 24,6 milhões de pessoas, ou 14,5% da população total, apresentaram algum tipo de incapacidade ou deficiência. São pessoas com ao menos alguma dificuldade de enxergar, ouvir, locomover-se ou alguma deficiência física ou mental. Já entre os 5,7 milhões de brasileiros com algum grau de deficiência auditiva, um pouco menos de 170 mil se declararam surdos.

A epidemiologia da deficiência auditiva na infância pode variar amplamente, de acordo com os fatores geográficos e econômicos. A prevalência da deficiência auditiva é menor em países cuja população tenha um padrão de vida mais alto e que conte com sistema de saúde bem desenvolvido. A falta de vacinação e acompanhamento pré-natal, o abuso de agentes ototóxicos e o tratamento inadequado das infecções agudas do trato respiratório, certamente contribuem para o aumento da incidência da deficiência auditiva em nossa realidade. É provável que esse número elevado deva-se à rubéola congênita, que ainda não foi erradicada e é observada com certa frequência, (cerca de 20% dos deficientes auditivos congênitos), levando a perdas auditivas de grau severo a profundo. Este tema é abordado em dois artigos: A imunização contra a rubéola no primeiro trimestre de gestação pode levar à perda auditiva? e Prevalência de indicadores de risco para surdez em neonatos em uma maternidade paulista.

O uso de procedimentos eletroacústicos como as Emissões Otoacústicas Evocadas e eletrofisiológicos, como os Potenciais Evocados Auditivos de Tronco Encefálico vem se constituindo uma ferramenta imprescindível no diagnóstico por meio da avaliação objetiva da audição 3, principalmente para os indivíduos que de alguma forma não respondem adequadamente a uma avaliação subjetiva. Entretanto, estudar as várias aplicações clínicas desses métodos viabiliza ainda mais a sua aplicação em nossa realidade. Este é o caso dos artigos: Efeito da estimulação acústica contralateral nas medidas temporais das emissões otoacústicas e Processamento auditivo e potenciais evocados auditivos de tronco cerebral.

Cada vez mais, uma equipe multidisciplinar tem discutido e estudado a respiração oral, por acreditar que a alteração na respiração repercute na saúde geral do indivíduo. A respiração é uma função inata e vital para o organismo, fundamental na produção de energia para o crescimento, maturação e desenvolvimento de um indivíduo. A respiração nasal filtra, aquece e umedece o ar e o livra das impurezas do meio ambiente 4.

Alguns autores 5 verificaram a existência de relação entre a respiração oral e a perda auditiva, em 61 crianças e adolescentes com idades entre 7 e 18 anos. Obtiveram como resultado 29 respiradores orais e 32 respiradores nasais. A perda auditiva do tipo condutiva foi constatada em 13 respiradores orais. Os autores concluíram que houve maior ocorrência de perda auditiva em respiradores orais. Este é o foco do artigo original intitulado: Respiração oral: causa x audição.

O processamento auditivo é um conjunto de habilidades auditivas que o indivíduo necessita para interpretar o que ouve. O processamento da informação acústica demonstra que a percepção dos sons não é imediata, pois é necessário que o sistema auditivo receba e transmita o sinal acústico recebido. Para realizar esta tarefa, o sinal acústico é transformado, organizado, codificado e recodificado pelas estruturas auditivas. Portanto, o que ocorre não é uma réplica direta da informação acústica recebida e sim uma representação, construída durante o processamento auditivo desta informação acústica 6.

Como são muitas as habilidades auditivas, faz-se necessária a utilização de uma bateria de testes, destacando-se entre eles o Staggered Spondaic Word (SSW) desenvolvido por Jack Katz, nos Estados Unidos. Por intermédio deste teste foi avaliada em um dos artigos, a habilidade do indivíduo em integrar aspectos acústicos e linguísticos dos sons da fala que formam uma palavra no estudo retrospectivo intitulado: SSW - Análise qualitativa dos erros: inventário de atendimento de 2005.

O Processamento Temporal é o processamento do sinal acústico em função do tempo de recepção, e se relaciona com inúmeras etapas que incluem a percepção de fala, a ordem de eventos, a sonoridade de fonemas, a duração das consoantes e a discriminação das palavras similares. A análise dos aspectos temporais dos sinais auditivos principalmente em escolares é de grande importância para o entendimento da fala e da linguagem e as habilidades auditivas podem ser avaliadas por meio de testes como: reconhecimento de padrões temporais (frequência, duração e timing - pista de tempo), ordenação temporal e resolução temporal. Este tema é abordado no artigo: Resolução temporal de crianças escolares.

O avanço tecnológico nos proporcionou inúmeros benefícios, como o conforto, a economia de tempo e o progresso da civilização moderna. Todavia, tem sido elevado o preço que a sociedade vem pagando, ao desconhecer os efeitos auditivos e não auditivos que a exposição a níveis de pressão sonora elevados de ruído pode acarretar, interferindo na comunicação e comprometendo a qualidade de vida do homem.

Em 2003, o American College of Occupational and Environmental Medicin 7 recomendou a realização de pesquisas que abordassem diversos aspectos da audição, como por exemplo: a perda auditiva induzida por ruído relacionada à exposição aos solventes, aos metais, à vibração, ao monóxido de carbono ou ao calor. Este é precisamente o tema do artigo Alterações auditivas em trabalhadores expostos a mercúrio.

Como foi mencionado no início deste editorial, o fonoaudiólogo que atua em Audiologia também pode e deve ampliar seus conhecimentos na área do equilíbrio. O equilíbrio é uma função sensório-motora, promovida por um processo de aprendizagem, com objetivo de estabilizar o campo visual e manter a postura ereta do homem. As perturbações do equilíbrio denominam-se tonturas, podendo estas, em indivíduos idosos, ser decorrentes do envelhecimento das estruturas responsáveis pelo equilíbrio, causando assim hipo-excitabilidade do sistema. Com a melhoria das condições de saúde e aumento da expectativa de vida, faz-se necessário estar preparado para lidar com esta realidade presente na população, diagnosticando corretamente a sua etiologia. Três artigos originais apresentam resultados de pesquisas sobre a avaliação vestibular: Achados vestibulares em usuários de aparelho de amplificação sonora individual; Avaliação vestibular na vertigem posicional paroxística benigna típica e atípica; Estudo comparativo do equilíbrio de crianças surdas e ouvintes; e um relato de caso de um Paciente com cefaléia e síndrome vestibular.

De todas as privações sensoriais, inegavelmente a perda auditiva no idoso produz um efeito devastador em seu processo de comunicação. A deficiência auditiva é uma das condições mais incapacitantes, levando a implicações psicossociais sérias para a sua qualidade de vida e para a dos que convivem com ele diariamente. Uma forma de minimizarmos os efeitos negativos da deficiência auditiva nestes indivíduos é a utilização dos recursos tecnológicos disponíveis, ou seja, os aparelhos de amplificação sonora (AAS) também chamados de próteses auditivas e, os equipamentos auxiliares para a audição. Entretanto, diversos fatores podem determinar a não utilização destes instrumentos, os quais, com o passar do tempo são engavetados devido à falta de orientação ao usuário, aconselhamento e criação de expectativas adequadas e relacionadas aos benefícios e possíveis limitações destes instrumentos 8.

Na prática clínica, percebe-se que alguns pacientes relutam em aceitar a existência da perda auditiva e o uso do AAS. Há, ainda, aqueles que chegam ao consultório para iniciar o processo de reabilitação audiológica, mas apesar de terem sido submetidos a processos adequados de adaptação de AAS no que diz respeito à tecnologia, características eletroacústicas, modelos utilizados e orientações fornecidas, deixam de usá-los.

Considerando que os exames audiométricos tradicionais fornecem somente informações básicas sobre habilidades auditivas do indivíduo, é imprescindível avaliar as dificuldades de comunicação, as consequências sociais e emocionais da deficiência auditiva, por intermédio da aplicação de questionários de auto-avaliação. Tendo em vista a existência de um paradoxo entre o benefício experimentado pelo uso da amplificação sonora e os resultados das avaliações subjetivas e objetivas de seu desempenho, recentes investigações também indicam que é de suma importância a aplicação de questionários de auto-avaliação à população de idosos.

Alguns questionários foram desenvolvidos especialmente para a população idosa (traduzidos e adaptados para o Português brasileiro) para avaliar as desvantagens psicológicas, sociais, vocacionais e emocionais impostas pela existência de uma perda auditiva. Outros instrumentos pretendem conscientizar esta população sobre a importância de procurar ajuda ao apresentar uma perda auditiva. O emprego de questionários de auto-avaliação prioriza a escuta, destacando quais são as variáveis que influenciam a percepção e o modo como o idoso avalia o impacto da deficiência auditiva em nossa realidade. O Hearing Handicap Inventory for the Elderly - Screening Version - HHIE é destinado a indivíduos idosos sendo de fácil compreensão. Este questionário foi abordado no artigo intitulado: Auto-avaliação da audição em idosos.

Os serviços habilitados pelo Ministério da Saúde para o fornecimento de próteses auditivas no Brasil, devem garantir à pessoa portadora de deficiência auditiva o melhor uso possível do seu resíduo auditivo. Para tanto devem propiciar um processo de reabilitação que garanta desde a seleção e adaptação do tipo e características tecnológicas das próteses auditivas adequadas às características audiológicas e necessidades acústicas do indivíduo; o acompanhamento periódico com monitoramento audiológico da perda auditiva e da amplificação e orientação, e treino do manuseio das próteses auditivas, até a terapia fonoaudiológica para o desenvolvimento das habilidades auditivas e de linguagem do usuário. Desse modo, é fundamental conhecermos a realidade dos serviços oferecidos nos diversos centros que realizam a seleção e adaptação destes instrumentos, como é o caso do artigo: Rotina de procedimentos utilizados na seleção e adaptação de aparelhos de amplificação sonora individual em centros auditivos na cidade de Porto Alegre, Brasil - RS.

Atualmente, o processo de escolha de um sistema de amplificação depende de um programa de reabilitação global, que auxilie o idoso portador de deficiência auditiva, bem como seus familiares, a lidarem com as desvantagens e incapacidades resultantes desta deficiência; no qual a adaptação do aparelho de amplificação sonora seja encarada, não como essência, mas sim como parte integrante deste programa. Dessa forma esse processo poderá ser acelerado, contribuindo para restaurar o seu bem estar físico, mental e social 8.

Qualquer indivíduo que apresente dificuldades decorrentes de uma perda de audição é candidato em potencial ao uso de um aparelho de amplificação sonora e equipamentos auxiliares de audição. Todavia, para uma adaptação bem sucedida, a ênfase deve ser dada ao processo de escuta do paciente idoso, na auto-avaliação da deficiência auditiva e no aconselhamento, que consiste no uso de procedimentos que facilitam a recuperação do paciente ou a adaptação ao distúrbio de comunicação, por meio de informação, suporte, encaminhamentos apropriados para outros profissionais e auxílio no desenvolvimento de estratégias de resolução de problemas que possam melhorar o processo de comunicação 9. O artigo intitulado: Atitudes frente às próteses auditivas aborda esta temática atual.

Para finalizar este editorial, gostaria de parabenizar e ressaltar a importância destes e de todos os fonoaudiólogos pesquisadores que contribuem para a excelência da Audiologia brasileira. Recomendo, pois, a leitura destes artigos, pois além do elevado nível científico, refletem o crescente interesse do fonoaudiólogo pelos aspectos envolvidos na preservação, identificação e intervenção nos distúrbios de audição e equilíbrio em nosso meio.

  • 1
    Organização Mundial da Saúde. Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. CIF. São Paulo: EDUSP, 2003.
  • 2. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE e CORDE abrem encontro internacional de estatísticas sobre pessoas com deficiência. 2005. Disponível em: URL: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=438&id_pagina=1 Acesso em 28 mar 2009.
  • 3. Abalo MCP, Fortuny AT, López GS, Suarez EE. Los potenciales evocados auditivos de estado estable a múltiples frecuencias y su valor na la evaluación objetiva de la audición. Auditio: Rev Electrónica Audiol [periódico na Internet] 2003 nov 1; 2(2):42-50. Disponível em: URL: http://www.auditio.com/revista/pdf/vol2/2/020204.pdf Acesso em 13 mar 2007.
  • 4. Marchesan IQ, Krakauer LH. A importância do trabalho respiratório na terapia miofuncional. Tópicos em fonoaudiologia. vol 2. São Paulo: Lovise; 1995. p. 155-160.
  • 5. Martins AS, Vieira MM, Vieira MR, Pereira PKS. Estudo de relação entre respiração oral e perda auditiva. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2006; 11(3):175-80.
  • 6. Bellis TJ. Assessment and management of central auditory processing disorders in the educational setting: from science to practice. 2. ed. San Diego: Singular; 2003.
  • 7
    American College of Occupational and Environmental Medicine - Position Statement. Noise Induced Hearing Loss. 2003. Disponível em: URL: http://www.acoem.org/guidelines.aspx?id=846 Acesso em 28 mar 2009.
  • 8. Russo ICP. Intervenção audiológica no idoso. Tratado de fonoaudiologia da SBFa. 2. ed. São Paulo: Roca (no prelo).
  • 9. Campos CAH, Russo ICP, Almeida K. Indicação, seleção e adaptação de próteses auditivas. Princípios gerais. In: Almeida K, Iorio MCM. Próteses auditivas: fundamentos teóricos e aplicações clínicas. 2. ed. São Paulo: Lovise; 2003. p. 35-54.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2009
  • Data do Fascículo
    2009
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