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O articulatório e o fonológico na clínica da linguagem: da teoria á prática

The articulatory and the phonological at language clinic: from theory to practice

Resumos

OBJETIVO: investigar como os fonoaudiólogos, na prática clínica, têm utilizado as terminologias referentes às alterações fonéticas e/ou fonológicas, assim como discutir as bases teóricas que têm fundamentado as mudanças de nomenclatura. MÉTODOS: foi realizada uma pesquisa exploratória com 60 fonoaudiólogos a fim de coletar dados por meio de respostas às perguntas: Você faz diferença entre Dislalia, Distúrbio Articulatório e Desvio Fonológico? Se sim, qual a diferença? Os dados foram analisados descritivamente através de distribuições percentuais. Foram aplicados testes de significância para a diferença de proporções, utilizando-se o nível de significância de 5%. A análise qualitativa, feita a partir de uma perspectiva discursiva, promoveu a discussão das relações entre Fonética e Fonologia e suas implicações para as alterações fonético-fonológicas. RESULTADOS: quase metade dos fonoaudiólogos entrevistados (45%) assegurou não diferenciar as terminologias utilizadas para designar as alterações fonético-fonológicas ou não saber explicá-las. Os sujeitos que afirmaram diferenciar os três termos, de forma geral, forneceram explicações evasivas ou pouco coerentes para as terminologias. Tais resultados denunciam que a maioria dos sujeitos dessa pesquisa, em suas práticas fonoaudiológicas, apenas reproduz terminologias comumente utilizadas sem um saber mais aprofundado sobre o tema, refletindo o fosso ainda existente entre a teorização linguística e a prática clínica. Esta geralmente tem sido realizada à margem daquela. CONCLUSÃO: evidencia-se, com isso, que, embora muito já se tenha construído em termos de conhecimento científico, na prática, parte dos fonoaudiólogos ainda mantém o caráter tecnicista que fez parte da história da Fonoaudiologia.

Fonética; Transtornos da Linguagem; Diagnóstico; Fonoterapia


PURPOSE: to investigate how speech therapists have been using the terminologies that refer to phonetic/phonological disturbance in the clinical experience, as well as to discuss the theoretical basis that has supported their terminological choices. METHODS: an exploiting research was done involving sixty speech therapists in order to get data through their answers to the following questions: Do you make any difference between Dyslalia, Articulatory Impairment and Phonological Deviation? If so, what is the difference? The data were descriptively analyzed through percentage distribution. Significance tests were applied, using significance level of 5%. Data analysis that was carried through in a discursive perspective promoted the discussion on the relationship between Phonetics and Phonology and their implications on phonetic/phonological alterations. RESULTS: almost half of the interviewed speech therapists (45%) said they were not differentiating the terminologies used to name the phonetic/phonological alterations or not knowing how to explain them. The subjects that stated to differentiate the three terms, as a general rule, provided evasive or little clear explanations as for the terminologies. Such results reveal that most subjects in the said research, in their speech therapy experience, just reproduce largely used terminologies without having an appropriate know-how about the theme, reflecting the existence of a gap between the linguistic theorization and the clinical practice. The latter usually has been developed on the fringes of the former one. CONCLUSION: it was shown that, despite the great improvements in linguistic knowledge, in practice, some speech therapists still keep the thecnicist character that took part in the history of Speech Therapy.

Phonetics; Language Disorders; Diagnosis; Speech Therapy


O articulatório e o fonológico na clínica da linguagem: da teoria á prática

The articulatory and the phonological at language clinic: from theory to practice

Ana Paula SantanaI; Maria Letícia Cautela de Almeida MachadoII; Kátia Simone da Rosa BianchiIII; Margareth de Souza FreitasIV; Jair Mendes MarquesV

IFonoaudióloga; Docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Distúrbios da Comunicação da Universidade Tuiuti do Paraná, UTP, Curitiba, PR, Brasil; Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas

IIFonoaudióloga da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil; Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

IIIFonoaudióloga da Clínica Orgone, Curitiba, PR, Brasil; Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso

IVGraduada em Letras; Professora Adjunta do curso de Letras da Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP, Ouro Preto; MG, Brasil; Doutora em Neurolinguística pela Universidade Estadual de Campinas

VEngenheiro e Matemático; Docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Distúrbios da Comunicação da Universidade Tuiuti do Paraná, UTP, Curitiba, PR, Brasil; Doutor em Ciências Geodésicas pela Universidade Federal do Paraná

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Ana Paula Santana Rua Mal Lott, 291 casa 02 Curitiba - PR CEP: 82410-090 E-mail: anaposantana@hotmail.com

RESUMO

OBJETIVO: investigar como os fonoaudiólogos, na prática clínica, têm utilizado as terminologias referentes às alterações fonéticas e/ou fonológicas, assim como discutir as bases teóricas que têm fundamentado as mudanças de nomenclatura.

MÉTODOS: foi realizada uma pesquisa exploratória com 60 fonoaudiólogos a fim de coletar dados por meio de respostas às perguntas: Você faz diferença entre Dislalia, Distúrbio Articulatório e Desvio Fonológico? Se sim, qual a diferença? Os dados foram analisados descritivamente através de distribuições percentuais. Foram aplicados testes de significância para a diferença de proporções, utilizando-se o nível de significância de 5%. A análise qualitativa, feita a partir de uma perspectiva discursiva, promoveu a discussão das relações entre Fonética e Fonologia e suas implicações para as alterações fonético-fonológicas.

RESULTADOS: quase metade dos fonoaudiólogos entrevistados (45%) assegurou não diferenciar as terminologias utilizadas para designar as alterações fonético-fonológicas ou não saber explicá-las. Os sujeitos que afirmaram diferenciar os três termos, de forma geral, forneceram explicações evasivas ou pouco coerentes para as terminologias. Tais resultados denunciam que a maioria dos sujeitos dessa pesquisa, em suas práticas fonoaudiológicas, apenas reproduz terminologias comumente utilizadas sem um saber mais aprofundado sobre o tema, refletindo o fosso ainda existente entre a teorização linguística e a prática clínica. Esta geralmente tem sido realizada à margem daquela.

CONCLUSÃO: evidencia-se, com isso, que, embora muito já se tenha construído em termos de conhecimento científico, na prática, parte dos fonoaudiólogos ainda mantém o caráter tecnicista que fez parte da história da Fonoaudiologia.

Descritores: Fonética; Transtornos da Linguagem; Diagnóstico; Fonoterapia

ABSTRACT

PURPOSE: to investigate how speech therapists have been using the terminologies that refer to phonetic/phonological disturbance in the clinical experience, as well as to discuss the theoretical basis that has supported their terminological choices.

METHODS: an exploiting research was done involving sixty speech therapists in order to get data through their answers to the following questions: Do you make any difference between Dyslalia, Articulatory Impairment and Phonological Deviation? If so, what is the difference? The data were descriptively analyzed through percentage distribution. Significance tests were applied, using significance level of 5%. Data analysis that was carried through in a discursive perspective promoted the discussion on the relationship between Phonetics and Phonology and their implications on phonetic/phonological alterations.

RESULTS: almost half of the interviewed speech therapists (45%) said they were not differentiating the terminologies used to name the phonetic/phonological alterations or not knowing how to explain them. The subjects that stated to differentiate the three terms, as a general rule, provided evasive or little clear explanations as for the terminologies. Such results reveal that most subjects in the said research, in their speech therapy experience, just reproduce largely used terminologies without having an appropriate know-how about the theme, reflecting the existence of a gap between the linguistic theorization and the clinical practice. The latter usually has been developed on the fringes of the former one.

CONCLUSION: it was shown that, despite the great improvements in linguistic knowledge, in practice, some speech therapists still keep the thecnicist character that took part in the history of Speech Therapy.

Keywords: Phonetics; Language Disorders; Diagnosis; Speech Therapy

INTRODUÇÃO

Na literatura fonoaudiológica, termos como Dislalia, Distúrbio Articulatório e Desvio Fonológico têm sido amplamente utilizados para designar dificuldades de cunho fonético e/ou fonológico 1-10. Na década de 60 do século passado, o termo utilizado para esse tipo de dificuldade era Dislalia, conceituada como um transtorno na articulação dos fonemas por alterações funcionais dos órgãos periféricos da fala 3. O termo foi utilizado pela primeira vez pelo suíço Schulter, nos anos 30 do século XIX. Surgiu para caracterizar um quadro distinto da chamada Alalia (falta de linguagem). Anteriormente a isso, as dificuldades relativas à produção da fala eram representadas pelo termo Dislabia 1, relacionada a dificuldade de articular as palavras. O quadro consistia na omissão e substituição de consoantes por crianças com idade superior àquela, em cuja fala normalmente ocorrem esses fenômenos 2.

Posteriormente, surgiu a expressão Distúrbio Articulatório, relacionada à funcionalidade e diretamente ligada ao aspecto motor da linguagem - falhas relativas a tempo, direção, pressão, programação e integração dos movimentos da articulação, que resultam na ausência ou inadequação dos fonemas -, passando então a ser usada em substituição à Dislalia relacionada a essas variáveis 4,11.

O entendimento dos aspectos fonéticos e fonológicos, relacionados principalmente ao motor, foi preponderante até a década de 70 do século passado, quando a fala com desvios era entendida como resultado de diferenças entre a produção de sons isolados, o que corresponderia às Dislalias Funcionais ou aos Distúrbios Articulatórios sem causa orgânica 7,12. Somente a partir da década de 80 do século XX é que, na Afasiologia 13, a discussão sobre a aquisição fonético-fonológica envolveu não apenas a produção, mas a organização dos sons produzidos em determinada comunidade linguística 5,6,8-10,14-16. O distanciamento existente até então entre os estudos linguísticos e os fonoaudiológicos impedia que se fizessem referências às áreas da Fonética e da Fonologia.

A partir do momento em que os estudos da Fonética e da Fonologia passaram a participar desse debate, houve uma mudança conceitual da nomenclatura e o surgimento da expressão Desvio Fonológico 5.

O transtorno fonológico tem sido definido pela dificuldade com os segmentos fonológicos e sua distribuição, bem como com os tipos de estruturas silábicas pertinentes a cada língua 17. Contudo, termos como Dislalia Fonética, Dislalia Fonológica e Distúrbios Articulatórios ainda hoje são usados como sinônimos, sem que, muitas vezes, se considerem as diferenças conceituais entre tais termos.

No bojo dessas considerações, o objetivo do presente trabalho é investigar como, atualmente, os fonoaudiólogos estão utilizando as terminologias referentes às alterações fonológicas e/ou fonéticas em sua prática clínica, a fim de angariar subsídios para futuras discussões sobre as bases teóricas que têm fundamentado as escolhas terminológicas dos profissionais da área.

MÉTODOS

Para a coleta de dados, foram realizadas 60 entrevistas com profissionais de Fonoaudiologia, que trabalham com linguagem, atuantes em estados das regiões Sudeste (Rio de Janeiro), Sul (Paraná), Centro-Oeste (Goiás) e Nordeste (Ceará) do Brasil. Os sujeitos foram selecionados através de uma amostragem por conveniência, procedimento que se considera adequado para uma pesquisa exploratória. Esse tipo de pesquisa tem como característica a não generalização dos resultados obtidos, mas a vantagem de indicar tendências e sugerir indicadores mais precisos que possam servir de base para uma pesquisa mais ampla. Para a coleta dos dados não houve critérios de exclusão. Para a inclusão dos participantes, levou-se em conta as disponibilidades dos pesquisadores nos estados escolhidos. Após o assentimento dos sujeitos, procedeu-se à entrevista oral com registro escrito pelos autores. Os profissionais entrevistados forneceram informações referentes a sua identificação e formação profissional e responderam à seguinte pergunta: "Você faz distinção entre Dislalia, Distúrbio Articulatório e Desvio Fonológico? Em caso afirmativo, qual a diferença?".

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Tuiuti do Paraná sob o protocolo CEP-UTP nº 0085/2007. Todos os sujeitos envolvidos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em que concordavam em participar da pesquisa e permitiam a divulgação de seus resultados, conforme Resolução MS/CNS/CNEP no 196/96 de 10 de outubro de 1996.

Os dados foram tabulados e organizados através do programa Sphinx Léxica. As respostas à questão aberta ("Em caso afirmativo, qual a diferença?") foram interpretadas qualitativamente, por três pesquisadores, a partir de uma análise de cunho discursivo 15. As respostas foram agrupadas em categorias a fim de quantificá-las. Analisaram-se os dados descritivamente através de distribuições percentuais e aplicaram-se testes de significância para a diferença de proporções, utilizando-se o nível de significância de 5%. Os resultados são apresentados em forma de gráficos e tabelas.

Ressalte-se ainda que como a amostragem é por conveniência (e não aleatória) não se pretende generalizar o resultado da pesquisa, assim como é desnecessário levar em conta as proporções de graduados, especialistas, mestres e doutores.

RESULTADOS

Com relação à caracterização dos 60 sujeitos envolvidos na pesquisa, têm-se as seguintes especificações:

- Quanto ao fator "sexo": todos os sujeitos são do sexo feminino com idade média de 33 anos, variando entre 23 e 58 anos;

- Quanto ao fator "tempo de formado": 17 (28,33%) têm menos de cinco anos, 32 (53,33%) têm de 5 a 15 anos e 11 (18,33%), mais de 15 anos.

- Quanto ao fator "região": nove (15%) são do Rio de Janeiro, 20 (33,33%) são do Ceará, três (5%) são de Santa Catarina, 18 (30%) são do Paraná e 10 (16,67%) são de Goiás.

- Quanto ao fator "titulação dos sujeitos": 25% cursaram exclusivamente Graduação em Fonoaudiologia; 68,33% concluíram Especialização (em diversas áreas da Fonoaudiologia e afins), 6,67% têm Mestrado e 3,33%, Doutorado.

- Quanto ao fator "prática clínica dos sujeitos": todos atendiam, em sua prática clínica, pacientes com alterações fonético e/ou fonológicas.

A Figura 1 revela as respostas dadas pelos entrevistados quando questionados se viam diferença entre os termos Dislalia, Distúrbio Articulatório e Desvio Fonológico. Houve três categorias de respostas: "diferencia os três termos"; "não diferencia os três termos", "não sabe explicar". Não se pôde precisar se os que não diferenciavam também não sabiam explicar.


A Tabela 1 apresenta os resultados do Teste de Diferença de proporções entre os grupos dos que diferenciam e dos que não diferenciam a terminologia, relacionando-os ao tempo de formação, titulação e região.

As Figuras 2, 3 e 4 sintetizam as definições atribuídas às "alterações da fala/linguagem" pelos sujeitos que declararam diferenciar Dislalia, Distúrbio Articulatório e Desvio Fonológico. Ressalta-se que alguns entrevistados citaram mais de um aspecto nestas definições.




Seguem abaixo alguns exemplos de conceituação de Dislalia encontrados no corpus:

[...] não uso, vi pouco na faculdade.

(Sujeito 21, 27 anos, menos de 5 anos de formada)

[...] Dislalia e Desvio Fonológico: apenas mudança no nome.

(Sujeito 16, 33 anos, 5 a 15 anos de formada)

Era a nomenclatura usada no início da Fono para dificuldade da fala por problemas articulatórios.

(Sujeito 29, 37 anos, mais de 15 anos de formada)

Exemplos de conceituação de Distúrbio Articulatório por parte dos entrevistados são listados a seguir:

[...] é um desvio fonético, trocas com alguma alteração orgânica.

(Sujeito 11, 25 anos, menos de 5 anos de formada)

[...] é igual à Dislalia, tem alteração orgânica, mais a musculatura, freio lingual curto.

(Sujeito 12, 28 anos, 5 a 15 anos de formada)

A criança consegue perceber suas trocas, mas tem um problema motor.

(Sujeito 54, 44 anos, mais de 15 anos de formada)

Seguem alguns exemplos de conceituação de Desvio Fonológico pelos entrevistados:

A diferença entre Desvio Fonológico e os outros é que os outros ficam muito na estrutura e esquecem os outros fatores envolvidos na linguagem.

(Sujeito 24, 28 anos, menos de 5 anos de formada)

[...] não uso, é quando um só fonema isolado está distorcido associado a um problema de motricidade oral (hipotonia).

(Sujeito 14, 37 anos, 5 a 15 anos de formada).

Não uso Desvio Fonológico, não concordo com consciência fonológica.

(Sujeito 10, 37 anos, mais de 15 anos de formada)

DISCUSSÃO

O posicionamento dos sujeitos quanto aos termos Dislalia, Distúrbio Articulatório e Desvio Fonológico, apresentado na Figura 1, revela que aqueles que responderam não saber explicar correspondem ao menor número de entrevistados (10%). Contudo, é a única categoria que certamente representa um dado fidedigno neste item, pois os sujeitos que asseguraram não diferenciar os termos (35%) alegaram que houve apenas uma mudança de nomenclatura, mas não esclareceram as questões conceituais, sugerindo desconhecerem-nas. Da mesma forma, os que afirmaram diferenciar os três termos (55%) forneceram respostas evasivas ou tautológicas, como: "Desvio Fonológico está relacionado ao fonológico".

As respostas sobre a diferenciação entre os termos supracitados pouco variaram em função do tempo de formados. Comparando os dados da Figura 1 com os da Tabela 1, observa-se que a diferença encontra-se no grupo de sujeitos com mais de 15 anos de formados. Nesse grupo, nenhum entrevistado declarou não saber explicar se existe ou não diferença entre os referidos termos, e a maior percentagem foi daqueles que afirmaram não diferenciá-los.

Comparando o grupo de respostas dos profissionais com menos de cinco anos de formados com o daqueles que concluíram a graduação há mais de 15 anos, nota-se uma inversão: enquanto mais da metade do primeiro grupo diferencia os termos (64,71%), a maior percentagem (54,55%) dos sujeitos cujo tempo excede 15 anos não os diferencia. Nota-se ainda que os sujeitos que alegaram não saber explicar as terminologias encontram-se principalmente no grupo cujo grau de formação é Graduação e Especialização. Para as demais formações, não foi realizada a aplicação do teste em virtude do número reduzido de sujeitos: quatro (com Mestrado) e dois (com Doutorado). No que tange à região de origem dos entrevistados, observa-se que diferenças significantes ocorrem nas respostas daqueles com menos de cinco anos de formação pertencentes à Região Sul e com nível de Especialização.

A Figura 2 mostra definições de Dislalia dadas pelos sujeitos que declararam diferenciar os termos apresentados. Pode-se notar que as opiniões se dividem: 44,45% dos que se arriscam a conceituar Dislalia associam-na a Distúrbio Articulatório, 33,33% dos sujeitos afirmam ser esta uma terminologia em desuso atualmente, o que os leva a pensar que foi substituída pelos diagnósticos de Distúrbio Articulatório ou Desvio Fonológico. Os que a associam a Distúrbio Articulatório parecem considerar a acepção de Dislalia como dividida em orgânica e funcional, levando-se em conta a implicação das estruturas e as falhas motoras na execução do gesto articulatório.

Pequena parte da amostra pesquisada (8,33%) não faz diferença entre Dislalia e Desvio Fonológico, revelando que desconsidera as questões conceituais que subjazem a essa diferença terminológica. Os sujeitos que os relacionam ao "fonético e ao fonológico" simultaneamente (13,89%) não parecem considerar as diferenciações propostas pela literatura 5,12,14.

Acrescenta-se, nessa discussão, que há autores que também concebiam a dislalia como uma questão fonológica. Para Issler, já em 1983, a Dislalia não seria um problema fisiológico sensório-motor, mas uma aproximação imatura do sistema linguístico do adulto e do código fonêmico da língua que está sendo adquirida 14. A autora considera uma Dislalia Fonológica quando a criança, com seis ou oito anos, mais madura neurologicamente, continua falhando em produzir os fonemas sem qualquer justificativa aparente para tanto.

Na Figura 3, vê-se esboçada a confusão terminológico-conceitual referida anteriormente. No posicionamento dos sujeitos quanto à conceituação de Distúrbio Articulatório, há uma mescla de termos usados na Linguística, tais como "Fonético" ou "Funcional", e termos próprios da Fonoaudiologia/Neurofisiologia, tais como "motor" e "orgânico". Este conceito foi aproximado ao da Dislalia pela maioria dos entrevistados (36,36%). Somando-se a essa associação, as opiniões dividiram-se de forma homogênea em relacioná-los ao orgânico (20,46%), ao fonético (18,18%) e ao funcional ou motor (25%).

Referindo-se à questão terminológica e, possivelmente, ao vínculo com o "orgânico", Freire mencionou o distúrbio articulatório como designação dada aos distúrbios de linguagem na Fonoaudiologia tradicional, influenciada pela Medicina 18. Observa-se, assim, a manutenção da descrição de desvio fonético como alteração anátomo-fisiológica do sistema estomatognático, uma perda auditiva, ou um déficit mental 6.

Se, ao basear-se na Medicina, a Fonoaudiologia encontra o "motor", o "orgânico"; ao basear-se na Linguística ela encontra uma discussão ainda em processo no que se refere aos domínios e fronteiras das áreas da Fonética e da Fonologia 19,20. Ainda que haja uma tendência atual em diluir estas fronteiras, reconhecendo-as como parte de um mesmo continuum 20, o status propriamente linguístico da Fonética está apenas em vias de ser reconhecido. O crescente número de estudos na área da prosódia é certamente a maior fonte de subsídios para a consolidação desse estatuto. Assim, é natural que a Fonoaudiologia, ao buscar um respaldo na Linguística para suas questões teóricas, e deparando-se com uma área também em ebulição, opte, por vezes, por se manter na segurança de uma terminologia tradicional de cunho não-linguístico, mas reconhecida pela clínica.

Quando se considera que a Fonética se ocupa da produção (articulatória), transmissão (acústica) e percepção (auditiva) dos sons da fala 19, reconhece-se no termo muito de orgânico, motor e funcional. Porém, em uma outra linha de raciocínio, há que se reconhecer que tais termos, quando inseridos no contexto linguístico, possuem estatuto totalmente diferente daquele meramente neurofisiológico, passando a ser do domínio da linguagem, e, mais especificamente, do Fonético e do Fonológico 13.

Pode-se verificar, na Figura 4, uma extensa subdivisão por parte dos entrevistados para conceituar Desvio Fonológico. Chama a atenção o fato de que a maior percentagem (21,88%), em relação às demais categorias deste gráfico, seja de respostas que buscam relacioná-lo ao fonológico, o que constitui uma resposta um tanto tautológica.

Retomando a literatura, constata-se que, a partir da teorização fonológica, as características distintivas dos fonemas passaram a ser analisadas e os processos fonológicos entraram em cena 19. Nessa perspectiva, o termo articulatório passou a ser substituído por fonológico; este, referindo-se ao conhecimento do falante, de seu sistema sonoro e das regras pré-articulatórias. O conceito de fonológico utilizado aqui é mais abrangente do que o de articulatório, pois se aplica à percepção e à produção, bem como a questões cognitivas 21 envolvendo a formação da forma fônica. Refere-se, nesse caso, à organização e classificação dos sons da fala que são usados de forma contrastiva em uma língua 22.

Examinando as respostas dos fonoaudiólogos, verifica-se ainda a existência de entrevistados que associam o termo Desvio Fonológico à cognição e/ou organização mental (15,62%) e ao que se considera tradicionalmente como "linguagem" (18,75%), sob o olhar linguístico de que são processos que não ocorrem por acaso, mas dependem de uma disposição sistemática, arranjados conforme um modelo fonológico. Os termos Desvio/Distúrbio/Transtorno Fonológico passam a caracterizar um problema de linguagem, manifesto pela diferenciação na organização e uso dos sons da fala em relação a seu aspecto contrastivo 22,23.

Nas respostas dos sujeitos, encontra-se 18,75% que afirmaram que Desvio Fonológico está relacionado à ordem sensorial e/ou a habilidades auditivas, o que talvez o identifique, para tais sujeitos, com as alterações de processamento auditivo. Encontra-se ainda 15,62% dos sujeitos assegurando não usar o termo Desvio Fonológico.

Vale ressaltar que, ao cruzar-se os resultados referentes à variação do posicionamento dos sujeitos para conceituar Desvio Fonológico com o tempo de formação, verificou-se que os sujeitos que se formaram há menos de cinco anos utilizam essa terminologia enquanto os que se formaram há mais de 15 anos não a utilizam (60%). Esse dado é mais alarmante se associado ao fato de que mais da metade dos entrevistados nesta faixa já terem declarado não diferenciar os três termos. Parece haver, assim, um distanciamento de (novas) discussões teórico-práticas para os sujeitos que estão formados há mais tempo, evidenciando uma certa defasagem em seus conhecimentos específicos da área.

Em suma, com relação à Dislalia, que foi o termo pioneiro, os entrevistados fizeram aproximação com as novas terminologias ou afirmaram que o mesmo estava em desuso. Poucos mencionaram aspectos fonéticos e fonológicos (13,89%). Na definição de Distúrbio Articulatório, houve uma aproximação lexical com a questão articulatória; relacionando-o predominantemente ao orgânico, funcional/motor (45,46%). No que tange a Desvio Fonológico, houve maior diversidade nas respostas e dificuldade na conceituação, verificando-se aproximação com o termo fonológico (21,88%). Possivelmente, tais inexatidões decorrem da falta de compreensão de questões propriamente linguísticas.

Essas discussões sobre o diagnóstico não são independentes da proposta terapêutica. Na literatura 3,4,10,12,21,23-26, encontra-se modelos específicos de avaliação e de tratamento de acordo com a visão teórica acerca da linguagem; nesse caso, acerca das alterações fonético/fonológicas.

Pode-se dizer que os resultados obtidos com o presente estudo apontam para a constatação de que profissionais da Fonoaudiologia parecem empregar termos sem, contudo, fazer uma reflexão sobre as implicações desse uso para a clínica da linguagem 7. É notório que a Fonoaudiologia tem-se atualizado na apropriação dos conhecimentos produzidos pela Linguística 19, todavia, muitas vezes a visão da linguística que se tem é de uma linguística estruturalista. Além disso, muitas vezes se privilegia apenas uma discussão organicista e vinculada à Neurofisiologia, apesar do fato de que a Fonoaudiologia, por ser uma ciência aplicada, necessita dar conta de uma clínica que consiga articular o biológico, o psicológico, o linguístico e o social.

Relativamente aos aspectos terminológico-conceituais das tradicionais "alterações fonoarticulatórias", poder-se-ia dizer que há uma mudança de paradigma em processo, cujo indício mais forte é o uso concorrente de termos de domínios distintos para designar um mesmo quadro, o que gera imprecisão ou mesmo certa "confusão terminológico-conceitual", que em nada contribui para o diagnóstico e tratamento adequados por parte dos profissionais envolvidos.

CONCLUSÃO

Os resultados obtidos na presente pesquisa conduzem a uma reflexão a propósito da precariedade da argumentação teórica de muitos dos entrevistados, não só no momento de admitir que não sabem explicar, mas ao buscarem explicações pouco coerentes. Assim, se, por um lado, há uma carência de aprofundamento linguístico, por outro, há uma aproximação de uma determinada visão de linguagem, nesse caso, de caráter estruturalista.

Embora a Linguística, atualmente, já busque uma dissolução das fronteiras rígidas entre Fonética e Fonologia, ainda considera-se necessária e salutar a manutenção de estatutos linguísticos distintos para ambas, uma vez que a linguagem humana articula-se em vários níveis, cada um com suas especificidades, embora atuando em conjunto em seu funcionamento.

À guisa de conclusão, embora os resultados obtidos correspondam a uma amostra parcial, não podendo, portanto, ser generalizada, ela aponta indicadores significativos e que podem ser importantes para futuras investigações: a) a diferença de tempo de formado, entre os respondentes, indica que aqueles com menos de cinco anos têm mais chances de saber diferenciar os termos; b) entre aqueles com mestrado e doutorado, chama a atenção (muito mais até mesmo por ter sido um número reduzido de respondentes) o "papel diferenciador" que a formação pode ter sobre esses profissionais. Ou seja, os resultados indicam que o menor tempo de formação e a pós-graduação stricto sensu podem ser tomados como fatores de diferenciação na prática desses profissionais. Evidentemente, por motivos diferentes e que precisariam ser aprofundados com uma pesquisa mais ampla. Os resultados sinalizam, também, para a fragilidade teórica que perpassa a prática clínica como um todo, uma vez que apenas um número reduzido de profissionais, após sua formação, busca um aprofundamento e uma complementação na pós-graduação stricto sensu. Importante levar em conta, também, a desigualdade de ofertas de programas de mestrado e doutorado no país. Em função disso, vê-se que há uma carência de profissionais que façam a ponte entre teoria e prática para que se possa, afinal, assumir a apropriação de uma fundamentação teórica consistente, que dê sustentação ao fazer fonoaudiológico. Acrescente-se ainda que este trabalho demonstra a falha significativa desse grupo de fonoaudiólogos em atualizar conhecimento, já que as terminologias não são utilizadas pela literatura aleatoriamente, e há uma vasta publicação sobre essas mudanças conceituais, cabendo, assim, ao fonoaudiólogo, atualizar-se e promover uma relação mais estreita entre teoria e prática.

Recebido em: 28/05/2009

Aceito em: 16/11/2009

Conflito de interesses: inexistente

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010

    Histórico

    • Recebido
      28 Maio 2009
    • Aceito
      16 Nov 2009
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