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Narratividade do professor: mediação e linguagem na sala de aula

Resumos

OBJETIVO: construir e analisar uma experiência de formação do professor em sua narratividade e os efeitos da mesma na narratividade das crianças. MÉTODO: a amostra se constituiu de duas professoras de pré-escola, 28 alunos, 14 de cada professora sendo, um grupo experimental e o outro grupo controle, e os pais das crianças como controle ambiental. As avaliações foram feitas a partir de sessões de filmagem das professoras, coleta das narrativas das crianças e questionário sobre como desenvolviam a atividade de contar em casa. RESULTADOS: o processo de mediação fonoaudiólogo/professor, com enfoque na narrativa, provocou mudança no modo de narrar não só do professor, mas também nas categorias narrativas das crianças, demonstrando a importância de o profissional que assessore o professor em sua prática trazendo novos subsídios teóricos. CONCLUSÃO: após a realização desta pesquisa observou-se que a Experiência de Aprendizagem Mediada (EAM) e os princípios interacionistas sobre a aquisição da linguagem e o desenvolvimento narrativo foram efetivos na construção de uma experiência formativa do professor para melhorar sua narratividade e que a evolução do professor se refletiu na evolução das habilidades narrativas das crianças.

Fonoaudiologia; Linguagem; Aprendizagem


PURPOSE: to build and analyze an experience in the teacher's formation in his/her narrativity and the effects of it on the children's narrativity. METHOD: the sample consisted of two pre-school teachers, 28 students, composing two groups of 14, one for each teacher, being one the experimental group and the other the control group, and the children's parents as the environmental control. Evaluations were conducted through filming sessions of the teachers, collection of children's narratives and a questionnaire about how the recounting activity was developed at home. RESULTS: the process of pnonoaudiologist/teacher mediation, focusing on narrative, caused variation not only in the teacher's way of narrating, but also in the children's narrative categories, demonstrating the importance of a professional who can advise the teacher in his/her practice by bringing in new theoretical support. CONCLUSION: after the development of this study, it was observed that the Mediated Learning Experience (MLE) and the interactionism principles on language acquisition and narrative development were effective in building teacher's formative experience to improve his/her narrativity and that the teacher's evolution was reflected in the development of the children's narrative skills.

Speech; Language and Hearing Sciences; Language; Learning


Narratividade do professor: mediação e linguagem na sala de aula

Isabel Maganin ChesiniI; Anelise Henrich CrestaniII; Ana Paula Ramos de SouzaIII

IFonoaudióloga Clínica graduada pela Universidade Luterana do Brasil; Mestre em Ditúrbios da Comunicação Humana pela Universidade Tuiuti do Paraná

IIFonoaudióloga; Mestre em Distúrbios da comunicação Humana pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, Santa Maria, RS, Brasil; Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Distúrbios da Comunicação Humana da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, Santa Maria, RS, Brasil

IIIFonoaudióloga; Professora Adjunta da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, Santa Maria, RS, Brasil; Doutora em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, RS, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Anelise Henrich Crestani R. André Marques, 185/301 Santa Maria – RS – Brasil – CEP: 97010-041 E-mail: any.h.c@hotmail.com

RESUMO

OBJETIVO: construir e analisar uma experiência de formação do professor em sua narratividade e os efeitos da mesma na narratividade das crianças.

MÉTODO: a amostra se constituiu de duas professoras de pré-escola, 28 alunos, 14 de cada professora sendo, um grupo experimental e o outro grupo controle, e os pais das crianças como controle ambiental. As avaliações foram feitas a partir de sessões de filmagem das professoras, coleta das narrativas das crianças e questionário sobre como desenvolviam a atividade de contar em casa.

RESULTADOS: o processo de mediação fonoaudiólogo/professor, com enfoque na narrativa, provocou mudança no modo de narrar não só do professor, mas também nas categorias narrativas das crianças, demonstrando a importância de o profissional que assessore o professor em sua prática trazendo novos subsídios teóricos.

CONCLUSÃO: após a realização desta pesquisa observou-se que a Experiência de Aprendizagem Mediada (EAM) e os princípios interacionistas sobre a aquisição da linguagem e o desenvolvimento narrativo foram efetivos na construção de uma experiência formativa do professor para melhorar sua narratividade e que a evolução do professor se refletiu na evolução das habilidades narrativas das crianças.

Descritores: Fonoaudiologia; Linguagem; Aprendizagem

ABSTRACT

PURPOSE: to build and analyze an experience in the teacher's formation in his/her narrativity and the effects of it on the children's narrativity.

METHOD: the sample consisted of two pre-school teachers, 28 students, composing two groups of 14, one for each teacher, being one the experimental group and the other the control group, and the children's parents as the environmental control. Evaluations were conducted through filming sessions of the teachers, collection of children's narratives and a questionnaire about how the recounting activity was developed at home.

RESULTS: the process of pnonoaudiologist/teacher mediation, focusing on narrative, caused variation not only in the teacher's way of narrating, but also in the children's narrative categories, demonstrating the importance of a professional who can advise the teacher in his/her practice by bringing in new theoretical support.

CONCLUSION: after the development of this study, it was observed that the Mediated Learning Experience (MLE) and the interactionism principles on language acquisition and narrative development were effective in building teacher's formative experience to improve his/her narrativity and that the teacher's evolution was reflected in the development of the children's narrative skills.

Keywords: Speech, Language and Hearing Sciences; Language; Learning

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento narrativo é apontado por diversos autores como um momento crucial na evolução da linguagem oral infantil1,2. Tal importância se reflete na Fonoaudiologia em diversos estudos acerca do desenvolvimento narrativo em sujeitos em aquisição típica de linguagem, bem como em sujeitos em aquisição atípica3,4.

Na psicologia a narrativa assume, além da importância lingüística, a de transcendência psíquica, pois muitos trabalhos afirmam que ela tem o poder de auxiliar o sujeito a organizar e interpretar sua vida, seja ele um adulto5 ou criança6,7. Também é consenso que as crianças aprendem a narrar de maneira organizada em contexto colaborativo de engajamento com seus pais8 e que esse aprendizado serve de base para a expansão que se dará pelo contato com outros gêneros narrativos em casa e na escola9. Por isso, quando o foco das pesquisas são as interações narrativas de adultos com crianças pequenas, há vários estudos no contexto escolar que envolvem interações com professores ou com o próprio pesquisador10.

Apesar da importância da narrativa enquanto aspecto do desenvolvimento da linguagem11-13, ela nem sempre é devidamente valorizada na escola, pois a mesma pode sofrer variações a depender da concepção pedagógica adotada14. Observou-se, em pesquisa anterior, que a concepção pedagógica parece ter uma influência na forma de interagir linguisticamente em sala de aula e de proporcionar ou não o espaço narrativo.

Foi possível notar uma liberdade de interação professor/aluno maior em uma escola construtivista, bem como maior autoria na narração da professora, do que nas interações observadas em escola de metodologia pedagógica tradicional. Deve-se salientar que preocupada com o feedback fornecido após a pesquisa, a professora da escola tradicional apresentou-se muito receptiva para a realização do estudo relatado neste artigo, desejando participar do processo de mediação fonoaudiólogo/professor, com enfoque na narrativa. Além do desejo dessa professora, o contato com a experiência de autores15, permitiu pensar na utilização de princípios contidos em propostas teóricas da educação e da linguística, na organização de procedimentos para essa mediação. Do mesmo modo, outro trabalho favorece o pensar em propostas de assistência ao desenvolvimento narrativo16.

Nessa construção três autores foram considerados fundamentais1,17,18. O primeiro,17 na área da educação, traz contribuições para pensar em princípios na interação educacional (Experiência de Aprendizagem Mediada – EAM) cuja base teórica é o sócio-interacionismo.

O segundo autor1 apresenta, a partir de uma perspectiva interacionista de linguagem, estudos sobre o desenvolvimento narrativo infantil primordiais para as práticas na escola e na clínica.

O terceiro autor considerado18 faz a enunciação de princípios advindos de uma prática bem sucedida como contadora de histórias. Embora essa autora não assuma explicitamente uma teoria de linguagem, observou-se uma coerência de sua prática com as propostas teóricas dos dois autores anteriores.

A partir dessas considerações, os objetivos deste trabalho foram construir e analisar uma experiência de formação do professor em sua narratividade e os efeitos da mesma na narratividade das crianças.

MÉTODO

Esta pesquisa se constituiu em um delineamento experimental. A amostra constou de duas professoras de pré-escola da rede particular de Canoas, ambas da mesma escola. Uma delas participou deste experimento (professora experimental), enquanto a outra serviu apenas como controle para a pesquisa (professora controle). Também foram controles os alunos de ambas professoras: 14 crianças da professora experimental (Prof Ex) e 14 crianças da professora controle (Prof Con). Os pais dessas crianças fizeram parte do controle ambiental.

Os participantes receberam um termo de consentimento livre e esclarecido para assinarem após terem concordado em participar do estudo, tendo-lhes sido assegurado o direito de sigilo, voluntariado e de esclarecimentos a qualquer momento da pesquisa.

A partir da assinatura do termo, marcaram-se as sessões de filmagem das professoras e a coleta das narrativas das crianças de cada turma. Juntamente com o termo, os pais das crianças receberam um questionário sobre como estariam desenvolvendo a atividade de contar em casa.

A filmagem inicial das professoras foi realizada no contexto natural de sala de aula, e as mesmas foram orientadas para fazerem o que sempre fizeram.

A coleta da narrativa das crianças ocorreu, inicialmente, a partir de um instrumento2. Esse instrumento constituiu-se de figuras para evocação com uma situação que contém equilíbrio inicial, desequilíbrio e resolução, permitindo, portanto, uma narrativa verdadeira, conforme a classificação já utilizada em outras pesquisas4,14.

As crianças foram instruídas para que ordenassem as figuras conforme quisessem e inventassem uma história. Durante a coleta, as narrativas foram gravadas em fitas cassete e, imediatamente, transcritas. A partir dessa transcrição realizou-se uma classificação das narrativas. Observaram-se também aspectos como ordenação temporal e lógica da narrativa, criatividade e adequação ao tema proposto, além da motivação e iniciativa para narrar. É claro que por se tratar de um instrumento visual, a narrativa ficou limitada a aspectos pragmáticos, como o partilhamento visual, mas permitiu uma comparação entre o antes e o depois e entre as crianças – grupo Controle e grupo Experimental.

Além desse instrumento, foram observadas as atividades de narração com a professora para analisar a atitude das crianças diante da narração e a interação –professor /aluno – para que a análise não ficasse apenas no produto final, no caso a narrativa. Os aspectos observados nas narrativas infantis abrangeram a mesma tipologia descrita para a coleta das narrativas dos alunos na avaliação inicial e final. Em relação ao professor, além dos princípios da EAM, foram observados aspectos como a entonação (se adequada ou não ao conteúdo da história e se suficientemente atraente para captar a atenção das crianças), a atitude corporal (se o professor adotava uma atitude corporal tradicional na frente das crianças e elas em carteiras ou se formava uma rodinha no chão ou com cadeiras de modo a ficar mais aconchegante o momento da contação) e se o time da história estava adequado (se muito lento ou muito rápido ou no tempo certo para manter a turma atenta). Tais critérios seguiram as proposições de Dohm17 acerca de técnicas adequadas de contação.

A idéia de ter o controle das crianças foi para verificar se havia ou não mudança no tipo de narrativa a partir do trabalho realizado com a professora. Nesse sentido, o questionário com os pais também foi implementado para verificar se haviam diferenças importantes entre os ambientes familiares das crianças. Outro aspecto considerado foi a possibilidade de o instrumento ter um efeito de memória quando aplicado três meses depois. Notou-se que apesar de algumas crianças terem sintetizado suas narrativas, elas acrescentaram elementos novos e melhoraram, em alguns casos, a ordenação temporal e lógica do texto.

O trabalho com as professoras foi iniciado com a realização de uma entrevista semi-estruturada e uma conversa sobre o narrar e suas visões de linguagem. Após a realização dessas entrevistas, foram marcadas as filmagens iniciais. As filmagens foram analisadas a partir dos princípios da EAM e dos princípios considerados importantes para se tornar um bom contador de histórias e princípios de aquisição na perspectiva interacionista. A idéia central foi instrumentalizar a professora experimental por meio de textos e discussões, após as filmagens, para que a mesma melhorasse seu desempenho narrativo, sobretudo sua situação de autoria, visto que, nas filmagens iniciais, este era um aspecto que demandava trabalho. Autores10,15,16,18 serviram de base para a organização das atividades e leituras para a professora experimental.

Entre essas duas filmagens foi realizada uma observação contínua em sala de aula em diversas atividades, não apenas na hora do conto, a fim de lançar um olhar mais aprofundado sobre a professora e seus alunos no processo de narrar.

Os textos utilizados na formação com a professora foram resumos realizados pela pesquisadora a partir dos autores citados e entregues à professora experimental em cada semana e, na entrevista seguinte, esses textos eram comentados. Ao final dessas sessões de instrumentalização, foram realizadas novas coletas de narrativas das crianças e novas filmagens da professora controle. O processo de formação com a professora na situação experimental durou quatro meses, entre a primeira filmagem e a filmagem final. Já a professora controle foi filmada nos mesmos períodos, mas sem a formação.

A análise dos dados antes e depois da intervenção foi feita pelo delineamento dos princípios da EAM e de narrativa, baseados no protocolo de observação19 e no protocolo de avaliação utilizado numa pesquisa na África pela Universidade de Witwatersrand. Esses princípios podem ser resumidos na Figura 1.


A classificação adotada baseou-se em quatro índices, a saber:

1. Nunca (N) – ausência do princípio

2. Poucas vezes (PV) – menos que 50% das oportunidades

3. Frequentemente (F) – acima de 50% das oportunidades

4. Sempre (S) – em todas as oportunidades

Considerou-se as oportunidades como aqueles momentos em que os princípios poderiam estar presentes a partir do tipo de atividade desenvolvida. Não é possível um cálculo exato e objetivo, mas a análise comparativa das filmagens revela uma possibilidade de análise média de ocorrência dos princípios a partir da visão dos examinadores acerca dos princípios. No caso desta pesquisa, a pesquisadora e sua orientadora.

O presente estudo faz parte do projeto de pesquisa "Padronização de Procedimentos para avaliação da linguagem oral em crianças de 1 ano e 5 meses a 5 anos: criação de um protocolo de avaliação fonoaudiológica", aprovado pelo comitê de aconselhamento em ética da Universidade Luterana do Brasil (CEP-ULBRA) sob o número 108-2002.

Após a análise individual das professoras, foram comparados os resultados das narrativas das crianças, questionários das professoras e dos pais. Houve, portanto, uma análise qualitativa e, também, quantitativa dos princípios e dos desempenhos narrativos. O tempo da coleta de dados foi de quatro meses, entre a avaliação inicial, intervenção com a professora-estudo e avaliação final.

RESULTADOS

Ao se analisarem a primeira e a segunda filmagem da professora controle observa-se que não ocorreram mudanças importantes na forma de narrar dessa professora. Seu método baseou-se na exposição verbal. Já a professora experimental apresentou uma mudança importante no modo de narrar. Essa mudança ocorreu principalmente após a mesma ter entrado em conflito com sua prática e com o novo referencial teórico sobre narrativa. Mediante isso, a professora passou a fazer uso de uma postura mais mediadora, comprovando a teoria da EAM18, na qual a interação e a mediação são agentes de mudança no desenvolvimento da criança.

A Figura 2 resume a mudança de frequência em cada princípio. Pode-se observar que enquanto a professora controle apresentou uma mudança de um princípio dos 34 analisados (3,33%), a professora experimental apresentou uma evolução de 30 dos 34 princípios analisados (88,23%), demonstrando que a mudança foi fruto da intervenção e não da evolução natural das professoras.


Na Figura 3 e na Figura 4 estão detalhadas as mudanças categoriais em termos de frequência dos princípios. Observa-se que, de um modo geral, a professora experimental passou a apresentar os princípios da EAM nas categorias frequentemente e sempre, diminuindo o número de princípios na categoria poucas vezes (4 princípios de 34 analisados).



Em relação à forma como a linguagem e a narrativa são abordadas no contexto familiar, observou-se que os pais dos dois grupos não diferiram em suas respostas exceto pelo maior número de pais do grupo controle que disse ter conhecimento sobre o desenvolvimento narrativo, do que os pais do grupo experimental.

Além da diferença do grupo controle fazer mais uso de histórias, os demais resultados dos questionários dos pais de ambos os grupos, não demonstraram diferenças importantes em seu modo de estimular o desenvolvimento narrativo de seus filhos em casa.

Na análise do desempenho narrativo das crianças ressalta-se que nos 14 sujeitos houve uma mudança, embora muitas vezes sutil, em 10 sujeitos. A evolução maior ocorreu na ordenação temporal, sugerindo que as crianças adquiriram uma noção mais clara das fases e da sequênciação, ou seja, da macroproposição da narrativa. Observou-se, portanto, uma evolução em aproximadamente 71,42% do grupo da professora experimental. Essa evolução é praticamente o dobro da observada no grupo da professora controle. Isso demonstra que a mudança de posição da professora como narradora parece ter influenciado a evolução das crianças. A Figura 5 resume essa evolução.


A seguir dá-se um exemplo narrativo de uma menina de 6 anos antes e depois da intervenção

Menina 6 anos – narrativa Primitiva antes da intervenção

Ele tava sentado e daí apareceu um animal, e daí ele pego um bastão e o animal saiu correndo. Daí o animal foi e ele ficou esperando e apareceu um homem. Daí ele foi ajuda acende uma fogueira e solto.

Menina 6 anos – narrativa Verdadeira após a intervenção

Era uma vez um menino que tava sentado descansando. E um dia veio um lobo e falo, e depois ele pego um pau e disse saia daqui que eu to com medo. Ele falou assim: – não fale assim porque se não eu vou pega você e vo pega um paus e vo prende você. E ele ficou assustado e pego o pau e foi pra praça. Ele pego e boto uns paus em volta dele e ele ficou preso. E daí o lobo foi embora e veio um homem e fico amigo dele e começa a conversa com ele e acendeu uma fogueira e ficou a noite com ele. Depois ele começo a tira os pau pra ele fica sentado. E daí eles ficaram amigos e ficaram sentados conversando e daí veio o lobo e prendeu eles de novo e disse: Não saia mais daí senão vocês vão ver. E ele saiu e foi embora.

Em relação ao aspecto qualitativo foi observada uma evolução no detalhamento de cada fase da narrativa, os marcadores da narrativa ficaram mais evidentes (início, desequilíbrio e final); a linguagem utilizada pelas crianças assemelhou-se mais à usada nos contos de fada; houve uma melhor ordenação temporal (situavam a narrativa no tempo "Era uma vez..."); houve mais detalhes e imaginação dos sentimentos dos personagens, desequilíbrio mais trabalhado contendo um conflito maior antes do final feliz, e, por fim, houve maior criatividade de um modo geral.

Já em relação às crianças do grupo controle, ocorreu uma produção narrativa semelhante entre a primeira e a última filmagem. Apenas 5 das 14 crianças mudaram de categoria em suas narrativas. A mudança se deu tanto na apresentação das fases da narrativa, as quais estavam mais evidentes, quanto na qualidade das narrativas e na ordenação temporal. Este dado está sintetizado na Figura 6.


É importante observar a evolução maior das crianças da professora experimental não apenas no produto (mudança na categoria da narrativa), mas também no processo. A atitude das crianças mudou no momento de ouvirem histórias na sala de aula, pois se tornaram mais atentas. Acredita-se que essa mudança tenha acontecido como consequência da nova forma de narrar do professor, da preparação da história, da estimulação inicial dada à narração, do tipo de história escolhida pelo professor, e da preparação do ambiente.

As mudanças de categoria das narrativas conforme já discutidos, foram sutis possivelmente pelo curto período de tempo destinado ao trabalho de instrumentalização da professora. No entanto, foi importante, pois, mesmo sendo um período curto, provocou mudança no modo de narrar não só do professor, mas também nas categorias narrativas das crianças.

DISCUSSÃO

A partir da intervenção pedagógica feita nesta pesquisa pode-se analisar que vários fatores contribuíram para mudança no comportamento das crianças diante da narração.

Em relação às mudanças ocorridas entre a primeira e a última narrativa houve uma maior habilidade do narrador em estabelecer uma cumplicidade entre a criança e a história. Ao ouvirem a história ocorreu o contrário do que quando a mesma foi lida na primeira filmagem, o professor tornou-a mais interessante o que ocorre quando a história é contada, pois as crianças sentem-se mais atraídas por uma história quando a ouvem do que quando a lêem17.

Os recursos extra-linguísticos20, como uso de bonecos para ilustrar os personagens, tornou a atividade mais atrativa.

Além disso, a utilização de gestos, pausa e silêncio, deram mais vida a história e se refletiu na expressão facial das crianças. Também a preparação das crianças e do ambiente para o momento da narrativa são fatores de destaque neste contexto. Essa preparação é claramente visível na última narrativa da professora experimental. A preparação do ambiente foi muito importante, já que estas estariam viajando para um lugar distante. Esse clima de expectativa foi muito adequado para a preparação e motivação das crianças na audição da história. Essas passaram de uma atitude de dispersão na primeira narração para uma atitude e encantamento na ultima narração. Pôde-se perceber também diversos conteúdos da experiência de vida nas narrativas produzidas pelas crianças demonstrando o que vários autores ressaltam sobre o espaço subjetivo que se abre no processo narrativo5-8.

Em relação aos níveis evolutivos da narratividade, a proposta4,14 apresentou-se efetiva para a avaliação das produções infantis. Tais produções demonstravam, ao início da coleta, níveis semelhantes aos encontrados em pesquisa anterior4, apesar de as crianças serem de um ambiente sócio-cultural mais privilegiado do que o daquela pesquisa.

Os dados demonstram que o fator determinante para mudança de postura comportamental das crianças diante da narração foi a instrumentalização da professora para seu modo de narrar que não ocorreu apenas com base em dicas práticas, mas ancorada em uma reflexão teórica sobre a linguagem na interação em sala de aula.

Esse fato demonstrou que a assessoria fonoaudiológica na escola não deve se dar apenas na modalidade de dicas, seja qual for o aspecto fonoaudiológico abordado na mesma. É preciso pensar em uma interlocução do fonoaudiólogo com o professor na qual haja um debate teórico-prático sobre a linguagem. Esse seria o único meio de proporcionar uma mudança de postura em relação a princípios pedagógicos e linguísticos. Os resultados desta pesquisa foram semelhantes aos resultados de outro trabalho15 que demonstram a importância de o profissional que assessore o professor fazê-lo no dia-a-dia de sua prática e trazendo novos subsídeos teóricos. Em ambos trabalhos, olhar as filmagens das sessões com os professores tornou-se espaço fundamental que ele repensasse suas ações em sala de aula. Portanto, seja qual for o profissional envolvido na formação do docente (fonoaudiólogo, psicólogo, pedagogo, etc.), este trabalho demonstra que mudanças são possíveis se o profissional fizer parte da equipe escolar.

Os efeitos deste trabalho foram sentidos também no ambiente familiar que foi incluído no processo pela professora que recebeu a instrumentalização.

CONCLUSÃO

Considerando os objetivos iniciais desse estudo é possível concluir que a proposta de formação do professor construída pelo fonoaudiólogo em parceria com o professor, a partir dos princípios da EAM, do conhecimento acerca do desenvolvimento narrativo infantil e das técnicas de contar histórias, foi eficaz para promover mudanças no desenvolvimento narrativo do grupo de estudo, quando em comparação com o grupo controle.

Recebido em: 14/12/2011

Aceito em: 29/06/2012

Conflito de interesses: inexistente

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  • Endereço para correspondência:

    Anelise Henrich Crestani
    R. André Marques, 185/301
    Santa Maria – RS – Brasil – CEP: 97010-041
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Out 2013

    Histórico

    • Recebido
      14 Dez 2011
    • Aceito
      29 Jun 2012
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