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Processamento auditivo e afasia: uma revisão sistemática

Resumos

A avaliação do Processamento Auditivo (PA) é um procedimento audiológico que fornece informações importantes relacionadas ao processo de compreensão do material linguístico. Com o objetivo de investigar as pesquisas que abordam a interface PA – Afasia foi realizada uma revisão sistemática tomando por referência os seguintes descritores e seus correlatos em língua inglesa: Afasia, Dicótico, Monótico, Processamento auditivo e Habilidades auditivas; a busca foi realizada no formato intersecção com o conectivo and. Os cinco estudos incluídos nesta pesquisa diferem em aspectos diversos nos seus objetivos, tais como localização da lesão, mudança da dominância hemisférica para linguagem, presença de vantagem da orelha esquerda em quadros de afasia, relação entre habilidades auditivas e linguagem e a extinção auditiva. Os trabalhos analisados sugerem que as abordagens acerca do processamento auditivo e afasia ocorreram sob duas perspectivas de funcionamento cortical: teoria localizacionista e teoria distribucionista, estando a maioria dos artigos (três), em consonância com a primeira corrente (localizacionista).

Afasia; Audição; Fonoaudiologia


The auditory processing evaluation is an audiological procedure that provides important information related to the process of understanding linguistic material. Aiming to investigate the research about the interface Auditory Processing - Aphasia a systematic review was made with reference to the following descriptors and their correlates in the English language: Aphasia, Dichotic, Monotic, Auditory Processing and Auditory Abilities. The search was conducted in the intersection format with connective “and”;. The five studies found in this review differ in many aspects such as lesion location, change of hemispheric dominance for language, presence of a left ear advantage in aphasia, relationship between auditory abilities and language and auditory extinction. These papers suggest that the two theoretical approaches on auditory processing and aphasia: localizationist and distributive arguments. Most of papers (three) agree with the distributive argument.

Aphasia; Hearing; Speech; Language and Hearing Sciences


INTRODUÇÃO

A afasia é um distúrbio da linguagem, decorrente, em geral, de uma lesão cerebral estrutural, tal como as originadas por acidentes vasculares encefálicos, traumatismos crânio-encefálicos, tumores, entre outras1. Zeigelboim BS, Klagenberg KF, Liberalesso PBN, Menezes P, Gonçalves DV. Avaliação neurofisiológica das vias auditivas e do equilíbrio na afasia de Broca – Apresentação de um caso ilustrativo. Journal of Epilepsy and Clinical Neurophysiology. 2010;16(4):143-8..

A afasia causa uma desintegração da linguagem, afetando tanto a compreensão quanto a expressão dos símbolos verbais orais e/ou escritos, comprometendo a interação do indivíduo com o meio em que está inserido 2. Sitta EI, Arakawa AM, Caldana ML, Peres SHCS. A contribuição de estudos transversais na área da linguagem com enfoque em afasia. Rev. CEFAC. 2010; 12(6):1059-66.. A desorganização da linguagem, nos indivíduos com afasia, pode ocorrer em diferentes modalidades de entrada perceptiva, tais como: visual, expressiva oral, gráfica e auditiva.

A audição é um requisito importante para o uso eficiente da linguagem, tanto na compreensão do material linguístico recebido como no monitoramento da linguagem expressiva. Limitações específicas impostas pela afasia por vezes impedem ou tornam muito mais lentas as operações sobre os recursos linguísticos, dentre elas estão as dificuldades na produção dos gestos articulatórios, dificuldades com o acesso lexical, problemas com a estruturação sintática ou dificuldades linguísticas ou linguístico-cognitivas - perceptíveis em quadros de afasias posteriores3. Albuquerque AG, Costa MLG, Sena EFC, Luz LMS. Análise da produção de sentidos em narrativas de afásicos participantes de grupo de convivência. Rev. CEFAC. 2010;12(1):51-6..

Processamento Auditivo (PA) é o conjunto de habilidades necessárias para processar o sinal sonoro, que envolve também o comportamento auditivo periférico4.Quintas VG, Attoni TM, Keske-Soares M, Mezzomo CL. O processamento auditivo e a combinação de traços distintivos na aquisição de fala em crianças com desvios fonológicos. Rev. Soc. Bras. Fonoaudiol. 2011;16(2):167-73.. Desta forma, a fisiologia da audição está intrinsecamente relacionada às habilidades auditivas (comportamento manifesto de uma pessoa em processar as informações recebidas por meio da modalidade auditiva). A localização e lateralização sonora, discriminação auditiva, reconhecimento auditivo, aspectos temporais da audição (resolução, mascaramento, integração e ordenação temporal) e desempenho auditivo diante de sinal acústico competitivo são alguns dos fenômenos comportamentais eliciados pelo processamento do estímulo sonoro5. Pelitero TM, Manfredi AKS, Schneck APC. Avaliação das habilidades auditivas em crianças com alterações de aprendizagem. Rev. CEFAC. 2010; 12(4):662-70..

Um desempenho comunicativo eficaz se inicia com a detecção do estímulo auditivo (na cóclea), ocorrendo a análise linguística da informação no córtex cerebral. Falhas em algum ponto deste rápido e complexo trajeto podem trazer comprometimentos na comunicação e, como a linguagem é um meio de integração, a perda deste instrumento pode representar uma fonte de isolamento e solidão para a pessoa com afasia2. Sitta EI, Arakawa AM, Caldana ML, Peres SHCS. A contribuição de estudos transversais na área da linguagem com enfoque em afasia. Rev. CEFAC. 2010; 12(6):1059-66..

Considerando o mencionado anteriormente, é possível que alterações no processamento auditivo, de ordem primária ou secundária à própria afasia, repercutam negativamente para a integração da pessoa com afasia dentro de uma sociedade que se apoia cada vez mais nos preceitos de uma comunicação célere e objetiva.

Desta forma, o objetivo desta pesquisa é investigar as pesquisas que abordam a interface PA – Afasia por meio de uma revisão sistemática.

MÉTODOS

Trata-se de uma pesquisa quantitativa, transversal, retrospectiva, do tipo revisão sistemática, desenvolvida por três pesquisadores, em que, dois buscaram os dados de forma independente e cega, inicialmente, e o terceiro foi instituído como revisor (consultado nos casos de dúvida), com a finalidade de estabelecer uma consonância de ideias. A revisão sistemática foi realizada conforme preceitos da Cochrane Collaboration6. Cochrane de Revisões Sistemáticas. [acesso em ago 2011]. Disponível em: http:cochrane.bireme.br/portal/php/level.php?lang=pt&component=19&item=11
http:cochrane.bireme.br/portal/php/level...
e Sampaio e Mancini7. Sampaio RF, Mancini MC. Estudos de Revisão Sistemática: Um guia para síntese criteriosa da evidência científica. Rev. Bras. Fisioter. 2007;11(1):84-9., tomando por referência os seguintes descritores e seus correlatos em língua inglesa: Afasia, Dicótico, Monótico, Processamento auditivo e Habilidades auditivas; a busca foi realizada no formato intersecção com o conectivo and.

Foram incluídos artigos cuja amostra fosse constituída por indivíduos adultos com afasia que tivessem realizado algum tipo de avaliação do PA. Os textos excluídos foram aqueles que não se enquadraram nas características delimitadas anteriormente, além dos estudos anteriores a 1980, trabalhos que compararam sujeitos com patologias diversas e pacientes com afasia no mesmo grupo experimental e revisões de literatura.

A busca foi realizada no período entre Agosto e Novembro de 2011. Os descritores foram selecionados de acordo com a lista DeCS (Descritores termos da saúde Bireme) e também foram utilizados termos que apresentaram maior sensibilidade para a prospecção dos estudos. Pela lista do DeCS o descritor selecionado foi Afasia (Aphasia), os outros descritores escolhidos foram: Dicótico (Dichotic), Monótico (Monotic), Processamento auditivo (Auditory Processing) e Habilidades auditivas (Auditory Abilities).

As bases de dados consultadas para esta revisão foram Pubmed (US National Library of Medicine), Scielo (Scientific Eletronic Library Online), LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde), Scirus – for scientific information only e Portal de Periódicos Capes.

De acordo com os critérios de inclusão e exclusão, foram identificadas 2201 citações nas bases de dados eletrônicas, sendo 2154 citações excluídas com base no título ou resumo, restando 47 artigos. Destes, 01 artigo localizado no Scielo estava repetido no portal LILACS e 24 artigos encontrados no Pubmed estavam repetidos no portal Scirus, ficando assim 22 artigos para análise. Mais dois artigos foram localizados por meio de referências bibliográficas, porém, um deles agregava no mesmo grupo experimental pacientes com afasia e indivíduos com lesões no sistema nervoso central (SNC), sendo o mesmo excluído da amostra. No total, restaram 23 artigos para análise.

A qualidade metodológica dos estudos foi avaliada com base na escala PEDro (Physiotherapy Evidence Database - Figura 1), escala esta comumente utilizada na área de reabilitação (Fisioterapia, Terapia ocupacional e outros) e empregada em estudos experimentais7. Sampaio RF, Mancini MC. Estudos de Revisão Sistemática: Um guia para síntese criteriosa da evidência científica. Rev. Bras. Fisioter. 2007;11(1):84-9.. Adotou-se a pontuação mínima de 05 pontos para inclusão dos artigos nesta presente revisão, conforme metodologia realizada em trabalho de Coury et al 8. Coury HJCG, Moreira RFC, Dias NB. Efetividade do exercício físico em ambiente ocupacional para controle da dor cervical, lombar e do ombro: uma revisão sistemática. Rev. Bras. Fisioter. 2009;13(6):461-79..

Figura 1
Modelo da Escala de PEDro – Português (Brasil)

Após leitura criteriosa e aplicação da escala de PEDro, foi observado que 18 artigos não atingiram a pontuação mínima de 05 itens. A coleta foi finalizada com a inclusão de cinco artigos: Niccum9. Niccum N. Longitudinal Dichotic Listening Patterns for Aphasic Patients. I Description for recovery curves. Brain and Language. 1986;28:273-88., Niccum et al10, Niccum et al1111 . Niccum N, Selnes OA, Speaks C, Risse GL, Rubens AB. Longitudinal Dichotic Listening Patterns for Aphasic Patients. III Relationship to language and memory variables. Brain and Language. 1986;28:303-17., Ortiz; Peroni1212 . Ortiz KZ, Peroni C. Compreensão de fala em situação de mensagem competitiva em afásicos. Rev. CEFAC. 2008;2:226-32. e Shisler1313 . Shisler RJ. Aphasia and auditory extinction: Preliminary evidence of binding. Aphasiology. 2005;19(7):633-50.. Os trabalhos Niccum et al1010 . Niccum N, Speaks C, Rubens AB, Knopman DS, Yock D, Larson D. Longitudinal Dichotic Listening Patterns for Aphasic Patients. II Relationship with lesion variables. Brain and Language. 1986;28: 289-302. e Shisler1313 . Shisler RJ. Aphasia and auditory extinction: Preliminary evidence of binding. Aphasiology. 2005;19(7):633-50. obtiveram pontuação em 06 itens e os demais estudos obtiveram pontuação em 05 critérios (Tabela 1).

Tabela 1
Análise da qualidade metodológica dos artigos conforme a Escala PEDro

REVISÃO DA LITERATURA

Os artigos de Niccum9. Niccum N. Longitudinal Dichotic Listening Patterns for Aphasic Patients. I Description for recovery curves. Brain and Language. 1986;28:273-88., Niccum et al1010 . Niccum N, Speaks C, Rubens AB, Knopman DS, Yock D, Larson D. Longitudinal Dichotic Listening Patterns for Aphasic Patients. II Relationship with lesion variables. Brain and Language. 1986;28: 289-302. e Niccum et al1111 . Niccum N, Selnes OA, Speaks C, Risse GL, Rubens AB. Longitudinal Dichotic Listening Patterns for Aphasic Patients. III Relationship to language and memory variables. Brain and Language. 1986;28:303-17. seguem uma linha metodológica comum, pois a população do primeiro estudo estimulou a produção dos dois textos seguintes: Niccum et al1010 . Niccum N, Speaks C, Rubens AB, Knopman DS, Yock D, Larson D. Longitudinal Dichotic Listening Patterns for Aphasic Patients. II Relationship with lesion variables. Brain and Language. 1986;28: 289-302. e Niccum et al1111 . Niccum N, Selnes OA, Speaks C, Risse GL, Rubens AB. Longitudinal Dichotic Listening Patterns for Aphasic Patients. III Relationship to language and memory variables. Brain and Language. 1986;28:303-17.. Os sujeitos foram os mesmos nestas três pesquisas e consistiram em 54 pacientes com afasia, destros, sendo 15 mulheres e 39 homens que haviam sofrido um único AVE isquêmico no hemisfério cerebral esquerdo. Os voluntários das pesquisas eram falantes fluentes da língua inglesa, com uma escolaridade média de oito anos.

Os trabalhos supracitados seguem a hipótese condutora de que a recuperação da linguagem nestes pacientes é mediada por uma mudança progressiva da dominância para linguagem (vantagem), que migra do hemisfério esquerdo para o direito nos seis primeiros meses após o insulto, hipótese esta embasada no modelo de percepção dicótica proposto por Kimura, onde a via contra-lateral domina sobre a via ipsilateral, explicado da seguinte forma: quando o estímulo verbal do teste é apresentado na orelha direita, da via contra-lateral, chega diretamente ao hemisfério esquerdo. Na situação contrária, o estímulo apresentado na orelha esquerda dirige-se ao hemisfério direito e através do corpo caloso chega ao hemisfério esquerdo, onde será então analisado1414 . Pereira LD, Schochat E. Processamento auditivo central: manual de avaliação. São Paulo: Lovise; 1997. p. 100-49.

Para realização de seus estudos, Niccum9. Niccum N. Longitudinal Dichotic Listening Patterns for Aphasic Patients. I Description for recovery curves. Brain and Language. 1986;28:273-88., Niccum et al10, Niccum et al1111 . Niccum N, Selnes OA, Speaks C, Risse GL, Rubens AB. Longitudinal Dichotic Listening Patterns for Aphasic Patients. III Relationship to language and memory variables. Brain and Language. 1986;28:303-17., utilizaram o teste de dígitos (TD), nas modalidades de apresentação monótica e dicótica junto à população estudada. Nestes três artigos os sujeitos deveriam apresentar limiares auditivos de até 40 dB HL na testagem das frequências de 500, 1000, 2000 Hz (área da fala), em situação de audiometria tonal. Os limiares para tons puros foram obtidos no primeiro mês após o AVE e depois de 6 meses, os voluntários foram testados novamente.

A provável vantagem da orelha esquerda (Left Ear Advantage – LEA) nos indivíduos com afasia foi averiguada nos trabalhos Niccum9. Niccum N. Longitudinal Dichotic Listening Patterns for Aphasic Patients. I Description for recovery curves. Brain and Language. 1986;28:273-88., Niccum et al10, Niccum et al1111 . Niccum N, Selnes OA, Speaks C, Risse GL, Rubens AB. Longitudinal Dichotic Listening Patterns for Aphasic Patients. III Relationship to language and memory variables. Brain and Language. 1986;28:303-17.. Niccum9. Niccum N. Longitudinal Dichotic Listening Patterns for Aphasic Patients. I Description for recovery curves. Brain and Language. 1986;28:273-88. relatou que apenas quatro (15%) dos 27 pacientes incluídos na tendência linear da análise do teste dicótico de dígitos evidenciaram padrões de LEA, situação que já havia sido descrita na pesquisa de Bamiou et al1515 .Bamiou DE, Werring D, Cox K, Stevens J, Musiek FE, Brown MM et al. Patient-reported auditory functions after stroke of the central auditory pathway. Stroke. 2012;43(5):1285-9.. Por fim, a autora (Niccum9. Niccum N. Longitudinal Dichotic Listening Patterns for Aphasic Patients. I Description for recovery curves. Brain and Language. 1986;28:273-88.) inferiu que os dados longitudinais de sua pesquisa não ofereciam evidências consistentes de uma mudança da dominância hemisférica cerebral para a linguagem nos primeiros seis meses após a ocorrência de um AVE. Ela questionou se as vantagens de orelhas (EA’s – Ear advantages) observadas em um mês deveriam ser interpretadas como um efeito da lesão ou um efeito de dominância.

A mudança na dominância hemisférica para a linguagem (dominância do hemisfério direito) também foi averiguada no trabalho de Niccum; Rubens1616 . Niccum N, Rubens AB. “Late”; recovery of the right ear dichotic score following cerebrovascular accident: a case report. Neuropsychologia. 1983;21(6):699-704. onde os indivíduos com afasia apresentaram uma recuperação da dominância do hemisfério esquerdo, fato este contrário à proposição já mencionada dos estudos de Kimura. Estudos como estes, que objetivaram analisar a dominância hemisférica para a linguagem nos quadros de afasia, sugerem uma perspectiva de abordagem localizacionista para a discussão do processamento auditivo e compreensão da linguagem nestes sujeitos em particular (afásicos).

Niccum et al10 observaram uma tendência do grupo de pacientes com lesões extensas no hemisfério esquerdo a apresentar pontuações da orelha direita mais baixas e uma maior vantagem da orelha esquerda (Left Ear Advantage – LEA), contudo, estes sujeitos foram muito mais propensos a desenvolver danos no sistema auditivo primário.

Niccum et al11 descreveram em seu estudo que os pacientes com maiores comprometimentos da linguagem expressiva e memória não apresentaram uma maior tendência de LEA durante o curso da recuperação do que os indivíduos com lesões menos extensas.

Ademais, Niccum9. Niccum N. Longitudinal Dichotic Listening Patterns for Aphasic Patients. I Description for recovery curves. Brain and Language. 1986;28:273-88. relatou a incidência de perda auditiva nas frequências mais agudas na população estudada, o que é justificado pela grande proporção de indivíduos acima de 50 anos de idade que participaram da pesquisa. Este fato foi levado em consideração na interpretação dos achados, onde nenhuma associação aparente foi encontrada entre os resultados na audiometria tonal e o desempenho destas pessoas nos testes dicóticos e monóticos.

A relação entre a extensão das lesões nos hemisférios cerebrais e o padrão de desempenho de pessoas com afasia no teste de dígitos foi estudada por Niccum et al10. As lesões foram estudadas por meio de tomografias computadorizadas (TC), realizadas cinco meses após o AVE. Exames dos pacientes foram obtidos por meio de um tomógrafo de alta resolução Siemens, para delimitação da extensão das lesões foi atribuída a seguinte pontuação:

  • 0 = Nenhum dano evidente;

  • 1 = Questionamento de um dano mínimo;

  • 2 = Dano presente, porém atingindo menos do que 50% da região;

  • 3 = Dano extenso, mas não total;

  • 4 = Dano total ou praticamente total da região;

Os pacientes com escores 0 ou 1 foram alocados no grupo em que existiu nenhum ou um dano mínimo de uma região em particular, enquanto que os pacientes com escores maiores fizeram parte de um outro grupo com presença definitiva de lesão. Os critérios para definição de desempenho normal foram definidos separadamente, por meio de um grupo controle formado por adultos entre 35-75 anos, destros, sem histórico de AVE ou outra alteração neurológica significante.

Niccum et al10 utilizaram uma análise cuidadosa para avaliar a presença de efeito da orelha contra-lateral, com o objetivo de determinar se os resultados do teste de dígitos em escuta dicótica poderiam realizar a melhor separação dos pacientes com ou sem dano significante do giro de Heschl. Os dados de coleta foram obtidos no primeiro e no sexto mês após o AVE.

No primeiro mês após o AVE, os dados obtidos indicaram que os escores da orelha direita no teste de dígitos (TD) foram os mais associados a danos nas regiões superior e posterior do lobo temporal (21 dos 28 pacientes classificados com este tipo de lesão). Em oposto, no sexto mês após o insulto, estes mesmos resultados do TD foram os mais fortemente associados a lesões envolvendo o giro de Heschl (31 dos 41 pacientes classificados com este tipo de lesão).

Desta forma, Niccum et al10 concluíram que os escores obtidos na orelha direita, por meio do teste de dígitos em escuta dicótica, mostraram uma correspondência muito próxima com a ausência ou presença de lesões significantes no giro de Heschl. Porém, este resultado pode ter sido acentuado devido ao tempo de decurso da lesão (71% dos pacientes apresentaram esta relação no primeiro mês após o insulto e 85% no sexto mês).

No estudo de Niccum et al11 foram realizados testes de escuta dicótica em pessoas com afasia, para as quais também eram possíveis a avaliação da capacidade de linguagem expressiva e memória. Os testes de linguagem e memória compreenderam a aplicação de um escore de gravidade geral da afasia, um combinado dos testes Word Comprehension Test, Token Test e Receptive Syntax Test e outra bateria de avaliação com os testes NCCEA, Boston Naming e Test Communicative Capacity.

Os resultados dos testes de escuta dicótica e dos de severidade da afasia foram obtidos no primeiro e no sexto mês após o AVE, para comparações. Relações positivas foram observadas para as medidas de dominância de orelhas (Ear advantages). De acordo com a hipótese inicial deste estudo, tanto maior fosse a vantagem da orelha esquerda (LEA), menor seria a pontuação nos testes de linguagem, já que haveria uma provável dominância do hemisfério direito. De fato, a extensão da lesão dos sujeitos foi significantemente relacionada com a gravidade nos déficits de linguagem. No entanto, relações entre as extensões das lesões e os resultados de dominância de orelha foram menos contundentes.

Com base nos resultados dos testes de linguagem, os indivíduos foram divididos em dois grupos: fluentes e não-fluentes. Os achados referentes aos escores do teste dicótico de dígitos indicaram que estes pacientes não diferiram a respeito do desempenho obtido nesta tarefa. Contudo, os voluntários fluentes tenderam a apresentar melhores índices nos testes dicóticos com palavras.

Os autores concluíram neste estudo que os testes de escuta dicótica são os que mais aproximadamente refletem a ausência ou presença de danos no sistema auditivo central, entretanto estas predições nem sempre são fidedignas. Além disso, os achados desta pesquisa não apoiam as hipóteses de que: a) pacientes mais comprometidos são inicialmente mais dependentes do hemisfério direito (mudança de dominância hemisférica para a linguagem), b) pacientes com maiores déficits demonstram transferir a dominância da linguagem para o hemisfério esquerdo durante o curso de suas recuperações, c) o grau de recuperação alcançado está relacionado à extensão (volume) do hemisfério direito.

Ortiz e Peroni1212 . Ortiz KZ, Peroni C. Compreensão de fala em situação de mensagem competitiva em afásicos. Rev. CEFAC. 2008;2:226-32. avaliaram em seu estudo as habilidades auditivas figura-fundo e atenção seletiva em 20 pacientes com afasia, todos com histórico de AVE isquêmico. O teste de linguagem M1-Alpha foi aplicado previamente nestes voluntários e apenas os que apresentaram distúrbios de compreensão oral leve foram incluídos na pesquisa. As etapas de avaliação deste estudo compreenderam a realização de audiometria tonal liminar (frequências de 500, 1000 e 2000 Hz), limiar de recepção de fala (SRT), medidas de imitância acústica e teste de escuta monótica e dicótica com frases, PSI – Pediatric Sentence Inteligibility.

No teste PSI, os estímulos foram aplicados em situação de escuta dicótica (Mensagem competitiva contralateral - MCC em nível de apresentação de 0 dBNA e -40 dBNA) e monótica (Mensagem competitiva ipsilateral - MCI em nível de apresentação 0dBNA e -10 dBNA), utilizando 10 frases que deveriam ser identificadas por meio das figuras correspondentes. Os resultados obtidos foram comparados com um grupo controle.

A análise dos achados obtidos constatou que na situação de MCC a -40 dBNA foi possível observar uma diferença estatisticamente significante entre os resultados dos pacientes com afasia e o grupo controle. Os indivíduos afásicos, quando expostos a uma situação de mensagem competitiva, não conseguiam mais identificar as frases. Na situação de MCI, o grupo de sujeitos com afasia teve pior desempenho na orelha esquerda e direita nas situações de apressentação de 0dBNA e -10 dBNA, respectivamente.

Desta foram, a partir dos resultados obtidos, as autoras puderam concluir que os pacientes com afasia, apresentando desordem leve de compreensão, demonstraram dificuldades em realizar tarefas que exigissem as habilidades de figura-fundo e atenção seletiva para sons verbais em escuta de mensagem competitiva. Os achados evidenciaram o prejuízo de compreensão auditiva em situação de competição sonora nestes pacientes, reforçando assim a importância da realização de avaliações que permitam fornecer dados acerca da compreensão destes indivíduos em situações mais contextualizadas com a dinâmica da comunicação no cotidiano.

Shisler1313 . Shisler RJ. Aphasia and auditory extinction: Preliminary evidence of binding. Aphasiology. 2005;19(7):633-50. objetivou, em sua pesquisa, determinar se a extinção auditiva está presente em indivíduos com afasia, e em caso afirmativo, se esta extinção é devido a uma avaria na integração (binding). A extinção é geralmente definida como uma falha em responder a um alvo contralesional durante apresentações simultâneas de estímulos para ambos os hemisférios – esquerdo e direito ou quando ambos os estímulos são apresentados do mesmo lado. Já a integração (binding) refere-se à união das informações sensoriais (identificação e localização) em um todo, resultando na percepção de um objeto ou evento1717 . Marshall RS, Garcia-Barrera M, Yanosky II D. An exploratory study of auditory extinction in ageing: Now your hear it, now you don’t. Aphasiology. 2008;23(1):72-86..

O estudo foi realizado em seis indivíduos com afasia, com idades entre 42 e 74 anos e seis sujeitos adultos saudáveis, pareados por idade. Foram conduzidos dois experimentos diferentes, em que os estímulos auditivos, compostos por vozes masculinas e femininas falando as letras “T”; ou “O”; foram sistematicamente variados para investigar se a integração de informações sensoriais (binding) contribui para a ocorrência do fenômeno de extinção.

O grupo com afasia incluiu os seis sujeitos monolíngues, falantes do inglês britânico, selecionados no Northeast Georgia Medical Center e Athenas Club Stroke. Os critérios de seleção dos participantes incluíram: a) identificação da afasia por meio da aplicação de um teste validado; b) compreensão dos comandos complexos; c) audição de estímulos simples (‘T”; ou “O”;) a 80 dB SPL bilateralmente apresentados a partir de um computador em campo livre – chamadso de DSS (Double Simultaneous Stimulation) e d) classificação da severidade de 3 ou 4 no formulário de Boston Diagnostic Aphasia Exam Short. Além dos fatores acima, também foram considerados como critérios de exclusão a presença de distúrbios neurológicos, tais como AVE, doença de Parkinson, doença de Alzheimer, distúrbios psiquiátricos, dificuldades de aprendizagem, convulsões e transtornos de déficit de atenção.

Os estímulos auditivos para o experimento foram produzidos pela digitalização da fala de um homem e de uma mulher, cada um deles emitiu as letras “T”; e “O”;, em um intervalo de 300 ms, por meio do software Sound Blaster (Creative Computing Inc.) em 24 bits.

O Experimento 1 consistiu na aplicação das seguintes tarefas: identificação das letras e identificação do sexo. Os participantes foram solicitados a relatar a localização do estímulo (direita ou esquerda) e identificar cada estímulo ou relatar se não ouviram nada. Portanto, quando a tarefa foi identificar a letra (por exemplo, o “T”; foi apresentado à esquerda e o “O”; foi apresentado à direita, o voluntário respondia T esquerda/ O direita). Os voluntários foram autorizados a responder verbalmente ou apontar para o local da letra e uma representação visual de “T”; ou “O”;.

O Experimento 2 utilizou as mesmas condições de apresentação de estímulo, porém utilizando números. Os participantes precisaram simplesmente contar a quantidade de estímulos apresentados (um ou dois estímulos eram possíveis). Para esta tarefa, o erro de omissão foi considerado em duas situações: a) identificação de apenas um de dois estímulos apresentados; b) nenhuma identificação de estímulo.

Os achados do estudo de Shisler1313 . Shisler RJ. Aphasia and auditory extinction: Preliminary evidence of binding. Aphasiology. 2005;19(7):633-50. demonstram que a maior extinção auditiva foi encontrada no Experimento 1, no grupo de pessoas com afasia (todos os sujeitos apresentaram extinção). Neste mesmo grupo, a extinção auditiva foi mais frequente em tarefas que exigiam a integração (binding) e diminuiu significantemente nas atividades não-integrativas (Experimento 2). Na tarefa não-integrativa, o grupo experimental (com afasia) demonstrou diminuição dos erros de omissão, sugerindo que a capacidade de integração pode influenciar o desempenho na compreensão auditiva e também ser um importante recurso para a reabilitação destes pacientes.

As pesquisas de Ortiz; Peroni1212 . Ortiz KZ, Peroni C. Compreensão de fala em situação de mensagem competitiva em afásicos. Rev. CEFAC. 2008;2:226-32. e Shisler1313 . Shisler RJ. Aphasia and auditory extinction: Preliminary evidence of binding. Aphasiology. 2005;19(7):633-50. abordaram a interface processamento auditivo e afasia por meio de outros aspectos, tais como as habilidades auditivas, extinção auditiva e integração (binding). Considerando que a linguagem não pode ser dissociada da compreensão auditiva, estes estudos podem ser analisados em uma discussão apoiada em preceitos da teoria distribucionista, corroborada pelos trabalhos de Nicolelis1818 . Nicolelis M. Muito além do nosso eu: a nova neurociência que une cérebro e máquinas – e como ela pode mudar nossas vidas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 17-21. e Lebedev et al1919 .Lebedev MA et al. Future developments in brain-machine interface research. Clinics (São Paulo). 2011;66(S1):25-32.. O argumento distribucionista explica as funções cerebrais ou comportamentos a partir da premissa de que o cérebro humano prefere realizar todas as suas tarefas por meio do trabalho coletivo de grandes populações de neurônios distribuídos por múltiplas regiões cerebrais, capazes de participar da gênese de várias funções simultaneamente.

Ainda no caminho da teoria distribucionista, a ocorrência de relações importantes entre as habilidades de linguagem e áreas cerebrais esquerdas comprometidas por lesão vascular podem variar, não sendo fiéis aos locais tradicionalmente esperados a apresentarem comprometimentos devido à lesão2020 . Vieira ACC, Roazzi A, Queiroga BM, Asfora, R, Valença MM. Afasias e áreas cerebrais: argumentos prós e contras à perspectiva localizacionista. Psicologia: Reflexão e Crítica. 2011;24(3):588-96.. Tais fatos reforçam a importância de estudos que coadunem processamento auditivo e linguagem nos quadros de afasia, para melhor entendimento dos distúrbios de comunicação destes pacientes.

Por fim, as características de cada estudo selecionado nesta revisão foram sintetizadas na Tabela 2.

Tabela 2
Quadro comparativo entre os trabalhos de Niccum (1986), Niccum et al, 1986 (A), Niccum et al, 1986 (B), Ortiz e Peroni (2008) e Shisler (2005)

CONCLUSÕES

A existência de uma provável vantagem da orelha esquerda em pacientes com afasia e uma mudança na dominância hemisférica para linguagem (dominância do hemisfério direito) não foram pontos de concordância nos trabalhos avaliados; tais eventos foram descritos e apoiados anteriormente por pesquisas clássicas acerca do processamento auditivo, sendo os mesmos as hipóteses estimuladoras para os principais estudos da área. Assim, infere-se que a perspectiva localizacionista observada nestes estudos não contempla de forma holística a discussão do processamento auditivo e compreensão da linguagem em sujeitos afásicos.

Em contrapartida, trabalhos que abordaram a interface processamento auditivo e afasia através de outros aspectos, tais como habilidades auditivas, extinção auditiva e integração, parecem considerar que a linguagem não deve ser dissociada da compreensão auditiva, assertiva esta que pode ser apoiada por preceitos da teoria distribucionista de funcionamento cortical.

Desta forma, diante do exposto, infere-se que o processamento da audição é elemento fundamental para a competência linguística, portanto, aprofundar o conhecimento de suas interfaces com a linguagem por meio de novos estudos poderá ser de grande valia para a reabilitação de pacientes com distúrbios de comunicação, em especial as pessoas com afasia.

REFERÊNCIAS

  • 1
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  • Fomento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Processo nº: 134049/2010-1

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2014

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2012
  • Aceito
    23 Jun 2012
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