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Relação entre abstinência de maconha e fluência da fala em um adolescente com gagueira: implicações para o tratamento fonoaudiológico e psiquiátrico

PREZADO EDITOR

A Fonoaudiologia tem grande aplicabilidade no tratamento de pacientes psiquiátricos, na medida em que a avaliação, o diagnóstico e o tratamento dos distúrbios da comunicação podem auxiliar no manejo clínico desta população.

O objetivo deste comunicado é relatar a experiência bem sucedida da abordagem fonoaudiológica junto a um adolescente de 16 anos, do gênero masculino, com diagnóstico de distúrbio da comunicação (Gagueira - F98.5 – CID-10) e psiquiátrico (Dependência de Maconha – F12.2; Transtorno de Conduta Não socializado – F91.1), acompanhado no Ambulatório de Adolescentes e Drogas do Instituto e Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Todos os procedimentos fonoaudiológicos são rotina deste ambulatório e cumpriram os requisitos éticos pertinentes (CAPPesq 636/03).

De acordo com o relato do paciente, o distúrbio de comunicação, de início precoce, tinha relação com antecedente familiar e antecedia o uso de droga. É de consenso que a Gagueira é uma disfunção do controle motor e temporal da fala, dinâmica, evolutiva, que emerge na infância entre os 18 meses e 7 anos, podendo ocorrer até os 12 anos de idade. Co ocorre com o desenvolvimento da linguagem e emerge de interações complexas entre a história familiar, o contexto social, os processos linguísticos, os fatores emocionais, a organização motora da fala, além de outros aspectos. É um quadro que apesar de etiologia multifatorial, tem base genética e corresponde a 80% do total de gagueiras identificadas na infância.

A demanda inicial de atendimento do adolescente estava relacionada à tentativa de controlar os impulsos, já que o mesmo se colocava em situação de risco eminente de vida, devido ao histórico de vida infracional (participava de assaltos a residências e estabelecimentos comerciais, a mão armada). Na medida em que as intervenções psicológicas e psiquiátricas auxiliaram no controle do impulso, o adolescente passou a ter outra demanda para o tratamento: melhorar sua comunicação, intervenção que teria impacto na busca por relacionamentos mais saudáveis. Assim, a abstinência do uso de maconha, única droga utilizada pelo adolescente (apesar de ter experimentado outras), que nunca havia sido uma de suas preocupações (já que dizia não identificar prejuízos decorrentes deste uso), passou a ser o foco da abordagem fonoaudiológica.

Como experiência anterior neste mesmo ambulatório já havia comprovado que adolescentes usuários de drogas acompanhados por equipe multidisciplinar e por fonoaudiólogo respondiam melhor ao tratamento (ficavam mais tempo em tratamento psiquiátrico e, dentre os usuários, os de maconha permaneciam mais tempo abstinentes)1. Oliveira CCC, Scheuer CI, Scivoletto S. Autopercepção da comunicação oral no tratamento de adolescentes usuários de drogas. Rev. Bras. Psiquiatr. [online]. 2006;28(4):340-1., iniciou-se o processo de abordagem específica para a promoção da fluência, sendo que o incentivo à abstinência de maconha foi feito como uma das estratégias possíveis para melhorar a fluência da fala, sem ser para o paciente o objetivo principal.

Para avaliação fonoaudiológica foram coletadas amostras de fala espontânea2. Andrade CRF de. Protocolo para avaliação da fluência da fala. Pró-Fono Ver. Atual. Científica. 2000;12(2):131. e utilizados parâmetros de normalidade de avaliação de fluência3. Martins VO, Andrade CRF. Perfil evolutivo da fluência da fala de falantes do português brasileiro. Pró-Fono R. Atual. Cient. [online]. 2008;20(1):7-12.: número de disfluências comuns (típicas de todos os falantes), número de disfluências gagas (típicas dos falantes gagos) e descontinuidade de fala (percentual total de rupturas no discurso).

O padrão de uso de maconha, os achados das avaliações fonoaudiológicas do paciente e os parâmetros de normalidade, estão descritos na Figura 1.

Figura1
– Avaliação fonoaudiológica e parâmetro de normalidade

Apesar de o paciente ainda ter mantido o consumo de maconha, este foi bem menor do que o habitual. A literatura aponta a necessidade de períodos de abstinência maiores do que 15 dias para que as alterações neuropsicológicas provocadas pelo uso crônico de maconha regridam4. Sneider JT, Pope HG Jr, Silveri MM, Simpson NS, Gruber SA, Yurgelun-Todd DA. Differences in regional blood volume during a 28-day period of abstinence in chronic cannabis smokers. Eur Neuropsychopharmacol. 2008 Aug;18(8):612-9. Epub 2008 Jun 20.,5. Yücel M, Solowij N, Respondek C, Whittle S, Fornito A, Pantelis C, Lubman DI. Regional brain abnormalities associated with long-term heavy cannabis use. Arch Gen Psychiatry. 2008 Jun;65(6):694-701.. Neste caso, apesar de estar abstinente apenas um dia antes da segunda avaliação fonoaudiológica, o adolescente continuou com a gagueira, porém, seu funcionamento cerebral melhorou o suficiente para que sua comunicação se apresentasse de maneira mais fluente (menor número de disfluências comuns e menor percentual de rupturas no discurso), apontando melhor acesso e planejamento da linguagem. O paciente estava mais crítico e responsivo ao próprio tratamento, o que o motivou a tentar períodos maiores de abstinência.

No tratamento de adolescentes usuários de drogas, o foco principal no início do tratamento é o estabelecimento de vínculo, para garantir a continuidade do seguimento. Neste caso, apesar de ser um ambulatório específico para usuários de drogas, o adolescente aceitava vir para controlar seus impulsos de cometer atividades ilegais e foi acolhido nesta demanda. Os atendimentos focaram este aspecto e, para conseguir se manter afastado das companhias que o incentivavam a roubar, notou que precisava melhorar sua comunicação. Até então, apesar dele ter sido trazido para atendimento pela mãe para abordar o uso excessivo de maconha, esta questão não era foco de seus atendimentos. Apenas no 6º mês de seguimento, quando sua demanda inicial por atendimento havia sido atendida, o adolescente mostrou-se disponível para abordar, ainda que indiretamente, a questão do uso de maconha. Para ele, não havia nenhum prejuízo causado pelo uso excessivo da droga, pois desconhecia os efeitos desta no processo de comunicação. Quando foi alertado para esta possibilidade, e principalmente pelo fato de estar motivado para melhorar sua comunicação, o uso de maconha passou a ser visto como algo não tão benéfico como era inicialmente. Neste momento, iniciou as tentativas de ficar abstinente, o que nunca havia tentado até então.

Este caso exemplifica a relevância da atuação de equipe multidisciplinar no tratamento de adolescentes usuários de drogas. É fundamental que a equipe contenha a ansiedade para abordar a questão do uso abuso ou dependência de uma droga e invista na formação do vínculo e em abordagens para motivar o adolescente a melhorar seu desempenho em vários aspectos. Este deve ser o objetivo principal do tratamento: proporcionar o atendimento amplo e integral à saúde do adolescente, desenvolvendo novas habilidades e melhorando seu funcionamento global, e não abordar apenas a questão do abuso ou dependência de drogas. Deve-se sempre atender o adolescente, não a droga consumida. Não se trata de reabilitação, mas sim de habilitar e atender o jovem em sua plenitude.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Oliveira CCC, Scheuer CI, Scivoletto S. Autopercepção da comunicação oral no tratamento de adolescentes usuários de drogas. Rev. Bras. Psiquiatr. [online]. 2006;28(4):340-1.
  • 2
    Andrade CRF de. Protocolo para avaliação da fluência da fala. Pró-Fono Ver. Atual. Científica. 2000;12(2):131.
  • 3
    Martins VO, Andrade CRF. Perfil evolutivo da fluência da fala de falantes do português brasileiro. Pró-Fono R. Atual. Cient. [online]. 2008;20(1):7-12.
  • 4
    Sneider JT, Pope HG Jr, Silveri MM, Simpson NS, Gruber SA, Yurgelun-Todd DA. Differences in regional blood volume during a 28-day period of abstinence in chronic cannabis smokers. Eur Neuropsychopharmacol. 2008 Aug;18(8):612-9. Epub 2008 Jun 20.
  • 5
    Yücel M, Solowij N, Respondek C, Whittle S, Fornito A, Pantelis C, Lubman DI. Regional brain abnormalities associated with long-term heavy cannabis use. Arch Gen Psychiatry. 2008 Jun;65(6):694-701.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2014

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2012
  • Aceito
    20 Dez 2012
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