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Voz do professor: análise das leis brasileiras na perspectiva da promoção da saúde

Resumos

OBJETIVO:

analisar as leis brasileiras sobre saúde vocal do professor, na perspectiva da promoção da saúde.

MÉTODOS:

foram captados, no período de 1998 a 2010, 61 documentos publicados, sendo organizados nas categorias: terminologia, objetivo, estratégias previstas e garantias ao professor. Os dados receberam tratamento quali-quantitativo.

RESULTADOS:

as terminologias utilizadas nos documentos foram: programa (88,52%), campanha (6,55%) e política de saúde vocal (4,91%); quanto aos objetivos, a prevenção de disfonias em professores (83,60%) foi o mais citado; a estratégia privilegiada para abordar a voz do professor se resumiu a curso teórico-prático anual (80,32%) e a garantia prevista ao professor foi o acesso ao tratamento fonoaudiológico e médico em caso de disfonia (65,57%). A maioria dos documentos não indicou qualquer garantia de direitos aos professores, limitando-se ao tratamento da disfonia, demonstrando que a voz do professor e seu cuidado, ainda não constituem objeto de preocupação do Estado.

CONCLUSÃO:

os documentos analisados, apesar de sua importância, apresentam conteúdo muito incipiente e superficial, especialmente quanto à linha de cuidado e à promoção da saúde vocal dos professores. Salvo raras exceções, restringem-se à indicação de ações pontuais voltadas à reabilitação de seus distúrbios da voz, desvinculadas de uma política de saúde vocal de base consistente. Há necessidade do fonoaudiólogo e seus órgãos de classe participar efetivamente na assessoria às figuras públicas visando à elaboração de documentos para que, de forma objetiva e abrangente, promovam a saúde do professor.

Voz; Docentes; Leis; Promoção da Saúde; Ensino


PURPOSE:

to analyze the Brazilian policies about teacher's vocal health, from the perspective of health promotion.

METHODS:

61 documents published between 1998 and 2010 were collected and organized according to the categories: terminology, aim, predicted strategies and support to the teacher. The data received a qualitative and quantitative treatment.

RESULTS

: the terminology used in the documents was program (88.52%), campaign (6.55%) and vocal health policies (4.91%); as for the aims, the most mentioned was prevention of dysphonia in teachers (83.60%); the privileged strategy to approach the teacher's voice consisted of an annual theoretical-practical course (80.32%) and the teacher's predicted support was the access to speech-pathology therapy and to a physician in case of dysphonia (65.57%). The majority of the documents did not indicate any support available to the teachers' vocal health and were limited to the treatment of dysphonia, revealing that the teachers' vocal health is not taken as an object of concern by the State.

CONCLUSION

: despite their relevance, the analyzed documents present a very incipient and superficial content, especially in terms of promoting teachers' vocal care and health. Mostly, except for the occasional vocal health recommendation concerning the rehabilitation of voice disorders, there is no foundation on a comprehensive teachers' vocal health policy. Speech therapists

and related professional entities should play an effective role in the elaboration of documents to assist policy makers in the promotion of teachers' health in an objective and extensive way.

Voice; Faculty; Laws; Health Promotion; Teaching


Introdução

São notórios os riscos ocupacionais presentes nas instituições escolares relativos ao ambiente e organização do trabalho que trazem prejuízos à saúde e a voz dos professores11. CEREST-SP - Centro de Referência de Saúde do Trabalhador. Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo. Distúrbios da voz relacionados ao trabalho. Boletim Epidemiológico Paulista. 2006;3(26):16-22. [acesso em 29 de junho de 2010] Disponível em: http://www.cve.saude.sp.gov.br/agencia/bepa26_dist.htm.
http://www.cve.saude.sp.gov.br/agencia/b...

2. Meulenbroek LFP, Thomas G, Kooijman PGC, Jong JCRS. Biopsychosocial impact of the voice in relation to the psychological features in female students teachers. JPsychosomat Res. 2010;68:379-84.

3. Gassull C, Casanova C, Botey Q, Amador M. The Impact of the Reactivity to Stress in Teachers with Voice Problems. Folia PhoniatrLogop. 2010;62:35-9.

4. Van Wijck-Warnaar, Van Opstal MJMC, Exelmans K, Schaekers K, Thomas G, De Jong FICRS. Psychosocial impact of voicing and general coping style in teachers. Folia PhoniatrLogop. 2010;62:40-6.
- 55. Servilha EAM, Arbach MP. Queixas de saúde em professores universitários e sua relação com fatores de risco presentes na organização do trabalho. Distúrb Comum. 2011;23(2):181-91.. O fonoaudiólogo tem sido o profissional de vanguarda para reverter essa situação de agravo à saúde com participação sistemática na elaboração de documentos visando à compreensão mais ampla da relação trabalho, saúde e voz docente11. CEREST-SP - Centro de Referência de Saúde do Trabalhador. Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo. Distúrbios da voz relacionados ao trabalho. Boletim Epidemiológico Paulista. 2006;3(26):16-22. [acesso em 29 de junho de 2010] Disponível em: http://www.cve.saude.sp.gov.br/agencia/bepa26_dist.htm.
http://www.cve.saude.sp.gov.br/agencia/b...
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Há o reconhecimento dos determinantes sociais, econômicos, tecnológicos e organizacionais da saúde do trabalhador, responsáveis pelas condições de vida e aspectos relacionados ao ambiente e à organização, presentes nos processos de trabalho66. Brasil, Organização Pan-Americana da Saúde/Brasil. Doenças Relacionadas ao Trabalho. Manual de Procedimentos para os Serviços de Saúde. Série A. Normas e Manuais Técnicos; n. 114.Brasília/DF - Brasil, 2001.. A consideração dos distúrbios da voz de origem ocupacional encontra-se em processo de análise77. Brasil. Protocolo de Distúrbio de Voz relacionado ao Trabalho - DVRT. [acesso em 16 de março de 2012] Disponível em: http://189.28.128.179:8080/pisast/saude-do-trabalhador/apresentacao/protocolo-de-complexidade-diferenciada//.
http://189.28.128.179:8080/pisast/saude-...
visando sua inclusão na lista de agravos a serem notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN).

A saúde está vinculada aos conceitos da Promoção da Saúde, cujo marco histórico remete à Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada no ano de 1986, em Otawa. A Carta definiu Promoção da Saúde como "processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle deste processo" 88. Brasil. Promoção da Saúde. Ministério da Saúde, Brasília (DF), 2001.. No Brasil, a Reforma Sanitária, viabilizada pela Constituição Federal de 1988, estabeleceu uma política na qual se entende saúde como direito de todos e dever do Estado99. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. .

A saúde neste contexto é concebida como processo social dinâmico, derivado das experiências e manifestações da vida. Além disso, é considerada como um importante indicador para a qualidade de vida1010. Buss PM. Promoção da Saúde e qualidade de vida. Ciência & Saúde Coletiva. 2000;5(1):163-77., definida como o modo pelo qual cada sujeito percebe sua posição na vida, no contexto da cultura e dos valores nos quais está imerso e implica em dois aspectos: subjetividade e multidimensionalidade. A primeira, relativa à como cada um se autoavalia; e a segunda, ao fato de que o construto abriga distintas dimensões, como a área física, psicológica, relacionamento social e ambiente1111. Seidl EF, Zannon CMLC. Qualidade de Vida e Saúde: aspectos conceituais e metodológicos. Cadernos de Saúde Pública. 2004;20(2):580-8..

As diretrizes da Promoção da Saúde devem englobar o processo de construção, (re)qualificação e (re)construção de espaços urbanos mais saudáveis,municípios potencialmente saudáveis e Escolas Promotoras de Saúde (EPS) que almejam à transformação social de modo a garantir melhor qualidade de vida aos cidadãos e o resgate da cidadania1212. Sperandio AMG. O desafio: promover a construção de uma rede de municípios com a participação de diferentes atores sociais. In: Sperandio AMG. (org.). O Processo de Construção da Rede de Municípios Potencialmente Saudáveis. Campinas: Unicamp; 2003.p.13-21..

Dessa perspectiva, Educação e Saúde mantêm relação indissociável, pois a Saúde se coloca como pré-requisito para a aprendizagem, e a Educação como estratégia que alavanca a Saúde.

A escola pode engajar-se na promoção da saúde de sua comunidade, tendo como pedra angular desse trabalho seu corpo docente, que, ao interagir com seus alunos, pode se tornar um multiplicador de informações e gerar curiosidade e desejo de conhecimento no discente. Neste trabalho de promover a saúde, as atitudes, crenças, ideias do professor serão exteriorizadas pelas modulações de sua voz que irão denotar energia, chamar a atenção, fazer acordos e estabelecer prioridades1313. Ilomaki I, Leppanen K, Kleemola L, Tyrmi J, Laukkanen AM, Vilkman E. Relationships between self-evaluations of voice and working conditions, background factors, and phoniatric findings in female teachers. Logop.Phoniatric. Vocol. 2009;34:20-31..

O uso da dialogia e nela a voz guarda relação com o que se denomina de tecnologia leve1414. Merhy EE. Saúde: A Cartografia do Trabalho Vivo. 3ª ed. São Paulo: Hucitec; 2002. Este termo é discutido por um autor que, ao abordar o cuidado com a saúde, estabelece três tipos de recursos: tecnologia dura, leve-dura e leve. A dura engloba os instrumentos ou equipamentos utilizados em tratamentos, os exames e a organização de informações; a leve-dura diz respeito aos conhecimentos das diferentes áreas da saúde já consagradas, como a clínica, a epidemiologia, assim como os profissionais envolvidos na equipe desenvolvem o processo de trabalho. A tecnologia leve é aquele que ocorre na relação intersubjetiva, no encontro entre o profissional da saúde e o usuário, por isso é denominado pelo autor como trabalho vivo, em ato. Este modalidade de recurso envolve a dialogia, a escuta e o vinculo, a responsabilização sobre o outro e o problema que o aflige.

No movimento da Promoção da Saúde não só a escola deve estar envolvida e sim todos os segmentos da sociedade e a elaboração de leis que garantam usufruir de estratégias que visem o bem-estar da população é um recurso importante nessa direção, pois as políticas públicas têm abrangência nacional e avançam na aquisição dos direitos sociais.

A alta ocorrência de distúrbios vocais em docentes, associada às discussões sobre Promoção de Saúde, tem conduzido políticos a encaminharem projetos de lei, com o objetivo de garantir ações para, minimamente, diminuir as alterações vocais, especialmente em professores. A pouca divulgação desta legislação brasileira mobilizou pesquisadoras a caracterizar as leis sobre saúde vocal1515. Ferreira LP, Servilha EAM, Masson MLV, Reinaldi MBFM. Políticas públicas e voz do professor: caracterização das leis brasileiras. RevSoc Bras Fonoaudiol. 2009;14(1):1-7..

O objetivo deste artigo é analisar as leis brasileiras sobre saúde vocal do professor, na perspectiva da promoção da saúde.

Métodos

O material para o presente estudo constou da identificação de leis que versavam sobre saúde vocal no período de 1998 a 2010. Como se trata de um estudo documental, não houve necessidade de submissão a Comitê de Ética, nem de aplicação de termo de consentimento livre e esclarecido.

A identificação desse material iniciou-se com buscas em sites de assembleias legislativas, câmaras municipais, governos estaduais e prefeituras por uma das autoras que trabalhava na área governamental. Um questionário, elaborado pelas autoras, foi enviado para uma lista de discussão sobre voz, da qual participavam fonoaudiólogos que tinham interesse nessa área. Esses profissionais enviaram informações sobre leis ou documentos a respeito de saúde vocal do professor, dos quais tinham conhecimento, ou ainda, encaminharam as leis para as autoras.

Utilizou-se como critério de inclusão leis e projetos de lei que abordassem ações sobre a voz do professor sendo excluídos aqueles que estavam direcionados a alunos e pais ou que focalizassem outras questões fonoaudiológicas.

Após a leitura e análise de todos os documentos compilados e a exclusão daqueles que não atendiam ao objetivo da pesquisa, obteve-se um total de 61 documentos de todo Brasil, os quais foram organizados em ordem cronológica (Figura 1) e apresentavam conteúdo dirigido especificamente à saúde vocal de profissionais de educação.

A partir da leitura detalhada do material e análise de seus conteúdos foram criadas, a posteriori, as categorias de análise: terminologia, objetivo, estratégias previstas e garantias oferecidas.

Além dessa análise global, foram destacados cinco documentos que, pela complexidade da proposta e detalhamento das ações a serem desenvolvidas, se diferenciavam dos demais.

Ressalva-se que durante todo o artigo foi utilizado o termo saúde vocal, pois é recorrente no título ou no conteúdo de todas as leis analisadas, embora haja criticas ao uso do mesmo, em especial no campo da Saúde Coletiva por considerarem que a saúde deve ser entendida como um todo indissociável e não segmentado.

Resultados

A Figura 1 exibe as leis brasileiras sobre saúde vocal no período de 1988-2010 e que serviram de material de análise do presente estudo.

Figura 1:
Apresentação das leis sobre saúde vocal no período de 1988-2010

Na Tabela 1 são apresentados os dados sobre a análise dos documentos nas categorias: terminologia, objetivos, estratégias e garantias para o professor, presentes nas leis brasileiras sobre saúde vocal no período de 1998 a 2010.

Tabela 1:
Distribuição das leis de saúde vocal existentes no Brasil, no período de 1998 a 2010, segundo as categorias terminologia, objetivo, estratégias previstas e garantias (n=61)

A Figura 2 mostra as cinco leis cujos textos trazem avanços nos direitos e garantias ao professor e propostas de atuação mais abrangentes e estruturadas em relação ao conjunto de documentos analisados. Constata-se que os documentos são prioritariamente da esfera estadual de governo, inclusive um projeto de lei de âmbito federal, PL 1128/2003,por sua abrangência e aprovação no Congresso e que está em tramitação na Câmara dos Deputados

Figura 2:
Síntese dos avanços constatados nos documentos em relação à organização e estrutura das propostas de programa de saúde vocal do professor

Discussão

Nos 61 documentos analisados há a proposição de criação de um recurso ou algum tipo de ação para os quais se utilizaram os termos Campanha, Programa e Política.

As Campanhas remetem à ações pontuais e precisam ser realizadas de forma sistemática para alcançar resultados duradouros (Tabela 1). O distúrbio de voz do professor difere de outros agravos à saúde, especialmente, as doenças infectocontagiosas, cujo tratamento se faz por meio de vacinas ou outro medicamento. Embora tenha seu poder valioso de educação em saúde, essa estratégia, de forma isolada,não tem ação abrangente para eliminar o distúrbio vocal, usualmente, gerado por questões relacionadas à atividade laboral. Apenas ampliar a hidratação ou não fumar, dentre outras indicações esclarecedoras e importantes veiculadas em campanhas de voz, por si só, não têm o potencial de eliminar os distúrbios de voz ou proteger a voz do professor da disfonia, diante de tantos problemas enfrentados no cotidiano laboral destes profissionais da docência e que atingem sua saúde e sua voz. Desta forma, as campanhas se constituem em recurso que pode ser utilizado em complementaridade a outras ações de saúde1616. Penteado RZ, Servilha EAM . Fonoaudiologia em saúde pública/coletiva: compreendendo prevenção e o paradigma da promoção da saúde. Distúrb Comum. 2004;16(1):107-16., como componente de uma política ou programa.

Por outro lado, um Programa ou uma Política, implicam em ações articuladas e sinérgicas e que abrangem toda a linha do cuidado, por isso mais completa e resoluta, com propostas de atuação nos diferentes níveis de atenção e complexidade. Dados os fatores intervenientes nos distúrbios de voz do professor esta seria a melhor opção para proteger sua saúde e sua voz.

As iniciativas apresentadas refletem a concepção adotada no que tange aos cuidados à saúde do professor. Prevalece uma prática tradicionalmente curativa, estabelecida por meio da consulta e tratamentos médico e fonoaudiológico quando o problema de voz já se instalou, e, portanto, com foco na reabilitação. Em 83,6% dos programas de saúde vocal analisados neste estudo ocorre o avanço para uma perspectiva mais ampla, voltada para a prevenção dos distúrbios de voz do professor. Contudo, não há a perspectiva de promover saúde e sim evitar o agravamento da doença que continua sendo o foco da atuação.

Cabe ressalvar que, na análise dos documentos expostos na Figura 1, ficou evidenciado que o uso do termo "programa" na lei não refletiu em seu conteúdo os requisitos e abrangência requeridas pelo conceito, limitando-se a citar sumariamente ações de cuidado ao professor diagnosticado com distúrbio de voz. Desta forma, nem sempre foi observada a consonância entre terminologia e conteúdos dos documentos.

Esta forma preventivista de atuar no processo saúde-doença-cuidado em voz remete ao modelo da Medicina Preventiva1717. Andrade CRF. Fonoaudiologia Preventiva: Teoria e vocabulário técnico-científico. São Paulo: Lovise. 1996., no qual se estabelecem medidas de prevenção numa ordem progressiva, estabelecidas num modelo normativo e prescritivo, focado no indivíduo ou em grupos de risco em especial, com vistas à interceptação da doença. Esse modelo foi transposto para a Fonoaudiologia no final dos anos de 19901818. Almeida SIC, Pontes P. Síndrome Disfônica Ocupacional: Novos Aspectos desta Entidade Nosológica. Arq. Int. Otorrinolaringol. / Intl. Arch. Otorhinolaryngol. 2010;14(3):346-50., avançando para além do trabalho puramente reabilitador, porém ainda restrito à prevenção de doenças, tratamento imediato e interrupção de sequelas. A promoção da saúde, neste modelo, considera aspectos mais amplos, a saber: educação sanitária, segurança alimentar, moradia e trabalho dignos, lazer, e atribui sua responsabilidade ao poder público, desvinculando-os da competência dos profissionais da saúde, neles incluso, o fonoaudiólogo.

Ressalva-se que em três documentos não havia os objetivos, parecendo indicar que nem sempre os textos são elaborados de forma estruturada e objetiva, de modo a esclarecer o seu propósito e, na contrapartida, dificultando sua execução.

Dentre as estratégias propostas nas leis analisadas pode-se destacar, na grande maioria, a realização de um curso teórico-prático anual. Importante ressaltar que essa estratégia tem sido discutida como uma modalidade de baixo impacto quando se propõe mudanças de atitude nos sujeitos, pois estão em consonância com uma concepção de doença que se resolve com a medicalização e o controle da população (o que justifica o termo "saúde vocal"), em contraposição ao seu empoderamento, que visa qualidade de vida e melhoria das condições de saúde. Num estudo1919. Ferreira LP, Chieppe D. Quando as práticas fonoaudiológicas são educativas... Distúrb Comum. 2005;17(1):123-6., no qual as autoras utilizaram os conceitos de Antonio Zabala, destacou-se que quando a pretensão é garantir o processo ensino-aprendizagem, o educador deve ter em mente a necessidade de trabalhar conceitos, acompanhados de procedimentos para, na sequência, buscar a mudança das atitudes dos envolvidos. Desta forma, a proposta de cursos teórico-práticos, quando muito, pode responder à apresentação de conceitos e possíveis procedimentos, contudo, dificilmente dará conta das mudanças de atitude ou comportamento. Para essas é imprescindível um trabalho contínuo, com o compromisso de participação ativa dos sujeitos, e com a proposta de sensibilizar e problematizar constantemente as informações trazidas pelos mesmos. Algumas leis mais abrangentes, que serão discutidas mais adiante, buscam promover a saúde do professor propondo ações encadeadas e sistêmicas.

Aliás, a ideia de constância ou continuidade é, mais uma vez, descartada quando fica explicitado em mais da metade dos documentos que a periodicidade deve ser anual. Este contato único dos fonoaudiólogos com os docentes permite ações pontuais e o desenvolvimento de comportamentos ou atitudes que têm muita chance de serem esquecidas ou negligenciadas logo que surgem as dificuldades para usar a voz de forma saudável na escola devido à falta de manutenção do apoio profissional. Um número muito restrito de propostas (Figura 2) sugere ações permanentes, que oportunizariam o uso de metodologias mais ativas por parte dos envolvidos e favoreceriam mudanças de atitudes em relação à saúde. Por outro lado, em parte dos documentos nada consta sobre as estratégias a serem utilizadas nos programas de saúde vocal, indicando falta de conhecimento, ou ainda, o postergar nas formas de alcançar o objetivo proposto, o que pode dificultar ainda mais sua realização.

Ao abordar o processo de trabalho em saúde, faz-se necessária a utilização dos vários tipos de recursos1414. Merhy EE. Saúde: A Cartografia do Trabalho Vivo. 3ª ed. São Paulo: Hucitec; 2002. Ressalva-se a importância da tecnologia leve, pois o envolvimento dialógico do fonoaudiólogo com o professor possibilita a aproximação e a compreensão do primeiro sobre as condições de vida, trabalho e saúde dos docentes e gera subsídios mais consistentes para a realização de ações consonantes com as demandas delas decorrentes.

Embora as iniciativas objetivem ações preventivas, é possível identificar a preocupação com assistência aos professores acometidos pelo distúrbio de voz, quando parte dos Programas anunciam que, na presença do distúrbio, os participantes terão acesso a tratamento fonoaudiológico, médico ou mesmo psicológico.

É importante destacar a necessidade de se avançar na perspectiva da Vigilância à Saúde. Nessa direção, especial atenção deve ser dada ao documento em elaboração no Ministério da Saúde que destaca o papel estruturante e essencial da Vigilância em Saúde do Trabalhador, associado ao modelo de Atenção Integral em Saúde do Trabalhador77. Brasil. Protocolo de Distúrbio de Voz relacionado ao Trabalho - DVRT. [acesso em 16 de março de 2012] Disponível em: http://189.28.128.179:8080/pisast/saude-do-trabalhador/apresentacao/protocolo-de-complexidade-diferenciada//.
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. Ressalta-se, ainda, que os saberes e práticas sanitárias devam estar articulados intra e intersetorialmente, além de focalizar o ambiente e os processos de trabalho, com a participação e, principalmente, com o saber dos trabalhadores.

Desta forma, as ações que abordem a saúde vocal do professor, conforme apontadas nos programas apresentado na Figura 2, devem estar sempre aliadas a outras de natureza intersetorial, com vistas à minimização de riscos presentes no ambiente (ruído, poeira, iluminação, por exemplo) e na organização do trabalho (dentre elas: metas a serem atingidas, excesso de trabalho e presença de violência).

Ao discutir o gerenciamento de grupo realizado pelo fonoaudiólogo, um estudo2020. Ferreira LP, Thomé de Souza TM, Zambon F, Barreto RKA, Maciel MCBT. Voz do professor: gerenciamento de grupos. Distúrb Comum. 2010;22(3):251-8. apresenta a experiência realizada pela Prefeitura do Município de São Paulo no desenvolvimento de oficinas para o bem-estar vocal, incentivando os participantes a criarem ou incrementarem a Comissão Interna de Prevenção de Acidente (CIPA) nas escolas, como proposta de dar continuidade às discussões referentes ao ambiente e organização do trabalho.

No que se refere às garantias ao professor, chama a atenção o fato de quase um terço dos documentos nada exibir sobre essa questão, parecendo desconsiderar o professor como um trabalhador, que tem direitos e deveres. Isto possivelmente se deve ao fato da docência ter sido considerada por muito tempo missão ou sacerdócio, negando-lhe o papel profissional2121. Penteado RZ. Relações entre saúde e trabalho docente: percepções de professores sobre saúde vocal. Rev. Soc. Bras. Fonoaudiol. 2007;12(1):18-22., ou ainda, a avaliação de que um distúrbio de voz não seja tão incapacitante como outras doenças que possam atingir o professor. Isto também poderia explicar o fato de quase um terço dos documentos nem fazerem menção a estes direitos.

A análise dos documentos evidenciou que, uma pequena parte das iniciativas, construídas ao longo do tempo, difere das demais pelo detalhamento de seus textos e por trazerem avanços no que concerne à voz do professor, pois a abordam em diferentes níveis de atenção e de forma integrada e global (Figura 2).

Esses documentos de abrangência estadual (Pernambuco/2001, Paraná/2005 e Minas Gerais/2006), municipal (São Paulo/2005) e nacional (Brasília/2003) datam do início deste século, concomitante à publicação de documentos oficiais que delineiam a linha do cuidado a relevância da atenção integral à saúde conforme previsto pelo Sistema Único de Saúde99. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988..

Nesses documentos detalham-se as ações de promoção, capacitação, proteção e recuperação da saúde, desde o exame admissional que acolhe o professor com distúrbio de voz contratando-o em condições especiais, ou seja, oferecendo-lhe tratamento adequado e/ou redução de carga horária até que se sinta apto a assumir sua profissão de forma plena. Oferecem-se cursos de qualificação vocal do professor, com vistas ao seu empoderamento para que ele se torne um agente promotor de sua própria saúde e daqueles com os quais convive. Preconizam-se para além do cuidado pessoal, a preocupação com tecnologias de ensino-aprendizagem e melhorias do espaço físico como acústica, ruído, calor/frio, umidade, ventilação, presença de poeira, assim como lousas brancas, disponibilidade de bebedouros e equipamentos de som visando reduzir riscos e colaborar para a promoção da saúde do docente.

Finalmente, acrescido à reabilitação vocal de professores disfônicos, prevê-se a análise de sua situação trabalhista, propondo-se a readaptação temporária ou definitiva de modo a assegurar-lhe seus direitos de trabalhador.

De forma detalhada e objetiva esses documentos, diferentemente dos demais, expressam a consideração pelo professor, sua valorização como profissional do ensino e estabelecem ações em toda a linha de cuidado à saúde, alinhados com os princípios da promoção da saúde1515. Ferreira LP, Servilha EAM, Masson MLV, Reinaldi MBFM. Políticas públicas e voz do professor: caracterização das leis brasileiras. RevSoc Bras Fonoaudiol. 2009;14(1):1-7..

Cabe destacar que nesses documentos o fonoaudiólogo é reiteradamente citado como o profissional responsável pelo cuidado da voz do professor e coordenador das equipes de trabalho. Ainda assim, fica clara sua inter-relação com outros profissionais, em especial, o médico otorrinolaringologista, com o qual faz parceria nos cuidados pertinentes à área de voz profissional.

Conclusão

Os documentos analisados, apesar de sua importância, apresentam texto muito incipiente e superficial em relação à linha de cuidado, em especial, à promoção da saúde do professor, restringindo-se a indicação de ações pontuais e voltadas à reabilitação de seus distúrbios da voz, exceto em raras exceções.

Esperava-se que as leis contemplassem um conceito de saúde mais abrangente, com consequente determinação de procedimentos mais amplos e articulados, assim como a manutenção de garantias ao professor como trabalhador tanto em situação de saúde quanto de doença.

O fonoaudiólogo e seus órgãos de classe têm papel importante na assessoria aos homens públicos na elaboração de documentos para que, de forma objetiva e abrangente, sejam direcionados à atenção integral à saúde, com ênfase na sua promoção.

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    CEREST-SP - Centro de Referência de Saúde do Trabalhador. Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo. Distúrbios da voz relacionados ao trabalho. Boletim Epidemiológico Paulista. 2006;3(26):16-22. [acesso em 29 de junho de 2010] Disponível em: http://www.cve.saude.sp.gov.br/agencia/bepa26_dist.htm.
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    Meulenbroek LFP, Thomas G, Kooijman PGC, Jong JCRS. Biopsychosocial impact of the voice in relation to the psychological features in female students teachers. JPsychosomat Res. 2010;68:379-84.
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    Gassull C, Casanova C, Botey Q, Amador M. The Impact of the Reactivity to Stress in Teachers with Voice Problems. Folia PhoniatrLogop. 2010;62:35-9.
  • 4
    Van Wijck-Warnaar, Van Opstal MJMC, Exelmans K, Schaekers K, Thomas G, De Jong FICRS. Psychosocial impact of voicing and general coping style in teachers. Folia PhoniatrLogop. 2010;62:40-6.
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    Servilha EAM, Arbach MP. Queixas de saúde em professores universitários e sua relação com fatores de risco presentes na organização do trabalho. Distúrb Comum. 2011;23(2):181-91.
  • 6
    Brasil, Organização Pan-Americana da Saúde/Brasil. Doenças Relacionadas ao Trabalho. Manual de Procedimentos para os Serviços de Saúde. Série A. Normas e Manuais Técnicos; n. 114.Brasília/DF - Brasil, 2001.
  • 7
    Brasil. Protocolo de Distúrbio de Voz relacionado ao Trabalho - DVRT. [acesso em 16 de março de 2012] Disponível em: http://189.28.128.179:8080/pisast/saude-do-trabalhador/apresentacao/protocolo-de-complexidade-diferenciada//.
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    Brasil. Promoção da Saúde. Ministério da Saúde, Brasília (DF), 2001.
  • 9
    Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
  • 10
    Buss PM. Promoção da Saúde e qualidade de vida. Ciência & Saúde Coletiva. 2000;5(1):163-77.
  • 11
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  • 12
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    Ilomaki I, Leppanen K, Kleemola L, Tyrmi J, Laukkanen AM, Vilkman E. Relationships between self-evaluations of voice and working conditions, background factors, and phoniatric findings in female teachers. Logop.Phoniatric. Vocol. 2009;34:20-31.
  • 14
    Merhy EE. Saúde: A Cartografia do Trabalho Vivo. 3ª ed. São Paulo: Hucitec; 2002
  • 15
    Ferreira LP, Servilha EAM, Masson MLV, Reinaldi MBFM. Políticas públicas e voz do professor: caracterização das leis brasileiras. RevSoc Bras Fonoaudiol. 2009;14(1):1-7.
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  • 17
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2013
  • Aceito
    25 Nov 2013
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