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Indicadores clínicos de risco para a constituição do sujeito falante

Resumos

OBJETIVO:

propor indicadores clínicos de risco para a constituição do sujeito falante.

MÉTODOS:

dos indicadores de risco para o desenvolvimento infantil e do modelo de funcionamento dos sintomas de linguagem foram deduzidos os quatro eixos que sustentam a constituição do sujeito falante: suposição de um sujeito falante, reconhecimento do sujeito falante, reconhecimento do significante e responsividade do falante aos dizeres do outro. Dizeres parentais referidos durante as entrevistas fonoaudiológicas de usuários de três Unidades Básicas de Saúde foram agrupados por relações de semelhança, classificados e analisados segundo cada um dos quatro eixos de constituição do sujeito falante.

RESULTADOS:

a análise permitiu estabelecer 12 indicadores clínicos preliminares para a constituição do falante. Estes indicadores apontam para uma possibilidade de que o sujeito venha a apresentar perturbações de fala e linguagem, sustentando tanto a intervenção como ações de promoção de saúde do falante.

CONCLUSÕES:

os resultados permitem concluir pela importância do fonoaudiólogo na atenção básica à saúde da população e nas ações de promoção.

Indicador de Risco; Linguagem Infantil; Fonoaudiologia; Saúde Pública


PURPOSE:

to propose clinical risk indicators of the constitution of the speaking subject.

METHODS:

from the risk indicators for child development and from the operating model of language symptoms, four axes were drawn that support the constitution of the speaking subject: the assumption of a speaking subject, recognition of the speaking subject, recognition of the significant and responsiveness of the speaker to the speech of the other. Parental information mentioned during speech therapy interviews of users of three Basic Health Units were grouped by similarity, classified, and analyzed according to each of the four axes of the constitution of the speaking subject.

RESULTS:

the analysis allowed us to establish twelve preliminary clinical indicators for the constitution of the speaker. These indicators point to a possibility that the subject might present speech and language disorders, supporting not only their intervention but also measures to promote the health of the speaker.

CONCLUSION:

the results suggest the importance of the speech therapist in the primary health care of the population and in promotional health measures.

Risk Indicator; Child Language; Speech Therapy; Public Health


Introdução

Propor indicadores clínicos no campo da Fonoaudiologia não é uma tarefa simples: deve-se considerar as peculiaridades desta práxis em sua lida com aspectos subjetivos, lembrando que o diagnóstico fonoaudiológico não estabelece uma relação direta entre sintoma e doença, visto a natureza da linguagem em sua diferenciação com a natureza do corpo orgânico. O fonoaudiólogo, ao assumir seu compromisso com a fala do paciente, defronta-se com produções singulares, cuja especificidade pede uma escuta que as reconheça.

Dessa forma, os indicadores na clínica fonoaudiológica voltada aos sintomas de linguagem "devem ser considerados indícios, pistas que dão propriedade à construção de hipóteses acerca de movimentos que são completamente subjetivos, exclusivos"11. Palladino RRR. A propósito dos indicadores de risco. Disturb Comum. 2007;19(2):193-201.. Os indicadores, nesse caso, são acompanhados do adjetivo "clínico" em decorrência de ser essa a natureza da práxis fonoaudiológica, a qual compreende a singularidade do sujeito e o seu funcionamento na/pela linguagem.

A clínica fonoaudiológica que aqui se coloca concebe os sintomas de fala e linguagem como sinais de presença de um sujeito falante, dividido, principalmente, pela escuta e pela fala. Os sintomas de fala e linguagem caracterizados por restrições gramaticais, sintáticas e de vocabulário, ocorrem, em grande parte, devido a falhas de posição do sujeito na linguagem. O modelo de multiestratificação estrutural dos sintomas de linguagem22. Gouvêa G. Por uma multiestratificação estrutural dos sintomas de linguagem [dissertação]. São Paulo (SP): Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2007. pode sustentar a estrutura da clínica fonoaudiológica a partir da idéia de que a sanção ou o estabelecimento das leis da linguagem que governam os falantes é a articulação entre a estrutura e o funcionamento da linguagem. Os efeitos retroativos da sanção de uma fala sobre a outra geram tanto a constituição quanto a reversão dos sintomas de linguagem33. Gouvêa G, Freire RM, Dunker C. Sanção em fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Cad Est Ling. 2011;1(53):7-25..

Os indicadores clínicos para a constituição do falante foram ancorados nos quatro eixos para a constituição do sujeito44. Kupfer MCM, Jerusalinsky A, Wanderley DB, Infante DP, Salles L, Bernardino LF, et al. Pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para a detecção precoce de riscos no desenvolvimento infantil. Rev Latinoam Psicopatol Fund. 2003;6(2):7-25., sustentados pelo modelo de organização dos sintomas de linguagem e desenvolvidos para esta pesquisa. Vale mencionar que cada eixo é parte de uma estrutura e, como tal, é sincrônico aos outros:

Supor um falante: a constituição da criança como falante está articulada à sua antecipação pelo discurso do outro. O bebê é envolvido pela linguagem antes mesmo de sua concepção. É a partir dessa suposição que o outro (mãe ou cuidador) interpreta os primeiros sinais (vocais ou não) do bebê e atende suas demandas. Desse modo, o encontro do bebê com a linguagem ocorre por meio do outro que o enlaça à ordem simbólica, à ordem da linguagem.

Reconhecimento do falante: para que a criança fale, é necessário que os choros, sons, gestos, espasmos musculares sejam tomados por alguém como fala ou mensagem dirigida a ele. O reconhecimento do falante está em supor a escuta de significantes onde, a rigor, existe apenas uma realização sonora não identificável como elemento linguístico.

Reconhecimento do significante: na constituição do falante, a fala da criança está circunscrita à fala do outro e, a partir dessa fala, a criança incorpora fragmentos da fala do adulto que, por sua vez, interpreta tais fragmentos atribuindo-lhes sentido. Então, a criança fala "bó" e o adulto responde "Ah! Você quer a bola". Esse movimento de adotar um segmento de fala e colocá-lo numa combinação imprime caráter gramatical à fala da criança, produz efeitos na rede da sintaxe e dos sentidos.

Responsividade à fala do outro: sugere que a criança ocupe a posição de falante e atenda a demanda de fala do outro. A fala da criança estará sob efeito da fala do outro a ponto de ela ser afetada e responder, sustentando um diálogo. Falar é falar para o outro, então a criança conta histórias, narra acontecimentos, exprime desejos e "dá voz a personagens" durante atividades simbólicas. A presença desse eixo, portanto, supõe que o sujeito se reconheça e seja reconhecido pelo outro como falante, ao mesmo tempo que tenha escuta da própria fala e da fala do outro.

Para que a Fonoaudiologia continue a obter o devido respeito e reconhecimento, faz-se necessário estabelecer e difundir indicadores que direcionem as ações fonoaudiológicas55. Goulart BNG, Chiari BM. Construção e aplicação de indicadores de saúde na perspectiva fonoaudiológica: contribuições para reflexão. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2006;11(3):194-204. na Saúde Pública. O objetivo deste trabalho é propor indicadores clínicos de risco para a constituição do sujeito falante.

Métodos

Esta é uma pesquisa retrospectiva, de natureza clínico-qualitativa, realizada em três Unidades Básicas de Saúde que possuem setor de Fonoaudiologia, localizadas na Zona Leste da cidade de São Paulo. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal da Saúde da cidade São Paulo, sob número 333/10, desenvolvendo-se com base nos princípios éticos estabelecidos pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, para pesquisas envolvendo seres humanos.

A amostra foi composta, inicialmente, por 422 relatórios fonoaudiológicos, dos quais foram selecionados aqueles que atendiam aos critérios de seleção: sujeitos com faixa etária entre 2 e 6 anos, avaliação fonoaudiológica, hipótese diagnóstica de distúrbio articulatório, gagueira, atraso ou retardo de linguagem oral. Ao final desse processo, 88 relatórios compuseram a amostra.

Para a análise, elaborou-se uma planilha contendo as categorias que se referiam aos dizeres dos familiares sobre a criança. Esse corte foi sustentado pela hipótese de que os sinais que poderiam vir a constituir os indicadores apareceriam no discurso familiar sobre a criança e sua constituição como falante.

Critérios de interpretação dos dados

Para atingir o objetivo proposto, tomou-se os quatro eixos teóricos: supor um falante, reconhecer o falante, reconhecer o significante e responsividade à fala do outro, que balizaram a elaboração dos indicadores clínicos para a constituição do sujeito falante. A interpretação dos dados incidiu sobre os dizeres dos familiares sobre a criança. Feita uma primeira leitura desses dizeres, observou-se que eles poderiam ser agrupados por relações de semelhança. Dessa forma, a construção dos indicadores clínicos preliminares para a constituição do sujeito falante partiu do que foi trazido como perturbador na queixa parental para destes supor o normal, ou seja, o normal seria o não sintomático e, portanto, sem demanda para a Fonoaudiologia.

Análise dos dados

A constituição do sujeito falante implica a antecipação do outro e a posição do próprio sujeito em relação à sua fala e à fala do outro, o que torna viável utilizar os quatro eixos para a constituição do sujeito falante como balizadores para a análise de dizeres parentais. O primeiro eixo ― supor um sujeito falante ― está pressuposto em todos os dizeres, pois, ao trazer uma demanda sobre a fala, os pais confirmar a sua suposição de que seu filho é falante.

Os dizeres parentais abaixo foram articulados ao primeiro eixo, reconhecimento/negação do sujeito falante:

  • Tem dificuldade para falar;

  • Quase não fala;

  • Fala pouco e estranho;

  • Fala rápido e gagueja;

  • Ele não formula frases completas;

  • Quando ele fala a língua vai para frente;

  • Meu filho não fala e não engole a saliva.

O outro da criança - seu cuidador - (partindo da teoria psicanalítica na qual o pequeno outro é o igual, o semelhante da espécie humana, e o grande Outro é do campo simbólico, da linguagem, onde o sujeito irá constituir-se), nega o sujeito falante ao negar a fala, visto ser impossível separar sujeito e fala. Ao derrogar o sujeito falante, o outro promove a operação de sanção que "[...] é, ao mesmo tempo, validar ou vetar um ato e reconhecer ou desconhecer um sujeito. Seja pelo gesto afirmativo, seja pela ilação negativa, seja pelo silêncio ou pela interrogatividade [...]"33. Gouvêa G, Freire RM, Dunker C. Sanção em fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Cad Est Ling. 2011;1(53):7-25..

Pelo fato de o reconhecimento do sujeito falante estar vinculado à sua antecipação pelo outro, os dizeres parentais mostram como os responsáveis concebem o sintoma de linguagem e como este se presentifica nas manifestações na fala do sujeito.

A partir dessas observações, a constituição do sujeito falante alude às representações do bebê enquanto interlocutor pelo outro, cujo estatuto instiga o processo de subjetivação, no qual o nascimento do sujeito humano se dá quando a fala do outro lhe atribui sentidos e a interpreta em seus desejos de modo a capturar a criança na rede simbólica da linguagem. Visto dessa forma, a linguagem como atividade discursiva, tem um papel anterior à sua função expressiva.

Os dizeres parentais a seguir articularam-se ao segundo eixo, ou seja: reconhecimento/negação do significante:

  • Fala errado;

  • Fala bastante, mas fala errado;

  • Ele gosta de falar, mas fala tudo enrolado;

  • Ela troca as letras, fala enrolado e muito baixo;

  • Fala tudo errado e não fala muita coisa;

  • Fala errado igual ao irmão dele.

Por meio desses dizeres, nota-se a negação do significante, ou seja, o outro reconhece a fala do sujeito, no entanto a considera faltosa, errante, desviante, portanto a interdita e a sanciona na modalidade da tradução. Contudo,

(...) a fala de uma criança indica que ela entrou em um campo que excede o da fala: o campo da linguagem. Esse campo abarca outras manifestações expressivas, mas não se restringe a elas. A entrada da criança no campo da linguagem não se mede somente pelo vocabulário, pelo domínio da sintaxe e da gramática, ou pelo domínio de outras manifestações de linguagem, como a gestualidade, por exemplo. Essa entrada se mede principalmente pelo lugar do qual o sujeito se representa no sistema da língua, revelando sua possibilidade de se situar em relação às significações do mundo, sua possibilidade de sustentar as relações com os outros, de reconhecer na linguagem a demanda e o desejo dos outros, e de produzir, por sua vez, significações novas66. Kupfer MCM, Jerusalinsky AN, Bernardino LMF, Wanderley D, Rocha PSB, Molina SE et al. Valor preditivo de indicadores clínicos de risco psíquico para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Lat Am J of Fund Psychopath. [periódico na internet]. 2009 [acesso em 16 set 2014];6(1):48-68. Disponível em: http://132.248.9.34/hevila/Latinamericanjournaloffundamentalpsychopathology/2009/vol6/no1/4.pdf
http://132.248.9.34/hevila/Latinamerican...
.

Considerando que o Outro precede o sujeito, o adulto coloca a criança em uma posição a qual ela responderá, ou seja, o adulto antecipa a presença de alguma perturbação de fala e linguagem, assim como o fazem outros membros da família. Por isso, "escutar em que posição a criança responde com seu sintoma, aos efeitos de uma determinada posição na configuração familiar, será então um norteador na busca de uma referência para o diagnóstico diferencial" 77. Rafaeli YM. Do diagnóstico diferencial à direção do tratamento. In: Pavone S, Rafaeli YM , organizadoras. Audição, voz e linguagem: a clínica e o sujeito. São Paulo: Cortez; 2005. P.130-40..

Nos dizeres desse eixo, os responsáveis enunciam a queixa a partir do efeito do estranhamento que a fala do sujeito provoca, configurando o sofrimento causado pelo sintoma de linguagem, compatível com a noção de "[...] sanção que reconhece e simboliza a indeterminação entre reconhecimento do sujeito ou reconhecimento do significante [...] Aqui o sintoma aparece como refratário à sanção do Outro" 33. Gouvêa G, Freire RM, Dunker C. Sanção em fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Cad Est Ling. 2011;1(53):7-25..

De acordo com o modelo de multiestratificação estrutural dos sintomas de linguagem22. Gouvêa G. Por uma multiestratificação estrutural dos sintomas de linguagem [dissertação]. São Paulo (SP): Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2007., o "erro" marca a relação que o sujeito tem com a língua, na tentativa de reformular sua fala em busca de seu reconhecimento como Outro.

No discurso parental, a negação do significante (no sentido lacaniano, o que é sempre diferente) contido na fala do sujeito excluirá a abertura ou a escuta para sua fala. No entanto, "a criança, por sua condição de infans, depende sobremaneira do que dizem dela" 88. Vorcaro A. A clínica psicanalítica e fonoaudiológica com crianças que não falam. Disturb Comum. 2003;15(2):265-87. e ainda, de acordo com esta autora, "a inibição da criança em articular a fala não é somente um sintoma que comunica, ao campo social, um mal-estar familiar. Ele atesta a impotência da criança em identificar-se, em reconhecer-se em uma identificação, em distinguir-se no campo social" 88. Vorcaro A. A clínica psicanalítica e fonoaudiológica com crianças que não falam. Disturb Comum. 2003;15(2):265-87..

Nota-se também a herança que a clínica fonoaudiológica "carrega" devido à aproximação com a clínica médica, na qual o sintoma da doença é observado como fenômeno quantitativo, predominando os conhecimentos universais acerca do processo saúde/doença. Porém os sintomas de fala e linguagem não devem ser escutados à luz da clínica médica, pois o estatuto do sintoma na clínica fonoaudiológica "é dependente e indissociável da sua forma de enunciação e de sua estrutura de linguagem. E somente por isso pode se alterado, desconstruído ou transformado por intermédio de operações linguísticas" 99. Dunker C IL. Clínica, Linguagem e subjetividade. Disturb Comum. 2000;12(1):39-61..

A estruturação da criança, portanto, como sujeito falante de uma língua, está fundada na posição que ela, como sujeito, ocupa no discurso, na medida em que o Outro atribui interpretação, significado e reconhecimento ao significante.

Os dizeres parentais a seguir são indicadores desdobrados do eixo responsividade à fala do outro:

  • Quando eu chamo, ele não responde;

  • Ele não gosta muito de falar e não formula frases completas;

  • Não se desenvolve na fala, não conversa;

  • Participa de brincadeiras, mas quando alguém pede para ela falar algo ela permanece quieta e observando;

  • Não elabora histórias, ele apenas repete o que vê e o que ouve.

No percurso de infans a sujeito falante, a fala da criança passa por mudanças conforme a posição discursiva que ocupa em relação à fala do outro, à língua e em relação a sua própria fala1010. Lemos CTG. Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. Cad Est Ling. 2002;42:41-70.. Os dizeres parentais que se apresentam sob esse eixo remetem-nos às conceituações tecidas acerca dos sintomas de linguagem, ou seja, são dizeres que inferem que a criança, além de não ter escuta para a fala do outro, fica, diante deste, paralisada em uma dada posição discursiva. Quando isto ocorre, pode-se afirmar que a relação do falante - a criança - com a fala do outro - pais ou cuidadores -, ou melhor, a relação língua e fala, está comprometida. Lembre-se que a constituição do infans em falante, como já dito anteriormente, se dá na captura de sua fala pela língua (Outro) enquanto falante.

Na clínica fonoaudiológica, queixas alusivas a crianças que não atravessam a instância do funcionamento da língua e não são responsivas à fala do outro (portanto, "não falam") são recorrentes.

A criança é estruturada enquanto sujeito pela língua, isto é, o funcionamento linguístico discursivo é o que vai significar a criança e lhe permitir tomar distância do outro. A fala do outro, na qual a língua já opera, irá inserir a criança em seu funcionamento "[...] já que a criança vê a si mesmo como é vista" 1111. Brandão P, Meira AM, Molina S, Jerusalinsky A . Abordagens do imaginário na cena terapêutica em estimulação precoce. In: Centro Lydia Coriat. Psicomotricidade. 2.ed. Porto Alegre: Escuta; 1997. P. 08-21. (Escritos da criança, n.3)..

A não responsividade à fala do outro está diretamente vinculada à alteridade da linguagem, na qual o outro exerce papel fundamental de interlocutor e produz efeito de enlaçamento ao sujeito. Além disso, é

[...] preciso acrescentar ainda a dimensão paradoxal do ato temporal ou do acontecimento individual da fala, como fala de alguém endereçada ao Outro. Falar não é simplesmente ser o agente ou usuário de uma língua, falar é também ser autor. Falar é aceitar e modificar uma regra, realizar o universal da linguagem no singular de um sujeito por meio do particular de uma língua33. Gouvêa G, Freire RM, Dunker C. Sanção em fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Cad Est Ling. 2011;1(53):7-25..

Pode-se inferir, a partir dos dizeres desse eixo, que a responsividade à fala do outro requer que a criança desloque-se da condição de interpretada e ressignificada pelo outro para intérprete de sua própria fala e da fala do outro.

Resultados

Apesar de a amostra ser pequena, o material analisado permite observar que os indicadores clínicos preliminares para a constituição do sujeito falante, vistos como sinais e pistas, podem estar presentes nos dizeres parentais, pois "ver o adulto na lida com a criança ou escutá-lo narrar seu cotidiano podem ser modos de se deparar com indícios" 11. Palladino RRR. A propósito dos indicadores de risco. Disturb Comum. 2007;19(2):193-201., confirmando "que é possível o uso de indicadores de ordem subjetiva na clínica fonoau diológica, uma vez que estes sejam investigados a partir das relações que o sujeito estabelece com seus pares e com a linguagem" 1212. Reis BP, Freire RM . Indicadores preliminares para a constituição do sujeito leitor/escritor. Rev Saúde Soc. 2014;23(2):592-603..

Os dados analisados mostram que há uma "proximidade" nos discursos parentais acerca dos sujeitos com sintomas de fala e linguagem que comparecem à clínica fonoaudiológica, e que tais sintomas podem estar vinculados a um ato de sanção, ou seja, ao reconhecimento ou abolição do sujeito falante pelo outro. Por isso, os indicadores clínicos preliminares para a constituição do sujeito falante devem ser vistos como indícios de que o sujeito pode vir a apresentar perturbação de fala e linguagem. Sendo assim, a partir dos eixos de constituição de sujeito falante ― supor sujeito falante, reconhecimento do sujeito falante, reconhecimento do significante e responsividade à fala do outro ― foi possível elaborar 12 indicadores clínicos preliminares para a constituição de sujeito falante. Os indicadores não foram separados por idade, por não ocorrerem em momentos que possam ser ordenados cronologicamente.

Indicadores clínicos preliminares para a constituição do sujeito falante

  1. Os pais conversam com o bebê porque supõem que ele entenda.

  2. Os pais interpretam verbalmente as manifestações corporais da criança (riso, choro, gesto e olhar).

  3. Os pais recebem a fala da criança como direcionada a eles.

  4. Os pais colocam os segmentos de fala da criança em um contexto da língua, valorizando a mensagem da criança.

  5. Os pais não reprimem a criança por não compreendê-la.

  6. A criança é ouvida e suas questões são respondidas pelos pais.

  7. A criança faz e responde perguntas.

  8. A fala da criança não está alienada à fala do outro, ou seja, a criança não precisa da fala do outro para dizer o que quer.

  9. A criança reage (sorri, olha, vocaliza, vira) quando alguém fala com ela.

  10. A criança responde a chamados.

  11. A criança mostra interesse em falar com o outro.

  12. A criança sustenta um diálogo.

Em caso de negativa de qualquer uma das afirmações acima colocadas, têm-se os indicadores de risco para a constituição do falante.

Discussão

Os indicadores foram organizados sob o formato de protocolos para a sua aplicação como parte das ações de promoção na saúde pública. No protocolo, destinado ao agente comunitário de saúde ou aos profissionais de saúde (Figura 1), os indicadores clínicos preliminares para constituição do sujeito falante foram descritos por meio de orações que facilitem a sua compreensão tanto pelo profissional quanto pelas famílias visitadas. Esses protocolos contêm dados extraídos dos 12 indicadores preliminares para a constituição do sujeito falante, elaborados em forma de questionamento e seguidos das alternativas Sim "S ( )" e Não "N ( )". Importante ressaltar que, para análise da "presença" ou "ausência" de um indicador, o profissional de saúde deverá estar atento tanto aos sinais passíveis de observação quanto àqueles manifestados pelo discurso parental. Esses indicadores apontam para risco de perturbações de fala e linguagem, devido ao fato de que a presença de um ou mais indicadores pede atenção e/ou intervenção precoces. Sugere-se que os profissionais da saúde, em suas visitas domiciliares, utilizem o referido protocolo e, caso constatem a presença de um ou mais indicadores, encaminhem a criança para o setor de Fonoaudiologia. Nesse caso, o fonoaudiólogo avaliará e fará o diagnóstico, oferecendo atendimento terapêutico ao sujeito, e/ou orientará os pais quanto a sua participação no processo de aquisição de linguagem.

Figura 1:
Protocolo fonoaudiológico

Vistos por esse ângulo, os indicadores propostos no presente estudo têm como foco a promoção de saúde do falante, disponibilizando os resultados como instrumento para detecção de riscos e para a pronta intervenção na aquisição da linguagem, contribuindo, dessa forma, com demandas, ações e planejamentos na área da saúde pública em Fonoaudiologia .

Sugere-se que as entrevistas preliminares (Figura 2) forneçam dados para uma investigação clínica da posição subjetiva da fala da criança. Com essa sugestão em mente, criou-se um roteiro ― cujo intuito foi o de escrever a história do sujeito falante, incorporando os dizeres dos pais sobre a criança e sua fala, durante a(s) entrevista(s) ―, fundamentado nos eixos de constituição de sujeito falante, que favoreceu a obtenção de informações acerca da fala e linguagem do sujeito.

Figura 2:
Roteiro para entrevistas fonoaudiológicas

Considerações Finais

O processo de elaboração deste trabalho percorreu a articulação do termo "indicador" em diferentes âmbitos clínicos. Na clínica psicanalítica, apesar de o tema se fazer presente há pouco tempo, o trabalho "Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil" já suscita consideráveis discussões. Na clínica fonoaudiológica, entretanto, os trabalhos que fazem articulação entre indicadores clínicos e a constituição do sujeito falante são incipientes. A clínica fonoaudiológica aqui presente implica o sujeito como constituído pela linguagem e na relação com o outro, visto que a fala, contraparte da língua, apesar de ser um ato individual, é sempre endereçada ao outro.

De acordo com a concepção de que o sujeito é constituído na e pela fala em articulação com a língua, desenvolveu-se os quatro eixos ― supor um sujeito falante, reconhecimento do sujeito falante, reconhecimento do significante e responsividade à fala do outro ― que norteiam a constituição do sujeito falante e que sustentaram a análise dos dizeres parentais de sujeitos com sintoma de fala e linguagem em articulação com o modelo de multiestratificação estrutural dos sintomas de linguagem22. Gouvêa G. Por uma multiestratificação estrutural dos sintomas de linguagem [dissertação]. São Paulo (SP): Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2007. apresentado na Introdução.

Como resultado final, chegou-se a 12 indicadores clínicos preliminares para a constituição do sujeito falante, que podem predizer sinais para perturbações de fala e linguagem. Por essa via, esses indicadores devem ser vistos como indícios de que o sujeito poderá apresentar perturbações de fala e linguagem, atuando na promoção de saúde do falante, além de ressaltar a importância do fonoaudiólogo na atenção básica à saúde da população antes que emerja o sintoma de fala e linguagem.

Localiza-se, nos resultados desta pesquisa, uma importante abertura para ações de promoção de saúde na área da fala e linguagem em Fonoaudiologia, na qual se pode articular o polo universal à singularidade do sujeito e seu funcionamento peculiar de linguagem. Os profissionais da saúde ― agentes comunitários de saúde, médicos e fonoaudiólogos ― são convidados a testarem os indicadores elaborados na presente pesquisa durante as visitas domiciliares e/ou consultas, a fim de avaliarem a viabilidade e pertinência dos mesmos. É importante esclarecer que, somente após os indicadores serem testados, será possível realizar análise estatística, necessária para validação dos mesmos.

  • 1
    Palladino RRR. A propósito dos indicadores de risco. Disturb Comum. 2007;19(2):193-201.
  • 2
    Gouvêa G. Por uma multiestratificação estrutural dos sintomas de linguagem [dissertação]. São Paulo (SP): Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2007.
  • 3
    Gouvêa G, Freire RM, Dunker C. Sanção em fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Cad Est Ling. 2011;1(53):7-25.
  • 4
    Kupfer MCM, Jerusalinsky A, Wanderley DB, Infante DP, Salles L, Bernardino LF, et al. Pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para a detecção precoce de riscos no desenvolvimento infantil. Rev Latinoam Psicopatol Fund. 2003;6(2):7-25.
  • 5
    Goulart BNG, Chiari BM. Construção e aplicação de indicadores de saúde na perspectiva fonoaudiológica: contribuições para reflexão. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2006;11(3):194-204.
  • 6
    Kupfer MCM, Jerusalinsky AN, Bernardino LMF, Wanderley D, Rocha PSB, Molina SE et al. Valor preditivo de indicadores clínicos de risco psíquico para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Lat Am J of Fund Psychopath. [periódico na internet]. 2009 [acesso em 16 set 2014];6(1):48-68. Disponível em: http://132.248.9.34/hevila/Latinamericanjournaloffundamentalpsychopathology/2009/vol6/no1/4.pdf
    » http://132.248.9.34/hevila/Latinamericanjournaloffundamentalpsychopathology/2009/vol6/no1/4.pdf
  • 7
    Rafaeli YM. Do diagnóstico diferencial à direção do tratamento. In: Pavone S, Rafaeli YM , organizadoras. Audição, voz e linguagem: a clínica e o sujeito. São Paulo: Cortez; 2005. P.130-40.
  • 8
    Vorcaro A. A clínica psicanalítica e fonoaudiológica com crianças que não falam. Disturb Comum. 2003;15(2):265-87.
  • 9
    Dunker C IL. Clínica, Linguagem e subjetividade. Disturb Comum. 2000;12(1):39-61.
  • 10
    Lemos CTG. Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. Cad Est Ling. 2002;42:41-70.
  • 11
    Brandão P, Meira AM, Molina S, Jerusalinsky A . Abordagens do imaginário na cena terapêutica em estimulação precoce. In: Centro Lydia Coriat. Psicomotricidade. 2.ed. Porto Alegre: Escuta; 1997. P. 08-21. (Escritos da criança, n.3).
  • 12
    Reis BP, Freire RM . Indicadores preliminares para a constituição do sujeito leitor/escritor. Rev Saúde Soc. 2014;23(2):592-603.
  • Fonte de auxílio: CAPES/OBEDUC

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2014
  • Aceito
    11 Out 2014
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