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Produção e discriminação do contraste de sonoridade das plosivas nos casos de desvio fonológico

Resumos

O contraste de sonoridade das plosivas representa uma complexa coordenação acústica e articulatória, muitas vezes prejudicada nos desvios fonológicos. Por esse motivo, acredita-se que esforços devem ser realizados no sentido de melhor entender os fatores que influenciam na estabilização desse contraste. Assim, o objetivo desta pesquisa foi correlacionar os dados de produção e o desempenho em um teste de discriminação do traço [+voz] em crianças com desvio fonológico. Para isso foram avaliados cinco meninos com desvio fonológico e dificuldade na produção das plosivas sonoras, entre outras dificuldades de fala. Por meio de pares de palavras inseridos em frase-veículo, observou-se a ocorrência de produção de Voice Onset Time positivo durante a produção de plosivas [+voz] e o padrão de duração das vogais adjacentes às plosivas surdas e sonoras. Elaborou-se um Teste de Discriminação de Sonoridade das Plosivas, a fim de se avaliar o desempenho dos sujeitos em relação à discriminação. O teste consiste de 12 pares de palavras, diferenciados apenas pelo contraste [+voz] e representados por figuras. Na análise descritiva, não se verificou uma relação direta entre dificuldade de produção do contraste de sonoridade das plosivas e discriminação auditiva desses segmentos, tanto na observação da produção de pré-sonoridade, quanto na observação da produção do padrão de duração das vogais. Mesmo assim, salienta-se que o emprego de uma avaliação de discriminação, bem como, de análise acústica nos casos de desvio fonológico, não devem ser desprezados pelos fonoaudiólogos, uma vez que esses instrumentos podem fornecer informações fundamentais para um bom progresso terapêutico.

Criança; Fala; Distúrbios da Fala; Acústica da fala; Espectrografia do Som; Discriminação da Fala


The voicing contrast of stops represents a complex acoustic and articulatory coordination, frequently impaired in cases of phonological disorders. Consequently, we believe that the efforts should be carried out in order to understand the factors that influence in the stabilization of that contrast. So, the purpose of this research was correlating the production data and the performance in a discrimination test of the feature [+voice] in children with phonological disorder. Then, five boys who presented phonological disorder, difficulties in the production of voiced stops and other difficulties, were evaluated. Through the pairs of words introduced in carrier phrases, we observed the occurrence of production of positive Voice Onset Time during the [+voice] stops and the duration pattern of the vowels adjacent to the voiced and voiceless stops. The authors elaborated a Stop Voicing Discrimination Test to evaluate the performance of the individuals regarding to the discrimination. The test consists of 12 pairs of words, being only different in the contrast [+voice] and it is represented by pictures. Through a descriptive analysis, no direct relation between difficulties of the production of voicing contrast of stops and auditory discrimination of this sounds was verified, both on the observation of prevoicing production, regarding the pattern production observation of the length of the vowel. Nevertheless, we emphasize that the use of a discrimination test, as well as of acoustical analysis in cases of phonological disorder, should not be ignored by the speech therapist, once those instruments can give important information to a good therapeutic progress.

Child; Speech; Speech Disorders; Speech Acoustics; Spectrography of sound; Speech Discrimination


Introdução

No Português Brasileiro (PB), a classe das plosivas é representada por seis segmentos - /p/, /b/, /t/, /d/, /k/ e /g/. Para a produção dessas obstruintes são necessários dois momentos articulatórios fundamentais, o primeiro refere-se a uma obstrução completa da passagem de ar pelos órgãos fonoarticulatórios e, o segundo, a uma brusca liberação dessa corrente aérea. Tais gestos articulatórios podem ser identificados, via espectrograma, por um intervalo de silêncio, seguido de um ruído transiente, conhecido como burst 11. Levy IP. Uma nova face da nau dos insensatos: a dificuldade de vozear obstruintes em crianças de idade escolar [tese]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências da Universidade Estadual de Campinas; 1993. .

A distinção entre plosivas surdas e sonoras é marcada acusticamente pela ausência ou presença de uma barra de sonoridade prévia ou concomitante ao burst, ou seja, por um Voice Onset Time (VOT) positivo, negativo ou nulo11. Levy IP. Uma nova face da nau dos insensatos: a dificuldade de vozear obstruintes em crianças de idade escolar [tese]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências da Universidade Estadual de Campinas; 1993.

2. Russo I, Behlau M. Percepção da fala: análise acústica. São Paulo: Lovise; 1993. As pistas acústicas das vogais e consoantes; p. 25-50.
- 33. Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Desvio fonológico e a dificuldade com a distinção do traço [voz] dos fonemas plosivos - dados de produção e percepção do contraste de sonoridade. Rev CEFAC. 2012;4(1):18-29.. Além do VOT, outras pistas acústicas também são citadas como responsáveis pelo estabelecimento do contraste de sonoridade, dentre elas, a duração da vogal adjacente à plosiva 22. Russo I, Behlau M. Percepção da fala: análise acústica. São Paulo: Lovise; 1993. As pistas acústicas das vogais e consoantes; p. 25-50. , 44. Snoerena ND, Halle PA, Seguia J. A voice for the voiceless: Production and perception of assimilated stops in French. J Phonetics. 2006;34:241-68. , 55. Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Parâmetros acústicos do contraste de sonoridade das plosivas no desenvolvimento fonológico típico e no desviante. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(3):304-12., a amplitude do burst 11. Levy IP. Uma nova face da nau dos insensatos: a dificuldade de vozear obstruintes em crianças de idade escolar [tese]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências da Universidade Estadual de Campinas; 1993. , 55. Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Parâmetros acústicos do contraste de sonoridade das plosivas no desenvolvimento fonológico típico e no desviante. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(3):304-12. , 66. Forrest K, Rockman BK. Acoustic and perceptual analysis of word-initial stop consonants in phonologically disordered children. J Speech Hear Res. 1988;3:449-59. e a duração da oclusão anterior ao burst 44. Snoerena ND, Halle PA, Seguia J. A voice for the voiceless: Production and perception of assimilated stops in French. J Phonetics. 2006;34:241-68. , 55. Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Parâmetros acústicos do contraste de sonoridade das plosivas no desenvolvimento fonológico típico e no desviante. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(3):304-12. , 77. Barroco MA, Domingues MT, Pires MF, Lousada M, Jesus LM. Análise temporal das oclusivas orais do Português Europeu: um estudo de caso de normalidade e perturbação fonológica. Rev CEFAC. 2007;9(2):154- 63..

O contraste de sonoridade das plosivas envolve, portanto, uma complexa coordenação têmporo-espacial dos gestos orais e laríngeos. Tal refinamento articulatório e acústico é uma tarefa difícil para algumas crianças com desvio fonológico 33. Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Desvio fonológico e a dificuldade com a distinção do traço [voz] dos fonemas plosivos - dados de produção e percepção do contraste de sonoridade. Rev CEFAC. 2012;4(1):18-29. , 55. Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Parâmetros acústicos do contraste de sonoridade das plosivas no desenvolvimento fonológico típico e no desviante. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(3):304-12. e, além de prejudicar a inteligibilidade de fala e a percepção do ouvinte, a instabilidade do traço [+voz] na terapia fonológica parece persistir por um longo período 11. Levy IP. Uma nova face da nau dos insensatos: a dificuldade de vozear obstruintes em crianças de idade escolar [tese]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências da Universidade Estadual de Campinas; 1993..

Quanto à percepção, é de consenso que durante os primeiros estágios da aquisição da linguagem, a percepção precede a produção. Antes das primeiras palavras ou fonemas começarem a ser produzidos, a criança já percebe e entende muito mais a fala do que ela realmente produz. Com isso, o desenvolvimento da fala está intimamente relacionado com a percepção auditiva 88. Nijland L. Speech perception in children with speech output disorders. Clin Ling Phon. 2009;23(3):222-39..

A percepção auditiva, por sua vez, pode ser subdividida em alguns componentes, como: detecção, sensação sonora, discriminação, localização, reconhecimento, compreensão, atenção e memória 22. Russo I, Behlau M. Percepção da fala: análise acústica. São Paulo: Lovise; 1993. As pistas acústicas das vogais e consoantes; p. 25-50..

Algumas pesquisas detiveram-se na percepção do ouvinte diante de características acústicas de sonoridade distintas das observadas na fala adulta, seja por meio de dados de fala em desenvolvimento, em crianças mais novas 99. Bonatto MTRL, Madureira S. Estudo sobre a percepção e a produção do contraste de vozeamento da fala de crianças de 3 anos. Rev CEFAC. 2009;11(1):67-77., ou em crianças já com o diagnóstico de desvio fonológico 33. Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Desvio fonológico e a dificuldade com a distinção do traço [voz] dos fonemas plosivos - dados de produção e percepção do contraste de sonoridade. Rev CEFAC. 2012;4(1):18-29.. Já outros estudos 11. Levy IP. Uma nova face da nau dos insensatos: a dificuldade de vozear obstruintes em crianças de idade escolar [tese]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências da Universidade Estadual de Campinas; 1993. , 22. Russo I, Behlau M. Percepção da fala: análise acústica. São Paulo: Lovise; 1993. As pistas acústicas das vogais e consoantes; p. 25-50. , 1010. Tyler AA, Figurski GR, Langsdale T. Relationships between acoustically determined knowledge of stop place and voicing contrasts and phonological treatment progress. J Speech Hear Res. 1993;36:746-59. , 1111. Souza APR, Scott LC, Mezzomo CL, Dias RF, Giacchini V. Avaliações acústica e perceptiva de fala nos processos de dessonorização de obstruintes. Rev CEFAC. 2011;13(6):1127-32., dedicaram-se especificamente à investigação da discriminação auditiva em crianças com dificuldades no estabelecimento do contraste de sonoridade das plosivas. A maioria dos resultados apresentados sugere uma adequada percepção nesses casos, nas quais as crianças parecem distinguir adequadamente o contraste de sons que elas não produzem corretamente. Alguns desses autores referiram ainda, que dificuldades em ambos os níveis, perceptivo e de produção, podem prejudicar a progressão do tratamento fonoaudiológico 1010. Tyler AA, Figurski GR, Langsdale T. Relationships between acoustically determined knowledge of stop place and voicing contrasts and phonological treatment progress. J Speech Hear Res. 1993;36:746-59..

Todavia, acredita-se que muitas lacunas ainda existam no entendimento dessa relação. A persistência de uma dificuldade na estabilização do contraste [+voz] é uma situação recorrente que os fonoaudiólogos têm se deparado. Em razão disso, acredita-se que esforços devem ser realizados no sentido de melhor entender os fatores que influenciam na estabilização desse contraste. Com esse anseio, a presente pesquisa aborda um método instrumental de análise da produção da fala (análise acústica), relacionando-o com dados de discriminação desse contraste.

Diante do exposto, o objetivo deste estudo é correlacionar os dados de produção (VOT e duração da vogal adjacente à plosiva) e discriminação do contraste de sonoridade dos fones plosivos em crianças com desvio fonológico.

Apresentação do caso clínico

O presente estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de origem em que foi desenvolvido, sob o número 23081.008886/2009-29. O mesmo foi realizado em uma clínica escola vinculada a uma instituição de ensino superior e ao Sistema Único de Saúde (SUS) e, em duas escolas da rede pública estadual da mesma cidade.

Amostra do estudo

Foram considerados os dados de fala de cinco meninos com idades entre cinco anos e quatro meses e sete anos e nove meses (média de idade= sete anos; desvio padrão = 11.8 meses), com diagnóstico de desvio fonológico e dificuldade na produção das plosivas sonoras, entre outras dificuldades de fala.

Para que as crianças fossem incluídas na pesquisa adotaram-se os seguintes critérios: possuir autorização para participar da pesquisa por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; ter idades entre quatro e oito anos e onze meses; não ter recebido terapia fonológica prévia; ser falante nativo do PB; não apresentar histórico de bilinguismo e possuir diagnóstico de desvio fonológico, com porcentagem de produção correta das plosivas sonoras de até 39% (sendo dessonorizadas em porcentagem maior ou igual a 40%), já as plosivas surdas deveriam estar adquiridas no sistema fonológico. Tal critério foi adotado segundo a proposta de outro estudo 1212. Bernhardt B. Developmental implications of nonlinear phonological theory. Clin Ling Phon. 1992;6(4):259-81., o qual sugere que um fonema é considerado adquirido quando sua ocorrência for de 80% a 100%; parcialmente adquirido, quando a ocorrência for de 40% a 79%; e, não adquirido, quando sua ocorrência for igual ou inferior a 39%.

Quanto aos critérios de exclusão, considerou-se: a presença de alterações vocais, auditivas, de linguagem, prejuízos evidentes nos aspectos neurológico, cognitivo, psicológico e/ou emocional e alterações nos órgãos fonoarticulatórios que estivessem relacionadas com o sistema fonológico.

Para seleção da amostra foi realizada uma triagem fonoaudiológica, composta por: (a) entrevista inicial realizada com os pais e/ou responsáveis; (b) avaliação do sistema estomatognático, com ênfase na observação do aspecto, postura, tensão muscular e mobilidade dos órgãos fonoarticulatórios (língua, lábios, bochechas, oclusão dentária e aspecto do palato mole e palato duro) e funções (respiração, fonoarticulação, mastigação e deglutição); (c) avaliação da linguagem, fala e voz, por meio de fala espontânea eliciada por meio de uma sequência lógica de quatro fatos. E ainda, foi realizada triagem auditiva, com a pesquisa dos limiares auditivos por via aérea de 500 a 4000 Hz, testados a 20 dB NA (modo de varredura). O audiômetro utilizado foi Interacoustics Screening Audiometer AS208, devidamente calibrado e respeitando-se os cuidados com o ruído do ambiente. Por fim, realizou-se a Avaliação Fonológica da Criança (AFC) 1313. Yavas M, Hernandorena CLM, Lamprecht RR. Avaliação fonológica da criança: reeducação e terapia. Porto Alegre: Artes Médicas; 1991..

Análise acústica

Para a obtenção dos dados submetidos à análise acústica, foi elaborada uma lista de palavras de mesmo contexto linguístico (dissílabas, paroxítonas e em contexto da vogal /a/), contendo o contraste [+voz] dos seis fonemas plosivos do PB (['papa], ['baba], ['tata], ['dada], ['kaka] e ['gaga]). As palavras foram inseridas em frase veículo ("Fala _____ de novo").

Os estímulos contendo as frases veículos foram apresentados aleatoriamente utilizando-se fones de ouvido (marca Sennheiser HD280 PRO) e, as crianças foram orientadas a repetir em qualidade vocal habitual toda a frase ouvida. Desse modo, um total de 180 produções foram analisadas (duas gravações x três repetições x seis plosivas x cinco crianças = 180 produções).

Os instrumentos utilizados para a gravação dos dados foram: uma cabine acústica; um microfone omnidirecional (marca Behringer EMC8000), posicionado em um pedestal, a aproximadamente quatro centímetros da boca do sujeito; e, uma placa de som externa (marca M-AUDIO, modelo FW 410) conectada a um computador portátil. As gravações foram realizadas diretamente no software MATLAB V7.1 SP3 (Simulink Signal Processing Toolbox V6.4), em arquivo Wave e alta resolução (24 bits e 96 KHz).

Na sequência, os registros de fala foram analisados no software de áudio processamento Praat - versão 5.1.29 (disponível em www.praat.org), com taxa de amostragem de 96 KHz e 16 bits. Por meio da espectrografia procurou-se a produção de pré-sonoridade, ou seja, a medida de VOT (se negativo), durante a produção de plosivas [+voz] e, mediu-se a duração das vogais no contexto de plosivas [+voz] versus [-voz].

A porcentagem de produção de pré-sonoridade foi calculada a partir do número de vezes que a barra de sonoridade prévia ao burst foi observada, dividida pelo número total de plosivas [+voz] produzidas, multiplicada por 100.

Para medir a duração da vogal em milissegundos (ms), adotou-se o critério do primeiro e do último ciclo regular adjacente à plosiva para determinar os limites de cada segmento vocálico. Após, comparou-se a primeira medida de duração da vogal no contexto da plosiva [-voz] com a primeira medida de duração da vogal no contexto da plosiva [+voz], e assim por diante, entre as outras cinco repetições de cada palavra-alvo. Desse modo, contrastou-se a duração da vogal nos contextos [p] versus [b], [t] versus [d] e [k] versus [g]. Tal comparação foi realizada a fim de se observar se a duração da vogal no contexto de plosivas sonoras apresentava-se mais longa, conforme padrão descrito na literatura 22. Russo I, Behlau M. Percepção da fala: análise acústica. São Paulo: Lovise; 1993. As pistas acústicas das vogais e consoantes; p. 25-50. , 44. Snoerena ND, Halle PA, Seguia J. A voice for the voiceless: Production and perception of assimilated stops in French. J Phonetics. 2006;34:241-68. , 55. Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Parâmetros acústicos do contraste de sonoridade das plosivas no desenvolvimento fonológico típico e no desviante. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(3):304-12.. Por fim, calculou-se a porcentagem de ocorrência que esse padrão ocorreu.

Teste de discriminação de sonoridade das plosivas (TDSP)

Para a investigação do desempenho dos sujeitos em uma tarefa de discriminação do contraste [+voz] das seis consoantes plosivas do PB, elaborou-se o "Teste de discriminação de sonoridade das plosivas (TDSP)", com base no "Teste de figuras para discriminação fonêmica" 1414. Santos-Carvalho B, Mota HB, Keske-Soares M. Teste de figuras para discriminação fonêmica: uma proposta. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2008;13(3):207-17., já que este último dispunha de poucos pares-mínimos contrastando plosivas surdas e sonoras, foco do presente estudo.

Para elaboração do teste, inicialmente, foram incluídos os três contrastes de sonoridade possíveis em plosivas no PB, ou seja, /p/ versus /b/; /t/ versus /d/; /k/ versus /g/. Foram então selecionados dois pares mínimos para cada posição na palavra, onset inicial e onset medial. Assim, obteve-se 12 pares de palavras, englobando todos os fonemas plosivos e pertencentes ao vocabulário da criança (conforme Figura 1).

Figura 1:
Protocolo de apresentação do Teste de discriminação de sonoridade das plosivas (TDSP)

Também foram selecionados dois pares de palavras, bastante conhecidos pela criança, que serviram como itens de demonstração do teste, a fim de que se obtivesse maior entendimento das ordens do mesmo (conforme exposto na Figura 1).

Optou-se por selecionar palavras frequentemente presentes no vocabulário infantil, na faixa etária das crianças que fizeram parte do estudo e, ainda, palavras que fossem facilmente representáveis por meio de figuras. Porém, com relação a alguns pares de palavras selecionados, tais critérios não puderam ser fielmente seguidos, devido à imensa dificuldade de serem selecionados pares mínimos referentes às oposições estudadas. Esse fato ocorreu nos casos de: tope x Toby (cachorro); tênis x Denis (menino); tourada x dourada; anta x anda; vaca x vaga; Leco (urso) x lego.

Após, foi contratado um profissional das artes visuais para elaboração das ilustrações, sendo exigida a maior proximidade do desenho com a realidade. Cada par mínimo foi então representado por figuras dispostas em três colunas, conforme exemplo exposto na Figura 2. Caso algum pesquisador manifeste interesse no instrumento completo desta pesquisa, o mesmo pode entrar em contato com os autores do presente trabalho.

Figura 2:
Exemplo de cartela de figura utilizada no Teste de discriminação de sonoridade das plosivas (TDSP) - Pingo x Bingo

O teste ficou composto de 12 cartelas ilustradas (Figura 2), um Protocolo de Apresentação (Figura 1) e um Protocolo de Respostas (Figura 3). Cada cartela foi composta por três colunas, na primeira foi disponibilizada duas vezes a figura que ilustra a primeira palavra, na segunda, duas vezes a figura que ilustra a segunda palavra e, na terceira, continha as figuras que ilustram a primeira e a segunda palavra concomitantemente. A disposição das colunas não ocorreu necessariamente nessa ordem, para que não fosse induzido um padrão de resposta.

Figura 3:
Protocolo de respostas do Teste de discriminação de sonoridade das plosivas (TDSP)

Quanto ao procedimento do TDSP, inicialmente, foi explicado às crianças "o que seria realizado" e "como seria realizado". Na sequência, primeiramente eram apresentados os itens de demonstração e, depois, os pares mínimos analisados. A criança ouviu por meio de fones de ouvido o estímulo do teste previamente gravado por um sujeito do sexo feminino - "mostre pingo e bingo" e a mesma deveria apontar para a coluna correspondente.

Nove ordens do teste apresentavam duas palavras diferentes e, outras três ordens, duas palavras iguais, assinaladas por dois asteriscos (**) no Protocolo de respostas do TDSP. Esse procedimento foi selecionado com o intuito de que a criança atentasse aos estímulos do teste e também para que não fosse induzido um padrão de respostas.

Apesar do estímulo do teste ter sido fornecido utilizando-se fones de ouvido, a pesquisadora deveria estar bastante atenta para não fornecer às crianças pistas linguísticas e/ou visuais, permitindo, dessa forma, que essas se guiassem única e exclusivamente por meio do estímulo auditivo.

Com relação à pontuação do TDSP, somou-se um ponto para cada resposta correta e zero para respostas incorretas ou que necessitaram da ajuda do examinador. Assim, a soma total poderia ser de 12 pontos.

Análise dos dados

Após coleta transversal, os dados de produção e discriminação dos fonemas plosivos foram analisados por meio de análise descritiva.

Resultados

Quanto à produção de pré-sonoridade das plosivas sonoras, apenas uma criança da amostra apresentou VOT negativo durante a produção dessas plosivas. Por outro lado, observou-se um maior emprego de outra pista acústica, duração da vogal adjacente à plosiva, entre todas as crianças da amostra.

Com relação ao desempenho no TDSP, as crianças do estudo obtiveram média de acertos de 70%, com mediana igual a 75%. Sendo que a porcentagem de acertos no teste oscilou entre 33.33% e 91.67%.

Na Tabela 1, são apresentados os resultados para todas as variáveis do estudo, por sujeito.

Tabela 1:
Apresentação das variáveis do estudo por sujeito - porcentagem de produção de pré-sonoridade; porcentagem de produção de vogal longa no contexto de plosiva [+voz] e porcentagem de acertos no Teste de discriminação das plosivas (TDSP)

Ao confrontar a porcentagem de produção de pré-sonoridade e a porcentagem de acertos no TDSP de cada criança, não é possível evidenciar uma relação positiva entre a percepção e produção do traço [voz], uma vez que, pode-se perceber por meio dos dados da única criança que apresentou indícios de produção de VOT negativo, que a mesma obteve 58.33% de acertos no teste, ou seja, porcentagem menor da evidenciada para algumas crianças da amostra que mostraram ausência da barra de sonoridade para todas as plosivas sonoras.

Ao serem analisadas conjuntamente, a porcentagem de produção de vogal longa no contexto de plosiva [+voz] e o resultado no TDSP, também parecem não trazer indícios de uma relação entre produção e percepção na amostra estudada. Pode-se fazer essa afirmação, visto que para algumas crianças a porcentagem de produção do padrão de duração esperado para as vogais foi maior do que a porcentagem de acertos no teste de discriminação e, para outras, o inverso também se fez verdadeiro.

Ainda, com o intuito de observar se os pares mínimos do TDSP tiveram influência no desempenho das crianças no teste, contabilizou-se para cada par-mínimo o total de erros da amostra. Observou-se que o número máximo de erros por par, foi de três respostas incorretas referentes ao par "tope x Toby" e nenhuma para o par "tourada x dourada" (Figura 4).

Figura 4:
Total de erros, por pares mínimos, no Teste de Discriminação da Sonoridade das Plosivas (TDSP)

Discussão

A introdução da espectrografia acústica na interpretação dos dados de crianças com desvio fonológico, cada vez mais tem se firmado como um instrumento viável e imprescindível durante a avaliação fonoaudiológica 11. Levy IP. Uma nova face da nau dos insensatos: a dificuldade de vozear obstruintes em crianças de idade escolar [tese]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências da Universidade Estadual de Campinas; 1993.

2. Russo I, Behlau M. Percepção da fala: análise acústica. São Paulo: Lovise; 1993. As pistas acústicas das vogais e consoantes; p. 25-50.

3. Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Desvio fonológico e a dificuldade com a distinção do traço [voz] dos fonemas plosivos - dados de produção e percepção do contraste de sonoridade. Rev CEFAC. 2012;4(1):18-29.

4. Snoerena ND, Halle PA, Seguia J. A voice for the voiceless: Production and perception of assimilated stops in French. J Phonetics. 2006;34:241-68.

5. Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Parâmetros acústicos do contraste de sonoridade das plosivas no desenvolvimento fonológico típico e no desviante. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(3):304-12.

6. Forrest K, Rockman BK. Acoustic and perceptual analysis of word-initial stop consonants in phonologically disordered children. J Speech Hear Res. 1988;3:449-59.
- 77. Barroco MA, Domingues MT, Pires MF, Lousada M, Jesus LM. Análise temporal das oclusivas orais do Português Europeu: um estudo de caso de normalidade e perturbação fonológica. Rev CEFAC. 2007;9(2):154- 63. , 1010. Tyler AA, Figurski GR, Langsdale T. Relationships between acoustically determined knowledge of stop place and voicing contrasts and phonological treatment progress. J Speech Hear Res. 1993;36:746-59. , 1111. Souza APR, Scott LC, Mezzomo CL, Dias RF, Giacchini V. Avaliações acústica e perceptiva de fala nos processos de dessonorização de obstruintes. Rev CEFAC. 2011;13(6):1127-32. , 1515. Berti LC. Contrastes e contrastes encobertos na produção da fala de crianças. Pró-Fono R Atual Cient. 2010;22(4):531-6.

16. Berti LC. Produção e Percepção da fala em crianças com distúrbios fonológicos: a ancoragem em pistas fonético-acústicas secundárias. In: Ferreira-Gonçalves G, Brum-de-Paula M, Keske-Soares M (edts). Estudos em Aquisição Fonológica. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária PREC - UFPel; 2011, p.153-74.

17. Freitas MC. O gesto fônico na aquisição "desviante": movimentos entre a produção e a percepção [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem; 2012.
- 1818. Rinaldi L, Albano E. Contrastes em estabilização em crianças sem queixas fonoaudiológicas. Verba Volant. 2012;3(1):1-23.. A observação de tentativas da produção correta dos sons, verificadas via espectrograma e, as quais não foram anteriormente identificadas por meio de análise perceptivo auditiva, já foi relatada e confirmada por muitos estudos da área 11. Levy IP. Uma nova face da nau dos insensatos: a dificuldade de vozear obstruintes em crianças de idade escolar [tese]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências da Universidade Estadual de Campinas; 1993. , 55. Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Parâmetros acústicos do contraste de sonoridade das plosivas no desenvolvimento fonológico típico e no desviante. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(3):304-12. , 66. Forrest K, Rockman BK. Acoustic and perceptual analysis of word-initial stop consonants in phonologically disordered children. J Speech Hear Res. 1988;3:449-59. , 1010. Tyler AA, Figurski GR, Langsdale T. Relationships between acoustically determined knowledge of stop place and voicing contrasts and phonological treatment progress. J Speech Hear Res. 1993;36:746-59. , 1111. Souza APR, Scott LC, Mezzomo CL, Dias RF, Giacchini V. Avaliações acústica e perceptiva de fala nos processos de dessonorização de obstruintes. Rev CEFAC. 2011;13(6):1127-32. , 1515. Berti LC. Contrastes e contrastes encobertos na produção da fala de crianças. Pró-Fono R Atual Cient. 2010;22(4):531-6.

16. Berti LC. Produção e Percepção da fala em crianças com distúrbios fonológicos: a ancoragem em pistas fonético-acústicas secundárias. In: Ferreira-Gonçalves G, Brum-de-Paula M, Keske-Soares M (edts). Estudos em Aquisição Fonológica. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária PREC - UFPel; 2011, p.153-74.

17. Freitas MC. O gesto fônico na aquisição "desviante": movimentos entre a produção e a percepção [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem; 2012.
- 1818. Rinaldi L, Albano E. Contrastes em estabilização em crianças sem queixas fonoaudiológicas. Verba Volant. 2012;3(1):1-23..

Uma pesquisa 55. Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Parâmetros acústicos do contraste de sonoridade das plosivas no desenvolvimento fonológico típico e no desviante. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(3):304-12. que também investigou o contraste de sonoridade dos fones plosivos, verificou que um grupo de crianças com desvio fonológico e com dificuldade na estabilização do traço [+voz], não distinguiu acusticamente o contraste - surda x sonora. Entretanto, mesmo que as crianças com desvio fonológico não tenham apresentado uma diferenciação da sonoridade por meio dos parâmetros acústicos investigados (VOT, duração da vogal, duração da oclusão e amplitude do burst), essas demonstraram uma tendência em se ancorarem em pistas menos robustas durante a tentativa de implementação desse contraste. Nesse caso, utilizando-se da pista de duração da vogal adjacente à plosiva e de amplitude do burst.

No presente estudo, também foi possível observar que a produção de um VOT negativo para as plosivas [+voz] parece ser uma pista acústica bastante complexa e pouco empregada por crianças que ainda não estabilizaram o contraste de sonoridade no seu sistema. O que pode ser confirmado pela porcentagem de pré-sonoridade, uma vez que somente uma das crianças avaliadas, apresentou a produção de barra de sonoridade prévia ao burst, confirmando a exigência de uma complexa coordenação temporal entre eventos glóticos (a vibração das pregas vocais) e supra-glóticos (os gestos orais), o que fora corroborado em outro estudo 33. Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Desvio fonológico e a dificuldade com a distinção do traço [voz] dos fonemas plosivos - dados de produção e percepção do contraste de sonoridade. Rev CEFAC. 2012;4(1):18-29..

Já quanto à presença de vogais mais longas no contexto de plosivas sonoras, observou-se que apesar de não ser em todas as ocorrências das palavras analisadas, essa pista acústica foi empregada na fala de todas as crianças avaliadas, concordando com a pesquisa citada anteriormente 55. Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Parâmetros acústicos do contraste de sonoridade das plosivas no desenvolvimento fonológico típico e no desviante. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(3):304-12..

O fato anteriormente discutido também confirma a existência de pistas redundantes e secundárias na identificação dos fones plosivos 22. Russo I, Behlau M. Percepção da fala: análise acústica. São Paulo: Lovise; 1993. As pistas acústicas das vogais e consoantes; p. 25-50. , 33. Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Desvio fonológico e a dificuldade com a distinção do traço [voz] dos fonemas plosivos - dados de produção e percepção do contraste de sonoridade. Rev CEFAC. 2012;4(1):18-29. , 66. Forrest K, Rockman BK. Acoustic and perceptual analysis of word-initial stop consonants in phonologically disordered children. J Speech Hear Res. 1988;3:449-59., de modo que, mesmo utilizando alguns parâmetros acústicos distintos entre plosivas [+voz], a análise perceptivo auditiva realizada para a inclusão dos sujeitos na pesquisa, identificou menos de 40% de ocorrência de plosivas sonoras nos sistemas das crianças avaliadas. Com isso, salienta-se que a presença de um conhecimento mais refinado na descrição da fala, identificado pela espectrografia acústica, não pode ser negligenciado. Tal fato parece ser comprovado em outra perspectiva teórica por meio dos chamados contrastes encobertos 1515. Berti LC. Contrastes e contrastes encobertos na produção da fala de crianças. Pró-Fono R Atual Cient. 2010;22(4):531-6.

16. Berti LC. Produção e Percepção da fala em crianças com distúrbios fonológicos: a ancoragem em pistas fonético-acústicas secundárias. In: Ferreira-Gonçalves G, Brum-de-Paula M, Keske-Soares M (edts). Estudos em Aquisição Fonológica. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária PREC - UFPel; 2011, p.153-74.

17. Freitas MC. O gesto fônico na aquisição "desviante": movimentos entre a produção e a percepção [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem; 2012.

18. Rinaldi L, Albano E. Contrastes em estabilização em crianças sem queixas fonoaudiológicas. Verba Volant. 2012;3(1):1-23.
- 1919. Munson B, Edwards J, Schellinger S, Beckman ME, Meyer MK. Deconstructing phonetic transcription: covert contrast, perceptual bias, and an extraterrestrial view of vox humana. Clin Linguist Phon. 2010;24(4-5):245-60..

Quanto à discriminação do contraste de sonoridade, observou-se nesta pesquisa que somente uma das crianças avaliadas apresentou um baixo desempenho no TDSP, com porcentagem de acertos inferior a 50%.

Esse resultado diverge de outro trabalho2020. Santos-Carvalho B, Mota HB, Keske-Soares M, Attoni TM. Habilidades de discriminação auditiva em crianças com desvios fonológicos evolutivos. Pró-Fono R Atual Cient. 2010;22(1):311-6., que investigou a discriminação fonêmica de todos os fonemas do PB, também em crianças com desvio fonológico. Esses autores sugeriram ainda, uma possível relação causal entre uma inabilidade de discriminação auditiva e o desvio fonológico que, no entanto, não se aplicou a todos os casos por eles avaliados. Tal relação também foi mencionada por outra autora 88. Nijland L. Speech perception in children with speech output disorders. Clin Ling Phon. 2009;23(3):222-39..

Contudo, parece haver uma divergência na literatura quanto à associação de déficits de produção e de discriminação auditiva. Em outro estudo 1111. Souza APR, Scott LC, Mezzomo CL, Dias RF, Giacchini V. Avaliações acústica e perceptiva de fala nos processos de dessonorização de obstruintes. Rev CEFAC. 2011;13(6):1127-32., por exemplo, não foi verificada uma relação entre percepção e produção do traço de sonoridade. As crianças com fala desviante apresentaram um maior número de acertos com referência às consoantes plosivas, entretanto, produziam de forma mais precisa as consoantes fricativas.

Corroborando em partes ao estudo citado acima, a presente pesquisa também parece não evidenciar uma relação direta entre a discriminação e a produção do traço [+voz], na medida em que quatro das cinco crianças avaliadas apresentaram resultados favoráveis no TDSP. Porém, apenas uma delas apresentou vibração das pregas vocais para a produção de algumas plosivas sonoras e, todas as crianças avaliadas empregaram a pista acústica de duração da vogal, mesmo que não em 100% das ocorrências.

Uma discrepância entre tarefas perceptivas e de produção dos sons fala, também foi descrita na literatura para crianças com alterações articulatórias 2121. McGregor KK, Schwartz RG. Converging evidence for underlying phonological representation in a child who misarticulates. J Speech Hear Res. 1992;35:596-600. e desvio fonológico 11. Levy IP. Uma nova face da nau dos insensatos: a dificuldade de vozear obstruintes em crianças de idade escolar [tese]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências da Universidade Estadual de Campinas; 1993. , 1010. Tyler AA, Figurski GR, Langsdale T. Relationships between acoustically determined knowledge of stop place and voicing contrasts and phonological treatment progress. J Speech Hear Res. 1993;36:746-59. , 1111. Souza APR, Scott LC, Mezzomo CL, Dias RF, Giacchini V. Avaliações acústica e perceptiva de fala nos processos de dessonorização de obstruintes. Rev CEFAC. 2011;13(6):1127-32.. Um modelo teórico capaz de acomodar as diferenças entre os níveis de percepção e produção é o Modelo de Dois Léxicos, esse propõe a existência de um léxico de input (utilizado para o reconhecimento das palavras) e um léxico de output (utilizado para a produção das palavras). Uma falha na ligação entre esses dois léxicos resultaria em déficits em um ou em outro nível 2121. McGregor KK, Schwartz RG. Converging evidence for underlying phonological representation in a child who misarticulates. J Speech Hear Res. 1992;35:596-600..

Em outra pesquisa 1919. Munson B, Edwards J, Schellinger S, Beckman ME, Meyer MK. Deconstructing phonetic transcription: covert contrast, perceptual bias, and an extraterrestrial view of vox humana. Clin Linguist Phon. 2010;24(4-5):245-60. é salientada ainda, uma possível influência de outros fatores no desempenho perceptual, dentre eles: particularidades da língua, conceitos culturais pré-estabelecidos, tipo de tarefa perceptiva, entre outros. Com isso, a informação auditiva isoladamente não seria a única base do julgamento perceptivo de um som.

Quanto ao tipo de tarefa perceptiva, outra autora destaca 1616. Berti LC. Produção e Percepção da fala em crianças com distúrbios fonológicos: a ancoragem em pistas fonético-acústicas secundárias. In: Ferreira-Gonçalves G, Brum-de-Paula M, Keske-Soares M (edts). Estudos em Aquisição Fonológica. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária PREC - UFPel; 2011, p.153-74. a partir de seus achados, que crianças com desvio fonológico apresentaram uma dificuldade em identificar contrastes a partir de estímulos categóricos típicos, divergindo dos resultados de alguns sujeitos avaliados no presente estudo. Entretanto, quando diante de seus próprios estímulos gradientes (ou seja, com a presença de contrastes encobertos, em construção), sua percepção tende a ser mais acentuada, podendo, essas crianças, se ancorarem em pistas acústico-auditivas não padrão (ou secundárias) em ambos os níveis, de produção e de percepção.

Apesar de os dados aqui expostos não terem evidenciado uma relação de causa-efeito entre percepção e produção do contraste de sonoridade, considera-se importante a realização de avaliações de discriminação e a inclusão de estratégias que possibilitem a criança com desvio fonológico, estabelecer a ligação entre a discriminação fonêmica e os aspectos de produção da fala. Uma vez que, a partir da percepção do distanciamento entre suas produções das produções do adulto, a criança inicia o movimento de abandonar o padrão estável em sua fala para se aventurar em novas tentativas. Portanto, esse é um período facilitador, cabendo ao terapeuta fornecer as pistas e meios adequados para favorecer a aproximação ao padrão da língua 1717. Freitas MC. O gesto fônico na aquisição "desviante": movimentos entre a produção e a percepção [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem; 2012..

Esse fato pode ser reforçado por outro estudo 2222. Wolfe V, Presley C, Mesaris J. The importance of sound identification training in phonological intervention. Am J Speech Lang Pathol. 2003;12:282-8., o qual refere que a presença de resultados positivos quanto à discriminação fonêmica de determinados sons, pode favorecer uma maior progressão da terapia, fornecendo considerações importantes para a seleção dos sons-alvos, assim como, para o tipo de tratamento a ser adotado. Além disso, a inserção de treinamento perceptivo concomitante a terapia fonológica, é capaz de propiciar melhorias, tanto na discriminação fonêmica, como nos padrões de fala2323. Rvachew S, Nowak M, Cloutier G. Effect of phonemic perception training on the speech production and phonological awareness skills of children with expressive phonological delay. Am J Speech Lang Pathol. 2004;13:250-63..

Com relação ao instrumento empregado no presente estudo, investigou-se ainda, uma possível influência dos pares-mínimos do TDSP no desempenho das crianças avaliadas.

Observou-se que o par mínimo que apresentou maiores erros na discriminação de plosivas [+voz], foi "tope x Toby". Dessa forma, pode-se inferir que o fato de convencionar com a criança, que a figura do cachorro referia-se ao "Toby", não tenha sido uma boa alternativa para avaliar a discriminação fonêmica, em razão de influências lexicais. Todavia, o par que não apresentou erro no teste foi "tourada x dourada", palavras às quais se acredita não serem muito frequentes no vocabulário infantil.

Portanto, com o objetivo de romper algumas dificuldades durante a seleção dos pares mínimos, como - palavras não frequentes no vocabulário infantil e dificilmente representáveis por meio de figuras - optou-se por apresentá-las antes da realização do TDSP, com o objetivo posterior de avaliar, exclusivamente, a discriminação do contraste de sonoridade dos fones plosivos, eliminando possíveis dificuldades do léxico.

A fim de contribuir para novos estudos, sugere-se o aumento da amostra desta pesquisa, o qual não foi possível em detrimento da necessidade de se considerar critérios rígidos de inclusão. Além disso, sugere-se a inclusão de outros pares-mínimos que enfoquem o contraste de sonoridade nos demais fones do PB, no caso, fricativas e africadas, bem como, a aplicação do TDSP a outras amostras, como falantes bilíngues, com alteração de linguagem, dispráxicos, entre outros.

Considerações Finais

Os resultados aqui apresentados não apontam para uma relação direta entre dificuldade de produção do contraste de sonoridade das plosivas e discriminação auditiva desses segmentos, tanto na observação da produção de VOT negativo, quanto na observação da produção do padrão de duração das vogais.

Desse modo, na amostra estudada, a dificuldade na estabilização na produção do contraste [+voz] parece não estar relacionada com uma dificuldade no nível perceptivo, mais especificamente, no nível da discriminação fonêmica desses sons.

Todavia, mesmo que essa relação não tenha sido encontrada, salienta-se que o emprego de uma avaliação de discriminação fonêmica, bem como, a realização de análise acústica nos casos de desvio fonológico, não devem ser desprezadas pelos fonoaudiólogos. Os resultados dessas avaliações podem apontar para uma necessidade de intervenção terapêutica nesse âmbito, ou então, indicar um maior conhecimento fonológico de algumas crianças com desvio fonológico, o qual poderia contribuir para um sucesso terapêutico mais imediato e, assim, contribuir para um melhor prognóstico.

Agradecimentos

Às crianças e seus responsáveis pela disponibilidade de participação na pesquisa. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão de bolsa de doutorado da primeira autora.

  • 1
    Levy IP. Uma nova face da nau dos insensatos: a dificuldade de vozear obstruintes em crianças de idade escolar [tese]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências da Universidade Estadual de Campinas; 1993.
  • 2
    Russo I, Behlau M. Percepção da fala: análise acústica. São Paulo: Lovise; 1993. As pistas acústicas das vogais e consoantes; p. 25-50.
  • 3
    Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Desvio fonológico e a dificuldade com a distinção do traço [voz] dos fonemas plosivos - dados de produção e percepção do contraste de sonoridade. Rev CEFAC. 2012;4(1):18-29.
  • 4
    Snoerena ND, Halle PA, Seguia J. A voice for the voiceless: Production and perception of assimilated stops in French. J Phonetics. 2006;34:241-68.
  • 5
    Melo RM, Mota HB, Mezzomo CL, Brasil BC, Lovatto L, Arzeno L. Parâmetros acústicos do contraste de sonoridade das plosivas no desenvolvimento fonológico típico e no desviante. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(3):304-12.
  • 6
    Forrest K, Rockman BK. Acoustic and perceptual analysis of word-initial stop consonants in phonologically disordered children. J Speech Hear Res. 1988;3:449-59.
  • 7
    Barroco MA, Domingues MT, Pires MF, Lousada M, Jesus LM. Análise temporal das oclusivas orais do Português Europeu: um estudo de caso de normalidade e perturbação fonológica. Rev CEFAC. 2007;9(2):154- 63.
  • 8
    Nijland L. Speech perception in children with speech output disorders. Clin Ling Phon. 2009;23(3):222-39.
  • 9
    Bonatto MTRL, Madureira S. Estudo sobre a percepção e a produção do contraste de vozeamento da fala de crianças de 3 anos. Rev CEFAC. 2009;11(1):67-77.
  • 10
    Tyler AA, Figurski GR, Langsdale T. Relationships between acoustically determined knowledge of stop place and voicing contrasts and phonological treatment progress. J Speech Hear Res. 1993;36:746-59.
  • 11
    Souza APR, Scott LC, Mezzomo CL, Dias RF, Giacchini V. Avaliações acústica e perceptiva de fala nos processos de dessonorização de obstruintes. Rev CEFAC. 2011;13(6):1127-32.
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  • 13
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  • 14
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  • 15
    Berti LC. Contrastes e contrastes encobertos na produção da fala de crianças. Pró-Fono R Atual Cient. 2010;22(4):531-6.
  • 16
    Berti LC. Produção e Percepção da fala em crianças com distúrbios fonológicos: a ancoragem em pistas fonético-acústicas secundárias. In: Ferreira-Gonçalves G, Brum-de-Paula M, Keske-Soares M (edts). Estudos em Aquisição Fonológica. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária PREC - UFPel; 2011, p.153-74.
  • 17
    Freitas MC. O gesto fônico na aquisição "desviante": movimentos entre a produção e a percepção [tese]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem; 2012.
  • 18
    Rinaldi L, Albano E. Contrastes em estabilização em crianças sem queixas fonoaudiológicas. Verba Volant. 2012;3(1):1-23.
  • 19
    Munson B, Edwards J, Schellinger S, Beckman ME, Meyer MK. Deconstructing phonetic transcription: covert contrast, perceptual bias, and an extraterrestrial view of vox humana. Clin Linguist Phon. 2010;24(4-5):245-60.
  • 20
    Santos-Carvalho B, Mota HB, Keske-Soares M, Attoni TM. Habilidades de discriminação auditiva em crianças com desvios fonológicos evolutivos. Pró-Fono R Atual Cient. 2010;22(1):311-6.
  • 21
    McGregor KK, Schwartz RG. Converging evidence for underlying phonological representation in a child who misarticulates. J Speech Hear Res. 1992;35:596-600.
  • 22
    Wolfe V, Presley C, Mesaris J. The importance of sound identification training in phonological intervention. Am J Speech Lang Pathol. 2003;12:282-8.
  • 23
    Rvachew S, Nowak M, Cloutier G. Effect of phonemic perception training on the speech production and phonological awareness skills of children with expressive phonological delay. Am J Speech Lang Pathol. 2004;13:250-63.
  • Fonte de auxílio: FAPERGS/CAPES (Bolsa de Doutorado).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2013
  • Aceito
    15 Maio 2013
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