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Grupo para sujeitos com queixas de dificuldades de leitura e escrita: aspectos teórico-metodológicos

RESUMO:

Objetivo:

apresentar, em conformidade à teoria enunciativo-discursiva, os pressupostos teórico-metodológicos que sustentam a terapia fonoaudiológica em grupo voltada ao desenvolvimento de competências em linguagem escrita e analisar sua eficácia.

Métodos:

apresentam-se neste artigo os critérios teórico-metodológicos relacionados à formação do grupo e à terapia centrada na noção bakhtiniana de gêneros do discurso. A fim de ilustrar os procedimentos, são analisados episódios dialógicos gerados em sessões terapêuticas destinadas a cinco adolescentes com queixas de dificuldades de leitura e de escrita, alunos entre 11 e 13 anos de idade da rede pública de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.

Resultados:

os resultados levam a entender que a prática embasada na perspectiva enunciativo-discursiva possibilita aos sujeitos se apropriarem da linguagem escrita em seus aspectos discursivos, formais e textuais. Adicionalmente, a constituição do grupo proporciona, além das trocas de conhecimentos, um sentimento de pertença que eleva a autoestima, favorecendo os processos de aprendizagem.

Conclusão:

este trabalho evidencia os ganhos do atendimento em grupo na perspectiva teórica assumida. Os sujeitos, que no início do atendimento fonoaudiológico rejeitavam as atividades de leitura e escrita, na medida em que participavam de práticas sociais de linguagem, foram ressignificando a queixa da dificuldade, constituindo-se, gradativamente, em autores e leitores proficientes.

DESCRITORES:
Linguagem Infantil; Escrita Manual; Dislexia

ABSTRACT:

Purpose:

to present the theoretical and methodological assumptions underlying group speech language therapy focused on the development of written skills, based on the theory of enunciation and discourse and analyze their effectiveness.

Methods:

this article brings the theoretical and methodological criteria related to group formation and therapy focused on Bakhtin's notion of speech genres. To depict such procedures, this study provides dialogic episodes from therapeutic sessions conducted with five students, aged from 11 to 13, with reading and writing impairments, from public schools located in the city of Florianopolis, Brazil.

Results:

results suggest that practice grounded in the perspective of enunciation and discourse, in meaningful contexts of language use, enables subjects to engage in written language in its discursive, formal and textual aspects. Additionally, group composition provides, besides the exchange of information, a sense of belonging that raises self-esteem, favoring the learning process.

Conclusion:

this study highlights how group work can provide gains, within the theoretical perspective in focus. Subjects, who would reject activities of reading and writing early in speech language therapy, started to rethink their difficulty issues, after participating in social practices of language, and gradually became proficient writers and readers.

KEYWORDS:
Child Language; Handwriting; Dyslexia

Introdução

Nos últimos anos, muito se tem falado sobre teorias de gêneros do discurso, tanto em âmbito terapêutico quanto educacional. Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa - PCNs (BRASIL, 1997), por exemplo, estão atravessados pela noção de gêneros. Tal noção ganhou maior expressividade principalmente a partir da década de 1990, quando pesquisadores propuseram uma ressignificação nas formas de ensino e aprendizagem. Estratégias para o desenvolvimento de competências em leitura e escrita começaram a ser pensadas a partir da língua em uso: a língua que se dá nos gêneros, porque falamos, lemos e escrevemos por meio de gêneros do discurso11. Signor R. Os gêneros do discurso como referenciais para a atuação fonoaudiológica. [dissertação]. Florianópolis (SC): UFSC; 2010..

Passadas quase duas décadas da publicação dos PCNs, observa-se que a teoria enunciativo-discursiva encontra pouca ressonância nas salas de aula, uma vez que as condições educacionais do professor (educação básica, universitária e continuada) muitas vezes são insuficientes para dar a ele o suporte de que necessita para implementar sua prática em consonância com os documentos oficiais11. Signor R. Os gêneros do discurso como referenciais para a atuação fonoaudiológica. [dissertação]. Florianópolis (SC): UFSC; 2010.)-(33. Giroto CM, Silva DV, Berberian AP, Signor R, Santana AP. Promoção do Letramento e Desmedicalização do Ensino. In: Colvara L, Oliveira JB.(Org.). Núcleos de ensino da UNESP: metodologias de ensino e a apropriação de conhecimentos pelos alunos. São Paulo: Cultura Acadêmica; 2014. p.306-28..

Cabe ressaltar que as avaliações do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) revelam que os alunos brasileiros figuram sempre entre os últimos colocados em desempenho nas áreas de leitura, ciências e matemática. De modo semelhante, o INAF (Indicador Nacional da Alfabetismo Funcional), em 2011, apontou que apenas 26% da população do Brasil é plenamente alfabetizada. Em detrimento dos complicadores metodológicos implicados nos instrumentos de geração de dados, os indicadores nacionais e internacionais de alfabetismo demostram uma faceta da realidade e provocam a necessidade de reflexão sobre as condições de letramento dos brasileiros. Como consequência dessa realidade, é alarmante a procura por atendimento terapêutico por sujeitos com dificuldades de leitura e escrita22. Santos MR, Signor, R. Práticas de leitura e condições de letramento. Implicações para a formação do sujeito-leitor. Rev de Letras. 2012;15(1):1-20.)-(44. Massi G, Santana AP. A desconstrução do conceito de dislexia: conflitos entre verdades. Paidéia. 2011;21(5):403-11..

Independente da nomenclatura utilizada para as dificuldades apresentadas (dificuldades de leitura e escrita, distúrbios de leitura e escrita, distúrbios de aprendizagem, transtorno de aprendizagem, dislexia, entre outras), as crianças podem apresentar sintomas e, muitas vezes, necessitar de acolhimento fonoaudiológico.

Ressalte-se que a adoção de uma perspectiva enunciativo-discursiva proposta neste trabalho é de natureza clínica, inserida no campo de ação da fonoaudiologia. Sem relativizar a dimensão "pedagógica" implicada no paradigma teórico assumido, é importante lembrar que a situação de terapia projeta um outro lugar de mediação e de aprendizagem (diferente do dos contextos formais configurados, por exemplo, nos grupos de trabalho voltados ao desenvolvimento da escrita na escola). Em situação terapêutica, o fonoaudiólogo tem a função de tratar o sintoma, entendido aqui como relação de sofrimento dos sujeitos com a linguagem escrita e com a própria condição de aprendiz. O sintoma muitas vezes se traduz em "bloqueios" diante da língua, dificultando, senão impedindo, avanços nas condições de letramento. Para ressignificar a queixa, é necessário que se promova um contexto terapêutico significativo para a apropriação e desenvolvimento da leitura e escrita que contemple, para além das questões linguísticas, os aspectos afetivos e subjetivos envolvidos na aprendizagem. Entende-se, assim, que a construção de novos sentidos nas vivências mediadas pela linguagem conduz ao redimensionamento de uma subjetividade abalada pelo estigma das dificuldades de leitura e escrita; é nesse sentido que o trabalho empreendido ultrapassa o campo "pedagógico" e se torna terapêutico (fonoaudiológico).

A atuação clínica voltada ao desenvolvimento de competências em leitura e escrita pode ser realizada tanto de forma individual quanto em grupo. O enfoque grupal dirigido a crianças, adolescentes e adultos com dificuldades de leitura e escrita vem sendo apontado por pesquisadores como relevante para o processo terapêutico55. Machado ML, Berberian AP, Santana AP. Linguagem escrita e subjetividade: implicações do trabalho grupal. Rev CEFAC. 2009;11(4):713-9.)-(88. Signor R, Rodrigues RH. Sujeitos com dificuldades de leitura e escrita e o trabalho com a língua em perspectiva dialógica: implicações para os profissionais da linguagem. Cam em Linguíst Apl. 2013;9(1):145-68.. Contudo, os procedimentos teórico-metodológicos neste enfoque ainda têm sido pouco descritos na literatura99. Santana AP, Signor R. Plano Terapêutico Fonoaudiológico para grupo de crianças e adolescentes com queixas de dificuldades de leitura e escrita. In: Planos Terapêuticos Fonoaudiológicos (PTF). São Paulo: Pro-fono. No prelo 2015.; fato que justifica a produção deste trabalho.

Cabe destacar que a abordagem grupal não é entendida simplesmente como um meio de atender à demanda, mas como um recurso terapêutico de grande valia. Entende-se que é na troca de saberes e vivências intragrupo que os participantes vão avançado em seus conhecimentos sobre a modalidade escrita da língua66. Signor R, Berberian AP. Terapia em grupo voltada à linguagem escrita: uma proposta com base nos gêneros do discurso. In: Berberian AP, Santana AP. (Org.) Fonoaudiologia em contextos grupais. São Paulo: Plexus; 2012. p.9-32.. A apropriação da escrita é um processo que se concretiza na relação com o outro e, pensando desse modo, o grupo terapêutico é um potencializador da aprendizagem já que as experiências compartilhadas em torno do objeto (leitura, produção e revisão textual) tendem a repercutir positivamente e gerar ganhos (proficiência, criticidade, discursividade, autonomia) para todos os participantes do grupo11. Signor R. Os gêneros do discurso como referenciais para a atuação fonoaudiológica. [dissertação]. Florianópolis (SC): UFSC; 2010..

Adicionalmente, é na situação de grupo que os sujeitos se dão conta de que o seu "problema" tem uma dimensão coletiva, aspecto que contribui para a desestigmatização e fortalece a autoestima, o que promove a aprendizagem66. Signor R, Berberian AP. Terapia em grupo voltada à linguagem escrita: uma proposta com base nos gêneros do discurso. In: Berberian AP, Santana AP. (Org.) Fonoaudiologia em contextos grupais. São Paulo: Plexus; 2012. p.9-32.. Vê-se, desse modo, a relevância do trabalho em grupo para os sujeitos que buscam ajuda fonoaudiológica. O enfoque grupal conduz para o trabalho na perspectiva enunciativo-discursiva, já que nessa teoria se insere uma concepção de linguagem que toma a língua como uma realidade concreta, bem como considera que o conhecimento é gerado na interação social11. Signor R. Os gêneros do discurso como referenciais para a atuação fonoaudiológica. [dissertação]. Florianópolis (SC): UFSC; 2010.. Nessa abordagem, a terapia se volta para o desenvolvimento de conhecimentos em torno de gêneros discursivos.

Os gêneros são concebidos como conjuntos de textos que apresentam certa regularidade em comum. Na sociedade, há milhares de gêneros que medeiam as interações humanas, tais como: peça de teatro, notícia, reportagem, romance, crônica, conversa cotidiana, e-mail, carta, bilhete, piada etc. Durante a terapia, os sujeitos são levados a ler e produzir gêneros e, para tanto, as propriedades que constituem esses textos são parte do processo terapêutico99. Santana AP, Signor R. Plano Terapêutico Fonoaudiológico para grupo de crianças e adolescentes com queixas de dificuldades de leitura e escrita. In: Planos Terapêuticos Fonoaudiológicos (PTF). São Paulo: Pro-fono. No prelo 2015.. O aprendiz aprende, por exemplo, a reconhecer, pela leitura, ou produzir, por meio da escrita, uma crônica, uma notícia, um conto, entre outros gêneros. E assim são abordados aspectos (sociais, históricos, ideológicos, discursivos, interacionais etc.) que extrapolam a imanência da língua (estrutura).

O fonoaudiólogo que pretende atuar em consonância à abordagem grupal na perspectiva enunciativo-discursiva necessita ter em mente alguns pressupostos que permitem guiar essa atuação, sendo os principais: (i) a formação do grupo e (ii)o trabalho com a linguagem escrita. Para tanto, o profissional precisa seguir critérios teórico-metodológicos.

O objetivo deste trabalho é apresentar, em conformidade à teoria enunciativo-discursiva1010. Bakhtin M. Os gêneros do discurso. In: Bakhtin, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes; 2003. p.261-306., os pressupostos teórico-metodológicos que sustentam a terapia fonoaudiológica em grupo voltada ao desenvolvimento de competências em linguagem escrita e analisar sua eficácia.

Métodos

Esta pesquisa qualitativa, de cunho sociointeracionista, foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina, sob processo número 132/09. Todos os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Esta seção se divide em quatro subseções. Na primeira, apresentam-se os pressupostos metodológicos implicados na formação do grupo de terapia. Na sequência, discute-se o método que sustenta a terapia grupal na abordagem enunciativo-discursiva. Na subseção 3, estão os aspectos metodológicos que guiaram uma atuação fonoaudiológica em grupo em conformidade à proposta que embasa este trabalho. A última subseção, por sua vez, apresenta a metodologia voltada para o trabalho com um gênero específico: o gênero sinopse.

Os dados apresentados na seção "resultados" representam um estudo que teve por finalidade analisar a contribuição do conceito de gêneros do discurso para a clínica fonoaudiológica11. Signor R. Os gêneros do discurso como referenciais para a atuação fonoaudiológica. [dissertação]. Florianópolis (SC): UFSC; 2010.. A pesquisa ocorreu com um grupo de cinco adolescentes (quatro meninos e uma menina), entre 11 e 13 anos de idade, estudantes do 4º e 5º ano do ensino fundamental. Os sujeitos apresentavam queixas do tipo: "não gosto de ler", "escrevo tudo errado"; "ler é chato"; "não consigo escrever"; "minha professora diz que sou cabeça de vento"; "sento lá atrás e não faço nada"; "não gosto da minha professora, ela manda eu ler alto e eu fico com vergonha"; "saio da sala toda hora" etc.

Quanto às reclamações dos professores, resumiam-se a dizeres do tipo: "ninguém quer fazer trabalho em grupo com ele"; "a atenção é intermitente, sonha acordada"; "não parece alegre"; "apresenta diferenças significativas entre os alunos mais saudáveis e comunicativos"; "pede para falar e quando é dada a vez diz que esqueceu"; "leitura sem ritmo"; "fala baixo e de forma insegura"; "troca de letras", "há muitas queixas de dores"; "pede para ir ao banheiro várias vezes", entre outros.

O atendimento foi desenvolvido durante o período de um ano em sessões fonoaudiológicas semanais que tinham por volta de 3 horas de duração cada. O atendimento ocorreu no ambulatório de dificuldades de aprendizagem em um Hospital Infantil em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. A maioria dos atendimentos ocorreu em grupo, com algumas sessões individuais. Os dados foram registrados em áudio e notas de campo.

Os critérios de inclusão foram os seguintes: disponibilidade e interesse em participar da pesquisa e do processo terapêutico, afinidades (interesses em comum) entre os participantes e faixa etária. Os critérios de exclusão, por sua vez, envolveram: deficiência sensorial e/ou intelectual associada, desinteresse em participar da pesquisa e falta de disponibilidade para encontros semanais durante uma tarde inteira. Os adolescentes foram avaliados por médico neurologista e dois deles receberam o diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade. A aceitação para terapia fonoaudiológica ocorreu para ressignificar a queixa apresentada (o sintoma) e promover avanços nas condições de letramento dos sujeitos.

Nos episódios dialógicos, os sujeitos são representados por meio das iniciais de seus nomes (L, M, ED, D e J). A pesquisadora recebe o T, devido à sua condição de terapeuta.

A seguir, estão os procedimentos metodológicos implicados na abordagem grupal voltada à linguagem escrita.

A formação do grupo

Para a formação do grupo é importante que se estabeleçam alguns critérios. Entende-se, primeiramente, que todo sujeito pode ser atendido em grupo, no entanto, é preciso que se considere a dimensão do grupo. O ideal é que seja realizada uma avaliação das condições de letramento de cada sujeito, para que se possa, a partir dessa avaliação, direcionar e formar o grupamento. Considerando a efetividade do atendimento e a atenção individualizada que cada participante do grupo requer, atendemos no máximo cinco sujeitos por grupo. Acreditamos, no entanto, ser este um critério variável e decorrente das possibilidades do fonoaudiólogo99. Santana AP, Signor R. Plano Terapêutico Fonoaudiológico para grupo de crianças e adolescentes com queixas de dificuldades de leitura e escrita. In: Planos Terapêuticos Fonoaudiológicos (PTF). São Paulo: Pro-fono. No prelo 2015..

A faixa de idade pode se constituir também em um aspecto importante, não porque conduz a uma homogeneidade, o que seria contraditório com a perspectiva por nós assumida, mas porque tende a unir sujeitos com interesses em comum. Agrupamos crianças e adolescentes conforme a seguinte divisão: 6 a 7 anos; 8 a 10 anos; 11 a 13 anos; 14 a 17 anos de idade, sendo esse um critério flexível. O critério etário é relacionado às condições de letramento, de modo que duas crianças de 9 anos de idade, por exemplo, podem estar em grupos distintos se os conhecimentos em torno da leitura e escrita forem muito diferentes.

Os encontros podem ser semanais e perdurar de uma a três horas. A duração é estabelecida pelo terapeuta a depender da necessidade do próprio grupo. Por exemplo, muitos integrantes e pouco tempo é problemático pois nem todos terão a oportunidade de ter uma participação mais efetiva.

Terapia em grupo em abordagem enunciativo-discursiva: aspectos gerais

Após a formação do grupo, parte-se para a análise da inserção dos sujeitos nas experiências letradas (escola, família, igreja etc.), pois isso implica refletir sobre a maneira como tais vivências resultam na constituição leitora do sujeito. Algumas perguntas podem orientar esse entendimento, por exemplo: O que vocês entendem por ler? Que tipo de leitura vocês (não) gostam? Vocês têm o hábito de comprar e emprestar livros? Quais tipos de materiais de leitura vocês têm em casa? Com qual frequência vocês reservam um tempo para leitura? Vocês gostam de escrever? O que vocês escrevem? (considerar aqui também e-mail, whatsapp, facebook)99. Santana AP, Signor R. Plano Terapêutico Fonoaudiológico para grupo de crianças e adolescentes com queixas de dificuldades de leitura e escrita. In: Planos Terapêuticos Fonoaudiológicos (PTF). São Paulo: Pro-fono. No prelo 2015..

Depois de realizada a análise das experiências letradas dos sujeitos, parte-se para a seleção dos gêneros que serão abordados em terapia. É necessário considerar os interesses dos sujeitos do grupo ou, no limite, promovê-los. Para que os interesses sejam promovidos é preciso que haja um período de experimentação com o gênero. Por exemplo, um grupo de crianças pode referir não gostar de teatro, mas ao assistir pela primeira vez uma peça de teatro (ou escutar a leitura de uma peça ou participar de um grupo de teatro), pode manifestar desejo em se envolver em práticas sociais de leitura e escrita visando à apropriação do gênero teatro (elaboração de roteiro). No caso clínico apresentado na seção seguinte aconteceu desse modo, ou seja, os interesses foram sendo despertados no decorrer do processo. L (um dos sujeitos participantes da pesquisa), por exemplo, ao escrever sobre sua experiência com um dos gêneros abordados em terapia, realizou o seguinte comentário: "Eu me apaixonei pelo teatro desde o primeiro ensaio".

Quanto ao trabalho específico com a linguagem escrita, é necessário que se observem alguns parâmetros. Nesta abordagem todas as dimensões da língua devem ser contempladas, a saber, as discursivas mais amplas, as questões de texto e os aspectos formais. As questões de discurso envolvem o gênero discursivo (atividades voltadas à apropriação do gênero). Sugerem, para tanto, levantamento de corpus de textos no gênero, leituras desses textos e análise linguístico-discursiva dos textos selecionados11. Signor R. Os gêneros do discurso como referenciais para a atuação fonoaudiológica. [dissertação]. Florianópolis (SC): UFSC; 2010.. Essas ações são necessárias para que os sujeitos do grupo se apropriem das formas do gênero em concomitância com as formas da língua, como prevê Bakhtin1010. Bakhtin M. Os gêneros do discurso. In: Bakhtin, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes; 2003. p.261-306.. É preciso que se considere o suporte do gênero; por exemplo, ao se trabalhar com o gênero crônica, as crônicas escolhidas devem ser as compiladas em livros, mas também as crônicas de jornal, pois estão mais atualizadas. Ressalte-se que a depender do suporte há modificações substanciais na composição textual. Um exemplo interessante é o gênero notícia. Uma mesma notícia (de cunho político) veiculada por um jornal a favor e por um jornal contra o governo mostra que não existe neutralidade quando se trata da linguagem. Assim, os aspectos ideológicos são trazidos à consciência para que se possa, por meio da interlocução, ajudar na formação de cidadãos mais críticos e participativos. Além das questões de gênero e condições de produção, os aspectos discursivos envolvem a intenção de quem fala, produção de sentidos e projeto discursivo.

Os aspectos formais, pontuação, ortografia, paragrafação, entre outros, são trabalhados, sob essa ótica, como elementos que favorecem a percepção dos sentidos por parte do leitor. Assim, no exemplo: "Ah não, é um rato" ou "Ah, não é um rato", a posição da vírgula veicula a informação sobre se é ou não um rato11. Signor R. Os gêneros do discurso como referenciais para a atuação fonoaudiológica. [dissertação]. Florianópolis (SC): UFSC; 2010.),(1111. Signor R. Escrever é reescrever: desenvolvendo competências em leitura e escrita no contexto da clínica fonoaudiológica. Rev Bras de Linguíst Apl. 2013;13(1):123-43..

No que concerne especificamente aos aspectos ortográficos, é comum os aprendizes apresentarem dificuldades de escrita relacionadas à natureza da língua portuguesa, como, por exemplo, confusão entre letras visualmente ou auditivamente semelhantes1212. Cagliari LC. Linguística e alfabetização. Espaço (INES). 2004;20(1):46-52..

Assim, na revisão das produções escritas, trabalhadas em grupo de terapia, é comum que os participantes, ao lerem as produções uns dos outros, percebam, por exemplo, os problemas que envolvem o traço de rotação. Na situação terapêutica, a mediação conduz à conscientização de que, muitas vezes, o uso indevido deste traço leva à escrita de uma palavra diferente da pretendida (por ex. bolo/dolo), o que pode prejudicar a percepção de sentidos por parte do leitor. Desse modo, quando se trata de substituição de letras parecidas, o conhecimento linguístico dos falantes de língua portuguesa deve ser trazido para a situação interlocutiva99. Santana AP, Signor R. Plano Terapêutico Fonoaudiológico para grupo de crianças e adolescentes com queixas de dificuldades de leitura e escrita. In: Planos Terapêuticos Fonoaudiológicos (PTF). São Paulo: Pro-fono. No prelo 2015..

As dificuldades com letras auditivamente parecidas, por seu turno, provocam a substituição de letras que se opõem pelo traço de sonoridade (p/b; t/d; f/v; c/g; s/z; x/j) e leva à escrita de palavras inexistentes na língua ou escrita de palavras usuais, mas que não se encaixam no contexto de produção ("cologuei duas fatias de queixo no meu lanche"). Em grupo, durante as leituras compartilhadas das produções próprias e dos colegas, é comum a percepção e discussão sobre esse tipo de ocorrência. Se um componente do grupo escreveu "cafalo" em vez de "cavalo", é possível que ele não perceba o erro, mas seu colega de terapia poderá perceber e ajudá-lo nessa percepção e consequente reformulação do escrito. É assim, agindo com e sobre a língua, por meio da mediação com os colegas e terapeuta, que cada integrante do grupo vai se apropriando dos aspectos formais da linguagem escrita99. Santana AP, Signor R. Plano Terapêutico Fonoaudiológico para grupo de crianças e adolescentes com queixas de dificuldades de leitura e escrita. In: Planos Terapêuticos Fonoaudiológicos (PTF). São Paulo: Pro-fono. No prelo 2015..

Quanto à representação múltipla, é o erro mais frequente na escrita de crianças em fase de aquisição1313. Zorzi JL, Ciasca SM. Análise de erros ortográficos em diferentes processos de aprendizagem. Rev CEFAC. 2009;11(3):406-16.. Considerando que um fonema pode representar diferentes grafemas (/s/ - "ss", "sc", "ç", "c", "s", "sç", "x"), escrever "pasado" em vez de "passado"; "chícara" em vez de "xícara"; "sebola" no lugar de "cebola", representa uma opção possível, porém distante da convenção ortográfica. Nos trabalhos de revisão de texto em grupo, o fonoaudiólogo pode lançar mão de um recurso denominado de "vale-tudo"55. Machado ML, Berberian AP, Santana AP. Linguagem escrita e subjetividade: implicações do trabalho grupal. Rev CEFAC. 2009;11(4):713-9.. Esse recurso consiste em escrever uma palavra, por exemplo, "traçado", considerando, no que diz respeito às representações múltiplas, as diversas possibilidades fornecidas pela língua (trassado, trasado, traçado, trasçado). Após a escrita dessas várias possibilidades, os participantes podem discutir, a partir dos seus conhecimentos (e da memória lexical), qual é a palavra ortograficamente correta. Ressalte-se que as hipóteses diversas poderiam ser "válidas", mas na norma padrão a forma convencional é traçado. Há ainda possibilidades de reflexão centrada em processos gerativos. Por exemplo, se "gelo" é uma palavra escrita com "g", possivelmente "gelado", "geladeira", "gelatina" e outras derivadas dela também poderão ser.

Entende-se, assim, que é possível, em meio a propostas contextualizadas de uso da língua, problematizar e buscar regularidades na ortografia. Desse modo, se durante a leitura de um texto (próprio ou escrito pelo colega), os sujeitos perceberem que alguma palavra está grafada de forma incorreta, eles podem trabalhar sobre o objeto escrito a partir de suas hipóteses linguísticas.

Outro problema bastante comum na escrita é a correção indevida. Na intervenção fonoaudiológica, os participantes do grupo, ao se depararem com vocábulos escritos com hipercorreção, no caso de normas puramente arbitrárias, podem lançar mão do vale-tudo, como descrito anteriormente. No entanto, entre os sujeitos podem ser percebidas certas regularidades que ocorrem em determinadas convenções. Por exemplo, há uma confusão acentuada entre as crianças no que se refere à terminação de u/l em final de palavra. Os sujeitos podem ser conduzidos à percepção de que palavras que finalizam em ditongo decrescente na oralidade (por ex. sol, farol, mel, painel) terminam com "l", ao passo que terminações em ditongos crescentes (por ex. meu, seu, pintou, apareceu) finalizam em "u". Essa regra tem uma exceção em palavras acentuadas, que, apesar de finalizarem em ditongos decrescentes, finalizam com "u" em virtude do acento gráfico (céu, chapéu, véu). Dessa forma, é possível refletir com os integrantes do grupo sobre as convenções buscando algumas regularidades presentes na língua portuguesa. Essa e outras "regras" podem ser construídas no grupo, aspecto que torna a aprendizagem mais produtiva e, portanto, significativa11. Signor R. Os gêneros do discurso como referenciais para a atuação fonoaudiológica. [dissertação]. Florianópolis (SC): UFSC; 2010.),(1414. Signor R. Terapia fonoaudiológica mediada pela noção de gêneros do discurso: (res)significando histórias de ler e de escrever. Signum. 2011;14(2):333-54..

Ainda considerando a noção de gêneros do discurso, as marcas da oralidade podem estar presentes na escrita, pois existem gêneros escritos que praticamente representam a materialização do discurso oral, a exemplo do e-mail informal. Existem gêneros, ao contrário, que são mais formalizados e não permitem essas marcas. Desse modo, o afastamento ou aproximação da oralidade, em termos textuais, dependerá do tipo de gênero. O fonoaudiólogo deve mediar o processo de trabalho com as questões formais considerando a "adequação" no processo de escrita (o gênero, o interlocutor, a situação de formalidade do contexto)99. Santana AP, Signor R. Plano Terapêutico Fonoaudiológico para grupo de crianças e adolescentes com queixas de dificuldades de leitura e escrita. In: Planos Terapêuticos Fonoaudiológicos (PTF). São Paulo: Pro-fono. No prelo 2015..

Quanto aos aspectos textuais, bastante comum é a introdução e retomada de referentes durante o desenrolar da produção escrita. Com os aprendizes ocorre com frequência a referenciação ambígua ou, ainda, a dificuldade de recuperação do referente por um leitor distante. Assim, quando a criança escreve: "A Mariana, a Patrícia e a Sabrina foram assistir filme na minha casa, mas a mãe dela disse que não poderia ser filme de terror porque a noite ela não dorme direito. As mães das outras não falaram nada, podia ser qualquer filme", percebemos a impossibilidade de recuperar os referentes (dela, ela, outras, a mãe, as mães) e, desse modo, não é possível saber, por exemplo, a quem se refere o "ela", o "dela", "as outras", se a Mariana, Patrícia ou Sabrina. Nesse caso, as leituras compartilhadas no grupo fazem com que sejam percebidas as inadequações, dentre elas, os problemas na referenciação e a consequente dificuldade de estabelecimentos de sentidos.

Além disso, há textos que são produzidos que apresentam problemas de progressão tópica com relação às ideias. Há a necessidade de conscientizar o sujeito de que seu texto será lido por outras pessoas e que o processo de escrita, para se efetivar, pressupõe tornar o texto acessível aos leitores.

As crianças podem ainda escrever textos com ausência de algumas informações importantes (texto lacunar). A intervenção fonoaudiológica se dá, nesse caso, por meio de questionamentos (perguntas/considerações) para que o sujeito reflita sobre as possíveis dificuldades enfrentadas pelo leitor para captar os sentidos do dito.

Cabe ressaltar que o trabalho com os gêneros discursivos conduz o participante da terapia à constituição do sujeito/leitor e autor11. Signor R. Os gêneros do discurso como referenciais para a atuação fonoaudiológica. [dissertação]. Florianópolis (SC): UFSC; 2010.),(99. Santana AP, Signor R. Plano Terapêutico Fonoaudiológico para grupo de crianças e adolescentes com queixas de dificuldades de leitura e escrita. In: Planos Terapêuticos Fonoaudiológicos (PTF). São Paulo: Pro-fono. No prelo 2015.. A autoria não é entendida aqui simplesmente como a produção do "novo", mas como o uso dos recursos da modalidade escrita da língua com uma expressividade discursiva própria1010. Bakhtin M. Os gêneros do discurso. In: Bakhtin, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes; 2003. p.261-306..

Terapia em grupo em abordagem enunciativo-discursiva: os gêneros do discurso

A pesquisa aqui apresentada representa um procedimento terapêutico de uma atuação em grupo. O trabalho partiu da proposta de leitura de um romance (da série Goosebumps) e adaptação deste para uma peça de teatro (produção de um roteiro escrito). Visando à publicação do roteiro no site Recanto das letras e sua encenação (para crianças do hospital infantil), produziu-se uma sinopse da peça e cartazes para sua divulgação. Foram realizadas várias atividades voltadas à apropriação do gênero peça de teatro, tais como: estudar a história do teatro, entrevistar um dramaturgo, ler entrevistas com dramaturgos, assistir a uma peça de teatro, ler peças de teatro, realizar análise linguístico-discursiva das peças lidas para que fossem apreendidas as suas propriedades (visando à elaboração do roteiro), entre outras.

Durante a adaptação do romance para a peça de teatro, cada participante ficou responsável por adaptar aproximadamente seis capítulos da obra. Depois de adaptar cada capítulo, todos os textos manuscritos foram reunidos em um grande roteiro. A terapeuta digitou a produção, respeitando a escritura original de cada integrante. Para o processo de leitura e revisão de todo o roteiro produzido, cada participante recebeu uma cópia digitada do roteiro. As leituras (destinadas à revisão do roteiro) foram realizadas conjuntamente, ou seja, cada participante do grupo foi lendo parte do roteiro, independentemente de ter sido ou não o autor do capítulo em questão. Assim, a mesma versão do texto passou pela leitura e reescritura de todos os participantes do grupo (a terapeuta e os participantes). Acordou-se no grupo que quando fosse observada alguma inadequação, a leitura fosse interrompida com a palavra stop para discussão entre os integrantes.

Cabe dizer que os sujeitos realizaram as reelaborações necessárias (correções de ordem formal, textual e discursiva) no próprio texto digitado. Para isso, foram deixados espaços em branco para que eles pudessem reescrever possíveis trechos mal elaborados. Já com relação à pontuação, esta foi colocada no texto digitado; as palavras com problemas de ortografia foram riscadas e a forma correta foi escrita em cima da palavra riscada. Esse procedimento objetivou fazer com que os sujeitos não tivessem de reescrever todo o texto, o que tornaria a atividade longa e cansativa, dada a extensão do roteiro (17 páginas digitadas).

Ressalte-se que, por questões de espaço, apresentamos neste artigo apenas excertos das interações ocorridas nos atendimentos realizados em torno do gênero sinopse, bem como diálogos em que os sujeitos participaram de sessões visando à revisão textual do roteiro de teatro escrito.

O trabalho com o gênero sinopse

Para o trabalho específico com a sinopse foram necessárias cinco sessões de terapia; as quatro primeiras foram direcionadas para as leituras e análises reflexivas de um corpus de textos selecionados. Das sinopses trabalhadas em grupo, algumas foram extraídas do sítio <www.sampaonline.com.br>. Eram sinopses de peças teatrais em cartaz em São Paulo: "A vingança de Milongaaaa!"; "Honey"; "Milkshake"; "O primo Basílio"; "Trair e coçar é só começar"; "De artista e louco todo mundo tem um pouco". Do jornalismo impresso, foi lida a sinopse da peça "Peter Pan e Wendy", publicada na revista Educar, bem como sinopses de novelas e de filmes em cartaz no cinema, publicadas no jornal Diário Catarinense. Também fizeram parte da composição dos dados sinopses de romances e filmes em DVD. As sinopses de romances lidas e analisadas foram "Clarissa", "Crepúsculo" e "Harry Potter e a ordem da Fênix". Dos dois últimos livros (Crepúsculo e Harry Potter) foram fornecidos também os filmes para que os participantes pudessem assisti-los em casa após a leitura das sinopses. Com esta ação objetivou-se concretizar a função discursiva do gênero sinopse. Outros filmes oferecidos foram: "Indiana Jones e a caveira de cristal" e "A loja mágica de brinquedos". A fim de apresentar aos sujeitos o funcionamento da sinopse crítica, apresentou-se em uma das sessões a revista Veja e a revista CartaCapital e foram lidas as seguintes sinopses de filmes e livros: "30 dias de noite"; "Se meu apartamento falasse"; "No tribunal de meu pai"; "O senhor Proust e Pequenas histórias". A seleção de textos contemplou, desse modo, diferentes suportes: DVD, revista, internet, romance e jornal. No caso de revista e jornal, trabalhou-se ainda as propriedades da sinopse crítica.

Uma das primeiras ações voltadas ao gênero foi a leitura das sinopses do romance e do filme Crepúsculo, pois a história retratada era do interesse dos participantes. Eles já haviam, inclusive, assistido ao filme e lido trechos do romance. A fim de promover a reflexão das propriedades genéricas, foram elaboradas e lançadas ao grupo algumas perguntas:

Em que lugar [suporte] está a primeira sinopse e em que lugar está a segunda? 2) O fato de a primeira sinopse estar no livro e a segunda estar no filme gera alguma mudança importante no conteúdo do escrito? 3) Qual é a finalidade de uma sinopse? Para que se escreve uma sinopse? 4) Quais são as informações que os textos trazem em relação à história? 5) Qual é o tema? De que trata a história? É possível perceber somente com a leitura da sinopse? 6) Localize nos textos passagens que têm o objetivo de convencer o leitor/espectador a ler/assistir o livro/filme. 7) É possível identificar o desfecho da história pela leitura da sinopse? Justifique. 8) Para que público essa história é dirigida? Justifique. 9) Quem é o possível escritor das sinopses? 10) No livro Crepúsculo a história é contada no passado, no filme acontece no presente, mas em ambas as sinopses (do livro e do filme) os tempos verbais estão no presente. Você consegue formular uma resposta que justifique a prevalência dos tempos verbais no presente?

As questões acima balizaram também as leituras reflexivas em torno de outras sinopses do corpus. Após as sessões destinadas às leituras, foi realizada uma sessão voltada à escrita da sinopse da peça de teatro produzida.

Esta última sessão (realizada em horários individuais), que foi destinada ao processo de escrita, ocorreu da seguinte forma: cada adolescente, em conjunto com a terapeuta, produziu uma sinopse e versões. Antes da publicação do roteiro de teatro em site, a terapeuta construiu com os sujeitos uma única sinopse, considerando todas as realizadas, para que não fosse privilegiada uma única produção.

A seguir, são apresentados episódios retirados do trabalho desenvolvido.

Resultados

Episódio dialógico 1: reflexões sobre o gênero sinopse

Depois da primeira sondagem, no que diz respeito ao conhecimento prévio dos participantes acerca do gênero em questão, a terapeuta forneceu uma explicação a respeito da sinopse, relatando sua função de passar, em linhas gerais, o conteúdo central da trama, e de, ao mesmo tempo, tentar criar no leitor/(tele)espectador o desejo de consumo do objeto em questão. Para iniciar, apresentam-se as sinopses do romance e do filme Crepúsculo:

Quando Isabella Swan se muda para a melancólica cidade de Forks e conhece o misterioso e atraente Edward Cullen, sua vida dá uma guinada emocionante e apavorante. Com corpo de atleta, olhos dourados, voz hipnótica e dons sobrenaturais, Edward é ao mesmo tempo irresistível e impenetrável. Até então, ele tem conseguido ocultar sua verdadeira identidade, mas Bella está decidida a descobrir seu segredo sombrio. O que Bella não percebe é que quanto mais se aproxima dele, maior é o perigo para si e para os que a cercam. E pode ser tarde demais para voltar atrás...

[Sinopse do romance Crepúsculo]

Isabella Swan é uma adolescente que vai morar com seu pai em uma nova cidade depois que sua mãe decide casar-se novamente. No colégio ela fica fascinada por Edward Cullen, um garoto que esconde um segredo obscuro. Eles se apaixonam, mas Edward sabe que quanto mais avançam no relacionamento, mais ele está colocando Bella e aqueles à sua volta em perigo.

[Sinopse do filme Crepúsculo]

Com relação à pergunta "localize nos textos passagens que têm o objetivo de convencer o leitor/espectador a ler/assistir o livro/filme", J ficou entusiasmada com a leitura e disse que se não tivesse assistido ao filme, ficaria convencida a assistir pela descrição do personagem principal: "irresistível, impenetrável, possui dons sobrenaturais, olhos dourados...". M e L, por sua vez, discordaram de J e relataram o motivo observado no episódio a seguir:

(01)[Interação entre os participantes]

M: Tem várias coisas que dá vontade de pegar... mas acho que quando fala do segredo... aqui no final, acho que as pessoas iam querer saber o segredo... qual que era esse segredo.

L: É isso mesmo. O segredo.

T: Algo mais?

(Silêncio)

Depois da leitura e análise das sinopses nos diferentes suportes, em outra sessão de leituras, foram trazidas à sessão exemplares das revistas Veja e CartaCapital, para que os participantes pudessem manuseá-las e ler as chamadas sinopses críticas. Nessas revistas, na sinopse, há um posicionamento mais explícito da revista ou do jornal, que recomenda ou não o consumo de determinado produto cultural (livro/filme/espetáculo). Ressalte-se que, diferentemente das sinopses que objetivam induzir o consumo (o que vinha sendo analisando até o momento), aquelas podem (ou não) agir no sentido contrário. Foi lida a primeira sinopse (da seção Bravo! de CartaCapital) e depois passou-se à reflexão sobre alguns aspectos. Vejamos:

Estreia Em Pequenas Histórias, em cartaz desde a sexta feira 11, o mineiro Helvédio Ratton retorna à temática infantil. Se em Menino Maluquinho (1994) o diretor contava com um personagem em si inventivo, aqui ele desdobra o universo da imaginação em diferentes histórias. Seu propósito é fazer um "filme para a família" e recuperar os causos contados ao pé do ouvido. O carinho e a sinceridade com que trata os relatos é evidente. Mas algumas histórias soam por demais ingênuas e a magia verbal nem sempre se traduz nas imagens. Seu grande acerto é o engraçado episódio Zé Burraldo, com Gero Camillo [...].

[Sinopse crítica, CartaCapital, 2009]

(02)[Interação entre os participantes após a leitura do texto acima]

M: Tem coisa boa e coisa ruim.

T: Isso aí. Vocês acham que esta sinopse... quando o filme for para o DVD... que esta sinopse poderia estar assim desse jeito no DVD?

D: Não.

T: Por que não?

M: Porque lá (no DVD) não pode falar nada de mal, só coisa boa.

T: Senão?

M: Lá tem que falar coisa boa senão as pessoas pode não querer pegar.

T: Lá o objetivo é fazer pegar. Então a finalidade é outra. Por isso que eu falei, é importante saber o lugar que tá o texto para saber também um pouco da função dele, né?

Episódio dialógico 2: escrita no gênero, após as sessões de leitura de sinopses

Por questões de espaço, apresenta-se apenas o processo de escrita de um dos sujeitos. L ouviu as orientações da terapeuta (retomada das propriedades do gênero) e deu início à escrita da primeira versão de sua sinopse:

(03)[Sinopse escrita por L - primeira versão]

Valente achou uma coisa de baixo da pia aí Kat começou a ter azar. Kat enterrou o grool, jogou no lixo, passou com a bicicleta por cima dele e ele continuou vivo dando muito azar. Todo mundo se machucava perto dele.

A terapeuta discutiu com L os aspectos positivos de sua produção textual e juntos refletiram sobre o que poderia ser melhorado no processo de reescritura:

(04)[Interação de L com a terapeuta]

T: Diz pra mim, os verbos devem estar no passado?

L: Ih, esqueci...

T: Você coloca aqui (lê): "Valente acha uma coisa debaixo da pia aí Kat começa a ter azar"... Pode gerar um pouco de dúvida... você conhece a história, tudo bem, eu também, mas quem vai ler talvez não conheça... Por que Valente acha a coisa e Kat é quem tem azar? (...) E Valente? Quem é Valente?

L: Cachorro da Kat...

T: Cachorro da Kat... O cachorro era só dela? Ou era da família? Bom, então explica que ele é o cachorro dela, que ela pegou a esponja dele... E quem fica com a esponja...

L: O dono é quem tem azar...

T: É. O dono... Kat é a dona e quem fica perto dela também tem azar... Aqui cê colocou (lê): "Todo mundo se machuca perto dele". Por que todo mundo se machuca perto dele?

L: Por causa que tão perto da Kat.

T: Então acho que dá pra colocar essa parte em cima quando diz que Kat tem azar... Kat e quem tá perto dela tem azar... Que que cê acha?

L: Acho que sim...

T: Última coisa: vamos tentar criar um suspense, fazer esse povo querer ler, ver a peça...

Depois de refletir sobre o texto produzido, L partiu para a reescritura. Essa ação resultou na segunda versão da sinopse, apresentada a seguir:

(05)[Sinopse escrita por L - versão final]

Valente encontra debaixo da pia da cozinha uma esponja do mal. Kat a dona de Valente fica com a esponja e aí todos perto dela começam a ter azar. Kat tenta destruir o grool, joga ele no lixo, passa com a bicicleta por cima dele, enterra, mas não da certo porque o grool sempre volta...

Episódio 3 - Revisão do roteiro de teatro produzido pelo grupo

Apresenta-se abaixo um episódio que revela reflexões em torno dos aspectos formais da língua escrita:

(06)[Interação entre os participantes - leitura do roteiro produzido]

L: (lendo uma parte que havia sido escrita por J) [...] Stop! Enxergando é com x...(eles arrumam). (L continua lendo) [...] 'mas esponjas não respi..rão não é mesmo?' (deu uma parada na hora de ler respirão e leu respiram).

M: Tá estranho... É respirão? Não é respiram? Esqueci de novo.

T: Alguém quer falar dessa diferença?

M: É que respirão é que vai respirar...

L: Que ainda vai respirar...

T: (trabalha a diferença enfantizando também a posição da sílaba tônica)

L: (continua lendo)... 'não diser pra ninguei que você é meu irmão'? Stop, stop!

D: Não VOU dizer pra ninguém que você é meu irmão...

M: Dizer é com z!

J: Eu sei!

T: Tá, e 'ninguém' escreve como?

(D escreve no papel ningem; J, ningeim e L, ninguém; M não escreve nada)

Abaixo segue outro episódio que trata de reflexões estabelecidas em conjunto:

(07)[Interação entre os participantes]

J: estava lendo a reenunciação do capítulo 4, escrito por M, quando chegou em um trecho em que foi interrompida por L.

[...]

L: Stop! Aconteceu não é assim. [estava escrito: "MÃE - O que acomtecel? Quem gritol?"]

T: Vamos escrever...

(L escreveu aconteceu, D escreveu acomteceu, M escreveu acomteceu e J escreveu aconteceu).

T: Gente, a gente já trabalhou isso aqui... quando é que com m... quando é que é com n... Quem lembra?

L: Eu! É... m se aqui tem p, se aqui tem b é m [aponta para o t da palavra aconteceu] se for de outro jeito é n.

T: Isso aí. (trabalha mais a diferença entre m/n nos contextos de palavras) [..] Tá, aqui tem regra, regrinha tranquila... se a gente sabe isso já resolve bastante coisa da escrita das palavras, porque na nossa língua é muito comum palavras com m e n, né... mas o u e o l... aí é mais difícil... [...]

M: Mas tu sabe uma regra, aquela do sol.

T: Regra do sol? Ah, aquilo que a gente falou aquele dia?

M: É.

T: [..]. A gente tava observando algumas palavras pra vê se a gente achava alguma regularidade, alguma regrinha mesmo... Cê lembra?

M: Esqueci. Era sol, farol era l e quando que não era l?

T: Tá, então cê não esqueceu... Gente, o que eu vi com M foi que palavras que terminam com som mais fechado... seu, aconteceu, apareceu, machucou, cantou, terminam com u... e palavras que terminam com som mais aberto, tipo farol, sol, rouxinol, caracol... qual mais, M?... É... painel... mel... tendem a terminar com l..

[...]

T: Mas tem uma coisa.. tipo céu..chapéu..véu.. quando é aberto mas tem acento, aí é com u mesmo.

Continuando a análise em torno da revisão do roteiro, mostra-se abaixo um episódio marcado pelo diálogo intenso dos participantes do grupo, especialmente de L, em torno dos aspectos observados:

(08) [Interação entre os participantes]

D: (lendo uma parte que ele mesmo tinha escrito)... "empurra a esponja para perto do nariz da professora" [escrito: provesora], tá errado... eu já sei... mas não sei bem onde...

L: É professora com f, f de faca, faca, ff...aca

D: Ai, ta bom... Cara chato... Fica soprando na minha cara..

T: [..] É aquilo que eu já falei.. Olha pra palavra e vê se ela existe. Existe provesora?

D: Não.

T: vai lá, D

[..]

D: (lendo)... "diz gritando de dor".. [escrito: critando]

L: Não é cri é gri, gritando.. [..]

T: Gente, aqui ó (mostra um trecho que já tinha passado) é vá.. se.. sentar, não é tudo junto... São três partes... existe vasesentar? Isso é uma palavra? Vasesentar (fala e escreve)

[..]

D: (lendo) ... "todo mundo semachuca perto de mim"..

T: Tá... se machuca, é assim? Semachuca é uma palavra?

(silêncio)

T: Eu semachuco, a menina semachuca o dedo, Juliana semachucou o pé...

[..]

D: (continua lendo)... "kat, kat, grita sem fôlego".. [escrito: crita]

L: Olha só... de novo... é gri gri não cri.

D: O L tá chato hoje.

[..]

L: Que que eu tô fazendo?

T: A gente tem que pensar que tá todo mundo junto deixando o roteiro arrumado pra publicar. Então [..] a gente tá aqui pra junto com os colegas deixar o roteiro, que é de todo mundo, pronto pra mandar pro site. E você, D [..] pensa que o L é um colega que tá observando algumas coisas no texto... Você também tá vendo coisas nos capítulos dos outros, não tá?

Discussão

A seguir são apresentadas as discussões sumarizando os objetivos do trabalho em grupo já citados anteriormente.

No episódio 1, vê-se a inserção do grupo na análise do gênero sinopse: o segredo, a curiosidade, a vontade de descobrir que segredo era aquele citado na sinopse, poderia possivelmente, convencer muitas pessoas a quererem desvendar o mistério. Foi exposto que o mistério estava ligado à identidade de Edward, como o próprio texto dizia: "até então ele tem conseguido ocultar sua identidade". Concordou-se também com J, pois a descrição do personagem poderia influenciar os leitores. Contudo, foram salientados alguns aspectos que eles não tinham observado, como a questão do perigo envolvendo o relacionamento dos personagens: "O que Bella não percebe é que quanto mais se aproxima dele, maior é o perigo para si e para os que a cercam". Esse perigo era outro termo-chave, cuja finalidade, no texto, era de criar expectativa. Ao ler e participar de várias leituras que envolvem esse gênero, o grupo passou a conseguir analisar as propriedades linguísticas e discursivas do texto para poder produzir efetivamente a escrita nesse gênero.

No episódio 2, vê-se L no processo de escrita do gênero sinopse. A escrita e a reescrita desse gênero terminou por conferir a L um papel de autoria e trabalho reflexivo sobre a língua. Ao imaginar um interlocutor para a leitura de seu texto, ele acabou reorganizando a escrita não só para adequar ao gênero stricto sensu, mas também para criar um texto em que o leitor pudesse construir os sentidos desejados pelo autor. Viu-se que a sinopse apresentou adequação ao gênero, uma vez que possuía as suas finalidades e características. Na versão final, L incorporou ao seu texto as questões que haviam sido comentadas com relação à versão anterior: não especificou claramente que Valente era um cachorro, mas esclareceu que Kat era a dona de Valente, dando a entender que se tratava de um animal. Deixou claro que Kat fica com a esponja e que, por isso, ela e todos perto dela começaram a ter azar. Acredita-se que o texto cumpriu sua finalidade de expressar aspectos relevantes da trama em pouco espaço e de também suscitar o interesse por parte do leitor. O fechamento com a expressão o grool sempre volta insinua suspense para a trama, suspense esse que merece ser desvendado pelo leitor.

O episódio 3 evidencia a importância do trabalho com os aspectos formais da linguagem. Centrar a apropriação da língua escrita no texto se justifica pela preocupação do fonoaudiólogo em prover aos sujeitos da terapia situações significativas para que por meio da língua em uso, ou seja, nos processos interacionais, o sujeito possa efetivamente aprender. Desse modo, não seria produtivo, em termos de apropriação dos usos sociais da escrita, principalmente em processo terapêutico, em que os sujeitos apresentam alguns traumas em relação à aprendizagem da escrita, ficar, por exemplo, discutindo se o vocábulo dizer é escrito com s ou z, se enxergando é com x ou ch. Tal discussão, se apartada do caráter social e interacional intrínseco à língua, não é apenas inútil como ratifica a situação de rejeição do sujeito perante a linguagem e o processo terapêutico se torna ineficaz. Mas, quando se inserem tais considerações em uma situação significativa de uso efetivo da linguagem escrita, o da revisão textual para a encenação e publicação da peça produzida, traz-se o mundo da vida para dentro da clínica. E, assim, concebendo a língua em sua realidade concreta, é possível que a escrita seja abordada em todas as dimensões que a constituem.

O episódio 3 (excerto 07) ilustra, ainda, um movimento importante da apropriação dos conhecimentos trabalhados em terapia.

Retoma-se a distinção entre u e l em contextos de final de palavra, que já havia sido discutida com o grupo e mais enfaticamente com M (em decorrência de sua instabilidade na escrita), e percebe-se que ele se lembrou de parte do que havia sido comentado anteriormente, inclusive nomeando uma suposta regra, a regra do sol.

Acredita-se que a ortografia das palavras, principalmente as frequentes nos usos da língua, acaba por ser assimilada também durante a atividade de leitura. Assim, ao ler a palavra em vários contextos diferentes, tende-se (usando a língua) a apreender as grafias das palavras. No entanto, explicitar algumas regras básicas de ortografia, como foi feito com o m e n, que, por sinal, acabou sendo assimilada por L (tanto que compartilhou seus conhecimentos com os colegas), ou mesmo fazê-los pensar em possíveis regularidades na escrita de certas palavras, já acaba por amenizar pequenos problemas pontuais, o que representa um avanço em termos do que a sociedade espera em relação aos usos das convenções da escrita. Além do mais, a reflexão conjunta realizada em torno dos aspectos notacionais é relevante, uma vez que é intrínseco à revisão de texto, fazendo parte do processo de escrita. Em outros termos, quando se abordam aspectos formais como foi feito, com objetivos delimitados, com função social específica e, consequentemente, considerando a funcionalidade da língua, propiciam-se avanços significativos aos sujeitos que desenvolvem e se desenvolvem na/pela linguagem1515. Signor R. Os gêneros do discurso como proposta de ação fonoaudiológica voltada para sujeitos com queixas de dificuldades de leitura e escrita. Bakhtiniana. 2011;1(5):54-71.),(1616. Signor R. O gênero sinopse como proposta de ação fonoaudiológica voltada para o desenvolvimento de competências em leitura e escrita. Bakhtiniana. 2012;7(1):219-39. 17-Santana AP. Grupo terapêutico no contexto das afasias. Dists Comun. 2015;27(1):4-15..

Na sequência, (excerto 08), apresenta-se a interlocução marcada pelo diálogo intenso dos participantes do grupo, especialmente entre L e D. Observa-se que a discussão gerada foi passageira e que, em poucos instantes, a situação havia voltado ao normal. L foi conscientizado de que sua função no grupo era de coautoria, colaborador, partícipe e não de corretor, no sentido estrito do termo, daquele que apenas aponta erros. Vê-se, assim, que em situação de grupo às vezes são gerados conflitos entre os sujeitos, uma vez que um componente do grupo, ao receber a contrapalavra de outro participante, pode se sentir corrigido pelo colega. O terapeuta deve, desse modo, mediar essa situação, para que seja criado e mantido o sentimento de solidariedade no grupo. Manter tal sentimento pressupõe, quando da detecção de conflitos nas interações, tentar desestabilizar essa situação, por meio da retomada, com os participantes do grupo, dos objetivos em comum.

Além disso, o terapeuta também pode, nessa situação, mostrar ao sujeito que a linguagem escrita é construída por meio da interação com o outro e que, por isso, se em alguns momentos o outro mostra as inadequações e aponta uma alternativa mais adequada, em outros momentos será ele quem estará mediando uma situação de aprendizagem para o outro.

Ainda, pode fazer com que os sujeitos percebam que muito dos conhecimentos que possuem são diferentes dos conhecimentos dos outros, e que a riqueza da situação de grupo está na troca desses conhecimentos. Essa estratégia pode ser um recurso interessante na medida que conscientiza o sujeito do papel e da necessidade do outro.

Esse episódio também evidencia de que forma abordam-se as substituições de grafemas que se opõem pelo traço de sonoridade e que muitas vezes estão presentes nas escritas dos pacientes que apresentam dificuldades com relação a esse aspecto da língua. Acredita-se que o "exercício" da leitura é fundamental à apropriação da ortografia da língua, e é por meio desse exercício/uso que se vê as possibilidades de os sujeitos assimilarem a grafia das palavras. Assim, trazer o conhecimento linguístico deles durante a produção textual é tornar o processo interativo e, portanto, efetivo. Chamar a atenção dos participantes do grupo para a existência ou não das palavras é buscar o saber linguístico já internalizado, pois um sujeito usuário da língua portuguesa escrita costuma conhecer as palavras frequentes em sua língua, podendo discernir sobre a adequação do uso de determinado vocábulo. Acrescenta-se a isso que, mesmo que se produza, com a substituição de um grafema, outra palavra existente na língua (vaca/faca; pato/bato; queijo/queixo etc), o sujeito, ao usar a língua, se dá conta, através do contexto semântico, da impossibilidade desse uso.

O que podemos notar, no que diz respeito a algumas escolas, é que as crianças não são conduzidas a ler um texto de fato, quando muito, ficam presas à decodificação do material lido. Com isso, muitos alunos tendem a não perceber os contextos de uso, já que em práticas descontextualizadas, não se faz uso da língua e, neste não-uso, tanto faz se uma palavra significa ou não, já que não se pretende, ou melhor, não se é conduzido a uma atitude de leitor; isto é, aquele que lê procurando estabelecer sentidos aos textos. Se o que se objetiva com a prática da leitura é apenas decodificar, é natural que os alunos apresentem dificuldades de leitura e escrita. Acreditamos que trabalhar na dimensão discursiva da linguagem, buscando a significação dos vocábulos por meio dos conhecimentos linguísticos dos sujeitos, permite conduzi-los à superação das ditas trocas de letras. Para além disso, modifica-se o estatuto de "mau escritor" e "mau leitor" para o de autor e leitor proficientes.

Em suma, a atuação fonoaudiológica tomada aqui como exemplo revelou o quanto o trabalho em grupo é efetivo, pois propicia a construção conjunta de conhecimentos. No grupo é criado um espaço de ensino-mediação-aprendizagem. Nesse espaço, os papéis, inicialmente, podem ser assim distribuídos: o terapeuta é o mediador, é aquele que realiza as perguntas geradoras de desenvolvimento, é aquele que leva os sujeitos a refletirem sobre a linguagem e, ao mesmo tempo, oportuniza situações para que as experiências entre os integrantes do grupo sejam trocadas. Mas esses papéis não são fixos, pois as funções de ensinar e aprender são intercambiadas por todos dentro do grupo, ou seja, todos os componentes, inclusive a terapeuta, são ora ensinantes, ora aprendizes. Cabe dizer que mesmo os sujeitos/pacientes em situação de terapia fonoaudiológica (em razão de suas dificuldades de linguagem escrita) estão na posição de aprendizes e de ensinantes, pois na interação grupal desenvolvem e compartilham saberes e conhecimentos. Assim, todos ensinam e aprendem uns com os outros. Essa responsabilidade/comprometimento com o outro, com o aprender do outro, pode ser compreendida como responsabilidade e comprometimento consigo mesmo11. Signor R. Os gêneros do discurso como referenciais para a atuação fonoaudiológica. [dissertação]. Florianópolis (SC): UFSC; 2010.. Essa parceria com o grupo advém, dentre outros aspectos, de vivências/experiências anteriores; o outro, o parceiro de terapia, é aquele que igualmente já passou por situações de exclusão e estigma; é como se com a convivência fosse se formando um estado de acolhimento recíproco. É como se cada um se visse no outro e, portanto, o sucesso do outro representa o próprio sucesso11. Signor R. Os gêneros do discurso como referenciais para a atuação fonoaudiológica. [dissertação]. Florianópolis (SC): UFSC; 2010..

Assim, a função da terapia vai além da constituição de um locus para a apropriação da linguagem escrita, o que inclui um espaço terapêutico onde o sujeito se sinta incluso, necessário ao grupo; em outros termos, é favorecer um sentimento de pertença1717. Santana AP. Grupo terapêutico no contexto das afasias. Dists Comun. 2015;27(1):4-15.. Cabe dizer que a situação de exclusão social vivenciada em muitas escolas e refletida nos discursos das famílias, dos professores e das próprias crianças, deve ser revertida em uma situação de inclusão, pois a exclusão gera sintomas que tendem a afastar a criança da escrita. A desestigmatização é fundamental para o progresso em terapia. E o terapeuta, à medida que valoriza seu sujeito/paciente, que delega a ele funções dentro do grupo, que significa e interpreta suas ações de linguagem, está colaborando para a ressignificação da autoimagem comprometida no contexto escolar11. Signor R. Os gêneros do discurso como referenciais para a atuação fonoaudiológica. [dissertação]. Florianópolis (SC): UFSC; 2010..

Conclusão

O objetivo deste trabalho foi apresentar os aspectos teórico-metodológicos da abordagem grupal centrada na perspectiva enunciativo-discursiva e analisar sua eficácia. De maneira sucinta, os procedimentos envolvem: formação do grupo de terapia; análise das vivências letradas e levantamento de interesses dos sujeitos; seleção de gêneros abordados na terapia; levantamento de corpus de textos nos gêneros selecionados; leitura e análise linguístico-discursiva dos textos; produção textual no gênero; revisão dos textos escritos (aspectos formais e discursivos) e publicação do material produzido.

Os sujeitos deste estudo que no início dos atendimentos rejeitavam as atividades de leitura e escrita, na medida que participavam de práticas sociais de linguagem, não só aceitaram como se engajaram ativamente nessas atividades. Ou seja, os integrantes do grupo que inicialmente estavam postos em uma posição de "incapacidade linguística", modificaram seu estatuto para co-construtores de um saber sobre a língua e passaram a ser coautores de textos produzidos pelo grupo. Todos os participantes do estudo apropriaram-se dos gêneros abordados em terapia e apresentaram avanços significativos nos aspectos formais, textuais e discursivos da linguagem escrita. Três deles (J, M e L) receberam alta fonoaudiológica ao término da pesquisa. ED desistiu do processo terapêutico quando já estava em estágio avançado. D, por sua vez, prosseguiu em atendimento por mais seis meses.

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  • 17
    Santana AP. Grupo terapêutico no contexto das afasias. Dists Comun. 2015;27(1):4-15.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    21 Maio 2015
  • Aceito
    11 Ago 2015
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