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Prevenção e intervenção em casos de tendência antissocial em uma perspectiva winnicottiana: alterações de linguagem como sintoma inicial da deprivação ambiental

RESUMO

Objetivo:

realizar uma reflexão teórico-prática sobre o comportamento antissocial, sob uma perspectiva winnicottiana e sua relação com a presença de alterações de linguagem como sintoma inicial.

Métodos:

revisão teórica do amadurecimento emocional do sujeito e suas implicações para prevenção e intervenção, contextualizadas aos dias atuais, considerando o distúrbio de linguagem como sintoma inicial a partir da vinheta de três casos que chegaram a uma clínica-escola de Fonoaudilogia.

Resultados:

eles demonstraram a atualidade e pertinência teórica dos conceitos winnicottianos quando utilizados na reflexão clínica de casos de distúrbios de linguagem nos quais houve deprivação ambiental.

Conclusão:

a tendência antissocial pode ter como sintoma inicial a presença de alteração de linguagem oral ou escrita.

Descritores:
Transtorno da Personalidade Antissocial; Intervenção na Crise; Prevenção Primária; Saúde Mental; Distúrbio de Linguagem

ABSTRACT

Purpose:

to carry out a theoric-pratical reflection on antisocial behavior, under a Winnicott's perspective and its relation with language disturbs as initial symptom of environmental deprivation.

Methods:

theoretical revision of emotional maturation of the subject and its implication for prevention and intervention policy, contextualized to the present day, considering the language disorder as initial symptom of environmental deprivation by three cases reported that arrived in a scholar-clinic of speech therapy.

Results:

they demonstrated the theoretical relevance of Winnicott concepts when used in clinical reflection of cases of language disorders in which there was environmental deprivation.

Conclusion:

the antisocial behavior can make language oral and write disorder as initial symptom.

Keywords:
Antisocial Personality Disorder; Crisis Intervention; Primary Prevention; Mental Health; Language Disorder

Introdução

Cuidar de uma criança ou adolescente difícil não é uma tarefa simples, isso porque o ambiente deve estar estável o suficiente para não se abalar com os momentos de tentativas destrutivas ocorridas. Poderá ser desconfortável para os pais, escola, comunidade ou terapeuta assistir a um momento agressivo expresso no comportamento da criança ou adolescente antissocial, principalmente se o ambiente sofrer diretamente algum ataque.

É comum observar a punição como forma de reação frente a um comportamento antissocial, porque a maioria dos ambientes, principalmente os externos (não familiares), como escola, por exemplo, não dispõem de elementos suficientes para suportar e trabalhar a expressão agressiva de um sujeito, uma vez que esta pode ser danosa ou ameaçadora. Apesar disso, é importante que aqueles que estão pessoalmente envolvidos com a criança ou adolescente antissocial, estejam atentos a esperança subjacente a atuação.

Desta forma, torna-se de fundamental importância conhecer as origens do comportamento antissocial para dar subsídios e conhecimento para que as pessoas envolvidas com estas crianças e adolescentes possam perceber o real significado destes comportamentos e intervir da melhor forma possível pensando, até mesmo, em prevenir novas recidivas comportamentais e evitar, tratando, logo no início dos primeiros sinais da tendência antissocial, em um nível preventivo, o surgimento e a cristalização de sintomas. É importante ressaltar, conforme se verá na vinheta dos casos analisados, que o distúrbio de linguagem pode ser o primeiro sintoma em alguns casos, de deprivação ambiental. Por isso, a relevância da presente reflexão teórica para o campo fonoaudiológico.

Para refletir sobre tais temas, realizou-se um estudo teórico nas obras de Winnicott e em autores winnicottianos contemporâneos para poder trazer elementos que subsidiem profissionais da saúde a lidar com tal tema, sobretudo aqueles que trabalham em saúde mental, no ambiente escolar, na puericultura, entre outras atividades de cuidado, pois a identificação precoce é fundamental para a reversão dos sintomas, seja por ações pontuais junto a família ou mesmo por meio do encaminhamento para intervenção terapêutica. Esta comunicação também apresenta uma vinheta teórica de três casos clínicos, um de deprivação precoce, e dois casos clínicos de uma mesma família em que a tendência antissocial se expressava inicialmente associada ao distúrbio de linguagem oral no irmão menor e de linguagem escrita e aprendizagem no irmão maior, para refletir alguns dos conceitos teóricos mobilizados a partir da revisão teórica das obras de Winnicott (1896-1971). As obras consultadas evidenciam que o renomado psicanalista inglês constatou a importância das primeiras relações do bebê com sua mãe e a dependência deste dos cuidados ambientais como fundamentais na constituição do seu psiquismo. Na Segunda Guerra Mundial observou crianças que sofreram os efeitos nocivos da privação ambiental e que, posteriormente, apresentaram tendências antissociais e comportamentos delinquentes.

Considerando tais aspectos, o objetivo desta comunicação é realizar uma reflexão teórico-prática sobre o comportamento antissocial, sob uma perspectiva winnicottiana e sua relação com a presença de alterações de linguagem como sintoma inicial da deprivação ambiental.

Métodos

Para a realização desta comunicação foram realizadas pesquisas teóricas em livros de Winnicott sobre o tema e em artigos que referissem o autor ou o desenvolvimento infantil, em revistas indexadas no sistema scielo, nos últimos 5 anos, construindo, portanto, uma revisão narrativa da literatura.

As vinhetas dos casos clínicos foram retiradas de estudos do grupo de intervenção precoce do qual fazem parte os autores, a partir da autorização do comitê de ética pesquisa da universidade, para realizar pesquisas clínicas no projeto "Funções Parentais e Fatores de Risco para a Aquisição da Linguagem: intervenções fonoaudiológicas" aprovado sob número de CAE 0284.0.243.000-09, no Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Maria. Os responsáveis a participar da pesquisa tiveram acesso à leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o assinaram concordando com a divulgação dos dados.

A análise dos dados para este artigo concentrou-se nos conteúdos clínicos pertinentes a discussão teórica desta comunicação. Os mesmos foram analisados a partir dos diários terapêuticos de prontuário e da lembrança da segunda autora sobre os temas dos casos aqui pertinentes, visto que era a clínica responsável pelos casos. Não há, portanto, a intenção de apresentar os casos na integra, mas suas vinhetas no que concerne ao debate teórico aqui realizado.

Resultados

Os resultados estão serão expostos em duas seções. A primeira versa sobre a pesquisa teórica e a segunda sobre como operacionalizar as intervenções a partir de vinhetas de casos clínicos.

Os Fatores Ambientais e suas Implicações no Desenvolvimento da Tendência Antissocial

O ambiente exerce inegável influência no desenvolvimento de uma criança. Esta influência pode ser tanto positiva quanto negativa para um desenvolvimento saudável. A partir disso é possível pensar na existência de fatores que podem gerar e ter relação com situações de sofrimento, sintoma ou patologias11. Winnicott DW. Privação e Delinquência. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2012.)-(44. Winnicott DW. Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago; 1990.. No comportamento antissocial houve uma falha, em algum momento, durante o processo de desenvolvimento. Esta afirmativa provoca uma reflexão acerca dos fatores ambientais e relacionais que possam ter acompanhado o desenvolvimento de uma conduta entendida como antissocial, de forma que seja possível encontrar justificativas para a mesma, enfatizando o ambiente e as pessoas responsáveis pelo desenvolvimento emocional da criança.

No percurso do desenvolvimento emocional, existem aspectos incontestáveis para que este ocorra de forma esperada, como: a relação primitiva do bebê com sua mãe (ou cuidadora) e a relação com o ambiente55. Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed; 1983.). A teoria do amadurecimento busca compreender o que pode acontecer, no desenvolvimento do bebê, quando a maternagem é ineficiente assim como, opostamente, quando há um ambiente e uma mãe suficientemente boa.

Há mães que, por algum motivo, não cumprem com êxito as funções de uma mãe suficientemente boa realizando uma maternagem deficiente que pode conduzir ao surgimento de um sintoma ao longo do processo de amadurecimento pessoal. Embora a preocupação materna primária seja um estado psicológico naturalmente desenvolvido com a maternidade, existem mulheres que resistem em assumir tal papel, visto a regressão demandada nesta posição. Direcionadas às suas atividades, algumas mulheres não conseguem e não permitem uma identificação com seu bebê. Muitas irão realizar uma maternagem rígida e regida por regras intelectualmente estabelecidas, onde talvez, consigam prover seu bebê de alguns cuidados básicos, mas não serão capazes de desenvolver uma comunicação profunda e significativa com seu filho. O bebê, possivelmente, não terá suas demandas identificadas e atendidas, pois a mãe que age mecanicamente não pensa nas necessidades do bebê, mas naquilo que precisa ser feito, determinado por ela própria, em termos de cuidados, alimentação e higiene 55. Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed; 1983.)-(88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011..

Possivelmente haverá déficit no amadurecimento quando existir falhas no processo de desenvolvimento da criança. O déficit está vinculado diretamente ao momento em que as falhas ocorreram na linha de evolução, que parte do estágio de dependência absoluta, passando pela dependência relativa, rumo à independência relativa. Considerando esta perspectiva, se houver fracasso das funções maternas e do ambiente, no qual o bebê estiver vivenciando a etapa de dependência absoluta, poderá ocorrer uma paralisação ou interrupção no processo de amadurecimento. Distúrbios afetivos e até mesmo patologias mais graves poderão estruturar-se22. Mello FJ. O ser e o viver: Uma visão da obra de Winnicott. 2ªEd. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2011.),(55. Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed; 1983.)-(77. Winnicott DW. Da pediatria a psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 2000..

Alguns sintomas podem estar relacionados com os tipos de falhas no cuidado-holding, manejo-handling e apresentação de objetos (cuidado de tipo materno). As falhas em estágios primitivos do desenvolvimento podem também contribuir para patologias graves. Nos estágios posteriores as patologias serão cada vez menos graves em função do amadurecimento do ego33. Abadi S. Transições: o modelo terapêutico de D. W. Winnicott. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1998.),(88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.)-(1111. Dias EO. A teoria winnicottiana do amadurecimento como guia da prática clínica. Nat. hum. 2008;10(1):29-46..

No estágio de dependência absoluta as condições, da mãe e do ambiente, precisam ser suficientemente boas para que não se desenvolva uma deficiência mental não-orgânica ou uma esquizofrenia1111. Dias EO. A teoria winnicottiana do amadurecimento como guia da prática clínica. Nat. hum. 2008;10(1):29-46.. No estágio de dependência relativa existe uma pessoa que pode ser traumatizada e, portanto, uma falha pode acarretar tendências antissociais e distúrbios afetivos. Na independência relativa, na qual a criança tende a apresentar a capacidade de cuidar de si mesma a falha ambiental não será necessariamente prejudicial. Isto porque no início do desenvolvimento a dependência do bebê, em relação ao ambiente e sua mãe é absoluta. Esta dependência vai tornando-se relativa e cada vez menos necessária nos estágios posteriores do desenvolvimento infantil55. Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed; 1983.),(1010. David M, Wallbridge D. Limite e Espaço: Uma introdução à obra de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago; 1982.. Contudo, seja qual for o estágio do desenvolvimento que se considere, é importante salientar que os conflitos da criança e a forma com que o ambiente os recebe sempre serão aspectos centrais do desenvolvimento, seja ele sadio ou patológico.

A doença psíquica seria um tipo de imaturidade ou uma parada no continuar a ser do indivíduo, por defesa ou reação contra a angústia que emerge diante de uma invasão, ou do impedimento de algo que precisava ter acontecido e não aconteceu. A doença é resultado de uma falha nos cuidados primordiais e na provisão do ambiente ou simplesmente uma privação desses elementos11. Winnicott DW. Privação e Delinquência. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2012.),(33. Abadi S. Transições: o modelo terapêutico de D. W. Winnicott. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1998.),(99. Dias EO. A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. 3ª Ed. São Paulo: DWW Editorial; 2014.),(1111. Dias EO. A teoria winnicottiana do amadurecimento como guia da prática clínica. Nat. hum. 2008;10(1):29-46..

No âmbito dos comportamentos antissociais há, por trás do sofrimento vivenciado, um histórico de falhas produzidas por um ambiente que não foi suficientemente bom, na medida em que não se ajustou as demandas do bebê, durante os estágios de dependência. Apesar de muito pequeno o bebê não consegue organizar-se para defender-se da ansiedade originada da falha ambiental, apesar de senti-la.

Quanto aos aspectos da tendência antissocial, pode-se dizer que essa surge como reação primitiva à perda da confiabilidade na mãe e no ambiente. Esta perda pode ter ocorrido em um momento em que o desenvolvimento do bebê ocorria de forma plena, onde o ambiente proporcionava todos os cuidados suficientemente bons para o crescimento da criança, mas que em determinado momento falhou, ou seja, perdeu-se naquele momento algo necessário para o desenvolvimento sadio da criança. Portanto, as crianças que desenvolveram a tendência antissocial podem ter apresentado um bom início em seu desenvolvimento emocional. Em virtude de uma retirada ou mudança inesperada dos cuidados que recebia até então, a criança sofreu uma quebra de apoio significativa para interromper o ciclo sadio do amadurecimento emocional11. Winnicott DW. Privação e Delinquência. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2012.),(22. Mello FJ. O ser e o viver: Uma visão da obra de Winnicott. 2ªEd. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2011.),(88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.. Esta quebra, falha dos cuidados que a criança recebia e que por algum motivo parou de receber, no estágio de dependência relativa, é denominada de deprivação (deprivation), ou seja, deu-se a perda de algo bom e que ocorreu durante um período maior do que aquele que poderia ter sido suportado pela criança1212. Newman A. As Ideias de D.W. Winnicott: Um Guia. Rio de Janeiro, Imago; 2003.),(1313. Garcia RM. O uso da consulta terapêutica na clínica da tendência anti-social. Nat. hum. 2005;7(1):209-34..

No estágio de dependência relativa já existe uma certa maturidade do ego adquirida e possibilita a criança perceber que a falha vem do ambiente. É esta percepção e esta capacidade da criança que determinam o desenvolvimento de uma tendência antissocial, ao invés de uma doença psicótica, que tem sua origem nas falhas ocorridas no estágio de dependência absoluta. Mas apesar do estado de maturidade do ego, a tendência antissocial se dará pelo sujeito ainda ser frágil e desse modo não ser ainda capaz de cuidar de si, evitando o sofrimento, contra as falhas ambientais11. Winnicott DW. Privação e Delinquência. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2012.),(22. Mello FJ. O ser e o viver: Uma visão da obra de Winnicott. 2ªEd. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2011.),(88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011..

A previsibilidade e constância, que produz o sentimento de confiança no ambiente são essenciais para que o bebê tenha segurança suficiente para enfrentar os conflitos pertinentes ao amadurecimento. O sentimento de segurança de uma criança está intimamente conectado com o tipo de relação que mantém com seus pais. O bebê naturalmente espera que seus pais forneçam as referências ambientais suficientes para o seu desenvolvimento. Se estes falharem poderá a criança chegar ao ponto de recorrer a um ambiente externo que lhe aponte confiança. Como na criança antissocial, que recorre à sociedade um pedido de limite e estabilidade de que necessita para dar continuidade ao seu crescimento pessoal11. Winnicott DW. Privação e Delinquência. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2012.),(22. Mello FJ. O ser e o viver: Uma visão da obra de Winnicott. 2ªEd. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2011.),(44. Winnicott DW. Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago; 1990.),(1313. Garcia RM. O uso da consulta terapêutica na clínica da tendência anti-social. Nat. hum. 2005;7(1):209-34..

Só quando há segurança no ambiente que o bebê pode utilizar seus impulsos, inclusive de agressividade, de forma positiva, sem criar dificuldades para o ambiente e para si. A agressividade, principalmente aquela, expressa pelo bebê em seu primeiro ano de vida e que coexiste com o amor, deve ser suportada pelo ambiente se este desejar contribuir para o desenvolvimento emocional da criança. O ambiente necessariamente precisa manter-se estável e intacto aos ataques sofridos. É a permanência do ambiente e da mãe do bebê, a estas manifestações, que possibilitam a ele o sentimento de continuar existindo55. Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed; 1983.),(66. Winnicott DW. A família e o desenvolvimento individual. 4ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.),(88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.),(99. Dias EO. A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. 3ª Ed. São Paulo: DWW Editorial; 2014..

O desenvolvimento saudável da criança necessita de um sentimento de confiança, que seja constante e capaz de recuperar-se sempre após um ataque, pois a confiança no ambiente será testada pela criança sempre que esta sentir necessidade. Somente com a permanência do ambiente confiável e seguro é que o bebê desenvolverá a capacidade de preocupar-se quanto aos seus atos, redirecionar seus impulsos agressivos a impulsos construtivos. Em contrapartida, caso não haja confiabilidade mínima, a criança poderá se desenvolver com distorções, como a ausência essencial de culpa em sua personalidade77. Winnicott DW. Da pediatria a psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 2000.),(99. Dias EO. A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. 3ª Ed. São Paulo: DWW Editorial; 2014.. Se não for possibilitado à criança desenvolver o sentimento de culpa, ela poderá chegar ao estado de não permitir o impulso. Ela será dominada pela inibição, pelo medo, em relação a todos os sentimentos construídos por meio dos impulsos agressivos11. Winnicott DW. Privação e Delinquência. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2012.),(88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011..

Para expressar os impulsos agressivos é necessário sentir-se seguro em relação ao ambiente. É necessário estar desenvolvido em termos de personalidade total para poder dar conta da responsabilidade que a expressão destes impulsos exige. A destrutividade pertence a todos os sujeitos, quando se perde o direito de exercê-la e de dar conta dela paga-se um preço por isso. Perde-se a capacidade de assumir responsabilidades e a saúde psíquica está atrelada a esta capacidade88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011..

É importante lembrar também que a agressividade está ligada aos sentimentos de amor e ódio, mas a agressão estaria relacionada ao medo. Winnicott88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011. é enfático ao afirmar que a expressão da agressividade não deveria ser negada, pois só assim o ser humano poderá aproveitá-la para reparar e restituir suas ações agressivas por meio do desenvolvimento de recursos internos, de um bom ambiente interno. Para o amadurecimento do ser é fundamental o desejo inconsciente de querer reparar, corrigir, drenar o instintual, reconhecer a crueldade que existe em si. Este é o único caminho para sublimar estes impulsos por meio de atividades construtivas. A criança cujo lar não lhe ofereceu um sentimento de segurança e de acolhimento para estas manifestações poderá buscar uma referência fora de casa, recorrendo aos avós, tios e tias, amigos da família, escola. A criança antissocial, da mesma forma, busca olhar mais longe recorrendo à sociedade ao invés da família buscando a estabilidade de que necessita, a fim de transpor os primeiros estágios de seu crescimento emocional. Se ela não teve a oportunidade de criar um bom ambiente interno, buscará por um controle externo.

Os momentos de esperança são característicos da criança que apresenta comportamento antissocial. A partir da falha ambiental, o quadro de referências da criança se desfaz, tornando-a demasiadamente angustiada. Se ainda há esperança, há busca de novas referências, de uma estabilidade externa que lhe garanta manutenção de um estado de integração11. Winnicott DW. Privação e Delinquência. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2012..

Quando a criança se comporta de modo antissocial, não significa necessariamente que está doente, o comportamento antissocial, na maioria das vezes, é um pedido de um controle que precisa vir do exterior e realizado por pessoas fortes, amorosas e confiantes, que possibilitem um envolvimento afetivo. Mas a palavra doença torna-se algumas vezes apropriada já que para muitas crianças o sentimento de segurança não chegou a fazer parte de sua vida. Estando sob o controle exterior a criança antissocial poderá ficar bem. Ela busca por este controle e quando não o tem e irá, em algum momento, sentir-se ameaçada pela loucura, transgredindo contra a sua família ou sociedade inconscientemente objetivando restituir o controle advindo do ambiente externo. Esta busca está permeada por um sentimento de esperança. Esperança de encontrar no ambiente externo aquilo que falhou em um estágio do seu amadurecimento. No caso da tendência antissocial, no estágio de dependência relativa11. Winnicott DW. Privação e Delinquência. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2012.. Ainda assim, o comportamento antissocial não deve ser entendido como doença, na medida em que seus atos, carregados de esperança são um indicativo de que existe ainda um desejo de cura. E isto é sinal de saúde. É a tentativa de vencer a carência de segurança uma vez vivenciada pela falha ambiental22. Mello FJ. O ser e o viver: Uma visão da obra de Winnicott. 2ªEd. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2011.),(88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011..

A criança com tendência antissocial irá tentar, algumas vezes, recuperar algo que era seu, como a capacidade e continuidade para o amadurecimento. Ao permanecer esperançosa buscará o objeto bom, que embora lhe tenha sido apresentado, não o foi exatamente no momento necessário. Quando a mãe não capacita o bebê a encontrar objetos de modo criativo, não exercendo plenamente, sua função materna de apresentação de objetos apresentando-lhe o seio nos períodos que o bebê tem fome e busca saná-la, por exemplo, ele poderá perder o contato sadio com os objetos e a capacidade de encontrar qualquer coisa criativamente, bem como a realidade subjetiva, a ilusão de onipotência, fundamental para posteriormente perceber a realidade de modo objetivo66. Winnicott DW. A família e o desenvolvimento individual. 4ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.),(88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.),(1414. Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.. Neste sentido, justificam-se os atos antissociais praticados por crianças ou adolescentes, quando ainda existe esperança de encontrar o objeto uma vez perdido. Isto pode ser caracterizado com o momento do roubo em que o que importa e tem valor para a criança não é o objeto roubado. O que tem valor para a criança é o que ela alcança a partir do objeto roubado. O desejado neste caso é o afeto, o carinho materno, que são da criança por direito. No comportamento antissocial é observável o fato de que o sujeito tem o impulso de busca também pelo pai. Uma figura de poder, de força. Diante do que o pai representa é que a criança terá a possibilidade de recuperar seus impulsos de amor assim como o sentimento de culpa e o gesto de reparação.

Os comportamentos agressivos, geralmente, surgem no social como uma expressão não esperada e não aceita. Isto resulta na incapacidade de lidar com estes. Tanto a família, como a sociedade em geral, pode fracassar ao não entenderem o significado destes comportamentos. Por não ter este conhecimento provavelmente não atenderá às necessidades da criança que comete um ato deste tipo.

Há nessas crianças duas forças que disputam espaço dentro da sua personalidade. Quando ocorre das forças de ódio ameaçarem dominar as forças do amor, é necessário fazer algo para se preservar. Para tanto, é possível que sinta a necessidade de externalizar sua realidade interior, a qual é difícil de ser suportada, representando um papel destrutivo em busca de controle por alguma autoridade no ambiente externo. Muitas vezes, esta demanda não é possível de ser alcançada pela incompreensão dos responsáveis.

Na tendência antissocial o sujeito sente-se, em algum momento, atacado pelo ambiente. A reação a isso poderá ser a de um ataque contra este mesmo ambiente. Este é um dos motivos do comportamento antissocial se manifestar no lar ou em uma esfera mais ampla.

O ideal seria que o ambiente, respondesse aos atos antissociais da criança reconhecendo-os e administrando-os. Desse modo o momento de esperança poderia ser correspondido. O ambiente que não responde dessa forma deixa a criança sem esperança e é novamente no ato antissocial que ela vai reencontrá-la11. Winnicott DW. Privação e Delinquência. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2012.),(22. Mello FJ. O ser e o viver: Uma visão da obra de Winnicott. 2ªEd. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2011.),(88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011..

Parece ser de extrema importância, em relação à tendência antissocial, que atitudes sejam tomadas no princípio do seu desenvolvimento, sejam elas no âmbito familiar ou da clínica. Torna-se cada vez mais difícil alcançar a cura para a tendência com o passar do tempo e a criança pode torna-se cada vez mais difícil. É importante evitar que a defesa antissocial organizada se instale na conduta do sujeito, pois isso resultaria na delinquência, e esta já é considerada como um fenômeno clínico para a psicologia. Na delinquência estão acrescidos os ganhos secundários aos atos e isto torna ainda mais difícil a possibilidade de intervenções que levem à cura. Além disso, as reações sociais, frente aos atos delinquentes, intensificam-se tornando a situação ainda mais difícil.

Para que os casos de tendência antissocial não evoluam para a delinquência é fundamental uma atitude vinculada a cuidados básicos com o objetivo de prevenir a manifestação da própria tendência antissocial, uma vez que pais e responsáveis seriam orientados e informados sobre a relevância das suas funções e papéis para o desenvolvimento saudável de seus filhos. Entenderiam que diante da não realização de atributos ambientais suficientes para o amadurecimento emocional um comportamento antissocial pode se apresentar como reação à deprivação.

O distúrbio de linguagem como sintoma inicial da tendência antissocial

Parece fundamental que em um primeiro momento, nos primórdios da tendência antissocial, o ambiente deveria ser capaz de dar conta da recuperação da criança com características antissociais por seus próprios meios, sem precisar de auxílio terapêutico externo.

A criança pode ter a sorte de contar com um ambiente capaz de curá-la por meio do restabelecimento da provisão de cuidados essenciais, em algum momento perdidos. Sem dúvida, este seria o ideal de cura. A cura a qual aqui se refere é aquela proveniente de cuidados afetivos e emocionais e não aquela que resulta de tratamento especializado22. Mello FJ. O ser e o viver: Uma visão da obra de Winnicott. 2ªEd. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2011.),(88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.),(1212. Newman A. As Ideias de D.W. Winnicott: Um Guia. Rio de Janeiro, Imago; 2003.. Os cuidados especiais, recebidos na própria família, poderiam compensar a deprivação sofrida. A escola ou outras instituições também podem corrigir a falha provendo um contexto ambiental reparador. O auxilio adequado pode levar o sujeito a retroceder o momento anterior à falha e assim redescobrir o objeto bom que se perdeu33. Abadi S. Transições: o modelo terapêutico de D. W. Winnicott. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1998..

Segundo Winnicott, é no ambiente familiar que deve ocorrer o primeiro tratamento dos comportamentos antissociais, pois é a família que tem um significado especial na vida do sujeito e que poderá auxiliá-lo, melhor do que qualquer outra pessoa ou instituição, a superar seus sintomas e reestabelecer o curso do seu desenvolvimento emocional por meio do suprimento de falhas sofridas. O ambiente deve estar disponível ao diálogo com a criança e facilitar a integração da sua impulsividade. É importante exercer a lei da qual a família é responsável, sem usar retaliações ou simplesmente punir1515. Dias EO, Loparic O. O modelo Winnicott de atendimento ao adolescente em conflito com a lei. Winnicott e-Prints. 2008;3(1,2):47-60..

Por todas as razões já explicitadas a família deve servir como um instrumento terapêutico nos trabalhos de intervenção ou de prevenção nos casos de comportamentos antissociais. A presença de um terapeuta especializado pode ser importante no sentido de informar ao grupo familiar a sua capacidade de recuperar a criança que apresenta este comportamento. Identificá-lo no início possibilita uma intervenção rápida a qual pode ser de caráter preventivo em relação ao estabelecimento uma defesa antissocial organizada22. Mello FJ. O ser e o viver: Uma visão da obra de Winnicott. 2ªEd. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2011.),(1313. Garcia RM. O uso da consulta terapêutica na clínica da tendência anti-social. Nat. hum. 2005;7(1):209-34..

Considerando esse momento precoce, podem ser trazidas duas vinhetas de dois casos clínicos de crianças em idade de intervenção precoce cujo primeiro sintoma da deprivação ambiental foi o distúrbio de linguagem: o primeiro de uma menina de 2 anos e 6 meses que foi encaminhada a atendimento fonoaudiológico por falar pouco e o segundo de um menino de 2 anos que também chegou a clínica escola pelo mesmo motivo. Nos dois casos foram identificados sinais importantes, embora diversos de falhas ambientais.

No caso da menina, quando a mesma estava com 6 meses de idade a mãe sofreu cirurgia de vesícula que causou complicações que quase a levaram à morte e resultaram em um afastamento abrupto da menina durante 56 dias. Como efeito deste afastamento houve um retraimento da menina em relação a entrar em relação com a mãe. Somaram-se a esse retraimento, momentos de oscilação de humor, irritabilidade por qualquer ruptura em suas expectativas, condutas alimentares compulsivas o que a levou a ficar no limite de peso e atraso na aquisição da linguagem. A intervenção precoce se deu nessa época por meio de atendimentos conjuntos mãe-filha, inicialmente por uma fonoaudióloga que investiu em atividades lúdicas conjuntas e musicais de modo a tentar restabelecer um ambiente assegurador para a menina. Isso resultou no início da fala, na diminuição da oscilação de humor da menina e também das condutas alimentares compulsivas, bem como no restabelecimento de uma relação saudável entre mãe e filha. A família compreendeu que o comportamento retraído da menina não era, como afirmava o neuropediatra, necessariamente um comportamento do espectro do autismo, mas possivelmente uma reação à falha ambiental provocada pela ruptura abrupta no contato mãe-filha que se deu de modo precoce e intenso. Explicou-se também a mãe e ao pai, já nas primeiras sessões, que seria necessário restabelecer a relação mãe-filha e ter paciência com uma eventual retomada da simbiose que teria um efeito reparador para a menina. Ao pai, caberia um papel de sustentação do ambiente familiar para que tal efeito reparador se desse. Foi exatamente o que foi observado já no primeiro mês de intervenção precoce. No segundo mês, percebendo dificuldades nas interações familiares, que incluíam a irmã mais velha de 5 anos, encaminhou-se a família para um suporte terapêutico com psicóloga. Em seis meses a menina teve alta da intervenção fonoaudiológica e continuou na intervenção psicológica, pois se percebeu que o sintoma de linguagem cedeu e os problemas comportamentais passaram a ser a tônica do caso, embora mais atenuados do que seis meses antes, ao início do trabalho fonoaudiológico.

O caso do menino tomou um rumo muito distinto, pois se tratava de uma mãe presente, mas com um comportamento violento. Seguidamente, o menino vinha arranhado, impossibilitado de sentar por dor, em função das agressões físicas maternas. Esse fato se expressava em uma apatia do menino que não o fazia ter qualquer intenção comunicativa. A partir da intervenção precoce com o menino, e de entrevistas continuadas com a mãe, foi possível diminuir a violência doméstica e mobilizar no menino um ambiente assegurador para que pudesse ter ao menos parcialmente reparada a ausência/dificuldade de holding e handling maternos. O menino foi atendido por estagiário de fonoaudiologia e as entrevistas continuadas feitas pela segunda autora deste artigo, então supervisora do estágio. Observou-se nas entrevistas continuadas que a mãe sofrera de violência doméstica com a própria mãe e que a consciência de que estava repetindo isso com o menino de dois anos e meio, e também com o irmão mais velho de 11 anos com distúrbio de linguagem escrita, foi fundamental para reverter seu comportamento e encaminha-la a atendimento psicológico. Como efeito, tanto o menino mais novo superou seu distúrbio de linguagem oral e o mais velho o distúrbio de linguagem escrita. Ainda este também superou alguns sintomas antissociais que emergiam no ambiente escolar. Também nessa família o pai foi mobilizado para ajudar no processo.

O filho de 11 anos passou de aluno problema a aluno nota dez em português e hoje é um skatista famoso em seu ambiente. Cabe ressaltar que, ao início do trabalho terapêutico realizado em um grupo de adolescentes, o menino apresentava-se desafiador e houve a tendência inicial das duas terapeutas e demais colegas do grupo para a punição. A partir de uma intervenção da segunda autora deste artigo, supervisora do grupo, em que o menino foi elogiado e trabalhado seu sentimento de pertencimento ao grupo, houve uma mudança de postura das terapeutas, do grupo e do menino. Isso demonstra que ações de acolhimento e não de punição são muito mais efetivas para a mudança de postura de crianças e adolescentes com histórico de deprivação ambiental. Outro fato relevante foi a mãe começar a investir na compra de revistas usadas de interesse deste menino a partir do momento em que, nas entrevistas continuadas, deu-se conta de que reproduzia com ele as ações violentas de seus pais com ela.

A mãe teve mais uma filha após o menino de dois anos, e não se perceberam condutas violentas com a menina. O menino mais novo continua em terapia de linguagem escrita até hoje, mas sem alterações psíquicas relevantes. O menino mais velho obteve alta naquele mesmo ano.

Discussão

Considerando o debate teórico e as vinhetas clínicas, pode-se afirmar que as intervenções devem responder às demandas do momento em que a esperança é manifestada pela criança com tendência antissocial. Quando surge a esperança o ato se faz presente.

Os sintomas antissociais são tentativas de recuperação ambiental. Os significados destes necessitam ser compreendidos, pois só assim será possível dar à criança aquilo que ela verdadeiramente necessita. Encontrar o afeto, o amor, a atenção, o carinho e resgatar a atenção do seu objeto de amor, encontrar uma resposta baseada na realidade à esperança que se expressa por meio dos atos. A criança precisa readquirir confiança no ambiente, em sua estabilidade e capacidade de reparação11. Winnicott DW. Privação e Delinquência. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2012.),(77. Winnicott DW. Da pediatria a psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 2000.),(88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.. Observa-se na vinheta de casos que foi o que ocorreu com as duas crianças pequenas e com o adolescente, um resgate da confiança na figura materna, com apoio dos pais.

Se houver a necessidade de um trabalho clínico, com um terapeuta, este precisa, necessariamente, envolver-se com o impulso inconsciente da criança. O manejo, a tolerância e a compreensão, por parte do terapeuta, são mais importantes do que as técnicas33. Abadi S. Transições: o modelo terapêutico de D. W. Winnicott. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1998.),(77. Winnicott DW. Da pediatria a psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 2000.. Nas vinhetas apresentadas, percebe-se a necessidade de intervenção clínica, pois além do fato de que sintomas de linguagem emergiram em paralelo ao problema no cuidado de tipo materno, a família não conseguiria prover um ambiente reparador sem a ajuda profissional. Percebe-se, no entanto, que se os profissionais não tivessem tido a sensibilidade de perceber que a privação da mãe ou sua violência eram aspectos cruciais dos casos não teria sido possível a escuta do sofrimento das crianças e do adolescente.

Possibilitar a criança recordar do momento da deprivação ambiental quando esta consolidou-se numa realidade inescapável, possibilitar que ela reexperimente, por meio da relação transferencial estabelecida, o sofrimento que precedeu a reação à perda, dispor de alguns cuidados que deixou de ter em sua infância, o estabelecimento de um vínculo de confiança, são condutas fundamentais do terapeuta. A criança necessita encontrar um ambiente que a cuide e a acolha. Essas condutas permitem a recuperação da capacidade de encontrar objetos, da segurança perdida, da relação criativa com a realidade externa na qual a espontaneidade era segura, mesmo envolvendo impulsos agressivos88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.. É importante ressaltar que no caso da menina isso se deu inclusive pela sustentação terapêutica de momentos agressivos corporais da menina com o terapeuta e a mãe, com orientação familiar para lidar com tais momentos. No caso dos meninos, enquanto o mais novo precisava de alguém que oferecesse afeto, escuta e segurança física, o mais velho precisou de muito incentivo para acreditar em suas possibilidades acadêmicas. A presença da lei com carinho e energia vital proporcionada pelo grupo terapêutico no qual foi inserido inicialmente, e pelos atendimentos individuais realizados pela fonoaudióloga com ele foram suficientes para prover a reparação necessária no caso do adolescente.

Se a criança for atendida por um analista é mister que o mesmo esteja preparado para suportar o impacto e a força dos aspectos do comportamento antissocial que poderão recair no contexto analítico, mas para que isso ocorra é imprescindível que a criança possa recuperar a capacidade de reviver o seu sofrimento77. Winnicott DW. Da pediatria a psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 2000.),(88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.. É interessante observar nas vinhetas apresentadas que um profissional de saúde atento, mesmo sem conhecimentos analíticos, pode ter papel importante no processo de reparação, o que não significa que se deva prescindir da intervenção analítica que poderá ter efeitos profundos e duradouros.

Quando a criança rouba ou é agressiva a reação mais comum da sociedade é a de punir, juntamente com um discurso moralista. Isso ocorre devido ao desconhecimento, por parte da grande maioria das pessoas, do real significado desses atos.

A criança não necessita ser confrontada com a moralidade, a não ser que este seja um desejo dela própria. Um inquérito em busca da verdade objetiva não produzirá nenhum sentido para ela. A sociedade infelizmente, cada vez mais, age desta forma. Esquece que uma aproximação à realidade da criança é o que poderia possibilitar a cura. Colocar-se à disposição a partir de uma comunicação em um nível profundo com a criança, é o caminho utilizado pelos terapeutas e que deveria ser seguido pela sociedade88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011., que evitaria inquéritos infrutíferos em busca de uma confissão. Comumente essas crianças encontram-se com a personalidade dissociada e a única via de acesso a elas é uma comunicação profunda e que seja reparadora da deprivação ambiental anterior 88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.),(1313. Garcia RM. O uso da consulta terapêutica na clínica da tendência anti-social. Nat. hum. 2005;7(1):209-34..

A psicoterapia deve possibilitar uma comunicação a nível profundo e isto deve ser feito o mais precocemente possível, isto é, assim que os primeiros sinais da tendência antissocial surgirem, só assim poderá haver a cura. Esta afirmativa se justifica, porque é no início da manifestação antissocial que o sujeito poderá aceitar e sentir a necessidade de curar-se, se houver a possibilidade da existência do sentimento de culpa que propiciará o desejo de uma reparação.88. Winnicott DW. Tudo começa em casa. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.) Reparar a falha ambiental neste período pode ser uma atitude preventiva ao estabelecimento de uma conduta delinquente no futuro. Este seria o ideal em termos de "cura"11. Winnicott DW. Privação e Delinquência. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2012.. As vinhetas dos casos indicam essa possibilidade, pois a tendência antissocial já manifesta no menino de 11 anos, poderia emergir mais adiante nas duas crianças pequenas. A intervenção precoce com os pequenos e uma intervenção compreensiva, reparadora, com o menino maior foram importantes para reverter a situação de deprivação ambiental, raiz da tendência antissocial do menino adolescente.

Como tratar a criança que é privada de uma família? Ela pode usufruir dos benefícios da psicoterapia e/ou ser possibilitado que ela encontre e passe a conviver em um ambiente suficientemente bom que lhe permita dar continuidade ao seu amadurecimento pessoal11. Winnicott DW. Privação e Delinquência. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2012.),(1616. Flores MR, Ramos AP . Diálogo de pais e bebês em situação de risco ao desenvolvimento. Rev CEFAC. 2014;16(3):840-52.. A criança poderá responder rápida e positivamente ao ambiente, demonstrando que as suas demandas foram atendidas e que seus problemas estão solucionados. Mas é, ao sentir alguma segurança no ambiente, que a criança poderá voltar a expressar seus impulsos de agressividade, até mesmo para testar a confiabilidade do ambiente. A nova família precisa compreender que sobreviver a estes impulsos é essencial para a cura da criança11. Winnicott DW. Privação e Delinquência. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2012..

Isso também se processa em ambientes terapêuticos como se viu na vinheta da menina pequena em momentos de birra exarcebada e agressão física a terapeuta e a mãe, e do menino adolescente que ao início do atendimento grupal tumultuava o grupo, mas que recebeu o acolhimento necessário tanto no grupo como nos atendimentos individuais, realizados a partir do segundo semestre de intervenção terapêutica. As vinhetas exemplificam o quão o fonoaudiólogo deve estar atento ao histórico geral da criança, pois entender a ligação entre aspectos psicossociais e o desenvolvimento da linguagem pode ser fundamental para o andamento do caso, como atestam inúmeros trabalhos1717. Oliveira LD, Ramos AP. A percepção materna do sintoma de linguagem em três casos de risco ao desenvolvimento e a busca por intervenção precoce. Dist Comun. 2014;26(4):656-67.)-(1919. Oliveira LD, Peruzzolo DL, Ramos AP. Intervenção Precoce em um Caso de prematuridade e risco ao desenvolvimento: Contribuições da proposta de terapeuta único sustentado na interdisciplinaridade. Dist Comun. 2013;25(2):187-202..

Há ainda uma outra modalidade de tratamento para a tendência antissocial, relatada por Winnicott em seus casos clínicos. São as consultas terapêuticas. Não se trata de psicanálise, mas o terapeuta deve estar familiarizado com a técnica psicanalítica. Este tipo de intervenção é de grande valia nos casos em que é preferível uma mudança sintomática rápida2020. Winnicott DW. Explorações psicanalíticas. D. W. Winnicott. Porto Alegre: Artes médicas; 1994.. Esta técnica foi desenvolvida para suprir a necessidade de um grande número de pessoas que procuram por ajuda, muitas delas com baixo poder aquisitivo, o que dificulta assumir um tratamento longo como a psicanálise, por exemplo, e também por, na época em que foi desenvolvida, existirem poucos profissionais disponíveis, o que acaba por se assemelhar a insuficiência de profissionais no serviço público atual para atender a demanda. Ela consistia de três entrevistas, nas quais o terapeuta colocava-se em posição de promover uma regressão até o momento da deprivação e uma reparação que permitia a criança ou adolescente continuar seu amadurecimento pessoal com a supressão da tendência antissocial. Pode-se observar que um profissional de saúde com alguma formação sobre a tendência antissocial pode viabilizar esse ambiente seguro, o que nas vinhetas aqui apresentadas se presentificou pela participação da segunda autora no atendimento terapêutico dos casos, como fonoaudióloga da menina, supervisora dos casos dos meninos e na escuta da mãe dos meninos para encaminhá-la a sua terapia.

Mesmo com todos esses recursos disponíveis para o tratamento e a cura da tendência antissocial há, na sociedade atual, uma parcela de adolescentes inseridos no mundo da violência e do crime que não foram tratados em tempo ideal ou que não tiveram possibilidade de receber nenhum tipo de atendimento, mas nem por isso devem ser ignorados. Na abordagem desses casos, há os que esperam socializar a criança e aqueles cujo objetivo é simplesmente a custódia, preservando a sociedade, até que estas crianças e adolescentes tenham idade suficiente para serem detidos no sistema prisional comum ao dos adultos, pois seguirão cometendo delitos. A sociedade precisa se responsabilizar de alguma forma, mesmo que seja apoiando quem trabalha diretamente com estes casos, pois se sabe que os que não obtiveram a possibilidade de reparação irão para os tribunais, mas aqueles que tiveram a oportunidade de serem tratados em tempo serão cidadãos contribuintes para uma sociedade mais humana e justa11. Winnicott DW. Privação e Delinquência. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2012..

Considerações Finais

A reflexão realizada nesta comunicação breve sugere a importância do tema aos profissionais de saúde e educação, pois intervenções muito breves e pontuais, a partir da compreensão dos possíveis significados da tendência antissocial podem trazer efeitos importantes na saúde mental de crianças e adolescentes, impedindo que se transformem em adultos inadaptados socialmente. Desde muito precocemente sintomas de linguagem podem anunciar que algo não vai bem no desenvolvimento infantil e a intervenção em tempo pode impedir a cristalização dos mesmos e a emergência de psicopatologias graves. A linguagem, dada sua implicação com o desenvolvimento psíquico, é um dos espaços em que o sofrimento pode emergir. Do mesmo modo, o processo de aprendizagem escolar pode ficar truncado a partir da tendência antissocial.

Como se viu nos casos exemplificados, tais sujeitos chegam à clínica fonoaudiológica, por isso, a importância desses profissionais dominarem o tema aqui relatado para que possam realizar os encaminhamentos necessários às equipes de saúde, e também sustentar os sujeitos para uma superação dos sintomas, como fazia Winnicott em suas consultas breves, até que possam ter lugar outras intervenções como a psicológica, seja ou não psicanalítica, pois há distintas perspectivas de estudos sobre delinquência dentro do campo psicológico, que abrangem aspectos éticos e sociais complexos2121. Zappe JG, Dias ACG. Violência e fragilidades nas relações familiares: refletindo sobre a situação de adolescentes em conflito com a lei. Estud. psicol. (Natal). 2012;17(3):389-95.)-(2424. Benhain M. Atuações delinquentes, passagens ao ato suicida na adolescência. Ágora (Rio J.). 2011;14(2):197-207.. Destaca-se, ainda assim a força da abordagem psicanalítica de Winnicott para a intervenção como se viu nos inúmeros casos relatados pelo autor, e como nas vinhetas apresentadas nesta comunicação.

Obviamente que para que essa abordagem tenha lugar é preciso problematizar a adesão acrítica a manuais diagnósticos estatísticos e voltar a pensar na singularidade, como vários psicanalistas têm alertado em comunicações recentes2525. Berlinck MT. Manifesto por uma psicopatologia clínica não estatística. Rev. Latinoam. Psicopatol. Fund. 2013;16(3):361-72.),(2626. Dunker CIL, Kyrillos NF. A crítica psicanalítica do DSM-IV- breve história do casamento psicopatológico entre psicanálise e psiquiatria. Rev. Latinoam. Psicopatol. Fund. 2011;14(4):611.. É necessário retomar a escuta como espaço fundamental da clínica.

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    Este artigo foi produzido a partir de pesquisas vinculadas ao PPG em Psicologia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2015
  • Aceito
    03 Dez 2015
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