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O estudo de caso e suas finalidades para a clínica fonoaudiológica

RESUMO:

Objetivo:

identificar e analisar as características da produção acadêmica sob a rubrica Relato de Caso.

Métodos:

realizou-se uma pesquisa empírico-analítica dos trabalhos publicados nas revistas de Fonoaudiologia - DIC, CEFAC, CODAS e ACR, dos anos de 2009 a 2014, perfazendo um total de 151 trabalhos.

Resultados:

(a) uma certa predileção pelos estudos de caso único mas uma tendência clara de estudar até cinco casos em relação aos estudos com maior número de sujeitos; (b) regularidade, em umas das revistas, no número de relatos de casos publicados ao longo do período estudado; progressão em outra e decréscimo nas outras duas; (c) uma hegemonia de artigos no campo da linguagem quando se cruza número de publicações e especialidade da Fonoaudiologia; (d) uma hegemonia de estudos com crianças em relação às outras faixas etárias; (e) equilíbrio entre o número de relatos de casos que discutem diagnóstico e os que discutem intervenção; (f) os relatos de caso cujo foco são os procedimentos clínicos, aqueles em que o diagnóstico e a terapêutica ou intervenção estão associados, ocorrem em menor número. Observou-se a necessidade de analisar criticamente este achado, dado que a Fonoaudiologia, como disciplina clínica, deveria evitar a separação entre terapêutica e diagnóstico. A clínica é uma estrutura e como tal, tem seus elementos componentes em articulação constante para que o sentido da intervenção possa ser identificado, descrito e explicado.

Conclusão:

embora o relato de caso tenha presença constante nas publicações analisadas, sua importância para o raciocínio clínico ainda é bastante subestimada.

Descritores:
Fonoaudiologia; Estudos de Casos; Relatos de Casos; Referência e Consulta

ABSTRACT:

Purpose:

to identify and analyze the characteristics of academic research under the heading Case Report.

Methods:

we conducted an empirical-analytical research of papers published in Speech and Language magazines - DIC, CEFAC, CODAS and ACR, during the period of 2009-2014, totaling151 articles.

Results:

a) a certain preference for single case studies but a clear tendency to study up to five cases in relation to studies with larger numbers of subjects; b) regularity in one of the magazines, in the number of published case reports over the study period; progression in another and decrease in the other two; c) hegemony of articles in the field of language when crossing number of publications and Phonoaudiology specialty; (d) hegemony of studies with children compared to other age groups; (e) balance between the number of case reports discussing diagnosis and those discussing intervention; (f) case reports focusing on clinical procedures -- when diagnosis and therapy or intervention are associated - appear less. There was the need to critically analyze this finding, since Speech and Language Pathology, as a clinical discipline, should prevent separation between therapy and diagnosis. Structurally, the components of clinical practice are in constant articulation so that the direction of intervention can be identified, described and explained.

Conclusion:

although the case report has a constant presence in the analyzed publications, its importance to clinical reasoning is still quite underestimated.

Keywords:
Speech; Language and Hearing Sciences; Case Studies; Case Reports; Referral and Consultation

Introdução

Para fundamentar este artigo que tematiza a finalidade da publicação do relato de caso para o campo da Fonoaudiologia, escolheu-se, inicialmente, pesquisar em outras clínicas o papel desta modalidade de pesquisa e a sua estrutura.

O estudo de caso tem origem nas áreas médica e psicológica, propondo a análise detalhada de um caso individual que explicaria a dinâmica e a patologia de uma dada doença. O relato/estudo de caso é o meio de eleição para se descobrir e encontrar novas ideias que possibilitem um progresso intelectual, mostrem novos problemas e soluções e contribuam para o avanço da medicina. Eles têm um valor primordial para o descobrimento de novas doenças, tratamentos, efeitos inesperados, colaterais e para o ensino¹.

As normas das revistas científicas na área da medicina definem que a comunicação de um relato de caso é pertinente, sobretudo, quando a entidade diagnosticada é rara, o tratamento pioneiro, ou o resultado inusitado ². Se o relato de caso na área médica traz as contribuições já citadas, como forma de exploração de novos processos ou patologias, por meio da descoberta, do olhar diferenciado sobre o comum, apresenta também limitações enquanto estratégia de pesquisa. Entre elas estaria a dificuldade de generalização dos resultados obtidos, o risco de o pesquisador apresentar uma falsa certeza das conclusões por estar profundamente envolvido na investigação e fiar-se demais em falsas evidências 33. Ventura MM. O estudo de caso como modalidade de pesquisa. Rev. SOCERJ. 2007;20(5):383-6..

Encontramos na área de Enfermagem outra definição e aplicação das pesquisas pautadas em estudo de caso. Neste campo, ele também é definido como o estudo de casos informais. São estudos aplicados na assistência direta de enfermagem, com o objetivo de realizar um estudo profundo dos problemas e necessidades do paciente, família e comunidade, proporcionando subsídios para buscar a estratégia mais eficaz para solucionar problemas 44. Galdeano LE, Rossi LA, Zago MMF. Roteiro instrucional para a elaboração de um estudo de caso clínico. Rev. Latino-am Enfermagem. 2003;11(3):371-5.. Outra perspectiva desta modalidade de pesquisa é fundamentar as ações da enfermagem, proporcionar uma assistência individual em que o paciente é visto como único e não um conjunto de sinais e sintomas. Também faz um elo com a literatura científica que respaldará a ação do corpo de enfermagem 44. Galdeano LE, Rossi LA, Zago MMF. Roteiro instrucional para a elaboração de um estudo de caso clínico. Rev. Latino-am Enfermagem. 2003;11(3):371-5..

Independente do ramo de atuação, a pesquisa estruturada no estudo de caso surge do desejo de entender fenômenos sociais complexos, permitindo que os pesquisadores foquem um caso e tenham uma percepção holística e do mundo real 55. Yin R K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2001.. Na área da Psicologia, a maioria dos autores especializados defende que a análise em profundidade do objeto e a preocupação com seu aspecto unitário são as características principais de um estudo de caso, sugerindo que o relato/pesquisa de caso destaca-se como um importante recurso não apenas para a execução de pesquisas científicas, mas também para o desenvolvimento de práticas 66. Peres SR, Santos MA. Considerações gerais e orientações práticas acerca do emprego de estudos de caso na pesquisa científica em psicologia. Interações. 2005;10(20):109-26..

A exploração intensiva de um único caso pode possibilitar a aquisição de um novo conhecimento, o que faz com que hoje esta metodologia de pesquisa também seja uma das principais modalidades de pesquisa qualitativa em Ciências Humanas e Sociais 33. Ventura MM. O estudo de caso como modalidade de pesquisa. Rev. SOCERJ. 2007;20(5):383-6.. Os pesquisadores que se utilizam desta ferramenta de investigação obterão uma abordagem qualitativa, com produto original calcado na natureza, histórico e o contexto de cada caso55. Yin R K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2001..

Pode-se, ainda, definir caso, como sendo o relato de uma experiência singular, escrito por um terapeuta para atestar seu encontro com um paciente e respaldar um avanço teórico¹. Quer se trate do relato de uma sessão, do desenrolar de um atendimento ou da exposição da vida e dos sintomas de um sujeito, um caso é sempre um texto escrito para ser lido e discutido. Um texto que, por meio de seu estilo narrativo, põe em cena uma situação clínica que ilustra uma elaboração teórica. O caso tem como objetivo não só discutir ou ilustrar uma elaboração teórica mas também esclarecer o trabalho fonoaudiológico. Ainda neste campo, alguns autores sugerem que o estudo de caso relacione a teoria, a formação e a evolução dos sintomas com histórias de vidas singulares. Salientam que trata-se de uma opção de pesquisa que possibilita a tomada da linguagem como a manifestação máxima da subjetividade individual. Ressaltam que, para serem compreendidos, os transtornos de linguagem precisam ser vistos dentro da clínica de forma singular, diferentemente do que ocorre com as pesquisas quantitativas generalistas77. Cunha MC, Palladino RRR, Silva MF. Estudo de caso clínico na pesquisa fonoaudiológica: da cena clínica às formulações teóricas. Dist Com. 2015;27(1):192-5..

Um caso tem três funções: a função didática, a função metafórica e a função heurística88. Nasio J-D. Que é um caso? In: J-D Nasio (ed). Os Grandes Casos de Psicose. Rio de Janeiro: Zahar; 2000. p. 9-32.. O valor didático de um caso está no poder da história clínica para captar o imaginário do ouvinte/leitor e conduzi-lo sutilmente, sem que ele perceba, a descobrir um conceito e elaborar outros. A função metafórica ocorre quando a observação clínica e o conceito que ela ilustra estão tão intimamente imbricados, que a observação substitui o conceito e se torna metáfora dele. E a função heurística de um caso ocorre quando ele próprio se torna um gerador de conceitos. Por fim, cabe ressaltar que apesar das funções apontadas, o relato de um encontro clínico nunca é o reflexo fiel de um fato concreto, mas sua reconstituição fictícia. O exemplo nunca é um acontecimento puro, mas sempre uma história reformulada. Isto porque o caso é rememorado pelo filtro da vivência do fonoaudiólogo, readaptado segundo a teoria que ele precisa validar.

A partir desses preliminares e tomando-os como suporte para nossa análise, tomamos como objetivo deste artigo identificar e analisar as características da produção acadêmica sob a rubrica Relato de Caso.

Métodos

Para atingir o objetivo proposto fizemos um levantamento bibliográfico das publicações sobre este tema, identificados como relatos de casos, nos últimos cinco anos, ou seja, de 2009 a 2014, nos principais veículos nacionais, no campo da Fonoaudiologia, a saber: ACR (Audiology - Communication Research), CoDAS (antes Jornal da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia), Revista do CEFAC (Speech, Language, Hearing Sciences and Education Journal) e Revista DIC (Distúrbios da Comunicação). A revista ACR define, na seção de instrução aos autores, o que são relatos de casos clínicos: "descrevem casos ou experiências inéditas, incomuns ou inovadoras, que representem originalidade de uma conduta ou tratamento e ilustrem situações pouco frequentes, com características singulares de interesse para a prática profissional, descrevendo seus aspectos, história, condutas e resultados observados" (99. Rev CEFAC. Instrução aos autores, Tipos de trabalhos. [acesso em 2014 out 15 ].Disponível em: http://www.revistacefac.com.br/instrucoes_pt.php
http://www.revistacefac.com.br/instrucoe...
). A revista CEFAC diz que estudo de caso "relata casos raros ou não comuns, particularmente interessantes ou que tragam novos conhecimentos e técnicas de tratamento ou reflexões. Devem ser originais e inéditos." 1010. CoDAS. Instrução aos autores. [acesso em 2014 out 15 ]. Disponível em: http://www.scielo.br/revistas/codas/iinstruc.htm
http://www.scielo.br/revistas/codas/iins...
. E a revista CoDAS define relatos de casos como "artigos que apresentam casos ou experiências inéditas, incomuns ou inovadoras com até dez sujeitos (ou casos), com características singulares de interesse para a prática profissional, descrevendo seus aspectos, história, condutas e resultados observados."1111. Audiol Commun Res. Instrução aos autores, Relatos de casos originais . [acesso em 2014 out 15 ]. Disponível em : http://www.audiolcommres.org.br/_1/normas.pdf
http://www.audiolcommres.org.br/_1/norma...
. Observa-se que as definições são similares e não se contrapõem.

Já a Revista DIC 1212. Rev DIC. Diretrizes para autores, artigos originais. [acesso em 2014 out 15] Disponível em http://revistas.pucsp.br/index.php/dic/about/submissions#authorGuidelines
http://revistas.pucsp.br/index.php/dic/a...
não apresenta uma seção dedicada apenas para os relatos de casos clínicos de forma que estes podem se apresentar como artigos originais ou outro tipo de publicação. Para fazer a busca, no caso desta revista, recorremos às palavras-chave: apresentação de caso, relato de caso, estudo de caso.

As revistas citadas não informam qualquer norma sobre a porcentagem de trabalhos para cada tipo de artigo ou mesmo para cada edição, havendo números em que não aparecem os relatos de caso. Mas não encontramos números em que os outros tipos de publicação - artigos originais, comunicações, resenhas, resumos de dissertações e teses, entre outros - não ocorressem.

Ao ler os resumos dos artigos publicados de 2009 até 2014 nas principais revistas brasileiras de Fonoaudiologia, sob a rubrica de relato de casos, identificamos a necessidade de analisar criticamente o lugar desta modalidade de investigação no cenário científico, bem como a qualidade das produções e suas características gerais, além de proceder a um levantamento estatístico ou seja, a uma análise quantitativa.

Partindo do preceito que a avaliação da produção cientifica vigente permite delinear tendências metodológicas, temáticas e a evolução do conhecimento da área, este estudo poderá contribuir para a construção de novas perspectivas na produção de conhecimento.

Retomando, o primeiro passo de nossa pesquisa foi a leitura dos resumos dos artigos encontrados na busca. Aqueles artigos que não se configuravam como relatos de casos, apesar de assim nomeados, foram excluídos e não contabilizados nos resultados.

As buscas, feitas de forma virtual, nos forneceram informações quanto ao número de casos envolvidos em cada relato, o número de relatos de caso por ano de publicação, a área da Fonoaudiologia a que o relato se dedica, a faixa etária dos sujeitos envolvidos, os procedimentos clínicos apresentados no caso e a classificação do relato como clínico ou não clínico. Foi-nos possível, ainda, discutir o papel do relato de caso no cenário da Fonoaudiologia, em relação ao cumprimento de seu objetivo, tal como posto na introdução deste artigo.

Resultados

Para contextualizar de forma crítica e reflexiva esta pesquisa, houve a necessidade de estruturar quantitativamente os dados obtidos em busca da qualidade deste gênero de investigação.

Tabela 1:
Número de casos por publicação

Figura 1
Número de casos por publicação

Embora concordemos com a definição de que um estudo de caso precisa ser visto pelo terapeuta como uma experiência singular que consolida seu encontro com o paciente e respalda um avanço teórico77. Cunha MC, Palladino RRR, Silva MF. Estudo de caso clínico na pesquisa fonoaudiológica: da cena clínica às formulações teóricas. Dist Com. 2015;27(1):192-5., encontramos em nossa busca, relatos de caso que, em sua maioria, se detém sobre a relação do fonoaudiólogo com mais de um sujeito. Analisando mais de perto para ver a diferença entre a abordagem e o alcance do caso único e dos atendimentos em grupo, não encontramos um limite claro entre uma e outra modalidade. Por outro lado, os relatos assentados sobre um caso ou até cinco casos se sobrepõem, largamente, aos que estudaram quantidades maiores que cinco e até acima de 10 casos. O que justificaria esta predileção por um número menor de sujeitos seria, talvez, a possibilidade de se sustentar sobre uma interação singular do terapeuta com seu paciente e, desta forma, interferir na estruturação de suas intervenções / diagnósticos. Se o objetivo da publicação desta experiência é a fomentação acadêmica e científica, esta experiência cumpriria sua função didática, metafórica e/ou heurística77. Cunha MC, Palladino RRR, Silva MF. Estudo de caso clínico na pesquisa fonoaudiológica: da cena clínica às formulações teóricas. Dist Com. 2015;27(1):192-5.. Assim, os resultados indicam: (a) uma certa predileção pelos estudos de caso único (34 %) mas uma tendência clara de estudar até cinco casos (31%), em relação aos estudos com maior número de sujeitos (5%).

Tabela 2:
Relação número de artigos por ano de publicação

Figura 2:
Relação número de artigos por ano de publicação

O número de artigos publicados ao ano, como relato de caso, traz diferentes contornos conforme o periódico, embora não encontremos qualquer justificativa política para esse achado.

Na revista ACR, as publicações de relatos de caso apresentaram uma regularidade numérica entre os anos 2009 a 2011, para então iniciar um decréscimo que se estende até 2014. Esses dados, traduzidos em porcentagem, mostram de forma mais clara esta situação quando, em 2009 e 2010, os relatos perfaziam 30% dos achados na pesquisa. Em 2011, este número apresenta discreta diminuição (20%), com um decréscimo mais evidente a partir de 2012 (15%) e 2013 (5%) chegando a 2014 sem nenhuma publicação deste tipo.

Para a CoDAS, inicialmente os números evidenciam uma discreta progressão que não se sustenta ao longo dos anos. Em 2009 e 2010, os relatos de caso representaram 7,7% das publicações submetidas. Um salto consolidou-se nos anos de 2011 (30,7%) e 2012 (27%), decaindo em 2013 (11,5%) e 2014 (15,4%).

A revista CEFAC foi o veículo que apresentou maior regularidade no número de publicação de relatos de caso ao longo dos anos pesquisados: 2009, 10,3%; 2010: 17,6%; 16,2% em 2011; 19,2% em 2012; 23,5% em 2013 e 2014, 13,2 %.

A DIC apresentou aumento no número de publicação de relatos de casos ao longo do período estudado. Tanto em 2009 como em 2011, encontramos um relato de caso publicado, traduzido como 5,9% da pesquisa. Em 2010 e 2013 não houve a publicação de relato de caso, mas em 2012 e 2014, respectivamente, obteve-se 41,2% e 47% de relatos de casos em relação aos outros tipos de publicação da Revista DIC.

Tabela 3:
Relação do artigo com a área de especialidade

Figura 3:
Relação do artigo com a área de especialidade

Ao observar os resultados da busca que relaciona o artigo com a área de estudo da Fonoaudiologia, a mais encontrada nos relatos foi Linguagem, seguida por Motricidade Orofacial, Audiologia, Voz e, por último, pesquisas que envolvem mais de um campo clínico, simultaneamente. Não há evidências de que estes números reflitam um interesse maior da Fonoaudiologia por alguma das especialidades ou de maior demanda de conhecimento e divulgação de certa técnicas ou, ainda, a relação entre as publicações e maior incidência de agravos em qualquer dos campos. Assim, parece que os relatos são publicados sem qualquer política de privilégio de uma área sobre outra.

Caracterizar a área de estudo da Fonoaudiologia sobre a qual incide o maior número de relatos de caso encontrados neste estudo, poderia levar à conclusão de quais campos/assuntos são de maior interesse. Mas traz, também, a indagação, ao examinar o conteúdo publicado, se a situação clínica posta em cena ilustra uma elaboração teórica, para que o relato de caso cumpra seu objetivo de ser um texto escrito para ser lido e discutido por meio de seu estilo narrativo77. Cunha MC, Palladino RRR, Silva MF. Estudo de caso clínico na pesquisa fonoaudiológica: da cena clínica às formulações teóricas. Dist Com. 2015;27(1):192-5.. Pode ser o relato de uma sessão, do desenrolar de um atendimento ou da exposição da vida e dos sintomas de um sujeito mas deve visar o interesse da comunidade leitora.

Vamos destrinchar, mais à frente, se esta pesquisa pode trazer à superfície a perda da singularidade da situação clínica terapeuta/paciente, essencial para a constituição de tal gênero de artigo, em favor da preocupação dos periódicos em priorizar a quantidade das produções cientificas em detrimento de seu conteúdo.

Tabela 4:
Faixa etária dos sujeitos

Figura 4:
Faixa etária dos sujeitos

Para analisarmos os dados obtidos nesta investigação em relação à faixa etária do(s) sujeito(s) das publicações, classificamos os achados nas categorias bebê, criança, adulto, idoso e misto (quando várias faixas etárias estão envolvidas).

As revistas ACR, CoDAS e CEFAC demonstram a predominância de pesquisas que envolvem crianças, público alvo, em particular, na área da Linguagem. Na DIC, excepcionalmente, houve maior frequência de idosos na categoria sujeito da pesquisa.

Em uma análise geral, ao fazer a somatória sem considerar a especificidade de cada revista, as pesquisas com crianças são majoritárias, seguidas das com adultos, misto, idosos, bebês e adolescentes. Este dado revela a necessidade de se incentivar a produção de relatos de caso com adolescentes, idosos e bebês, faixas etárias não contempladas, mas que também demandam intervenção fonoaudiológica.

Tabela 5:
Procedimentos

Figura 5:
Procedimentos

Nesta etapa da pesquisa, observa-se nos procedimentos clínicos adotados pelos artigos pesquisados, que há equilíbrio entre o número de relatos de casos que discutem diagnóstico e intervenção. Em número menor estão os procedimentos em que o diagnóstico e a terapêutica ou intervenção estão associados. Este dado evidencia que a Fonoaudiologia ainda se mantém em uma relação de dependência com a clínica médica, em que o orgânico determina o funcionamento da linguagem1313. Gouvêa G, Freire R, Dunker C. Sanção em Fonoaudiologia: um modelo de organização dos sintomas de linguagem. Cad. Est. Ling. 2011;53(1):8-25. e resta, para a Fonoaudiologia, parte da Terapêutica, ou melhor dizendo, a Propedêutica ou a Deontologia1414. Freire R. A fundação da Clínica Fonoaudiológica. In: Gonçalves N, Fonte R (ed). Aquisição de linguagem, seus distúrbios e especificidades: diferentes perspectivas. Curitiba: CRV; 2011. p. 87-96.. Sob essa ótica, a Fonoaudiologia busca compreender o sintoma de linguagem a partir de uma relação linear de causa e efeito, quantificando-o, classificando-o e descrevendo-o. Há uma evidente separação entre diagnóstico e intervenção, e cabe perguntarmos, nessa situação, qual a posição ocupada pelo sujeito.

A clínica fonoaudiológica não precisa, necessariamente, seguir esta formulação, ou seja, pode atribuir ao sujeito uma posição de agente na interação discursiva, sendo o diálogo a essência do processo terapêutico11. Kienle GS, Kiene H. Como escrever um relato de caso. Arte Med Ampl 2011;31(2):34-7.. Sob essa ótica, o fonoaudiólogo estabelece uma relação com a escuta e a interpretação da fala do outro, determinando o reconhecimento do próprio paciente como sujeito.

Vale a crítica aos artigos que claramente fazem esta cisão e o incentivo para que produções futuras considerem a fala do sujeito sobre si próprio e seus sintomas para que o diagnóstico não incida exclusivamente sobre o sintoma, mas sobre a implicação do sujeito no sintoma1515. Figueiredo AC, Tenorio F. O diagnóstico em psiquiatria e psicanálise. Rev Latinoam Psicopat Fund. 2002;1:29-43..

Discussão

Analisando a quantidade de artigos sob a rubrica relato de casos, separamos e correlacionamos o número de "relatos" com os anos em que foram publicados pois há uma diferença relevante se usarmos esse parâmetro. Vê-se que de 2009 a 2014 atinge-se o número total de 151 relatos de casos publicados nos últimos cinco anos. Em relação às especialidades da Fonoaudiologia, encontramos um número quase equivalente de relatos de casos nos campos da linguagem, motricidade oral e audição. Ligeiramente menor, o campo da voz fica atrás dos anteriores, mas ainda à frente dos relatos de casos em que aparecem combinados sintomas de mais de um dos campos. Em relação ao sexo dos sujeitos mencionados nos estudos, encontramos um ligeiro favorecimento ao sexo masculino, mas não há clareza se isso se deve à maior ocorrência de casos ou simplesmente ao interesse pelo estudo e os sujeitos disponíveis para a análise. A idade dos sujeitos favorece os estudos com crianças que aparecem em dobro em relação aos estudos de casos com adultos, sendo que, em último lugar, estão os relatos de casos com adolescentes. Convém perguntar-se sobre esta relação. Sabe-se que as crianças são o maior foco de qualquer estudo no campo da Fonoaudiologia, pois, por estarem em desenvolvimento, a intervenção é mais favorável nesta faixa etária. A preocupação dos pais também interfere nesse número dado que as crianças vêm à clínica trazidas por eles. Observou-se nos resultados apresentados, um equilíbrio entre o número de relatos sobre diagnóstico e de intervenção. Em número menor estão os procedimentos em que o diagnóstico e a terapêutica/intervenção estão associados, que leva nos leva à questionar a posição ocupada pelo sujeito uma vez que não se concebe, em uma disciplina clínica, que a realização do diagnostico seja desvinculado da intervenção e vice-versa. Lembremos que a Fonoaudiologia visa a terapêutica ou a transformação do sofrimento consequente ao sintoma na fala ou na escrita, na audição, na motricidade oral e outros. Observou-se a necessidade de analisar criticamente este achado, dado que a Fonoaudiologia, como disciplina clínica deveria evitar a separação entre terapêutica e diagnóstico. A clínica é uma estrutura e como tal, tem seus elementos componentes em articulação constante para que o sentido da intervenção possa ser identificado, descrito e explicado. Para que haja a interpretação dos dados clínicos é preciso que o método esteja claramente delineado no corpo dos estudos de caso pois não há fato clínico espontâneo, os fatos dependem sempre da rede com a qual são capturados 1616. Porge E. Transmitir la clínica psicoanalítica. Buenos Aires: Nueva Vision; 2007..

Conclusões

Conclui-se que, embora o relato de caso tenha presença constante nas publicações analisadas, sua importância para o raciocínio clínico ainda é bastante subestimada.

A tendência constante nos trabalhos pesquisados é de apresentar o caso sem que haja um desdobramento disto em discussão sobre sua pertinência ou sobre os avanços que tal pesquisa traz ao campo. A maior contribuição estaria em permitir que o leitor resolvesse impasses no atendimento clínico de casos considerados difíceis embora não raros. Pais que trazem múltiplas demandas e manifestam um enorme sofrimento em sua busca por um diagnóstico, poderiam constituir uma temática privilegiada no atendimento a casos de retardo de linguagem, tão comuns em crianças e tão frequentes na clínica, tal como apontado pelos achados.

O caso único também permitiria o reconhecimento da singularidade do paciente e de suas particularidades, demandando um olhar crítico e específico, permitindo a emergência de ações transformadoras pontuais.

Ao final, a presença sistemática dos relatos de casos nos veículos pesquisados, indica, por um lado a sua relevância e, por outro, que uma discussão mais detalhada de sua finalidade e objetivos poderia ser salutar para um campo clínico, comprometido com a constante revisão de seus métodos e práticas.

Referências

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    Figueiredo AC, Tenorio F. O diagnóstico em psiquiatria e psicanálise. Rev Latinoam Psicopat Fund. 2002;1:29-43.
  • 16
    Porge E. Transmitir la clínica psicoanalítica. Buenos Aires: Nueva Vision; 2007.
  • Fonte de auxílio: CAPES/OBEDUC E CNPq

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2015
  • Aceito
    24 Abr 2016
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