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Exercícios para a língua são realmente necessários para tratar as funções orofaciais?

Essa carta tem o objetivo de: a) explanar sobre a anatomofisiologia da língua, levantando algumas considerações sobre o que a literatura tem mostrado a respeito da especificidade dos exercícios, b) suscitar reflexões sobre a prática de exercícios de língua na clínica fonoaudiológica e c) estimular mais pesquisas nessa área.

A língua humana é uma estrutura muscular complexa intrincadamente configurada para participar de 5 funções cruciais: respiração, sucção, deglutição, mastigação e fala. Por isso, está localizada na entrada do sistema gastrointestinal e do sistema respiratório11. Stone M, Woo J, Lee J, Poole T, Seagraves A, Chung M et al. Structure and variability in human tongue muscle anatomy. Comput Methods Biomech Biomed Eng Imaging Vis. 2018;6(5):499-507.. Ela é uma estrutura única, ímpar, sendo altamente deformável, não contendo ossos, articulações ou câmaras cheias de ar, mas com uma capacidade incrível de se movimentar dentro da cavidade oral11. Stone M, Woo J, Lee J, Poole T, Seagraves A, Chung M et al. Structure and variability in human tongue muscle anatomy. Comput Methods Biomech Biomed Eng Imaging Vis. 2018;6(5):499-507..

Embora a língua humana tenha um papel essencial na realização de funções vitais, sua estrutura e funções ainda não são profundamente compreendidas22. Sanders I, Mu L. A three-dimensional atlas of human tongue muscles. Anat Rec (Hoboken). 2013;296(7):1102-1..

Uma das principais razões para essa lacuna no conhecimento reside no fato de que a língua faz parte de um grupo de estruturas biológicas, incluindo os tentáculos dos polvos e as trombas dos elefantes, que preservam o volume e são constituídos por grupos musculares dispostos em várias direções, o que os torna particularmente difíceis de estudar33. Kier WM, Smith KK. Tongues, tentacles and trunks: the biomechanics of movement in muscular hydrostats. Zool J Linn Soc. 1985; 83:307-24..

Essas estruturas, chamadas de hidróstatos musculares, apresentam uma notável diversidade e complexidade de movimento. Ao contrário das estruturas com elementos esqueléticos rígidos, cujos movimentos são restritos às articulações, podem ocorrer deformações como flexão, alongamento, encurtamento e torção em qualquer local e em locais múltiplos ao longo do comprimento da estrutura33. Kier WM, Smith KK. Tongues, tentacles and trunks: the biomechanics of movement in muscular hydrostats. Zool J Linn Soc. 1985; 83:307-24..

A incrível variedade de movimentos e adaptabilidade da língua humana durante a alimentação ou a fala somente é possível graças a este tipo de sistema de suporte dinâmico44. Stavness I, Sánchez CA, Lloyd J, Ho A, Wang J, Fels S et al. Unified skinning of rigid and deformable models for anatomical simulations. Technical Briefs on - SIGGRAPH ASIA, 2014..

Assim, a mioarquitetura da língua humana consiste em uma rede complexa de fibras entrelaçadas que funcionam juntas para produzir um conjunto quase ilimitado de deformações funcionais55. Gaige TA, Benner T, Wang R, Wedeen VJ, Gilbert RJ. Three dimensional myoarchitecture of the human tongue determined in vivo by diffusion tensor imaging with tractography. J Magn Reson Imaging. 2007;26(3):654-61..

O movimento da língua causado pela contração individual de qualquer músculo é dependente da atividade dos músculos circundantes. Coletivamente, esses músculos produzem uma variedade de movimentos intrincados, mas bem controlados, incluindo retração, protrusão, dorsiflexão, ventroflexão, retroflexão, encurtamento, alongamento, elevação e depressão da língua22. Sanders I, Mu L. A three-dimensional atlas of human tongue muscles. Anat Rec (Hoboken). 2013;296(7):1102-1..

Como a língua não tem qualquer esqueleto ósseo, os próprios músculos devem proporcionar o suporte sobre o qual podem interagir mecanicamente. A contração das fibras verticais e transversais é estabilizada pelas fibras longitudinais, e vice-versa. O movimento das laterais da língua requer suporte da parte medial. Também, o movimento da parte anterior da língua depende do apoio da base da língua66. Sanders I, Mu L, Amirali A, Su H, Sobotka S. The human tongue slows down to speak: muscle fibers of the human tongue. Anat Rec. 2013;296(10):1615-27..

Os músculos da língua humana são divididos em dois grupos principais: os músculos extrínsecos (genioglosso, estiloglosso e hioglosso) e os músculos intrínsecos (longitudinal superior, longitudinal inferior e transverso/vertical)66. Sanders I, Mu L, Amirali A, Su H, Sobotka S. The human tongue slows down to speak: muscle fibers of the human tongue. Anat Rec. 2013;296(10):1615-27.. Os músculos extrínsecos têm origem óssea (mandíbula, osso hioide ou processo estiloide) e inserção na língua, sendo mais relacionados às mudanças de posição da língua na cavidade oral; já os músculos intrínsecos têm origem e inserção na língua, ou seja, não têm fixação óssea e são responsáveis pela mudança da forma da língua. Portanto, os músculos intrínsecos da língua não são esqueléticos e sim são estriados, pois não se originam e nem se inserem em nenhum osso do esqueleto22. Sanders I, Mu L. A three-dimensional atlas of human tongue muscles. Anat Rec (Hoboken). 2013;296(7):1102-1.. Por outro lado as partes dos músculos extrínsecos que entram na língua podem ser consideradas como músculos intrínsecos pois também contribuem significativamente para moldar a forma da língua22. Sanders I, Mu L. A three-dimensional atlas of human tongue muscles. Anat Rec (Hoboken). 2013;296(7):1102-1.. Assim, as fibras intrínsecas são delicadamente mescladas com músculos extrínsecos, mudando a forma e a posição, bem como funcionando sinergicamente para constituir um número quase ilimitado de deformações fisiológicas55. Gaige TA, Benner T, Wang R, Wedeen VJ, Gilbert RJ. Three dimensional myoarchitecture of the human tongue determined in vivo by diffusion tensor imaging with tractography. J Magn Reson Imaging. 2007;26(3):654-61..

Dois outros aspectos interessantes da musculatura da língua estão no fato de que a orientação das fibras musculares varia à medida que a língua muda de forma; e os efeitos da contração de qualquer grupo de fibras no corpo da língua são altamente dependentes da atividade do resto das fibras55. Gaige TA, Benner T, Wang R, Wedeen VJ, Gilbert RJ. Three dimensional myoarchitecture of the human tongue determined in vivo by diffusion tensor imaging with tractography. J Magn Reson Imaging. 2007;26(3):654-61.,77. Elsaid NMH, Stone M, Roys S, Gullapalli RP, Prince JL, Zhuo J. Diffusion spectrum imaging tractography of the human tongue. Annals 25th Annual Meeting ISMRM. 2017..

Quanto ao tipo de fibra muscular, na língua dos seres humanos adultos há um grande número de fibras musculares do tipo I, que deixam mais lentos os movimentos e são mais resistentes à fadiga. As fibras lentas estão associadas ao controle refinado dos movimentos e sugerem que a língua humana se tornou especializada para esse fim66. Sanders I, Mu L, Amirali A, Su H, Sobotka S. The human tongue slows down to speak: muscle fibers of the human tongue. Anat Rec. 2013;296(10):1615-27..

Porém, a proporção de fibras musculares do tipo I na língua, não é homogênea nas três partes da língua (base, corpo e lâmina), assim como não é homogênea nem em um mesmo músculo, nem em músculos diferentes, nem em diferentes espécimes e nem em condições adversas de saúde66. Sanders I, Mu L, Amirali A, Su H, Sobotka S. The human tongue slows down to speak: muscle fibers of the human tongue. Anat Rec. 2013;296(10):1615-27.. No músculo longitudinal superior, por exemplo, há um maior número de fibras lentas na base e no corpo da língua, sendo que, na lâmina, há uma quantidade menor dessas fibras, prevalecendo as fibras rápidas, permitindo que essa parte realize tarefas muito delicadas e rápidas, modificando facilmente sua forma66. Sanders I, Mu L, Amirali A, Su H, Sobotka S. The human tongue slows down to speak: muscle fibers of the human tongue. Anat Rec. 2013;296(10):1615-27..

Em conjunto, as propriedades específicas da língua citadas sugerem que qualquer fibra muscular pode ser recrutada para vários objetivos de movimento. Assim, os efeitos de qualquer treinamento muscular na língua podem ser menos específicos do que os observados para os grupos musculares esqueléticos88. Clark HM. Specificity of training in the lingual musculature. J Speech Lang Hear Res. 2012;55(2):657-67..

Um princípio bem estabelecido no treinamento muscular é a especificidade, devendo ser observados vários aspectos como força, resistência, potência e velocidade88. Clark HM. Specificity of training in the lingual musculature. J Speech Lang Hear Res. 2012;55(2):657-67.. Não se sabe até o momento como a especificidade do treinamento por meio de exercícios pode se manifestar no grupo muscular da língua88. Clark HM. Specificity of training in the lingual musculature. J Speech Lang Hear Res. 2012;55(2):657-67..

O treinamento de força causa adaptação das fibras musculares do tipo II. Até o momento não foram encontrados estudos que examinaram a adaptação das fibras musculares na língua. Entretanto, a força da língua pode ser aumentada com exercícios, porém os efeitos do destreinamento também podem ser observados quando o treinamento é descontinuado99. Clark HM, O'Brien K, Calleja A, Corrie SN. Effects of directional exercise on lingual strength. J Speech Lang Hear Res. 2009;52(4):1034-47..

O treinamento de resistência causa adaptação das fibras musculares do Tipo I, resistentes à fadiga. Embora a parte anterior da língua possua uma escassez relativa de fibras do Tipo I (21%), essas fibras compreendem mais da metade das fibras na parte posterior da língua1010. Stål P, Marklund S, Thornell LE, De Paul R, Eriksson PO. Fibre composition of human intrinsic tongue muscles. Cells Tissues Organs. 2003;173(3):147-61.. Os efeitos do treinamento sistemático de resistência sobre o desempenho da língua e a adaptação das fibras musculares não foram relatados em estudos99. Clark HM, O'Brien K, Calleja A, Corrie SN. Effects of directional exercise on lingual strength. J Speech Lang Hear Res. 2009;52(4):1034-47..

A velocidade de contração está sujeita à especificidade do treinamento, com programas de exercícios realizados com movimentos rápidos1111. Behm DG, Sale DG. Velocity specificity of resistance training. Sports Med. 1993;15(6):374-88.,1212. Pereira MI, Gomes PS. Movement velocity in resistance training. Sports Med. 2003;33(6):427-38.. Um estudo mostrou que o treinamento para velocidade dos músculos da língua não surte efeito88. Clark HM. Specificity of training in the lingual musculature. J Speech Lang Hear Res. 2012;55(2):657-67..

E, finalmente, o exercício de alta velocidade e resistência moderada causa adaptação em fibras musculares do tipo IIA88. Clark HM. Specificity of training in the lingual musculature. J Speech Lang Hear Res. 2012;55(2):657-67.. Esse tipo de fibras é bastante raro na língua1010. Stål P, Marklund S, Thornell LE, De Paul R, Eriksson PO. Fibre composition of human intrinsic tongue muscles. Cells Tissues Organs. 2003;173(3):147-61..

Sendo assim, a morfologia e as propriedades biomecânicas da língua diferem substancialmente da musculatura esquelética, o que nos leva a refletir se os programas de exercícios para sua musculatura devem seguir o mesmo princípio dos programas propostos para a musculatura estriada esquelética, e também, como a especificidade do treinamento pode se manifestar nesse grupo muscular.

Com base nessas considerações podemos questionar: a língua deve ser trabalhada com exercícios ou diretamente nas suas funções? Os exercícios conseguem imitar todos os movimentos realizados pela língua nas funções orofaciais?

Muitos estudos ainda são necessários para a compreensão da anatomofisiologia da língua, bem como, do impacto dos exercícios na sua musculatura. Esperamos que o conteúdo aqui explanado possa estimular futuros estudos que contribuam para a compreensão, tanto da anatomia, quanto da especificidade do treinamento da musculatura da língua, para enriquecer ainda mais a prática fonoaudiológica.

REFERENCES

  • 1
    Stone M, Woo J, Lee J, Poole T, Seagraves A, Chung M et al. Structure and variability in human tongue muscle anatomy. Comput Methods Biomech Biomed Eng Imaging Vis. 2018;6(5):499-507.
  • 2
    Sanders I, Mu L. A three-dimensional atlas of human tongue muscles. Anat Rec (Hoboken). 2013;296(7):1102-1.
  • 3
    Kier WM, Smith KK. Tongues, tentacles and trunks: the biomechanics of movement in muscular hydrostats. Zool J Linn Soc. 1985; 83:307-24.
  • 4
    Stavness I, Sánchez CA, Lloyd J, Ho A, Wang J, Fels S et al. Unified skinning of rigid and deformable models for anatomical simulations. Technical Briefs on - SIGGRAPH ASIA, 2014.
  • 5
    Gaige TA, Benner T, Wang R, Wedeen VJ, Gilbert RJ. Three dimensional myoarchitecture of the human tongue determined in vivo by diffusion tensor imaging with tractography. J Magn Reson Imaging. 2007;26(3):654-61.
  • 6
    Sanders I, Mu L, Amirali A, Su H, Sobotka S. The human tongue slows down to speak: muscle fibers of the human tongue. Anat Rec. 2013;296(10):1615-27.
  • 7
    Elsaid NMH, Stone M, Roys S, Gullapalli RP, Prince JL, Zhuo J. Diffusion spectrum imaging tractography of the human tongue. Annals 25th Annual Meeting ISMRM. 2017.
  • 8
    Clark HM. Specificity of training in the lingual musculature. J Speech Lang Hear Res. 2012;55(2):657-67.
  • 9
    Clark HM, O'Brien K, Calleja A, Corrie SN. Effects of directional exercise on lingual strength. J Speech Lang Hear Res. 2009;52(4):1034-47.
  • 10
    Stål P, Marklund S, Thornell LE, De Paul R, Eriksson PO. Fibre composition of human intrinsic tongue muscles. Cells Tissues Organs. 2003;173(3):147-61.
  • 11
    Behm DG, Sale DG. Velocity specificity of resistance training. Sports Med. 1993;15(6):374-88.
  • 12
    Pereira MI, Gomes PS. Movement velocity in resistance training. Sports Med. 2003;33(6):427-38.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2018
  • Aceito
    04 Out 2018
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