Critérios para a classificação do grau da perda auditiva e proteção social de pessoas com essa deficiência

RESUMO

Objetivos:

identificar critérios adotados nacional e internacionalmente para classificação do grau da perda auditiva, compará-los com o estabelecido na legislação brasileira e discutir as possíveis consequências dessa legislação para a proteção social de Pessoas com Deficiência (PcD) auditiva.

Métodos:

realizou-se uma revisão narrativa para a identificação dos critérios utilizados nessa classificação. A busca foi realizada em abril de 2020, a partir das plataformas BVS e PUBMED. Foram incluídos estudos publicados entre 2015 e 2019, em inglês, espanhol e português, sobre pesquisas primárias realizadas com seres humanos e menção explícita aos critérios utilizados para a classificação do grau da perda auditiva.

Revisão da Literatura:

observou-se que há uma predileção pela média entre as frequências de 0,5, 1, 2 e 4 kHz. A legislação brasileira não segue esse critério, o que pode ser uma barreira para o acesso das PcD auditiva aos programas de proteção social.

Considerações Finais:

não há consenso sobre qual é o melhor critério, todavia há predominância de utilização do considerado mais abrangente para a avaliação auditiva, que não é o legalmente adotado no Brasil. É necessário um debate sobre o critério legal brasileiro, a fim de promover os direitos sociais instituídos para parte das PcD auditiva no Brasil.

Descritores:
Legislação; Diagnóstico; Testes Auditivos; Surdez; Pessoas com Deficiência Auditiva; Política Pública

ABSTRACT

Purpose:

to identify criteria used nationally and internationally to classify degrees of hearing loss, compare them with what is established in the Brazilian law, and discuss possible consequences of such a law on the social protection of people with hearing loss.

Methods:

a narrative review was conducted to identify the criteria used in this classification, by searching the platforms VHL and PubMed in April 2020. It included primary human research explicitly mentioning the criteria used to classify the degree of hearing loss, published between 2015 and 2019 in English, Spanish, and Portuguese.

Literature Review:

there is a preference for the four-frequency mean at 0.5, 1, 2, and 4 kHz. The Brazilian law does not follow these criteria, which may pose a barrier to people with hearing loss, hindering their access to social protection programs.

Final Considerations:

there is no consensus on the best criteria, although the most encompassing ones in hearing assessment predominate - which are not the ones legally used in Brazil. It is necessary to debate the Brazilian legal criteria to ensure existing social rights to part of people with hearing loss in Brazil.

Keywords:
Legislation; Diagnosis; Hearing Tests; Deafness; Persons with Hearing Impairments; Public Policy

Introdução

A deficiência auditiva é o terceiro tipo mais predominante de deficiência no Brasil, com prevalência aproximada de 1,1% da população geral, de acordo com dados do último censo demográfico, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010¹. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, havia cerca de 2,3 milhões de brasileiros com deficiência auditiva no país naquele ano².

Uma das preocupações sobre a deficiência auditiva diz respeito ao diagnóstico tardio. Quando não diagnosticada precocemente, ela pode gerar atrasos importantes no desenvolvimento infantil. No caso das perdas auditivas pós-linguais, também há prejuízos sociais para as pessoas com essa deficiência. Contudo, apesar dos impactos sociais e econômicos para as pessoas com essa deficiência, o diagnóstico precoce da perda auditiva permanece como um problema para a política de saúde, uma vez que um entrave inicial para a sua realização é o acesso da população aos serviços de saúde³.

Quanto à classificação, a perda auditiva é caracterizada de acordo com o tipo, a configuração audiométrica, a lateralidade e o grau. É chamada de bilateral quando atinge ambas orelhas e de unilateral quando apenas uma orelha apresenta alteração. As perdas auditivas unilaterais não são menos significativas que as bilaterais. Elas causam uma série de limitações ao indivíduo, uma vez que, nesses casos, o cérebro passa a receber informações sonoras apenas de uma orelha, acarretando comprometimento das habilidades auditivas de localização do som, compreensão da fala em ambientes ruidosos e dificuldade para ouvir em situações específicas. Logo, atividades como atravessar uma rua, participar de discussões em sala de aula, entre outras, são laboriosas^4,5.

Com relação ao grau da perda auditiva, não há consenso sobre os critérios para sua classificação e, por isso, existem várias recomendações. O Conselho Federal de Fonoaudiologia (CFFa), órgão que exerce função normativa no âmbito do exercício profissional desta categoria no Brasil, tem editado resoluções sobre a classificação dessa perda considerando o avanço técnico-científico. O órgão recomenda que o grau da perda auditiva seja calculado a partir da média aritmética dos limiares auditivos nas frequências de 0,5, 1, 2 e 4 kHz, média quadritonal, ou da média aritmética dos limiares entre as frequências de 0,5, 1 e 2 kHz, média tritonal⁶.

As médias com resultados acima de 41 dB caracterizam as perdas auditivas de grau moderado, severo, profundo e cofose. A nomenclatura dependerá da referência aplicada, podendo haver variação entre elas. Entretanto, em comum, as referências evidenciam as dificuldades de audição em uma escala crescente, variando desde a compreensão da fala amplificada até a incapacidade total de percepção sonora⁶.

Sobre a legislação brasileira, vale destacar o decreto nº 5.296/2004⁷. Ele trata dos critérios básicos para a promoção de acessibilidade às PcD. O cálculo do grau da perda auditiva previsto nesse decreto não é o mesmo recomendado pelo CFFa. Além disso, foram desconsideras as perdas auditivas unilaterais. Admite-se, nos dois documentos, que perdas acima de 41 dB provocam dificuldades consideráveis na compreensão de fala. Outra questão é que não há protocolos editados pelo Ministério da Saúde (MS) a esse respeito.

Ainda no Brasil, o decreto nº 7.612/2011 instituiu o Plano Nacional dos Direitos da PcD, o Plano Viver sem Limite (PVSL)⁸, que explicita um conjunto de compromissos assumidos pelo governo federal sobre os direitos das PcD. Ademais, foi aprovada a Lei nº 13.146/2015, que é considerada um marco legal para a concretização desses direitos, pois reconhece a relevância da implantação de políticas públicas pelo Estado para a inclusão social das PcD⁹.

No entanto, apesar desses avanços, ainda pairam dúvidas sobre a convergência dos critérios adotados pelo governo brasileiro para diagnóstico da deficiência auditiva aos empregados no país por outras instituições e aos parâmetros utilizados internacionalmente. A lateralidade e o cálculo do grau para o diagnóstico da deficiência auditiva são relevantes, pois o reconhecimento ou não de um indivíduo com deficiência tem consequências práticas importantes, de ordem legal, econômica e social, para ele e sua família¹⁰.

Em um contexto de prevalência elevada de PcD auditiva e repercussões socioeconômicas significativas, as políticas sociais, cujo principal objetivo é a proteção de todos aqueles em situação de vulnerabilidade, são fundamentais¹¹. Se parte das pessoas com perda auditiva importante não são reconhecidas como PcD, elas são impedidas de ter acesso a programas sociais e a oportunidades específicos para esse público. Nesse contexto, é importante destacar que o conceito de deficiência constante da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF), e que está no centro desta discussão, é um conceito amplo, que vai além da mensuração funcional. Nele, reconhecem-se os determinantes de condição de vida da deficiência e, dessa forma, estimula-se a concepção de políticas públicas inclusivas¹².

Assim, apesar de toda a evolução na implementação de políticas públicas mais inclusivas no Brasil, é possível que haja significativa restrição envolvendo seus públicos-alvo, ou seja, os beneficiários dessas políticas. Citam-se, como exemplo, os critérios para classificação da PcD auditiva referidos no decreto nº 5.296/2004⁷.

Diante disso, este artigo tem por objetivos identificar critérios adotados nacional e internacionalmente para a classificação do grau da perda auditiva, compará-los com aquele estabelecido na legislação brasileira e discutir as possíveis consequências dos parâmetros adotados no Brasil para a proteção social de PcD auditiva.

Métodos

Realizou-se uma revisão narrativa da literatura científica, que abordou como tema central a classificação do grau da perda auditiva. Em geral, as revisões narrativas são realizadas para sintetizar a literatura científica de forma não sistemática e exaustiva, recomendando-se, todavia, que: i) justifique-se a importância de sua realização; ii) estabeleçam-se objetivos ou questões concretas a serem respondidas; iii) descreva-se a estratégia de busca da literatura; iv) as afirmações sejam sustentadas por referências; v) evidências apropriadas sejam apresentadas; e vi) os resultados relevantes sejam apresentados adequadamente¹³.

Por se tratar de um método secundário, que não envolve a identificação de seres humanos, não se fez necessário o registro do estudo na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e nem a sua avaliação por Comitê de Ética e Pesquisa (CEP), em observância às prerrogativas descritas na Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.

A seguinte pergunta norteou o estudo: quais são os critérios utilizados para a classificação do grau da perda auditiva nacional e internacionalmente?

Para a busca da literatura científica, foram utilizadas duas plataformas, Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e PUBMED, que dão acesso a importantes fontes de informação na área da saúde, as bases de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e a Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE). Além dessas, foram utilizadas outras fontes, como a legislação brasileira e documentos técnicos nacionais. O levantamento foi realizado no mês de abril de 2020, considerando os documentos publicados no período de 2015 a 2019.

Como critérios de inclusão, foram definidos os seguintes: A) pesquisas publicadas nos idiomas inglês, espanhol e português; B) estudos realizados com seres humanos; C) estudos primários/originais; D) os publicados de 2015 a 2019; e E) menção explícita aos critérios que foram utilizados para a classificação do grau da perda auditiva. Os critérios de exclusão foram: A) pesquisas publicadas em outros idiomas; B) estudos realizados com animais; C) estudos secundários, como revisões sistemáticas, narrativas e integrativas, metanálises e guias de práticas clínicas; D) os duplicados; e E) os que não explicitaram os critérios utilizados na classificação do grau da perda auditiva.

A seleção dos estudos foi realizada por meio de estratégias de buscas diferentes para cada base de dados, porém manteve-se o operador booleano and. Os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e os Medical Subject Headings (MeSH) contemplados foram: “critérios”, “diagnóstico”, “deficiência auditiva”, “hearing loss”, “criteria” e “diagnosis”. Para o rastreamento na plataforma BVS utilizou-se a expressão de busca: (tw:(critérios)) and (tw:(diagnóstico)) and (tw:(deficiência auditiva)). A opção título, resumo e assunto foi selecionada em todas as linhas. A estratégia aplicada na PUBMED foi: ((hearing loss [MeSH Terms]) and criteria [Title/Abstract]) and diagnosis [Title/Abstract].

Duas autoras independentes concluíram todas as fases da revisão narrativa e não houve discordância entre elas. Inicialmente, para a seleção dos estudos, o critério foi a remoção dos duplicados, seguido pela exclusão de referências após a leitura dos títulos e resumos e, para finalizar, realizou-se a leitura na íntegra dos trabalhos elegíveis e incluídos. Os dados foram estruturados por meio de um instrumento contendo as seguintes informações: plataforma de busca, autores, ano de publicação, país, critério utilizado para o cálculo do grau da perda auditiva, objetivo, tipo de estudo ou método utilizado e lateralidade da perda auditiva. A análise da pesquisa foi realizada de forma qualitativa e descritiva, na qual foram discutidos os pontos mencionados nos objetivos propostos.

Revisão da Literatura

Foram identificadas 923 referências por meio da busca nas bases eletrônicas, sendo 581 na BVS e 342 na PUBMED. Deste total, foram removidas 20 referências duplicadas, 11 da BVS e 9 da PUBMED. Em seguida, 903 estudos foram selecionados e, após a leitura dos títulos e resumos, foram excluídas mais 633 por não estarem de acordo com os critérios de inclusão A, B, C e D. Para a análise mais cautelosa, foram elegíveis 270 estudos, dos quais 232 não contemplaram o critério de inclusão E. Desse modo, foram incluídas na síntese qualitativa 38 referências (Figura 1).

Figura 1:
Fluxograma dos estudos selecionados

A sinopse das 38 referências incluídas encontra-se a seguir (Figura 2).

Figura 2:
Distribuição das referências incluídas segundo o critério utilizado para o cálculo do grau da perda auditiva, ano de publicação, país, objetivo, tipo de estudo ou método utilizado e lateralidade da perda auditiva

Nota-se que não há uniformização quanto à adoção do critério para o cálculo do grau da perda auditiva. Observou-se a utilização de critérios divergentes em publicações de diferentes países, mas também, em alguns casos, em publicações do mesmo território (Figura 2). Vale salientar que esses resultados podem não expressar a recomendação normativa de cada país.

Ao todo, foram identificados nove critérios para calcular o grau da perda auditiva. A seguir, serão descritos os três mais citados^14-42, o que exclui os estudos apresentados nas referências de 43 a 51, cujos critérios não são mencionados no Brasil em documentos técnicos.

A maioria dos estudos analisados (n=22) adotou a média quadritonal entre as frequências de 0,5, 1, 2 e 4 kHz. O período de publicação desses estudos foi entre os anos de 2015 e 2019. Foram desenvolvidos em 11 países (Taiwan, Suécia, Estados Unidos da América (EUA), Austrália, França, Inglaterra, Itália, Egito, Bélgica, Portugal, Polônia). Dentre eles, destacam-se os EUA com sete publicações. A indicação clínica para aplicação desse critério variou entre diagnóstico adulto e infantil, triagem escolar, audiologia ocupacional, indicação e acompanhamento de implante coclear, otosclerose e otites^14-35. É possível perceber que a utilização desse critério é abrangente e que se considerou a unilateralidade da perda auditiva na maioria dos estudos.

Em segundo e terceiro lugares, os critérios mais referidos foram a média quadritonal entre 0,5, 1, 2 e 3 kHz (n=4)^36-39 e a média tritonal entre as frequências de 0,5, 1 e 2 kHz (n=3)^40-42. Os estudos que empregaram esses critérios foram publicados entre os anos de 2015 e 2019, em apenas três países (EUA, Inglaterra e África do Sul). Foram adotados no diagnóstico da perda auditiva de forma geral e em casos de doenças como Schwannoma do acústico, síndrome de Ehlers-Danlos e doença de Duane. Mais uma vez, os EUA concentraram o maior número de pesquisas (n=5).

No Brasil, o CFFa, por meio do guia de orientação na avaliação audiológica, reconhece que há uma literatura extensa para a classificação do grau da perda auditiva e, baseado em estudos robustos, sugere o uso da média quadritonal entre 0,5, 1, 2, e 4 kHz ou da média tritonal entre as frequências de 0,5, 1 e 2 kHz. De acordo com esse Conselho, a decisão para o emprego de qualquer uma delas é livre para cada profissional, porém é necessário que a escolha seja devidamente referenciada⁶. Outros autores também admitem que há contradições sobre qual seria a melhor classificação e, visando à prioridade da inteligibilidade de fala, afirmam que o critério mais adequado é a média obtida nas frequências de 0,5 a 4 kHz⁵².

Em 2011, Dobie⁵³ realizou um estudo e validou o método da American Medical Association (AMA) de estimativa de deficiência auditiva. Esse método defende que a utilização da média quadritonal entre as frequências de 0,5, 1, 2 e 3 kHz é adequada. Apesar disso, contrapondo-se ao uso dos Guias da AMA, alguns pesquisadores sugeriram que os processos de confiabilidade e validação necessitam ser analisados por diferentes avaliadores, não apenas por um pesquisador dessa área⁵⁴.

O Comitê de Audição da American Academy of Otolaryngology-Head and Neck Surgery (AAO-HNS) reconheceu que a falta de padronização para classificar o nível da função auditiva dificulta o desenvolvimento das pesquisas. Com isso, aprovou um padrão para os resultados auditivos a partir da média quadritonal entre 0,5, 1, 2 e 3 kHz. Em 2013, a American Academy of Audiology (AAA) fez um pronunciamento e deixou clara a sua preocupação a respeito dessa padronização. Para essa associação, é necessário que haja evidência suficiente sobre a eficácia dessa proposta. Além disso, ela afirmou que a utilização da frequência de 3 kHz não é o ideal para Perdas Auditivas Induzidas por Ruído (PAIR) ou ototóxicos, por exemplo. Nesses casos, as alterações são observadas até a frequência de 4 kHz⁵⁵.

No Brasil, paralelamente às recomendações do CFFa, estabeleceu-se por meio do decreto nº 5.296/2004, que regulamenta as Leis nº 10.048/2000 e nº 10.098/2000, que a pessoa com deficiência auditiva é aquela que atende ao critério descrito no artigo 4º:

É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias: ... II - deficiência auditiva - perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz⁷.

Como pode-se constatar, segundo o estabelecido nesse decreto, as perdas unilaterais não são consideradas e, quanto ao cálculo do grau, há ambiguidade sobre a utilização das frequências. Da forma apresentada, não fica evidente se o valor em dB é obtido a partir da média quadritonal ou das frequências isoladas. Ambas alternativas não seguem as recomendações do CFFa, que não inclui a frequência de 3 kHz no cálculo da média quadritonal, tampouco concorda em estabelecer o grau da perda auditiva por frequências de forma isolada⁶.

Ao comparar o critério de aferição da perda auditiva descrito na legislação brasileira com os mais utilizados por pesquisadores nacionais e internacionais, nota-se imprecisão. A literatura apresenta poucas evidências para a indicação do uso da frequência de 3 kHz no cálculo da média quadritonal. Dos 38 artigos incluídos na análise, somente quatro adotaram esse critério. Dois deles foram desenvolvidos pelos mesmos autores. Ademais, as indicações clínicas foram limitadas e nenhum deles foi realizado no Brasil, como visto anteriormente^36-39. A não inclusão da frequência de 4 kHz no cálculo da média quadritonal afeta a representação mais verídica da inteligibilidade de fala⁵². Isso sinaliza para a necessidade de rediscussão e reavaliação do critério legal adotado no país para reconhecimento da deficiência auditiva.

O Brasil é considerado um dos países mais inclusivos da América Latina, devido a todo seu arcabouço jurídico. No entanto, ainda há questões técnicas a serem equacionadas quanto à escolha do melhor critério para a classificação do grau da perda auditiva. Essas questões têm repercussões sobre outra questão ainda mais complexa, que é a proteção social das PcD auditivas.

A junção de um critério biomédico questionável, como o adotado no decreto nº 5.296/2004⁷, com a realidade de diagnósticos tardios e de dificuldades das PcD para ter uma vida digna pode resultar em danos consideráveis para os indivíduos e suas famílias⁵⁶. As repercussões da perda auditiva envolvem não apenas a habilidade de comunicação. Aspectos emocionais e socioeconômicos também são relevantes e significativamente afetados, visto que as oportunidades de acesso à educação, qualificação profissional e ao mercado de trabalho representam um desafio para essas pessoas¹⁰.

Na prática, para tentar ter acesso aos direitos conquistados ao longo do tempo, como a contratação de deficientes pelas empresas (Lei nº 8.213/1991)⁵⁷, a garantia do Benefício de Prestação Continuada - BPC (Lei nº 8.742/1993)⁵⁸ e as cotas em concursos públicos (Decreto nº 3.298/1999)⁵⁹, as PcD muitas vezes precisam apelar ao Poder Judiciário. Todavia, nota-se que mesmo neste Poder não há unanimidade das decisões a respeito da observância do critério para classificação da PcD auditiva especificado no decreto nº 5.296/2004. Para o Tribunal Superior do Trabalho (TST), há jurisprudência a favor da aceitação da perda auditiva unilateral como deficiência⁶⁰. Já o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio de súmula, segue a recomendação do decreto supracitado e desconsidera as perdas auditivas unilaterais⁶¹.

Para a promoção da inclusão social das PcD, o PVSL representa um marco legal importante⁸. Porém, a barreira inicial imposta ao sujeito, que é o diagnóstico da perda auditiva, pode gerar o não reconhecimento das vulnerabilidades e, em alguma medida, causar exclusão ao invés de inclusão social. A falta de uma diretriz sobre os critérios para esse diagnóstico por parte do MS também contribui para toda divergência observada e, além disso, para que a deficiência auditiva, com toda a sua complexidade, siga invisível e incompreensível em sua totalidade.

Sobre os demais critérios identificados neste artigo para o cálculo do grau da perda auditiva, embora tenham sido mencionados pelos autores dos estudos, não se encontrou recomendação na literatura que apoiasse sua utilização. Esses critérios discordantes dos três mais prevalentes foram empregados para finalidades específicas, tais como, avaliação da ototoxidade de alguns medicamentos e verificação da relação entre algumas doenças e perda auditva.

Quanto às limitações desse estudo, o fato de terem sido utilizadas apenas duas plataformas para busca da literatura científica (BVS e PUBMED) e de não terem sido incluídas fontes de informação governamentais pode ter restringido a identificação de documentos técnicos de outros países sobre a classificação do grau da perda auditiva. Entretanto, essa limitação pode ter sido mitigada pela quantidade de estudos originários de um mesmo país, o que faz supor que normativas nacionais relevantes tenham sido consideradas na eleição dos critérios utilizados nos estudos.

Considerações Finais

A revisão narrativa da literatura, realizada para identificar os critérios utilizados em nível nacional e internacional para a classificação do grau da perda auditiva, revela que a falta de consenso é uma realidade comum a muitos países. Contudo, verificou-se que há uma predileção pelo critério que adota a média quadritonal entre as frequências de 0,5, 1, 2 e 4 kHz.

O critério legal brasileiro para essa finalidade não acompanha essa evidência e, como resultado, parte das PcD auditiva não é reconhecida como pessoa com deficiência e, por isso, deixa de ser beneficiada pelas políticas públicas de proteção social, o que a torna ainda mais vulnerável socioeconomicamente.

No Brasil, faz-se necessário um debate abrangente a respeito desse critério, a fim de efetivar os direitos sociais instituídos para as PcD auditiva. Sugere-se ao MS, por meio da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) e da Coordenação-Geral de Saúde da Pessoa com Deficiência, a elaboração de diretrizes para a classificação do grau da deficiência auditiva, visando a revisão da norma legal que hoje constitui obstáculo à proteção social de parte das pessoas com essa deficiência.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  25 Ago 2022
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  15 Set 2021
• Aceito
  01 Jul 2022