Acessibilidade / Reportar erro

Hábitos de leitura em estudantes universitários tchecos e brasileiros com e sem dislexia

RESUMO

Objetivo:

comparar os hábitos de leitura avaliados pelo Questionário História de Leitura em adultos com e sem dislexia de diferentes culturas e línguas.

Métodos:

participaram da pesquisa 119 estudantes universitários (60 tchecos e 59 brasileiros, metade com dislexia), os quais foram avaliados por meio de autoavaliação, respondendo o questionário de história de leitura e realizando teste de nível de leitura. A pontuação no QHL foi comparada entre os grupos e países com o teste de Análise de Variância (ANOVA) e a correlação foi avaliada com o teste de Spearman, ambos com nível de significância de p < 0,05.

Resultados:

adultos com dislexia obtiveram menor pontuação nos hábitos de leitura e no nível de leitura do que adultos leitores típicos em ambas as línguas. Houve correlação positiva entre os hábitos de leitura e o nível de leitura nos dois idiomas. Os brasileiros, independentemente do grupo, mostraram hábitos de leitura com menor pontuação do que os estudantes tchecos.

Conclusão:

os resultados sugerem que a autoavaliação dos hábitos de leitura é uma forma eficaz de triagem para os transtornos de leitura, contudo os fatores culturais e escolares devem ser considerados.

Descritores:
Leitura; Dislexia; Adulto; Autoteste

ABSTRACT

Purpose:

to compare, with Adult Reading History Questionnaire results, the reading habits of adults with and without dyslexia of different cultures and languages.

Methods:

the research comprised 119 university students (60 Czechs and 59 Brazilians, half of them with dyslexia) assessed by responding to the self-report reading history questionnaire and taking a reading level test. ARHQ scores were compared between the groups and countries with the analysis of variance (ANOVA), and their correlation was assessed with the Spearman’s test, both with the significance level set at p < 0.05.

Results:

adults with dyslexia had lower reading habit scores and reading level scores than typical readers in both languages. Reading habits were positively correlated with reading levels in both languages. Regardless of the group, Brazilians had lower reading habit scores than Czechs.

Conclusion:

the results suggest that self-assessing reading habits is an effective way to screen for reading disorders. However, cultural and school factors must be considered.

Keywords:
Reading; Dyslexia; Adult; Self-Testing

Introdução

Dislexia, um dos transtornos específicos de aprendizagem, tem prevalência estimada entre 5 e 15%, de acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) da Associação Americana de Psiquiatria (APA, na sigla em inglês)11. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders [homepage on the internet]. Fifth Edition. American Psychiatric Association; 2013 [accessed 2022 apr 4]. Available at: https://psychiatryonline.org/doi/book/10.1176/appi.books.9780890425596
https://psychiatryonline.org/doi/book/10...
. Embora o transtorno específico de leitura (dislexia) receba diagnóstico principalmente na infância, quando começa a interferir na aquisição de leitura e escrita, seus sintomas podem persistir durante a idade adulta. Além disso, muitos adultos com dislexia nunca foram diagnosticados, por falta de conhecimento da patologia e de acesso a avaliação quando crianças. Portanto, qualquer estimativa da prevalência entre adultos pode ser considerada imprecisa.

Atualmente, a principal maneira de avaliar e diagnosticar transtornos da leitura em diferentes períodos da vida envolve o uso de testes psicológicos e neuropsicológicos voltados para o exame da leitura e escrita, da linguagem, consciência fonológica, memória e outras habilidades relacionadas que determinam o perfil cognitivo do leitor e seu desvio da norma. Estas avaliações são eficazes quando utilizadas por profissionais experientes, sendo aplicadas e pontuadas com instrumentos validados no determinado país22. Smythe I. Dyslexia in the digital age: making IT work. London; New York: Continuum International Pub. Group; 2010.,33. Mather N, Wendling BJ. Essentials of dyslexia assessment and intervention. Hoboken NJ: J. Wiley; 2012.. No entanto, a avaliação por meio dessas ferramentas pode ser demorada, custosa e os resultados podem ser influenciados por fatores como o estado mental e emocional da pessoa no momento do exame e a visão subjetiva do examinador.

Nos estudos científicos, há relatos de métodos de rastreamento ocular, que buscam mostrar diferenças nos movimentos oculares em pessoas com dislexia ou leitores com desempenho típico em um leque de atividades. Tais ferramentas são complementares e podem nos fornecer dados comportamentais mais objetivos, mas, como vias para diagnóstico clínico, ainda são incipientes. Como exemplo dessas ferramentas, pode-se citar o RADAR em inglês44. Smyrnakis I, Andreadakis V, Selimis V, Kalaitzakis M, Bachourou T, Kaloutsakis G et al. RADAR: A novel fast-screening method for reading difficulties with special focus on dyslexia. PLoS ONE. 2017;12(8):e0182597., um procedimento que, por meio de rastreio ocular durante a leitura de textos, consegue identificar crianças entre 8 e 12 anos com dislexia, com a sensibilidade de 94%.

Outra abordagem para avaliar os transtornos da leitura e identificar os índices de dislexia é por meio de inventários autorrelatados. Estes são menos afetados pela experiência do avaliador clínico ou por fatores relacionados às testagens longas, tais como o cansaço, e são geralmente bem acessíveis e preenchidos de maneira eficaz. Entre as desvantagens desse tipo de ferramenta, pode se citar o fato de a autopercepção poder divergir de uma avaliação externa, por exemplo, por meio de um teste, cujo resultado é comparado com uma norma da população geral. Ademais, a capacidade de autoavaliação e autorreflexão pode estar reduzida em grupos específicos, tais como em crianças55. Skarphedinsson G, Jarbin H, Andersson M, Ivarsson T. Diagnostic efficiency and validity of the DSM-oriented Child Behavior Checklist and Youth Self-Report scales in a clinical sample of Swedish youth. PLoS ONE. 2021;16(7):e0254953. ou pessoas com nível educacional baixo66. Jones UO, Asbjornsen A, Manger T, Eikeland OJ. An examination of the relationship between self-reported and measured reading and spelling skills among incarcerated adults in Norway. J Correct Educ. 2011;52(1):26-50.. Portanto, as ferramentas autorreferidas podem ser utilizadas com melhor eficácia como ferramentas de triagem, que identificam os sinais de um transtorno para uma posterior avaliação clínica na população de adolescentes e adultos77. Gilger JW. Using self-report and parental-report survey data to assess past and present academic achievement of adults and children. J Appl Dev Psychol. 1992;13(2):235-56..

As ferramentas de autoavaliação das dificuldades de leitura na idade adulta são geralmente compostas por múltiplas perguntas sobre o desempenho e experiência pessoal em atividades relacionadas à leitura com variação no formato e extensão. A validação da ferramenta, no seu contexto cultural e linguístico, é importante e frequentemente é feita também para os grupos clínicos. Por exemplo, Gimenez et al.88. Giménez A, Luis JL, López-Zamora M, Fernández-Navas M. A Self-report of reading disabilities for adults: ATLAS. Anales de psicologia. 2015;31(1):109-19. utilizaram a ferramenta espanhola ATLAS e relataram uma boa validade e confiabilidade desta ferramenta. Frequentemente, as perguntas de autoavaliação também são usadas como parte de uma triagem maior, como no Teste de Dislexia Digital de Diagnóstico Múltiplo, uma ferramenta holandesa para avaliação de adultos99. Tamboer P, Vorst HCM, de Jong PF. Six factors of adult dyslexia assessed by cognitive tests and self-report questions: very high predictive validity. Res Dev Disabil. 2017;71:143-68.. Uma abordagem um pouco diferente é apresentada pela Associação Americana de Dislexia (International Dyslexia Association - IDA) que, em sua página (www.dyslexiaida.org), fornece ferramentas rápidas de autorrelato1010. More Self-Assessment Tools for Dyslexia - International Dyslexia Association [homepage on the internet]. 2016 [accessed 2022 apr 5]. Available at: https://dyslexiaida.org/screening-for-dyslexia/
https://dyslexiaida.org/screening-for-dy...
. Essas ferramentas têm finalidade de ajudar o visitante da página a avaliar se ele/ela possui algum indício de dislexia ou outro transtorno de leitura, e pode ser um indicativo da necessidade de se procurar profissionais para um diagnóstico clínico. A IDA oferece ferramentas também para crianças em idade escolar e uma parte do questionário é respondida pelos pais para se estimar risco de dislexia em pré-escolares. Uma parte das perguntas foi retirada de uma outra ferramenta para adultos, chamada Questionário História de Leitura (QHL)1010. More Self-Assessment Tools for Dyslexia - International Dyslexia Association [homepage on the internet]. 2016 [accessed 2022 apr 5]. Available at: https://dyslexiaida.org/screening-for-dyslexia/
https://dyslexiaida.org/screening-for-dy...
.

O QHL (Adult Reading History Questionnaire - ARHQ, em inglês) é uma ferramenta dirigida às pessoas adultas com suspeita de dislexia, que foi, originalmente, baseada na versão revisada do Reading Questionnaire1111. Finucci JM, Isaacs SD, Whitehouse CC, Childs B. Empirical Validation of Reading and Spelling Quotients. Dev Med Child Neurol. 1982;24(6):733-44., publicado por Lefly e Pennington1212. Lefly DL, Pennington BF. Reliability and validity of the Adult Reading History Questionnaire. J Learn Disabil. 2000;33(3):286-96.. Os autores mostraram a relevância da ferramenta, bem como sua boa validade e confiabilidade teste-reteste em adultos1212. Lefly DL, Pennington BF. Reliability and validity of the Adult Reading History Questionnaire. J Learn Disabil. 2000;33(3):286-96.. O QHL obteve bons resultados na identificação confiável das pessoas com e sem dificuldades de leitura e, de acordo com o escore total obtido no questionário, pode-se estimar o nível de risco para o transtorno específico de leitura, embora não seja indicado para o uso isolado no diagnóstico da dislexia1313. Krasowicz-Kupis G, Bogdanowicz KM, Wiejak K. Familial risk of dyslexia in Polish first grade pupils based on the ARHQ-PL Questionnaire. HPR. 2014;2(4):237-46..

O questionário possui de 23 a 26 questões relacionadas principalmente ao desempenho escolar, memória e hábitos de leitura1414. Feng L, Hancock R, Watson C, Bogley R, Miller ZA, Gorno-Tempini ML et al. Development of an Abbreviated Adult Reading History Questionnaire (ARHQ-Brief) using a machine learning approach. J Learn Disabil. 2022;55(5):427-42.. A quantidade de itens pode variar entre países, de acordo com os sintomas específicos determinados culturalmente e linguisticamente. Por exemplo, a questão sobre problemas com a aprendizagem de uma segunda língua foi omitida da versão americana, uma vez que muitos participantes não tinham nenhum contato com a segunda língua e deixavam de responder esse item1212. Lefly DL, Pennington BF. Reliability and validity of the Adult Reading History Questionnaire. J Learn Disabil. 2000;33(3):286-96.. Já em países europeus, a experiência bilíngue é mais comum. A diferença pode ser encontrada também em algumas questões de anamnese, mas que geralmente não são incluídas para a contagem do escore total. O questionário tem formato das escalas Likert de quatro pontos, de 0 (significa sem problemas) a 4 (grandes problemas). Na versão original em inglês, a pontuação total superior a 39 para mulheres ou 42 para homens, respectivamente, indica risco significativo de transtorno específico de leitura1515. Dyslexia Screener for Adults - International Dyslexia Association [homepage on the internet]. 2015 [accessed 2022 apr 5]. Available at: https://dyslexiaida.org/screening-for-dyslexia/dyslexia-screener-for-adults/
https://dyslexiaida.org/screening-for-dy...
.

O QHL foi traduzido e avaliado nos últimos anos em diversos países. Uma das mais recentes versões é, provavelmente, a sueca (ARHQ-vux), de 20181616. Ögren K. ARHQ-vux: En kvantitativ förstudie om utformandet av ett screeningverktyg. [Internet] [dissertation]. 2018. Available at: http://urn.kb.se/resolve?urn=urn:nbn:se:umu:diva-158637
http://urn.kb.se/resolve?urn=urn:nbn:se:...
, e pode-se citar a versão polonesa (ARHQ-PL) para alunos, que foi revisada porque algumas questões pareciam estar desatualizadas de acordo com os autores1313. Krasowicz-Kupis G, Bogdanowicz KM, Wiejak K. Familial risk of dyslexia in Polish first grade pupils based on the ARHQ-PL Questionnaire. HPR. 2014;2(4):237-46.. Como já dito antes, há também versões modificadas, devido às diferenças culturais e educacionais em diferentes países, por exemplo, na versão islandesa1717. Bjornsdottir G, Halldorsson JG, Steinberg S, Hansdottir I, Kristjansson K, Stefansson H et al. The Adult Reading History Questionnaire (ARHQ) in Icelandic: psychometric properties and factor structure. J Learn Disabil. 2014;47(6):532-42. um item foi omitido. A versão tcheca (ARHQ-CZ) tem sido usada desde 20141818. Jira F. Možnosti diagnostiky dyslexie v populaci dospělých. [internet] [dissertation]. Praha: Karlova Univerzita; 2014 [accessed 2022 apr 5]. Available at: https://dspace.cuni.cz/handle/20.500.11956/66481.

Há também uma versão abreviada (ARHQ-Brief), publicada por Feng et al.1414. Feng L, Hancock R, Watson C, Bogley R, Miller ZA, Gorno-Tempini ML et al. Development of an Abbreviated Adult Reading History Questionnaire (ARHQ-Brief) using a machine learning approach. J Learn Disabil. 2022;55(5):427-42., que possui apenas seis itens selecionados com base em análises fatoriais do questionário, sendo que os itens principais estão relacionados a sintomas disléxicos e hábitos atuais de leitura. Esta versão rápida da avaliação evidencia ter uma boa sensibilidade e especificidade na identificação de adultos com dislexia. A estrutura fatorial do QHL tem estado no centro dos interesses em alguns idiomas. No estudo islandês1717. Bjornsdottir G, Halldorsson JG, Steinberg S, Hansdottir I, Kristjansson K, Stefansson H et al. The Adult Reading History Questionnaire (ARHQ) in Icelandic: psychometric properties and factor structure. J Learn Disabil. 2014;47(6):532-42. foram identificados três fatores de peso: sintomas disléxicos, leitura atual e memória. Entre os fatores apontados, o maior número de itens da escala (12 itens) relaciona-se com o fator sintomas disléxicos. A comparação da pontuação total dentro de cada fator entre adultos com e sem dislexia mostrou diferença significativa em todos, com consistência interna maior que 0,80 no alfa de Cronbach1717. Bjornsdottir G, Halldorsson JG, Steinberg S, Hansdottir I, Kristjansson K, Stefansson H et al. The Adult Reading History Questionnaire (ARHQ) in Icelandic: psychometric properties and factor structure. J Learn Disabil. 2014;47(6):532-42.. Welcome e Meza1919. Welcome SE, Meza RA. Dimensions of the Adult Reading History Questionnaire and their relationships with reading ability. Read Writ. 2019;32(5):1295-317. identificaram seis fatores em 19 itens: leitura infantil, ortografia, reversão, memória, atitude de leitura atual e uso de mídia impressa.

A versão portuguesa do QHL foi criada por Alves e Castro2020. Alves R, Castro SL. Despistagem da dislexia em adultos através do questionário história de leitura [accessed 2022 apr 5]; Available at: https://hdl.handle.net/10216/6933
https://hdl.handle.net/10216/6933...
frente à falta de instrumentos validados para identificação da dislexia entre adultos de Portugal. O questionário foi traduzido da versão inglesa e adaptado para atender especificidades linguísticas e culturais. A validação e consistência interna foram satisfatórias e o questionário diferenciou bem os grupos clínicos e não clínicos de adultos. A versão portuguesa já foi utilizada em um estudo no Brasil, porém não foi encontrado relato da validação. Medeiros2121. Medeiros EC de MR. Discentes com dislexia na Universidade: um estudo de caso. [Internet] [dissertation] Natal (RN): Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2017 [accessed 2022 apr 5]. Available at: https://repositorio.ufrn.br/jspui/bitstream/123456789/24033/1/ElaineCristinaDeMouraRodriguesMedeiros_DISSERT.pdf relatou o uso da QHL como medida complementar para caracterização do perfil educacional de discentes com dislexia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

O QHL foi aplicado como parte de um estudo maior em alunos universitários com e sem dislexia, tchecos e brasileiros, com objetivo de diferenciar os hábitos de leitura em diferentes línguas. A hipótese previa foi de que o QHL, em população de alto desempenho, composta por universitários, diferenciaria bem as pessoas com e sem dislexia e mostraria um desempenho similar em ambos os países. Algumas diferenças na pontuação do QHL eram esperadas, em função das diferenças linguísticas, sendo o tcheco língua regular e o português semirregular, nos itens relacionados à ortografia, com maior desvantagem para o português.

Métodos

Participantes

Trata-se de um estudo transversal com dados coletados a partir de quatro grupos de participantes adultos; sendo dois grupos com diagnóstico de dislexia (um brasileiro e outro tcheco) e dois grupos controle (um brasileiro e outro tcheco). Os dados foram coletados na República Tcheca e no Brasil, a fim de se obter uma melhor avaliação da influência dos fatores culturais e educacionais no instrumento avaliado. Todos os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, aprovado nos respectivos Comitês de Ética das Universidades Federal do ABC (Brasil; número 089/11) e Universidade Palackého Olomouc (República Tcheca, número 6/18). Os dados foram coletados em ambos os países entre 2018 a 2020.

Leitores adultos tchecos (N = 60; média de idade = 23,55; DP = 3,00; homens = 30; pessoas com dislexia = 31) e brasileiros (N = 59; média de idade = 25,10; DP = 5,76; homens = 24; pessoas com dislexia = 18) participaram do presente estudo. Os critérios de inclusão foram ter nível de educação superior em curso ou concluído e ser falante nativo de sua respectiva língua. Adicionalmente, para o grupo experimental, exigiu-se possuir diagnóstico de dislexia feito por um profissional ou instituição credenciada e qualificada para essa finalidade. Para o grupo controle, foi averiguada ausência de diagnóstico, de queixas de distúrbios de aprendizagem ou de qualquer dificuldade escolar autorrelatada. Entre os critérios de exclusão, encontram-se histórico de traumatismo cranioencefálico, abuso de substâncias, histórico de doenças neurológicas e/ou psiquiátricas.

Todos passaram pela bateria de testes neuropsicológicos (cujo relato não é objetivo dessa publicação) e todos preencheram um questionário sobre leitura. Os testes avaliaram a inteligência, leitura de texto, escrita, atenção sustentada, memória de trabalho e nomeação automática rápida. No grupo controle, a pontuação nos testes não indicou nenhum desvio da normalidade.

Instrumentos - Questionários

QHL (Versão Tcheca, ARHQ-CZ)

O questionário foi criado e testado por Jira1818. Jira F. Možnosti diagnostiky dyslexie v populaci dospělých. [internet] [dissertation]. Praha: Karlova Univerzita; 2014 [accessed 2022 apr 5]. Available at: https://dspace.cuni.cz/handle/20.500.11956/66481, possui 23 itens e a ordem dos itens segue o padrão do questionário inglês1515. Dyslexia Screener for Adults - International Dyslexia Association [homepage on the internet]. 2015 [accessed 2022 apr 5]. Available at: https://dyslexiaida.org/screening-for-dyslexia/dyslexia-screener-for-adults/
https://dyslexiaida.org/screening-for-dy...
. Em cada item o participante deve assinalar um número de 0 a 4, conforme sua avaliação em relação à afirmação descrita. No conjunto de dados obtidos pela aplicação do instrumento em 157 leitores tchecos, foram identificados três principais fatores (habilidades de leitura, hábitos de leitura e memória) e o alfa de Cronbach foi de 0,95, indicando uma boa consistência do instrumento, o que corresponde aos resultados de Lefly e Pennigton1212. Lefly DL, Pennington BF. Reliability and validity of the Adult Reading History Questionnaire. J Learn Disabil. 2000;33(3):286-96.. No presente estudo foi usada a pontuação total e também foram feitas as perguntas de anamnese que antecedem o questionário, mas não são pontuadas. A aplicação seguiu a aplicação descrita por Jira1818. Jira F. Možnosti diagnostiky dyslexie v populaci dospělých. [internet] [dissertation]. Praha: Karlova Univerzita; 2014 [accessed 2022 apr 5]. Available at: https://dspace.cuni.cz/handle/20.500.11956/66481.

QHL (Versão Portuguesa, ARHQ-PT)

O questionário foi adaptado para o português de Portugal por Alves e Castro2020. Alves R, Castro SL. Despistagem da dislexia em adultos através do questionário história de leitura [accessed 2022 apr 5]; Available at: https://hdl.handle.net/10216/6933
https://hdl.handle.net/10216/6933...
e utilizado no Brasil por Medeiros2121. Medeiros EC de MR. Discentes com dislexia na Universidade: um estudo de caso. [Internet] [dissertation] Natal (RN): Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2017 [accessed 2022 apr 5]. Available at: https://repositorio.ufrn.br/jspui/bitstream/123456789/24033/1/ElaineCristinaDeMouraRodriguesMedeiros_DISSERT.pdf. Diferentemente do tcheco, ele possui 25 itens, uma vez que dois itens foram adicionados devido à especificidade da língua portuguesa. Da mesma forma como em outras línguas, a resposta é dada numa escala de 0 a 4, conforme a avaliação do indivíduo em relação à afirmação descrita. Foi usada a pontuação total, calculada pela soma das pontuações, com a exclusão dos dois itens a mais em relação à versão tcheca.

Instrumentos - Avaliação de Leitura

Para a avaliação de leitura, foram escolhidos instrumentos validados para a língua de cada país. Uma vez que não existe teste válido para ambas as línguas, tcheco e português brasileiro, optou-se pela seleção de instrumentos diferentes, mas que possibilitassem estimar, com medidas confiáveis, o nível de leitura de cada participante.

Leitura de Pseudopalavras (Versão Tcheca)

A tarefa de leitura de pseudopalavras foi retirada da bateria de diagnóstico para adultos DysTest2222. Cimlerová P, Čalkovská B, Dudíková I, Kocurová M, Krejčová L, Macháčová I et al. Manual administratora: DysTest: baterie testu pro diagnostiku specifických poruch učení u studentů vysokých škol a uchazečů o vysokoškolské studium. Brno: Masarykova univerzita; 2014. p. 86.. Esta bateria é comumente usada na República Tcheca geralmente em estudantes universitários. A tarefa foi criada por Matějček, Štruma, Vágnerová2323. Matějček Z, Šturma J, Vágnerová M, Žlab Z. Zkouška čtení. Bratislava: Psychodiagnostika; 1987. e tem 170 pseudopalavras que foram concebidas de acordo com as regras fonéticas da língua tcheca. As pseudopalavras foram lidas em voz alta, obtendo-se a pontuação total de acertos no primeiro, segundo e terceiro minutos do teste, o que resultou em métricas referentes à estimativa da velocidade (total de palavras lidas por minuto) e precisão de leitura (total de palavras lidas corretamente/ total de palavras lidas).

Teste Internacional de Leitura Rápida de Textos (IreST2424. Trauzettel-Klosinski S, Dietz K. IReST Study Group. Standardized assessment of reading performance: the New International Reading Speed Texts IReST. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2012;53(9):5452-61., Versão em Português Brasileiro2525. Messias A, Cruz AAV, Schallenmüller SJ, Trauzettel-Klosinski S. Textos padronizados em português (BR) para medida de velocidade de leitura - comparação com quatro idiomas europeus. Arq Bras Oftalmol. 2008;71(4):553-8.)

O teste foi desenvolvido na Alemanha com intuito de criar uma ferramenta para avaliar habilidade de leitura de texto em diferentes línguas. O teste é composto por 10 textos curtos retirados de enciclopédia para crianças de 9 a 11 anos e de outras fontes do currículo escolar alemão, contendo passagens de baixa dificuldade. Apesar de ser destinado à avaliação de adolescentes e adultos, a baixa dificuldade para compreensão foi escolhida a fim de evitar que o efeito de nível intelectual e de conhecimento geral do leitor tenha influência na compreensão e na qualidade de leitura. Os textos traduzidos e adaptados para o português têm, em média, 813 caracteres. Os textos foram apresentados em ordem sequencial e os participantes foram solicitados a lê-los em voz alta, o mais rápido possível, sem cometer erros. O tempo total de leitura de cada texto foi cronometrado e foi calculada a velocidade de leitura dividindo-se o número de palavras lidas corretamente pelo tempo.

Procedimentos

Todos os participantes tchecos e brasileiros passaram por procedimentos parecidos. O teste de leitura foi feito em uma sessão, juntamente com outros testes neuropsicológicos e ressonância magnética (não relatados neste estudo). A aplicação foi individual, com um participante e um administrador, e ocorreu em uma sala silenciosa, sendo que a duração da sessão dos testes neuropsicológicos foi de aproximadamente 90 minutos. O tempo para preenchimento do QHL não foi limitado, sendo aproximadamente 5 minutos, e todos os participantes tiveram a opção de perguntar se tinham alguma dúvida sobre o questionário. A aplicação do QHL, no Brasil, foi feita on-line por meio do Google Forms com o link fornecido por e-mail ou WhatsApp. A modificação da aplicação foi necessária, uma vez que a versão em português não estava disponível no início do projeto, que foi interrompido pela Pandemia de Covid-19.

A pontuação total do QHL foi calculada como a soma de todos os itens pontuados na escala pelos participantes (a pontuação mais alta sugere maior risco para os problemas de leitura). Não foram detectados itens sem resposta ou inválidos.

Análise dos Dados

Os escores no QHL foram testados para diferenças entre os grupos (estudantes universitários com e sem dislexia) em cada país e entre os países e, para isso, foi usado o teste t de amostras independentes. A pontuação nos itens de QHL foi somada dentro dos grupos temáticos adaptados do estudo islandês1717. Bjornsdottir G, Halldorsson JG, Steinberg S, Hansdottir I, Kristjansson K, Stefansson H et al. The Adult Reading History Questionnaire (ARHQ) in Icelandic: psychometric properties and factor structure. J Learn Disabil. 2014;47(6):532-42., como sintomas disléxicos, memória e desempenho na escola. A pontuação dos itens agrupados foi comparada entre os grupos com teste de Análise de Variância (ANOVA) para o efeito de grupo (disléxicos vs controle) e país (brasileiros vs tchecos). Além disso, foi analisada a correlação entre as pontuações no QHL e os desempenhos obtidos nos testes de leitura de pseudopalavras (grupo tcheco) e no texto (grupo brasileiro). Para tal, foi calculado o coeficiente de correlação de Spearman. As análises foram realizadas utilizando a linguagem de programação R2626. R: The R Project for Statistical Computing [homepage on the internet]. [accessed 2022 apr 6]. Available at: https://www.r-project.org/
https://www.r-project.org/...
com a interface gráfica do software R Studio2727. RStudio | Open source & professional software for data science teams [homepage on the internet]. [accessed 2022 apr 6]. Available at: https://www.rstudio.com/
https://www.rstudio.com/...
.

Resultados

Para os brasileiros, a pontuação no QHL foi maior no grupo dos adultos com dislexia comparado com os controles (t = -12,20; df = 24,80; p < 0,001; d = 3,68). O mesmo resultado foi encontrado também no grupo dos tchecos (t = -12,80; df = 57,50; p < 0,001; d = 3,31), que mostraram maior pontuação no grupo com dislexia do que no grupo controle. A comparação entre os países mostrou pontuação maior no Brasil tanto para adultos com dislexia (t = 6,20; df = 28,10; p < 0,001; d = 1,90) como para os controles (t = 5,56; df = 57,40; p < 0,001; d = 1,36). Os dados estão representados na Figura 1.

Figura 1:
Pontuação no Questionário de Hábitos de Leitura (QHL)

Em função da maior pontuação dos brasileiros no QHL, foi feita uma descrição da pontuação em cada questão (Tabela 1). A média por grupo pode ser visualizada na Figura 2. Pode se observar que as perguntas dos itens referindo os sintomas disléxicos (item 9, 15 a 18 do QHL) foram pontuadas como mais prejudicadas em adultos com dislexia (brasileiros e tchecos) e o mesmo foi observado nos itens ligados à memória (item 6 a 8 do QHL). As pontuações nos itens sintomas disléxicos e memória foram somadas e comparadas para grupo e país com a ANOVA. O resultado mostrou diferença estatisticamente significativa para grupo (com dislexia e sem dislexia), mas não foi encontrada interação para grupo e país (dificuldade com a leitura: F[1,115] = 263,46; p < 0,001; d = 3,13; memória: F[1,115] = 42,02; p < 0,001; d = 1,24). Os itens referentes ao desempenho na escola mostram-se sujeitos à influência das diferenças culturais e do sistema escolar. Por exemplo, o item 19 que perguntava sobre a avaliação subjetiva do desempenho na leitura em comparação com os pares no ensino fundamental foi visto como mais prejudicado pelos disléxicos tchecos do que os brasileiros. A ANOVA mostrou interação estatisticamente significativa neste item para grupo e país, com disléxicos tchecos pontuando acima dos disléxicos brasileiros (F[1,115] = 6,73; p < 0,01; d = 1,56). Por outro lado, no item 5, que indagava se os pais pensaram em possibilidade de o filho repetir o ano em função das dificuldades escolares, os disléxicos tchecos assinalaram uma possibilidade mínima e os brasileiros indicaram que houve essa consideração. A ANOVA mostrou interação estatisticamente significativa neste item para grupo, país e interação de grupo e país, com os sujeitos brasileiros pontuando acima dos tchecos (p < 0,002; d < 0,90).

Tabela 1:
Perguntas do Questionário História De Leitura (QHL)

Figura 2:
Média e erro padrão por questão para os grupos controle e dislexia de ambas as nacionalidades

Para se avaliar a relação entre os hábitos de leitura e as habilidades de leitura, para cada país foi feita uma correlação de Pearson. No caso do Brasil (BR), foi correlacionada a pontuação no QHL e o teste Internacional de leitura rápida de textos (IReST) e, no caso da República Tcheca (RTch), pontuação no QHL e teste de leitura de pseudopalavras, com duas medidas: a velocidade de leitura e a precisão. Tanto para os brasileiros como para os tchecos a correlação de Pearson foi alta e negativa (BR, r = 6,69, p = p < 0,001; RTch velocidade, r = 6,58, p = p < 0,001; RTch precisão de leitura, r = 4,45, p = p < 0,001). As correlações podem ser visualizadas na Figura 3. A correlação negativa entre os hábitos de leitura e as habilidades de leitura mostra que as pessoas com maiores dificuldades diárias nas atividades relacionadas com a leitura e baixa autopercepção, também mostram pior desempenho quando solicitadas de ler pseudopalavras ou textos.

Figura 3:
Correlação entre os hábitos de leitura e as habilidades de leitura

Por fim, as medidas de leitura também foram comparadas com teste t entre os grupos controles e disléxicos em cada país. No Brasil, os controles obtiveram melhor desempenho de leitura rápida de textos (IReST) do que os disléxicos (t = 6,35; df = 21,30; p < 0,001; d = 2,02). Na República Tcheca, os controles também obtiveram melhor desempenho do que os disléxicos na precisão de leitura de pseudopalavras (t = 4,60; df = 45,80; p < 0,001; d = 1,18) e na velocidade de leitura de pseudopalavras (t = 6,98; df = 57,90; p < 0,001; d = 1,80). Considerando que a dificuldade de leitura é o principal sintoma da dislexia do desenvolvimento, esse resultado era esperado.

Discussão

A qualidade de leitura e escrita na idade adulta é raramente avaliada pelas pesquisas, como foi indicado numa revisão sistemática focada em países de língua inglesa, que encontrou apenas um estudo, de um total de quatorze artigos, focado em adultos (Sadusky et al.)2828. Sadusky A, Berger EP, Reupert AE, Freeman NC. Methods used by psychologists for identifying dyslexia: a systematic review. Dyslexia. 2022;28(2):132-48.. Os autores do estudo sugeriram, com base nesse resultado, que as dificuldades de leitura na idade adulta são subestimadas pela ciência e provavelmente também pela área clínica.

O objetivo deste estudo foi mostrar a utilidade da ferramenta de autorrelato em diferentes línguas (no Brasil e na República Tcheca) para a avaliação das habilidades de leitura em pessoas adultas e para a diferenciação dessas das pessoas com os distúrbios de leitura. A pontuação das ferramentas autorreferidas diferenciou-se entre o grupo disléxico e o controle em cada domínio linguístico, o que indica a importância das ferramentas autorreferidas no processo de diagnóstico da dislexia. Por outro lado, a pontuação diferiu entre os países, indicando a necessidade da validação e normatização para o uso adequado do instrumento e para a correta interpretação do resultado em cada contexto linguístico, cultural e escolar.

Esse resultado é coerente com outros estudos internacionais que indicaram uma boa capacidade de discriminação do QHL para os grupos clínicos em outras adaptações linguísticas. Por exemplo, a versão islandesa1717. Bjornsdottir G, Halldorsson JG, Steinberg S, Hansdottir I, Kristjansson K, Stefansson H et al. The Adult Reading History Questionnaire (ARHQ) in Icelandic: psychometric properties and factor structure. J Learn Disabil. 2014;47(6):532-42. apresenta sensibilidade alta, de 84,5%, especificidade de 83,7% e uma pontuação de corte de 43 pontos. Conforme os resultados do presente estudo mostraram, alguns itens no QHL são provavelmente mais sensíveis às características linguísticas e aos fatores socioculturais do país e, por isso, a nota de corte precisa ser estimada com base na amostra representativa de cada país.

O benefício do uso de ferramentas padronizadas sobre os hábitos de leitura em vez de questionários caseiros é indiscutível tanto na pesquisa científica como na prática clínica. QHL é comumente usado em muitos idiomas e mostra ser uma ferramenta eficaz tanto para rastreio como para auxílio no diagnóstico da dislexia. Os resultados de correlação entre o QHL e os testes de leitura são semelhantes aos resultados desta pesquisa. No estudo original em inglês1212. Lefly DL, Pennington BF. Reliability and validity of the Adult Reading History Questionnaire. J Learn Disabil. 2000;33(3):286-96., a correlação entre a pontuação total do QHL e as habilidades de leitura foi moderada à alta (0,57-0,7). Os nossos resultados de correlação alta (r aproximadamente 7) indicam que, associando o questionário a alguma outra avaliação de leitura (leitura de palavras, pseudopalavras ou textos), aumenta-se ainda mais o poder discriminativo entre os bons leitores e aqueles com dificuldades. Numa realidade como a brasileira, com difícil acesso à avaliação neuropsicológica ampla, pela demora e custo, o QHL em conjunto com teste de leitura sensível poderia ser útil e confiável para rastreio e levantamento inicial das dificuldades, reduzindo a chance de posterior encaminhamento, assim como acontece em outras culturas (ver, por exemplo, ARHQ-vux para sueco1616. Ögren K. ARHQ-vux: En kvantitativ förstudie om utformandet av ett screeningverktyg. [Internet] [dissertation]. 2018. Available at: http://urn.kb.se/resolve?urn=urn:nbn:se:umu:diva-158637
http://urn.kb.se/resolve?urn=urn:nbn:se:...
ou ARHQ-PL para polonês1313. Krasowicz-Kupis G, Bogdanowicz KM, Wiejak K. Familial risk of dyslexia in Polish first grade pupils based on the ARHQ-PL Questionnaire. HPR. 2014;2(4):237-46.).

A análise fatorial do QHL em diferentes idiomas mostra fatores que descrevem os hábitos de leitura, bem como o histórico de leitura e os problemas de memória. Estes parecem ser bastante estáveis em diferentes culturas linguísticas (por exemplo, Jira1818. Jira F. Možnosti diagnostiky dyslexie v populaci dospělých. [internet] [dissertation]. Praha: Karlova Univerzita; 2014 [accessed 2022 apr 5]. Available at: https://dspace.cuni.cz/handle/20.500.11956/66481 no ARHQ-CZ, bem como Bjornsdottir et al.1717. Bjornsdottir G, Halldorsson JG, Steinberg S, Hansdottir I, Kristjansson K, Stefansson H et al. The Adult Reading History Questionnaire (ARHQ) in Icelandic: psychometric properties and factor structure. J Learn Disabil. 2014;47(6):532-42. no ARHQ-Ice identificaram esses três fatores). Com base nos resultados, pode-se discutir o valor desses fatores em países com maior variabilidade socioeconômica e no acesso escolar, pois no Brasil os resultados mostraram diferenças em aspectos como desempenho na leitura e problemas de memória de curto prazo. Ademais, por ser uma ferramenta autorreferida, as respostas sobre o comprometimento da leitura e percepção subjetiva ou do meio podem ser mais sensíveis ao fator cultural e de práticas escolares. Isso foi observado nos resultados do presente estudo em alguns dos itens do questionário. Para exemplificar, o item 19 obteve pontuação diferente, acredita-se que haja uma maior homogeneidade no desempenho das crianças no curso da alfabetização, na República Tcheca, onde a ortografia da língua é transparente, o nível socioeconômico é mais igualitário e o método de alfabetização usado nas escolas é sintético. Já no Brasil, a língua é semitransparente, o nível socioeconômico das crianças varia e a alfabetização é fortemente influenciada pelo tipo de escola que a criança frequenta e pela realidade de cada família. Nesse contexto Brasileiro de heterogeneidade, a criança com sinais de fracasso na alfabetização destoa menos das demais crianças. A possibilidade de repetir o ano é percebida culturalmente como inaceitável na República Tcheca, sendo um fenômeno raro na educação. Já no Brasil, a repetição é mais comum e pode ocorrer por motivos variados, sendo um deles a dificuldade escolar.

Um aspecto importante deste estudo é a amostra de pesquisa específica que contém apenas adultos com a educação de nível universitário. Podem-se encontrar amostras semelhantes em outros estudos, como o estudo sueco1616. Ögren K. ARHQ-vux: En kvantitativ förstudie om utformandet av ett screeningverktyg. [Internet] [dissertation]. 2018. Available at: http://urn.kb.se/resolve?urn=urn:nbn:se:umu:diva-158637
http://urn.kb.se/resolve?urn=urn:nbn:se:...
ou o estudo tcheco de Jira1818. Jira F. Možnosti diagnostiky dyslexie v populaci dospělých. [internet] [dissertation]. Praha: Karlova Univerzita; 2014 [accessed 2022 apr 5]. Available at: https://dspace.cuni.cz/handle/20.500.11956/66481. Faz-se necessário apontar algumas diferenças nessa amostra composta de pessoas de alto desempenho em comparação com a população em geral. Pode-se supor que, nessa população, num contexto familiar, deu-se muita atenção à educação e, por ser uma parte importante na vida pessoal, os respondentes da amostra podem ter sido mais sensíveis às questões de história da alfabetização e do seu desempenho escolar. Referente aos hábitos de leitura, Sener2929. Şener OA. A research on reading habits of Selçuk University students. Acta Universitatis Danubius Relationes Internationales. 2017;10(2):91-103. forneceu uma visão profunda das especificidades dos mesmos em estudantes universitários. Desta forma, alertou para o fato de que se poderia obter resultados diferentes ao se avaliar pessoas adultas em diferentes níveis educacionais. Como foi observado no estudo com os presidiários, a validade preditiva da autoavaliação dos transtornos de leitura é menor em populações com menor escolaridade66. Jones UO, Asbjornsen A, Manger T, Eikeland OJ. An examination of the relationship between self-reported and measured reading and spelling skills among incarcerated adults in Norway. J Correct Educ. 2011;52(1):26-50.. Ainda assim, a ferramenta de autoavaliação QHL tem sido utilizada em diferentes populações, em pessoas com níveis educacionais diferentes e esse fator precisa de uma melhor investigação1212. Lefly DL, Pennington BF. Reliability and validity of the Adult Reading History Questionnaire. J Learn Disabil. 2000;33(3):286-96..

Em suma, esse estudo mostrou uma boa capacidade de discriminação do QHL para os transtornos de leitura em estudantes universitários, falantes de português brasileiro e língua tcheca. Entre as limitações do estudo, deve-se mencionar o uso de diferentes instrumentos para avaliação do nível de leitura, já que os brasileiros foram avaliados pela leitura de texto e os tchecos pela leitura de pseudopalavras. Por causa dessa diferença, não foi possível uma comparação direta do desempenho na leitura entre os quatros grupos, mas a análise de correlação foi capaz de mostrar similar relação com o nível de leitura e desempenho no QHL. A falta de instrumentos padronizados e validados para diferentes línguas é um problema em estudos internacionais. Outra limitação é o nível de escolaridade que, nesse estudo, se restringiu a apenas pessoas com nível superior. Para que se possa estimar a validade preditiva do instrumento, faz se necessário, nos futuros estudos, ampliar a amostra para outros grupos de escolaridade.

Conclusão

A comparação de grupos interculturais com QHL mostrou ser eficiente em diferenciar adultos com dislexia dos adultos com leitura típica e relacionar os hábitos de leitura com nível de fluência na leitura, apesar do diferente contexto da linguagem, cultura, estilos de ensino e sistemas educacionais. Diferenças sutis foram encontradas em perguntas, questionando a autoavaliação da pessoa no contexto escolar e nas funcionalidades do sistema escolar em cada país.

Agradecimentos

No Brasil, o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Este trabalho também contou com o apoio da Associação Brasileira de Dislexia (ABD) para o recrutamento de voluntários disléxicos.

Na República Tcheca, agradecemos a Lenka Krejčová, do DYS-centrum Prague, Renata Mlčáková, do Centro de Apoio a Estudantes com Necessidades Especiais UP e à equipa do CF MAFIL CEITEC MU pela ajuda no recrutamento dos participantes do estudo, bem como a todos os participantes, que colaboraram com este estudo.

REFERENCES

  • 1
    American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders [homepage on the internet]. Fifth Edition. American Psychiatric Association; 2013 [accessed 2022 apr 4]. Available at: https://psychiatryonline.org/doi/book/10.1176/appi.books.9780890425596
    » https://psychiatryonline.org/doi/book/10.1176/appi.books.9780890425596
  • 2
    Smythe I. Dyslexia in the digital age: making IT work. London; New York: Continuum International Pub. Group; 2010.
  • 3
    Mather N, Wendling BJ. Essentials of dyslexia assessment and intervention. Hoboken NJ: J. Wiley; 2012.
  • 4
    Smyrnakis I, Andreadakis V, Selimis V, Kalaitzakis M, Bachourou T, Kaloutsakis G et al. RADAR: A novel fast-screening method for reading difficulties with special focus on dyslexia. PLoS ONE. 2017;12(8):e0182597.
  • 5
    Skarphedinsson G, Jarbin H, Andersson M, Ivarsson T. Diagnostic efficiency and validity of the DSM-oriented Child Behavior Checklist and Youth Self-Report scales in a clinical sample of Swedish youth. PLoS ONE. 2021;16(7):e0254953.
  • 6
    Jones UO, Asbjornsen A, Manger T, Eikeland OJ. An examination of the relationship between self-reported and measured reading and spelling skills among incarcerated adults in Norway. J Correct Educ. 2011;52(1):26-50.
  • 7
    Gilger JW. Using self-report and parental-report survey data to assess past and present academic achievement of adults and children. J Appl Dev Psychol. 1992;13(2):235-56.
  • 8
    Giménez A, Luis JL, López-Zamora M, Fernández-Navas M. A Self-report of reading disabilities for adults: ATLAS. Anales de psicologia. 2015;31(1):109-19.
  • 9
    Tamboer P, Vorst HCM, de Jong PF. Six factors of adult dyslexia assessed by cognitive tests and self-report questions: very high predictive validity. Res Dev Disabil. 2017;71:143-68.
  • 10
    More Self-Assessment Tools for Dyslexia - International Dyslexia Association [homepage on the internet]. 2016 [accessed 2022 apr 5]. Available at: https://dyslexiaida.org/screening-for-dyslexia/
    » https://dyslexiaida.org/screening-for-dyslexia/
  • 11
    Finucci JM, Isaacs SD, Whitehouse CC, Childs B. Empirical Validation of Reading and Spelling Quotients. Dev Med Child Neurol. 1982;24(6):733-44.
  • 12
    Lefly DL, Pennington BF. Reliability and validity of the Adult Reading History Questionnaire. J Learn Disabil. 2000;33(3):286-96.
  • 13
    Krasowicz-Kupis G, Bogdanowicz KM, Wiejak K. Familial risk of dyslexia in Polish first grade pupils based on the ARHQ-PL Questionnaire. HPR. 2014;2(4):237-46.
  • 14
    Feng L, Hancock R, Watson C, Bogley R, Miller ZA, Gorno-Tempini ML et al. Development of an Abbreviated Adult Reading History Questionnaire (ARHQ-Brief) using a machine learning approach. J Learn Disabil. 2022;55(5):427-42.
  • 15
    Dyslexia Screener for Adults - International Dyslexia Association [homepage on the internet]. 2015 [accessed 2022 apr 5]. Available at: https://dyslexiaida.org/screening-for-dyslexia/dyslexia-screener-for-adults/
    » https://dyslexiaida.org/screening-for-dyslexia/dyslexia-screener-for-adults/
  • 16
    Ögren K. ARHQ-vux: En kvantitativ förstudie om utformandet av ett screeningverktyg. [Internet] [dissertation]. 2018. Available at: http://urn.kb.se/resolve?urn=urn:nbn:se:umu:diva-158637
    » http://urn.kb.se/resolve?urn=urn:nbn:se:umu:diva-158637
  • 17
    Bjornsdottir G, Halldorsson JG, Steinberg S, Hansdottir I, Kristjansson K, Stefansson H et al. The Adult Reading History Questionnaire (ARHQ) in Icelandic: psychometric properties and factor structure. J Learn Disabil. 2014;47(6):532-42.
  • 18
    Jira F. Možnosti diagnostiky dyslexie v populaci dospělých. [internet] [dissertation]. Praha: Karlova Univerzita; 2014 [accessed 2022 apr 5]. Available at: https://dspace.cuni.cz/handle/20.500.11956/66481
  • 19
    Welcome SE, Meza RA. Dimensions of the Adult Reading History Questionnaire and their relationships with reading ability. Read Writ. 2019;32(5):1295-317.
  • 20
    Alves R, Castro SL. Despistagem da dislexia em adultos através do questionário história de leitura [accessed 2022 apr 5]; Available at: https://hdl.handle.net/10216/6933
    » https://hdl.handle.net/10216/6933
  • 21
    Medeiros EC de MR. Discentes com dislexia na Universidade: um estudo de caso. [Internet] [dissertation] Natal (RN): Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2017 [accessed 2022 apr 5]. Available at: https://repositorio.ufrn.br/jspui/bitstream/123456789/24033/1/ElaineCristinaDeMouraRodriguesMedeiros_DISSERT.pdf
  • 22
    Cimlerová P, Čalkovská B, Dudíková I, Kocurová M, Krejčová L, Macháčová I et al. Manual administratora: DysTest: baterie testu pro diagnostiku specifických poruch učení u studentů vysokých škol a uchazečů o vysokoškolské studium. Brno: Masarykova univerzita; 2014. p. 86.
  • 23
    Matějček Z, Šturma J, Vágnerová M, Žlab Z. Zkouška čtení. Bratislava: Psychodiagnostika; 1987.
  • 24
    Trauzettel-Klosinski S, Dietz K. IReST Study Group. Standardized assessment of reading performance: the New International Reading Speed Texts IReST. Invest Ophthalmol Vis Sci. 2012;53(9):5452-61.
  • 25
    Messias A, Cruz AAV, Schallenmüller SJ, Trauzettel-Klosinski S. Textos padronizados em português (BR) para medida de velocidade de leitura - comparação com quatro idiomas europeus. Arq Bras Oftalmol. 2008;71(4):553-8.
  • 26
    R: The R Project for Statistical Computing [homepage on the internet]. [accessed 2022 apr 6]. Available at: https://www.r-project.org/
    » https://www.r-project.org/
  • 27
    RStudio | Open source & professional software for data science teams [homepage on the internet]. [accessed 2022 apr 6]. Available at: https://www.rstudio.com/
    » https://www.rstudio.com/
  • 28
    Sadusky A, Berger EP, Reupert AE, Freeman NC. Methods used by psychologists for identifying dyslexia: a systematic review. Dyslexia. 2022;28(2):132-48.
  • 29
    Şener OA. A research on reading habits of Selçuk University students. Acta Universitatis Danubius Relationes Internationales. 2017;10(2):91-103.
  • Fonte de financiamento: a) O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. b) Reconhecemos o apoio do Centro MAFIL com o financiamento do MEYS CR (LM2018129 Czech-BioImaging), parte do Euro-BioImaging (www.eurobioimaging.eu) ALM e Medical Imaging Node (Brno, CZ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2022
  • Aceito
    08 Nov 2022
ABRAMO Associação Brasileira de Motricidade Orofacial Rua Uruguaiana, 516, Cep 13026-001 Campinas SP Brasil, Tel.: +55 19 3254-0342 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistacefac@cefac.br