Análise de um programa de identificação e intervenção da perda auditiva nos primeiros anos de vida na atenção primária

RESUMO

Objetivo:

analisar a implantação e a eficácia de um programa de identificação e intervenção da perda auditiva nos primeiros anos de vida na atenção primária.

Métodos:

estudo experimental realizado em duas Unidades Básicas de Saúde. Participaram 23 agentes comunitários de saúde, capacitados por meio de um curso autoinstrucional online do Ministério da Saúde. Posteriormente, acompanharam a audição e a linguagem das crianças de zero a dois anos, encaminhando-as, se necessário, para avaliação audiológica. Para análise do conhecimento pré e pós curso online foi aplicado o teste de Wilcoxon e para comparação do desempenho entre os participantes das duas Unidades Básicas de Saúde empregou-se o teste de Mann Whitney, com adoção de p<0,05. Adicionalmente, avaliou-se a percepção qualitativa dos agentes comunitários participantes, os encaminhamentos realizados e o resultado da avaliação audiológica.

Resultados:

o curso online foi eficaz na melhoria do conhecimento dos participantes. Totalizaram-se 102 crianças acompanhadas, 15 delas encaminhadas para avaliação. Destas, quatro realizaram triagem auditiva e 11 realizaram a avaliação auditiva completa, sendo identificado um caso de perda auditiva condutiva.

Conclusão:

a implantação de um programa de identificação e intervenção da perda auditiva nos primeiros anos de vida na atenção primária, permeada por agentes comunitários de saúde, mostrou-se viável.

Descritores:
Perda Auditiva; Agentes Comunitários de Saúde; Capacitação em Serviço; Atenção Primária à Saúde

ABSTRACT

Purpose:

to analyze the implementation and effectiveness of a hearing loss identification and intervention program in the first years of life in primary care.

Methods:

an experimental study carried out in two Basic Health Units. Twenty-three Community Health Workers participated, trained through an online self-instructional course from the Ministry of Health. Subsequently, they followed the hearing and language of children from zero to two years old, referring them, if necessary, to audiological evaluation. For the analysis of pre and post online course knowledge, the Wilcoxon test was applied, and to compare the performance between the participants of the two Basic Health Units, the Mann Whitney test was used, adopting p<0.05. Additionally, the qualitative perception of participating community workers, the referrals, and the result of the audiological evaluation were analyzed.

Results:

the online course was effective in improving the knowledge of the participants. A total of 102 children were monitored, 15 of them were referred for evaluation. From these, four underwent hearing screening and 11 underwent a complete hearing assessment, a case of conductive hearing loss being identified.

Conclusion:

the implementation of a program for the identification and intervention of hearing loss, in the first years of life, in primary care, permeated by community health workers, is feasible.

Keywords:
Hearing Loss; Community Health Workers; Inservice Training; Primary Health Care

INTRODUÇÃO

É consenso mundial que os Sistemas de Saúde Nacionais devem ter como base uma atenção primária à saúde forte e resolutiva, ou seja, a expansão e qualificação deste nível de atenção têm sido vistas como as principais iniciativas para produzir mudanças qualitativas na saúde para as próximas décadas. No Brasil, ainda há um longo percurso a ser percorrido, principalmente devido ao baixo investimento voltado a este nível de atenção, que gira em torno de 19% do total do orçamento direcionado à saúde¹.

Contudo, mesmo neste panorama, importantes programas são desenvolvidos dentre os quais a Estratégia da Saúde da Família e os agentes comunitários de Saúde (ACS). Ao considerar especificamente a área de saúde auditiva, a atuação destes profissionais é recomendada pela Organização Mundial de Saúde² (OMS) desde 1998 e reafirmada na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB)³.

De acordo com as Diretrizes de Atenção à Triagem Auditiva Neonatal (TAN) do Ministério da Saúde (MS)⁴, é previsto o acompanhamento do desenvolvimento auditivo na atenção primária à saúde. Adicionalmente, ações preventivas e de orientação à população seriam plenamente concebíveis, sendo que a atuação dos profissionais neste nível de atenção poderia influenciar diretamente no controle dos casos, uma vez que cerca de 60% das perdas auditivas na infância são preveníveis^5,6 e, na maioria das vezes, poderiam ser evitadas com a implementação de ações de saúde pública^5,7.

No entanto, esta realidade ainda é incomum no âmbito nacional. Para o avanço das atividades, faz-se necessário trazer para o centro da atuação destes profissionais a temática da audição, o que inclui as políticas de educação permanente e mudanças nos processos de formação profissional, como apresentado na Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS)⁸.

A literatura específica demonstra que os ACS desempenham uma função importante na promoção e vigilância da saúde auditiva infantil. Dentre as diversas ferramentas e estratégias desenvolvidas estão as capacitações de forma presencial⁹, por videoconferência¹⁰, Cybertutor¹¹ e CD-ROM¹². Todas com eficácia, porém sem o livre acesso em dimensão nacional.

Neste sentido, foi desenvolvido o primeiro curso relacionado à saúde auditiva disponibilizado no ambiente virtual de aprendizagem do SUS (AVASUS/Ministério da Saúde), que intitula-se“Ações na atenção básica para a identificação precoce da deficiência auditiva” e tem como público-alvo os ACS, com acesso pelo endereço: https://avasus.ufrn.br. A disponibilização deste curso na plataforma possibilitou amplo acesso em todo o Brasil e exterior, atingindo também outras categorias de profissionais que se interessaram pela temática¹³. Embora com livre acesso, o curso online também não garante que o aprendizado será posto em prática na rotina de trabalho diária do ACS^13,14. Portanto, torna-se fundamental analisar de forma mais direta a aplicação do conhecimento no cotidiano, ou seja, mensurar o impacto da capacitação online na realidade de atuação deste profissional.

Ao ponderar que o ACS é o principal vínculo com a comunidade, ao manter contato direto com um número considerável de famílias, a hipótese deste estudo é de que habilitá-los nesta área específica torna-se uma ação potencializadora para ampliar com qualidade a abrangência das ações em saúde auditiva. Além disso, estes profissionais podem contribuir para minimizar a evasão de famílias nas diferentes etapas do programa de identificação e intervenção da perda auditiva nos primeiros anos de vida^12-17.

Diante do exposto, o presente estudo teve como objetivo analisar a implantação e a eficácia de um programa de identificação e intervenção da perda auditiva nos primeiros anos de vida na atenção primária.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo experimental no campo da avaliação em saúde, de delineamento longitudinal, com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Onofre Lopes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - HUOL/UFRN, Brasil, sob número de protocolo 3.825.237 e CAAE: 98129718.8.0000.5292). Esta pesquisa foi realizada mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por todos os sujeitos envolvidos.

Etapas para a implantação do Programa

Estudo do território e seleção dos participantes

Em comum acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) da cidade de Natal, Rio Grande do Norte, para o estudo foram selecionadas duas Unidades Básicas de Saúde (UBS) por fazerem parte de bairros com as maiores densidades demográficas, a saber: Unidade de Saúde da Família Aparecida (UBS 1) e Unidade de Saúde da Família Rocas (UBS 2). Posteriormente, a proposta foi apresentada aos gestores de cada unidade e, em seguida, procedeu-se a organização do cronograma de estruturação do programa de identificação e intervenção da perda auditiva nos primeiros anos de vida em conjunto com a equipe, de forma a não atrapalhar a rotina do serviço.

Foram convidados para participar do estudo todos os ACS das UBS selecionadas, no total de 34 ACS. Deste total, 23 ACS aceitaram participar, sendo 11 ACS da UBS 1 e 12 ACS da UBS 2, os quais constituíram, portanto, a casuística do estudo.

Curso de capacitação em Saúde Auditiva Infantil

Os ACS participantes foram orientados a realizar a capacitação por meio do curso online intitulado “Ações na atenção básica para identificação precoce da deficiência auditiva”, disponível na plataforma AVASUS. A capacitação foi proposta em meses diferentes para cada UBS, e todos tiveram a opção de realizar em casa, na própria UBS que trabalham, ou ainda, em um espaço disponibilizado na Universidade com acesso à internet em horários previamente definidos, inseridos em seu horário de trabalho, em comum acordo com as UBS. Cada ACS realizou o curso de forma individualizada e seguindo o seu ritmo de aprendizado, porém com o limite máximo de três semanas para o término.

Os ACS responderam um questionário, aplicado de forma presencial pelos pesquisadores em dois momentos, antes de iniciarem o acesso à plataforma e imediatamente após finalizarem todas as unidades do curso. O referido questionário foi previamente validado e utilizado em estudos anteriores com o intuito de avaliar a eficácia de diferentes ferramentas de capacitação para este público-alvo^10-12. Contém 20 perguntas divididas em quatro domínios: (1) conceituação, (2) prevenção, (3) identificação e (4) aspectos gerais. As opções de resposta são “verdadeiro”, “falso” e “não sei”, sendo que esta última tem o papel de minimizar a ocorrência de respostas ao acaso. Para análise descritiva dos dados, foram mantidos os quatro domínios de assuntos propostos e atribuiu-se um ponto a cada resposta correta e zero ponto frente ao erro ou para a opção “não sei”, assim a pontuação máxima do instrumento foi de 20 pontos, que correspondeu a 100%. As pontuações obtidas foram analisadas em percentual.

Preparação dos ACS para atuação prática em saúde auditiva

Finalizada a capacitação, os ACS foram orientados, de forma presencial, pelos pesquisadores, sobre as ações a serem desenvolvidas para colocar em prática os aprendizados obtidos. Para isso, foi utilizado um infográfico impresso com uma síntese das etapas a serem realizadas: (1) identificação do quantitativo de crianças em sua área de cobertura; (2) orientações a gestantes; (3) aplicação mensal de um questionário para acompanhamento do desenvolvimento da audição e da linguagem da criança, com anotação correta das informações; e (4) encaminhamento da criança para a atenção especializada frente às necessidades constatadas.

Indicadores para análise da eficácia do Programa proposto

Acompanhamento do desenvolvimento infantil

O acompanhamento da criança pelo ACS iniciou no mês seguinte ao término da capacitação. Para tanto, foi utilizado o questionário previamente validado para o acompanhamento da audição e linguagem no primeiro ano de vida^15,18. Para cada idade tem-se duas ou três perguntas simples, com as opções de resposta “sim” ou “não”, sendo a pergunta “Seu filho ouve bem?” comum a todas as idades.

Tendo em vista a possibilidade de identificação da perda auditiva no período crítico de desenvolvimento, optou-se por utilizar um questionário adicional para ampliar o acompanhamento para crianças de até dois anos de idade. Como não foi encontrado instrumento previamente validado para a faixa etária de 13 a 24 meses, um questionário adicional foi desenvolvido para o presente estudo. Utilizaram-se como referência os marcos de desenvolvimento do teste Denver Developmental Screening Test (DDST), conhecido como Denver II¹⁹, e a escala ELM - Early Language Milestone Scale, desenvolvida por Coplan²⁰ e adaptada por Lima²¹.

Ao identificar crianças cujos pais ou familiares referiram queixa sobre a audição, ou ainda, que sinalizaram atraso no comportamento auditivo ou de linguagem por dois meses consecutivos, o ACS procedeu com o encaminhamento para avaliação audiológica infantil na atenção especializada. O protocolo de avaliação envolveu a utilização de procedimentos eletroacústicos, eletrofisiológicos e comportamentais, direcionado pelo princípio cross-check²², sendo utilizados procedimentos aplicáveis de acordo com a faixa etária.

Percepção do programa pelos agentes comunitários de saúde

Para verificar a percepção dos ACS acerca do modelo proposto, todos os participantes foram solicitados, ao final do período de referência da pesquisa, a apresentar os pontos positivos e negativos da implantação do programa de identificação e intervenção da perda auditiva nos primeiros anos de vida na atenção primária. O intuito desta solicitação foi o de obter uma análise da satisfação quanto ao aprendizado e as dificuldades e facilidades na execução do acompanhamento da audição da criança. Por se tratar de respostas subjetivas dos participantes, a análise das respostas foi realizada de forma qualitativa por meio da seleção de expressões que representassem as palavras mais recorrentes no discurso dos participantes.

Análise dos dados

Os dados foram submetidos à análise descritiva e inferencial. Inicialmente, por meio do teste Shapiro Wilk, verificou-se que os dados não seguiram a distribuição normal. Assim, empregaram-se os testes de Wilcoxon para comparação do desempenho pré e pós-capacitação e Mann Whitney para comparação do desempenho entre os participantes das duas UBS. Foi adotado o nível de significância equivalente a p<0,05.

A análise do acompanhamento propriamente dito teve como referencial a quantidade de questionários aplicados em função da abrangência das famílias acompanhadas pelos profissionais. Para tanto, foi realizado um levantamento do quantitativo de famílias cadastradas que cada ACS era responsável em sua microrregião e do número de crianças de zero a dois anos presentes nessas famílias. A percepção dos ACS sobre o modelo proposto foi analisada de forma qualitativa.

RESULTADOS

A atuação dos ACS em saúde auditiva infantil foi retratada nesse estudo ao incluir desde a etapa de capacitação, o acompanhamento das crianças com o encaminhamento quando necessário e à avaliação audiológica infantil propriamente dita.

Do total de ACS convidados nas duas UBS, 23 (63,9%) aceitaram participar do estudo. Dos 13 ACS que recusaram participar, três (21,4%) eram da UBS 1 e oito (40,0%) da UBS 2. Os motivos elencados foram: a elevada demanda de atividades (n=2), dificuldades em informática ou para uso de internet (n=4), não ter computador e/ou acesso à internet em casa (n=3), necessidade de deslocamento para a instituição de ensino (n=2), não ter interesse no tema abordado (n=3) e, ainda, outros motivos, como o curso não ser voltado para a saúde auditiva de adultos (n=1).

Da totalidade de 23 ACS participantes, 21 (91,3%) concluíram o curso online e dois (8,7%) ACS não conseguiram finalizar no período do estudo. Como as UBS em que atuavam não dispunham de internet, seis ACS da UBS 2 optaram por realizar a capacitação em sua própria casa e, todos os demais optaram por utilizar a infraestrutura disponibilizada na instituição de ensino superior em que o estudo foi desenvolvido.

Os participantes finalizam o curso dentro das três semanas, com encontros de três horas, duas vezes por semana. Dentre os seis ACS da UBS 2 que optaram por realizar a capacitação em casa, quatro concluíram o curso no mesmo período e dois não finalizaram todas as unidades. A caracterização dos participantes quanto ao gênero, idade e escolaridade encontra-se descrita na Tabela 1.

Tabela 1
Caracterização dos agentes comunitários de saúde participantes

	UBS 1 n (%)	UBS 2 n (%)
Gênero
F	8 (72,2)	11 (91,7)
M	3 (27,3)	1 (8,3)
Idade em anos	Entre 32 e 54	Entre 31 e 59
Média	42,0	46,4
Escolaridade
Nível médio	7 (63,6)	7 (58,3)
Nível superior	4 (36,4)	5 (41,7)

• Legenda: UBS = Unidade Básica de Saúde; n = frequência absoluta; % = frequência relativa; F = feminino; M = masculino.

Curso de capacitação em Saúde Auditiva Infantil

Na análise comparativa de desempenho pré e pós-capacitação, verificaram-se diferenças para o escore total e para os domínios, com exceção apenas para “aspectos gerais” (Tabela 2). A estatística descritiva, considerando média, desvio-padrão, mediana e valores mínimo e máximo das pontuações obtidas está apresentada na Tabela 2.

Tabela 2
Desempenho pré e pós-capacitação, em porcentagem de acertos, para cada domínio e escore total

Domínios	Instante	Média	DP	Mediana	Mínimo	Máximo	p
1. Conceituação	Pré-capacitação	40,28	18,65	32,32	16,66	83,30	0,000*
	Pós-capacitação	73,66	16,02	66,64	33,32	100,00
2. Prevenção	Pré-capacitação	51,32	26,97	50,00	00,00	100,00	0,002*
	Pós-capacitação	86,84	15,29	100,00	50,00	100,00
3. Identificação	Pré-capacitação	52,61	20,97	49,98	16,66	83,30	0,006*
	Pós-capacitação	72,78	12,68	66,64	49,98	100,00
4. Aspectos Gerais	Pré-capacitação	80,26	17,83	75,00	50,00	100,00	0,058
	Pós-capacitação	88,16	15,29	100,00	50,00	100,00
Escore total	Pré-capacitação	54,21	12,94	55,00	30,00	80,00	0,000*
	Pós-capacitação	79,74	08,41	80,00	65,00	90,00

• *p < 0,05: estatisticamente significante; Teste de Wilcoxon; DP= desvio-padrão.

Ao comparar o desempenho entre as duas UBS, constatou-se diferença no momento pré-capacitação para os domínios “conceituação” e “prevenção”. No entanto, tal diferença não foi mantida após a finalização do curso. Para “aspectos gerais” e para o escore total, verificou-se diferença nos dois momentos de avaliação, com melhor desempenho para os ACS da UBS 1 (Tabela 3).

Tabela 3
Análise comparativa do desempenho pré e pós-capacitação das unidades básicas de saúde, por domínio e escore total

Domínios	Instante	UBS 1			UBS 2			p
		Mediana	Perc. 25	Perc. 75	Mediana	Perc. 25	Perc. 75
1. Conceituação	Pré-capacitação	33,32	23,54	37,04	49,98	37,76	70,27	0,004*
	Pós-capacitação	83,30	68,63	88,90	66,64	53,75	79,53	0,103
2. Prevenção	Pré-capacitação	25,00	21,24	56,03	75,00	53,97	83,53	0,009*
	Pós-capacitação	100,00	82,44	99,38	75,00	66,47	96,03	0,207
3. Identificação	Pré-capacitação	49,98	35,75	61,18	66,64	38,61	78,01	0,207
	Pós-capacitação	83,30	69,69	84,80	66,64	56,11	77,17	0,088
4. Aspectos Gerais	Pré-capacitação	100,00	77,09	100,00	75,00	59,07	78,43	0,012*
	Pós-capacitação	100,00	88,66	100,00	75,00	64,73	91,52	0,014*
Escore total	Pré-capacitação	45,00	41,46	56,72	60,00	51,07	71,43	0,035*
	Pós-capacitação	85,00	80,17	88,01	72,50	67,14	80,36	0,009*

• *p < 0,05: estatisticamente significante; Teste de Mann-Whitney
• Legenda: Perc.= percentil; UBS= Unidade Básica de Saúde.

Acompanhamento do desenvolvimento infantil

Após a capacitação, os ACS colocaram em prática o conhecimento obtido. As etapas de acompanhamento e os resultados obtidos estão representadas em um fluxograma (Figura 1). É importante mencionar que, ao longo do processo, dois ACS da UBS 1 e três ACS da UBS 2 não deram continuidade à aplicação dos questionários, com justificativas relacionadas à elevada demanda de atividades (n=3) e ao fato de mudarem de função ou de UBS, com redirecionamento das famílias de sua área de cobertura para outros ACS (n=2).

Figura 1
Fluxograma das etapas de acompanhamento das duas unidades básicas de saúde selecionadas

A Tabela 4 apresenta a caracterização do total de 15 crianças que foram encaminhadas para o serviço de atenção especializada, quanto a idade, gênero, Indicadores de Risco para a Deficiência Auditiva (IRDA) e a realização da TAN na maternidade de origem.

Tabela 4
Caracterização das crianças encaminhadas pelos agentes comunitários de saúde para avaliação audiológica

IDADE	GÊNERO	IRDA	TAN
16 dias	F	-	N
17 dias	F	-	N
29 dias	M	UTI; VEC; Ototóxicos	N
30 dias	M	-	N
38 dias	M	-	N
51 dias	F	-	N
53 dias	F	-	N
53 dias	M	UTI; Ototóxicos;	N
19 meses	F	-	N
20 meses	F	Sífilis Congênita, Hiperb; Ototóxicos	Passa Bilateral
24 meses	M	-	N
26 meses	M	-	Passa Bilateral
36 meses	M	-	Passa Bilateral
60 meses	M	Ototóxicos	Passa Bilateral
60 meses	M	Hereditariedade	N

• Legenda: IRDA = indicador de risco para deficiência auditiva; TAN = triagem auditiva neonatal; UTI = Unidade de Terapia Intensiva Neonatal por mais de cinco dias; VEC = ventilação extracorpórea; Hiperb = hiperbilirrubinemia; F = feminino; M = masculino; N = não realizou.

Percepção do programa pelos agentes comunitários de saúde

Os ACS, após sete a oito meses de participação no programa proposto, relataram os pontos positivos e negativos desde a capacitação até a aplicação do aprendizado adquirido em sua rotina de trabalho.

Na Figura 2 encontram-se exemplos dos relatos mais recorrentes que descrevem a satisfação dos participantes em relação a capacitação online e ao acompanhamento das crianças da comunidade. Importante mencionar que foi unânime a queixa com relação ao pouco tempo para muitas atividades. Os ACS referiram que anexaram o questionário ao prontuário das famílias acompanhadas para manter como prática mensal, mesmo após a finalização do estudo, conforme orientado.

Figura 2
Percepção dos agentes comunitários de saúde em relação à implantação do programa de identificação e intervenção da perda auditiva nos primeiros anos de vida na atenção primária

DISCUSSÃO

O ACS foi inserido na Estratégia de Saúde da Família (ESF) com a perspectiva de auxiliar na melhoria de saúde da comunidade, tendo em vista a organização da atenção primária¹. É factível que a atuação destes profissionais amplie consideravelmente o quantitativo de crianças que serão acompanhadas em seu desenvolvimento quanto à audição, o que fortalece a compreensão de que a atenção primária deve complementar os programas de TAN⁴. Todavia, para alcançar esse objetivo, se faz necessário que o profissional seja capacitado previamente na temática^2,11-17.

No presente estudo, o fato de a maioria dos ACS optarem por realizar o curso nas dependências da instituição possibilitou constatar as dificuldades que estes profissionais apresentam nos conceitos de informática básica. Durante a capacitação, as dificuldades apresentadas com as ferramentas digitais foram de diferentes níveis e demonstraram que realmente faz-se necessário um treinamento prévio em informática para potencializar essa etapa inicial do programa¹².

Outro aspecto importante foi a falta de internet nas UBS, o que dificultou o acesso no ambiente de trabalho para realização de capacitações. Segundo o Comitê Gestor da Internet no Brasil, estimam-se 2.505 UBS sem acesso aos computadores e 3.397 sem acesso à internet, predominantemente localizadas em municípios da região Nordeste do país²³.

A parceria com a Universidade para a realização do estudo, obviamente, não será possível em todos os municípios, o que, a princípio, pode permitir questionar a viabilidade de implantação desta capacitação nas UBS de todo país. Neste sentido, tem-se expectativa de avanços com o Programa “Informatiza APS” que faz parte da estratégia de saúde digital do Ministério da Saúde, com a proposta de apoiar a informatização das unidades de saúde e a qualificação dos dados da Atenção Primária à Saúde de todo o país²⁴.

Assim, ao garantir conhecimentos básicos de informática e o acesso aos recursos necessários, o conhecimento sobre aspectos gerais da audição se configura como a primeira etapa para a modificação de postura profissional e para o avanço quanto às atividades voltadas para a saúde auditiva na atenção primária. Destaca-se também, a importância de os cursos de capacitação estarem inseridos na carga horária de trabalho do ACS, para alcançar um percentual significativo de conclusão do curso, que, por ser online, exige uma maior determinação e disciplina dos participantes, inclusive para não haver desistência^13,14, que, apesar de baixa, ou seja, dois ACS do total de participantes (8,6%), ocorreu no presente estudo.

Curso de capacitação em Saúde Auditiva Infantil

A análise comparativa do desempenho pré e pós-capacitação indicou melhora de conhecimento, o que demonstrou que o curso online foi eficaz. Este achado confirma o potencial uso de ferramentas de teleducação na área de saúde auditiva para estes profissionais^11-17 e incentiva a ampliação para uma ferramenta que mitigue as dificuldades descritas anteriormente, com amplo alcance e livre acesso em todo o território nacional¹⁴.

Ao considerar o perfil similar dos ACS participantes das duas UBS quanto ao gênero, faixa etária e nível instrucional, é possível inferir que a diferença de desempenho pode estar associada às características individuais em relação ao aprendizado. É importante mencionar que, a despeito da diferença de desempenho, os ACS de ambas as UBS obtiveram melhora do conhecimento e puderam aplicá-lo em seu cotidiano de trabalho. Assim, a desigualdade do nível de conhecimento prévio não inviabilizou o aproveitamento do curso e, além disso, supriu algumas dessas diferenças.

Acompanhamento do desenvolvimento infantil

Inicialmente, observou-se que, do total de 153 crianças cadastradas na faixa etária de 0 a dois anos, obteve-se uma abrangência de 64% de acompanhamento. Ao considerar que não havia nenhuma ação voltada à saúde auditiva nestas UBS, anterior a este estudo, considera-se um resultado significativo. Contudo, é notório que a cobertura deve ser ampliada. Diante das dificuldades elencadas pelos ACS, um aspecto a ser trabalhado é a conscientização das famílias quanto à importância do acompanhamento do desenvolvimento de seus filhos.

Na UBS 1 constata-se que três crianças acima da faixa etária foram inseridas no estudo pelo ACS, mediante queixa das famílias sobre aspectos auditivos. Esta conduta demonstra que os ACS compreenderam a importância da avaliação auditiva em crianças com queixas familiares quanto ao desenvolvimento da audição e da linguagem, o que reforça que a capacitação realizada foi eficaz.

Com relação às crianças encaminhadas para o serviço de atenção especializada, apenas uma criança não compareceu, e a área de Serviço Social foi acionada para realizar a busca ativa. Diante disso, ressalta-se a importância da articulação multiprofissional para a resolutividade dessas situações encontradas nas diversas etapas de programas de identificação e intervenção da perda auditiva nos primeiros anos de vida^25,26.

Das crianças encaminhadas para o serviço especializado, apenas cinco apresentavam IRDA²⁷ e, somente uma delas iniciou o monitoramento da sua audição, como proposto pelas diretrizes nacionais e internacionais²⁷. Tal dado demonstra mais uma fragilidade dos programas de identificação e intervenção da perda auditiva em nível nacional. É importante ressaltar que, apesar da perda auditiva sensorioneural não ter sido diagnosticada nestas crianças, foram identificadas uma criança com perda auditiva condutiva e duas com alteração de linguagem, o que exigiu avaliação e intervenção específica. Assim, a presença de IRDA não deve ser pré-requisito para a realização da TAN e para o acompanhamento das crianças.

Destaca-se o fato de quatro crianças terem sido encaminhadas pelos ACS, pois não foi identificada na caderneta de saúde da criança o registro da TAN na maternidade de origem. Este dado reitera a eficácia do curso, visto que estes ACS compreenderam a importância da identificação e tratamento precoces.

Adicionalmente, isto demonstra que a atuação dos ACS na saúde auditiva é uma importante estratégia complementar à TAN, tendo em vista que, na realidade brasileira, a cobertura estimada é de 39,7%¹. Importante ressaltar que a meta do Ministério da Saúde nos programas de TAN é de 70% dos recém-nascidos vivos¹, ou seja, a universalidade somente será alcançada com a articulação com a atenção primária à saúde.

Os dados atuais demonstram a viabilidade de alcance da referida meta, se considerada a atuação do ACS. No Brasil, observa-se que o número de profissionais na atenção primária é inversamente proporcional à cobertura dos programas de TAN^1,28,29. Ou seja, nas regiões em que os programas de TAN possuem cobertura inferior a 70%, o índice da população atendida pelos ACS é superior a 80%.

Ressalta-se que, no presente estudo, houve 100% de resolutividade, pois a criança com perda auditiva condutiva foi submetida a cirurgia e, após reavaliação, obteve-se audição normal. Por outro lado, as crianças com queixa de alteração de linguagem foram encaminhadas e atendidas na universidade. Todos os familiares foram orientados quanto ao desenvolvimento da audição e linguagem.

Percepção do programa pelos agentes comunitários de saúde

De maneira geral, constata-se que os ACS ficaram satisfeitos com a sua participação no estudo, como pode ser observado nos relatos representativos apresentados.

Entretanto, importantes impressões negativas foram apresentadas e devem ser consideradas para aprimorar as implantações futuras desta proposta. Neste sentido, os pontos fundamentais seriam: a reorganização das demandas, a resolutividade das barreiras de acesso e o incentivo contínuo pelos gestores para a adesão em ações de educação permanente e na atuação prática relacionada à saúde auditiva infantil. Ressalta-se aqui também a necessidade de ampliar o número de ACS, que se mostra insuficiente para o total de habitantes, diante das dificuldades e do excesso de atividades a que são submetidos^30,31.

O presente estudo apresentou como limitação o uso do questionário entre 13 a 24 meses de idade, que, embora estruturado com base nos marcos de desenvolvimento de testes padronizados, não havia sido previamente validado para aplicação pelos ACS. No entanto, trata-se de uma faixa etária em que os pais e responsáveis possuem grandes chances de identificação dos principais sintomas das perdas auditivas incapacitantes. A identificação pelos próprios pais pode ocorrer de forma precisa, especialmente se a perda auditiva da criança afetar as frequências dos sons de fala e se for, minimamente, uma perda auditiva moderada ou bilateral^32-36. De forma similar, para o primeiro ano de vida, o envolvimento, a observação familiar e o acompanhamento contínuo são essenciais, tendo em vista que, mesmo com a utilização de instrumento validado, é estimada uma sensibilidade de 67%, com taxa de falso-negativo de 33%, por não identificar as perdas auditivas unilaterais¹⁸.

Outro aspecto que pode ser apontado é a impossibilidade da análise comparativa dos resultados obtidos no acompanhamento das crianças entre as unidades, devido ao fato de a capacitação ter sido realizada em meses diferentes, ou seja, primeiro a UBS 1 seguido da UBS 2, com impacto no tempo menor de acompanhamento e, consequentemente, no número de vistas e crianças acompanhadas. Apesar disto, os resultados deste estudo demonstraram que a atuação dos ACS num programa de identificação e intervenção da perda auditiva nos primeiros anos de vida atrelado à atenção primária pode ampliar o quantitativo de crianças acompanhadas ou resgatar aquelas que evadiram de algum seguimento, desde a etapa da TAN até a intervenção de crianças com perda auditiva⁶. O questionário empregado para acompanhamento auditivo é de fácil e rápida aplicação, tornando-se viável na rotina de trabalho do ACS^16,17.

Portanto, ao considerar o descrito anteriormente, este estudo trouxe dados representativos de um modelo de programa de identificação e intervenção da perda auditiva nos primeiros anos de vida de forma articulada com a atenção primária. Foi possível constatar a viabilidade ao se ter ferramentas eficazes de capacitação, recursos de acesso disponíveis, interesse dos gestores e motivação dos próprios ACS.

Assim, a atuação do ACS pode contribuir para que se amplie a identificação, diagnóstico e intervenção precoces da perda auditiva, e ainda, para o resgate de famílias que porventura tenham evadido em alguma etapa do programa de identificação e intervenção da perda auditiva nos primeiros anos de vida. Um aprimoramento contínuo das políticas públicas em saúde auditiva é importante para que se estruture uma rede de atenção à saúde e a assistência possa alcançar toda a população, com a expectativa de minimizar a desigualdade de acesso em território nacional^27,30,31.

CONCLUSÃO

A implantação de um programa de identificação e intervenção da perda auditiva nos primeiros anos de vida na atenção primária permeada pela intervenção dos ACS foi viável e com resultados promissores, todavia, faz-se necessário a adoção de estratégias para minimizar as barreiras existentes.

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• Estudo realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil.
• Fonte de Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - código 001.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  09 Out 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  03 Nov 2022
• Aceito
  23 Fev 2023