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Implante coclear e transtorno do espectro autista: relato de caso

RESUMO

O transtorno do espectro autista não é uma contraindicação para o implante coclear, mas as metas e expectativas sobre os efeitos nos resultados da audição e da linguagem são diferentes em relação ao grupo de crianças sem outros comprometimentos. O objetivo deste estudo foi analisar o desenvolvimento das habilidades auditivas e de linguagem falada de uma criança com transtorno do espectro autista submetida precocemente à cirurgia de implante coclear e inserida em um programa de (re)habilitação auditiva no método aurioral. Observou-se que não houve benefício do dispositivo para o desenvolvimento da linguagem falada, tendo a criança sido encaminhada para outro método comunicativo. Em 2 anos e 9 meses de uso do implante coclear, observou-se pouco benefício do uso do dispositivo para o desenvolvimento das habilidades auditivas, havendo a evolução para o reconhecimento somente do próprio nome. A criança deixou de fazer uso dos dispositivos após três anos da ativação.

Descritores:
Implante Coclear; Criança; Transtorno Autístico; Percepção Auditiva; Desenvolvimento da Linguagem

ABSTRACT

Autism Spectrum Disorder is not an adverse condition for cochlear implantation, but the goals and expectations about the effects on hearing and language outcomes are different from the group of children without other impairments. The objective of this study was to analyze the development of auditory and oral language skills of a child with autism who underwent early cochlear implantation surgery and was included in an auditory (re)habilitation program using the aural-oral method. There was no benefit from the device for the development of oral language, and the child was referred to another communicative method. After 2 years and 9 months using the cochlear implants, there was little benefit from the use of the device for the development of auditory skills, with the child evolving to recognize only his own name. The patient quit using the device after three years of its activation.

Keywords:
Cochlear Implantation; Child; Autism Disorder; Auditory Perception; Language Development

INTRODUÇÃO

O termo “autismo” perpassou por diversas alterações ao longo do tempo e, atualmente, a 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - (DSM-5)11. American Psychiatry Association (APA). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais-DSM-V. Porto Alegre: Artmed; 2014. propõe que os indivíduos cujas manifestações comportamentais incluam prejuízos persistentes na comunicação e interação social, bem como estereotipias e restrição dos interesses e padrões de atividades sejam classificados como indivíduos com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Os sinais do TEA estão presentes desde a infância e limitam ou prejudicam o funcionamento diário do indivíduo, sendo que o comprometimento pode ocorrer em três níveis de gravidade11. American Psychiatry Association (APA). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais-DSM-V. Porto Alegre: Artmed; 2014..

A deficiência auditiva (DA) é definida como a perda total ou parcial da audição, podendo ser congênita ou adquirida. É classificada de acordo com o tipo (sensorioneural, condutiva ou mista) e o grau (leve, moderado, severo ou profundo). Principalmente para as pessoas com DA sensorioneural bilateral de grau severo ou profundo que não apresentam benefício com o uso do Aparelho de Amplificação Sonora Individual (AASI) pode ser indicado o Implante Coclear (IC)22. Chilosi AM, Comparini A, Scusa MF, Berrettini S, Forli F, Battini R et al. Neurodevelopmental disorders in children with severe to profound sensorineural hearing loss: a clinical study. Dev Med Child Neurol. 2010;52(9):856-62..

Ao considerar que aproximadamente 40% das crianças com deficiência auditiva podem apresentar um ou mais comprometimentos associados22. Chilosi AM, Comparini A, Scusa MF, Berrettini S, Forli F, Battini R et al. Neurodevelopmental disorders in children with severe to profound sensorineural hearing loss: a clinical study. Dev Med Child Neurol. 2010;52(9):856-62.,33. Ferdousy SMF, Rahman MM, Fatema K, Akhter S. Intellectual disability in young children with hearing impairment: study from a tertiary care center in Bangladesh. Paediatric Nephrol J Bangladesh. 2022;7(1):6-9., os critérios de indicação ao IC têm sido ampliados para beneficiar parte desta população, incluindo as crianças com diagnóstico associado de TEA.

Estudos realizados em programas de implante coclear internacionais, como os da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos da América (EUA), e em Dublin, na Irlanda, já apontam a ocorrência do TEA em cerca de 1-3% das suas crianças44. Donaldson AI, Heavner KS, Zwolan TA. Measuring progress in children with autism spectrum disorder who have cochlear implants. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2004;130(5):666-71.,55. Robertson J. Children with cochlear implants and autism - challenges and outcomes: the experience of the National Cochlear Implant Programme, Ireland. Cochlear Implants International. 2013;14(sup3):S11-S14..

Apesar de o TEA não ser uma contraindicação para o IC, as metas e expectativas sobre os efeitos nos resultados da audição e da linguagem nessa população são diferentes em relação ao grupo de crianças com perda auditiva profunda sem quaisquer dificuldades adicionais e a comunicação oral pode não ser uma meta realista provável nesses casos66. Lachowska M, Pastuszka A, Lukaszewicz Z, Mikolajewska L. Cochlear implantation in autistic children with profound sensorineural hearing loss. Braz J Otorhinolaryngol. 2016;84(1):15-19.. No entanto, estudos apontam para a variedade de resultados quanto ao desenvolvimento de audição e linguagem encontrados na população de crianças com TEA usuárias de IC77. Porto BL, Befi-Lopes D, Couto MI, Matas CG, Fernandes FD, Hoshino AC et al. Hearing performance and atypical behavior in children with cochlear implants. Distúrb. Comunic. 2014;26(1):35-41.

8. Eshraghi AA, Nazarian R, Telischi FF, Martinez D, Hodges A, Velandia S et al. Cochlear implant in children with Autism Spectrum Disorder. Otol Neurotol. 2015;36(8):e121-8.
-99. Mikic B, Jotic A, Miric D, Nikolic M, Jankovic N, Arsovic N. Receptive speech in early implanted children later diagnosed with autism. Eur Ann Otorhinolaryngol Head Neck Dis. 2016;Suppl 1:S36-9..

Considerando que a prevalência do TEA tem aumentado consideravelmente e sem explicações satisfatórias1010. Xu G, Strathearn L, Liu B, O'Brien M, Kopelman TG, Zhu J. Prevalence and treatment patterns of Autism Spectrum Disorder in the United States, 2016. J AMA Pediatr. 2019;173(2):153-9.,1111. Posar A, Visconte P. Autism in 2016: the need for answers. J Pediatr. 2017;93(2):111-9. e que o número de usuários de IC tem aumentado nessa população44. Donaldson AI, Heavner KS, Zwolan TA. Measuring progress in children with autism spectrum disorder who have cochlear implants. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2004;130(5):666-71., conhecer os benefícios e as limitações dos resultados do uso do dispositivo nessas crianças torna-se essencial para a orientação, acolhimento e planejamento do processo terapêutico de (re)habilitação auditiva.

Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi analisar o desenvolvimento das habilidades de audição e de linguagem falada de uma criança com TEA submetida precocemente à cirurgia de implante coclear e inserida em um programa de (re)habilitação auditiva no método aurioral.

APRESENTAÇÃO DO CASO

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas do Centro Universitário Unieuro, Brasil, sob processo número 4.274.341 e CAAE numero 37139420.6.0000.5056.

A coleta de dados foi realizada no Centro Especializado em Reabilitação - Centro Educacional de Audição e Linguagem/ Ludovico Pavoni (CER II - CEAL/LP), na cidade de Brasília, no Distrito Federal. Realizou-se um estudo longitudinal, retrospectivo, por meio de análise de prontuário. Foram analisados os resultados dos protocolos de avaliação das habilidades auditivas e de linguagem falada aplicados em diferentes períodos de uso do IC. Ressalta-se que houve uma pausa de somente 20 dias nos atendimentos da instituição frente à pandemia da COVID-19 no período de coleta. Os atendimentos da criança foram retomados, presencialmente, após esse período de tempo.

Trata-se de uma criança, do gênero masculino, com confirmação do diagnóstico de perda auditiva do tipo sensorioneural bilateral de grau profundo aos seis meses de idade cronológica. Iniciou uso de AASI em ambas as orelhas aos sete meses de idade, mesma idade em que foi inserido em atendimento de terapia fonoaudiológica pautada no método aurioral, duas vezes por semana, em sessões de 45 minutos cada e atendimento semanal com terapeuta ocupacional, voltado para a integração sensorial, em sessões de 50 minutos cada. Todos os atendimentos eram individuais.

A criança foi submetida à cirurgia para colocação do implante coclear bilateral simultâneo aos 12 meses de idade cronológica. A ativação de ambos os dispositivos foi realizada aos 15 meses de idade cronológica.

Com 01 ano e 06 meses de idade cronológica, iniciaram-se as suspeitas de presença de outros comprometimentos, além da perda auditiva. Observou-se interesse restrito pelos objetos; pobre exploração dos brinquedos; pouca ou nenhuma intenção comunicativa; pobre contato ocular; falta de conduta imitativa adequada; preferência por brinquedos de encaixe e atividades repetitivas; aversão a algumas texturas e uso do outro como instrumento.

A criança recebeu o diagnóstico de “autismo infantil” (CID 10 F84.0) aos 02 anos e 07 meses, com nível 3 de suporte11. American Psychiatry Association (APA). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais-DSM-V. Porto Alegre: Artmed; 2014.. Também foi diagnosticada com Transtorno do Processamento Sensorial (TPS) com déficit importante nas habilidades de práxis. Ressalta-se que apresentou resultados dentro da normalidade para exame de visão, eletroencefalograma (EEG) e tomografia computadorizada do crânio.

Trata-se de uma criança assídua às terapias, sem intercorrências no mapeamento dos IC.

Foram analisados os resultados dos protocolos que constam no Quadro 1.

Quadro 1
Protocolos analisados

Também foi realizada análise longitudinal do avanço do desenvolvimento da criança no que diz respeito à classificação das habilidades auditivas e de linguagem por categorias (Categoria de Audição1515. Geers AE. Techniques for assessing auditory speech perception and lipreading enhancement in young deaf children. Volta Review. 1994;96(5):85-96. e Categoria de Linguagem1616. Bevilacqua MC, Delgado EMC, Moret ALM. Estudos de casos clínicos e crianças do Centro Educacional do Deficiente Auditivo (CEDAU) do Hospital de Pesquisa e Reabilitação de Lesões Lábio-Palatais - USP. 1996. Encontro Internacional de Audiologia; 1996; Bauru, São Paulo, Brasil.).

RESULTADOS

Observou-se que não houve evolução no desenvolvimento da linguagem falada até os 02 anos e 03 meses de tempo de uso do IC, visto que os resultados obtidos no MUSS1414. Nascimento LT. Uma proposta de avaliação da linguagem oral [monography]. Bauru (SP): Hospital de Pesquisa e Reabilitação de Lesões Lábio-Palatais; 1997. e na classificação da linguagem por categorias1616. Bevilacqua MC, Delgado EMC, Moret ALM. Estudos de casos clínicos e crianças do Centro Educacional do Deficiente Auditivo (CEDAU) do Hospital de Pesquisa e Reabilitação de Lesões Lábio-Palatais - USP. 1996. Encontro Internacional de Audiologia; 1996; Bauru, São Paulo, Brasil. não sofreram alteração nesse período.

No que diz respeito ao desenvolvimento auditivo, foi possível observar o desenvolvimento apenas da detecção dos sons até o tempo de uso do IC de 01 ano e 09 meses, quando a criança evoluiu para a Categoria 21515. Geers AE. Techniques for assessing auditory speech perception and lipreading enhancement in young deaf children. Volta Review. 1994;96(5):85-96. de audição, ou seja, tornou-se capaz de diferenciar palavras pelos traços suprassegmentais, como duração e tonicidade. A identificação das primeiras palavras iniciou-se após mais de 02 anos e 03 meses de uso do IC, quando iniciou o reconhecimento apenas do próprio nome (Tabela 1).

Tabela 1
Resultados dos testes aplicados para a avaliação das habilidades auditivas e de linguagem falada

Os resultados da audiometria em campo livre com os IC indicaram respostas auditivas mínimas em 25 dBNA para as frequências de 500 Hz a 4.000 Hz.

Observou-se que a criança apresentou recusa ao uso do IC com o tempo, fazendo uso assistemático do dispositivo. Informações do datalogging realizado em dezembro de 2021 (com 04 anos de idade cronológica e 02 anos e 09 meses de tempo de uso do IC) reportaram tempo de uso do dispositivo de 4 horas diárias apenas. No presente caso, a não aceitação não foi associada pelos profissionais a um desconforto, mas sim a um comportamento de fuga. Em dezembro de 2022, foi reportado que o paciente havia deixado de usar os processadores do IC, em ambos os lados. Não se observou benefício do IC para a manutenção do contato ocular.

DISCUSSÃO

O método aurioral trata-se de um conjunto de metas, técnicas, estratégias, condições e procedimentos que prioriza a construção da linguagem falada por meio da via auditiva e de situações interacionais de linguagem1717. Alves A. Terapia fonoaudiológica: os primeiros anos. In: Boechat EM, editor. Tratado de Audiologia. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2015. p.442.. Apesar de apresentar audibilidade com o uso dos IC e de frequentar assiduamente os atendimentos fonoaudiológicos pautados no método, a criança apresentou pouca evolução no que diz respeito ao desenvolvimento das habilidades auditivas.

Em um estudo77. Porto BL, Befi-Lopes D, Couto MI, Matas CG, Fernandes FD, Hoshino AC et al. Hearing performance and atypical behavior in children with cochlear implants. Distúrb. Comunic. 2014;26(1):35-41. realizado com 27 crianças usuárias de IC, sendo seis com TEA, as autoras pontuaram que, embora houvesse melhora nos limiares audiométricos, não houve correlação significante entre estes e os resultados de questionários sobre as habilidades auditivas. Sendo assim, a avaliação dos limiares auditivos com o IC, em campo livre, não é um bom indicador para predizer o benefício do dispositivo em crianças surdas com diagnóstico associado de TEA. Além disso, as dificuldades de atenção, interação social e comportamentos repetitivos apresentados por essa população podem interferir negativamente nesse tipo de avaliação1818. Romero ACL, Gução ACB, Delecrode CR, Cardoso ACV, Misquiatti ARN, Frizzo ACF. Audiologic and eletrophysiologic evaluation in the autistic spectrum disorder. Rev. CEFAC. 2014;16(3):707-14..

Apesar de estudos1919. Tavares FS, Azevedo YJ, Fernandes LMM, Takeuti A, Pereira LV, Ledesma ALL et al. Implante coclear em pacientes com transtorno do espectro autista - uma revisão sistemática. Braz J Otorhinolaryngol. 2021;87(5):601-19. relatarem o benefício do IC para crianças surdas com diagnóstico associado de TEA, há de se considerar a limitação desses benefícios. Assim como o observado no caso relatado no presente estudo, outros estudos referem não observar melhora no contato ocular após ativação do IC55. Robertson J. Children with cochlear implants and autism - challenges and outcomes: the experience of the National Cochlear Implant Programme, Ireland. Cochlear Implants International. 2013;14(sup3):S11-S14.,88. Eshraghi AA, Nazarian R, Telischi FF, Martinez D, Hodges A, Velandia S et al. Cochlear implant in children with Autism Spectrum Disorder. Otol Neurotol. 2015;36(8):e121-8., ainda que haja o relato de familiares de melhora na interação55. Robertson J. Children with cochlear implants and autism - challenges and outcomes: the experience of the National Cochlear Implant Programme, Ireland. Cochlear Implants International. 2013;14(sup3):S11-S14.,2020. Dias EFL. Impacto do uso do implante coclear em crianças surdas com traços autísticos [dissertation]. São Paulo (SP): Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 2018..

Observou-se pouca evolução do escore obtido no IT-MAIS1212. Castiquini EAT, Bevilacqua MC. Escala de integração auditiva significativa: procedimento adaptado para a avaliação da percepção da fala. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2000;4(6):51-60. em 01 ano e 03 meses de uso do IC, permanecendo sem mudanças a partir daí, mantendo o escore de 37,5% até o tempo de 02 anos e 09 meses de uso do dispositivo. Em um estudo2121. Jenks CM, Hoff SR, Haney J, Tournis E, Thomas D, Young NM. Cochlear implantation can improve auditory skills, language and social engagement of children with autism spectrum disorder. Otol Neurotol. 2022;43(3):313-9. realizado nos Estados Unidos, os autores também observaram que 40% dos participantes com TEA usuários de IC não apresentaram evolução no escore deste teste, mesmo apresentando melhora nos limiares com o dispositivo. Nota-se um resultado aquém do esperado para o tempo de uso do IC, ao considerar que crianças sem comorbidades com 19 meses de uso do dispositivo já deveriam alcançar o escore de 100% no teste2222. Silva-Comerlatto MP. Habilidades auditivas e de linguagem de crianças usuárias de implante coclear: análise dos marcadores clínicos de desenvolvimento [thesis]. São Paulo (SP): Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2015..

No presente estudo, a criança desenvolveu o reconhecimento auditivo de vocábulos isolados, sendo capaz de reconhecer o próprio nome. Em um estudo realizado na Itália2323. Mancini P, Mariani L, Nicastri M, Cavicchiolo S, Giallini I, Scimemi P et al. Cochlear implantation in children with autism spectrum disorder (ASD): outcomes and implant fitting characteristics. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2021;149:110876., com 22 crianças com TEA usuárias de IC, os autores também observaram que a maioria dos participantes (31,8%) avançou até o reconhecimento de sons ambientais ou vocábulos, não evoluindo para a compreensão auditiva da fala.

Observou-se que não houve evolução quanto ao desenvolvimento da linguagem falada. No Brasil, crianças usuárias de IC que apresentam TEA também apresentaram resultados piores nesse quesito do que aquelas implantadas e sem outras comorbidades, com a maioria dos casos permanecendo na emissão de vocalizações2424. Scarabello EM. Desempenho global e funcional de crianças com transtorno do espectro autista usuárias de implante coclear [thesis]. Bauru (SP): Faculdade de Odontologia, Universidade de São Paulo; 2019.. O dado obtido no presente estudo também corrobora a literatura internacional. Em um estudo2323. Mancini P, Mariani L, Nicastri M, Cavicchiolo S, Giallini I, Scimemi P et al. Cochlear implantation in children with autism spectrum disorder (ASD): outcomes and implant fitting characteristics. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2021;149:110876. realizado na Itália, os autores observaram que 45,5% dos participantes com TEA não apresentaram benefícios quanto à linguagem falada após o IC, sendo que 72,7% não desenvolveram a linguagem falada e somente 18,2% tornaram-se capazes de emitir frases simples. Em um outro estudo55. Robertson J. Children with cochlear implants and autism - challenges and outcomes: the experience of the National Cochlear Implant Programme, Ireland. Cochlear Implants International. 2013;14(sup3):S11-S14. com uma série de seis casos, realizado na Polônia, os autores observaram que somente uma criança utilizava poucas palavras isoladas para se comunicar. Em um estudo2525. Valero MR, Sadadcharam M, Henderson L, Freeman SR, Lloyd S, Green KM et al. Compliance with cochlear implantation in children subsequently diagnosed with autism spectrum disorder. Cochlear Implants Int. 2016;17(4):200-6. realizado na Inglaterra com 22 crianças com TEA usuárias de IC, os autores observaram que somente três desenvolveram comunicação oral, duas não se comunicavam e as restantes comunicavam-se por sinais ou comunicação suplementar alternativa.

Apesar de proporcionar o acesso aos sons e a possibilidade de desenvolvimento das habilidades auditivas, estudos demonstraram diferenças estatisticamente significantes entre grupos de crianças usuárias de IC com TEA e grupos de crianças usuárias de IC sem outras comorbidades no que diz respeito ao desenvolvimento das habilidades auditivas e de linguagem falada99. Mikic B, Jotic A, Miric D, Nikolic M, Jankovic N, Arsovic N. Receptive speech in early implanted children later diagnosed with autism. Eur Ann Otorhinolaryngol Head Neck Dis. 2016;Suppl 1:S36-9.,2424. Scarabello EM. Desempenho global e funcional de crianças com transtorno do espectro autista usuárias de implante coclear [thesis]. Bauru (SP): Faculdade de Odontologia, Universidade de São Paulo; 2019., havendo um progresso limitado ou pouco/ nenhum progresso em algumas habilidades, mesmo após intensa terapia fonoaudiológica aurioral99. Mikic B, Jotic A, Miric D, Nikolic M, Jankovic N, Arsovic N. Receptive speech in early implanted children later diagnosed with autism. Eur Ann Otorhinolaryngol Head Neck Dis. 2016;Suppl 1:S36-9..

A criança deixou de fazer uso do IC após três anos da ativação. Não é raro o relato de uso intermitente ou de abandono do uso do IC por crianças com diagnóstico adicional de TEA55. Robertson J. Children with cochlear implants and autism - challenges and outcomes: the experience of the National Cochlear Implant Programme, Ireland. Cochlear Implants International. 2013;14(sup3):S11-S14.,2323. Mancini P, Mariani L, Nicastri M, Cavicchiolo S, Giallini I, Scimemi P et al. Cochlear implantation in children with autism spectrum disorder (ASD): outcomes and implant fitting characteristics. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2021;149:110876.,2525. Valero MR, Sadadcharam M, Henderson L, Freeman SR, Lloyd S, Green KM et al. Compliance with cochlear implantation in children subsequently diagnosed with autism spectrum disorder. Cochlear Implants Int. 2016;17(4):200-6.. Acredita-se que fatores como dificuldades/transtornos sensoriais ou comportamentais possam influenciar no abandono do uso. Além disso, é importante estar atento à programação do dispositivo. As configurações de corrente elétrica para essa população tendem a ser inferiores aos valores relatados na literatura para crianças com IC sem diagnósticos adicionais2323. Mancini P, Mariani L, Nicastri M, Cavicchiolo S, Giallini I, Scimemi P et al. Cochlear implantation in children with autism spectrum disorder (ASD): outcomes and implant fitting characteristics. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2021;149:110876.. No caso aqui relatado, a criança recebia atendimento de integração sensorial com terapeuta ocupacional semanalmente e não foi observada nenhuma intercorrência após os retornos de programação dos dispositivos. No entanto, não se pode afirmar com certeza qual a causa do abandono do uso do IC.

Crianças ouvintes, diagnosticadas com TEA, apresentam vocabulário receptivo e expressivo inferior ao de crianças com desenvolvimento típico. Além disso, quanto maior o grau de comprometimento do TEA, menor o desempenho com relação a essas habilidades2626. Nogueira ML. Desempenho no vocabulário receptivo e expressivo de crianças com transtorno do espectro autista [dissertation]. Marília (SP): Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho; 2023.. O caso aqui apresentado, trata-se de uma criança diagnosticada com TEA nível de suporte 3. Nesse sentido, já é esperado que apresente desenvolvimento atípico. Assim como a variabilidade observada no desenvolvimento das crianças que apresentam TEA, também há muitas variáveis envolvidas no desenvolvimento de crianças usuárias de IC. Diante dos resultados aqui expostos, pode-se observar que, em crianças surdas com TEA nível de suporte 3, o uso do IC não garantirá a aquisição da linguagem falada, mesmo em casos de intervenção precoce, visto que a falta de audibilidade para a fala não é o único impedimento para o desenvolvimento da linguagem falada.

Há a recomendação de que, crianças usuárias de IC, quando diagnosticadas com TEA, sejam inseridas em uma intervenção que englobe estratégias para as duas condições. Dessa forma, terapias pautadas no método aurioral podem ser combinadas com outros tipos de intervenção voltadas para o TEA, como a ciência da Applied Behaviour Analisys (ABA), quando indicada88. Eshraghi AA, Nazarian R, Telischi FF, Martinez D, Hodges A, Velandia S et al. Cochlear implant in children with Autism Spectrum Disorder. Otol Neurotol. 2015;36(8):e121-8..

A criança descrita neste relato de caso foi encaminhada para intervenção com uso de comunicação suplementar e alternativa (CSA). Atualmente, a literatura que descreve o uso de CSA em crianças usuárias de implante coclear com necessidades adicionais não é suficientemente robusta para orientar a terapia e estudos futuros, que explorem o potencial para o uso da CSA na prática clínica para usuários de IC, devem ser realizados2727. Richlin BC, Chow K, Cosetti MK. Augmentative and alternative commmunication (AAC) in pediatric cochlear implant recipients with complex needs: a scoping review. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2023;171:111610..

Uma limitação deste estudo é o fato de tratar-se de um estudo de caso, não sendo possível realizar análises estatísticas e nem controlar as variáveis intervenientes. Apesar disso, diante da literatura na área, acredita-se que os dados obtidos e aqui expostos retratam de maneira fidedigna um dos prováveis desfechos do benefício do uso do IC para o desenvolvimento das habilidades auditivas e linguagem falada em crianças com TEA nível de suporte 3. Sugere-se a realização de estudos clínicos futuros com maior amostra e controle de variáveis, para verificar o quanto estes resultados podem ser representativos da população estudada.

Os centros de IC e de (re)habilitação auditiva devem fazer adaptações nos seus protocolos e serviços para atenderem a estas crianças e suas famílias. Há a necessidade de equipes multidisciplinares, que incluam assistentes sociais e psicólogos, que possam ajudar tanto na avaliação como no processo de intervenção2828. Cejas I, Hoffman MF, Quittner AL. Outcomes and benefits of pediatric cochlear implantation in children with additional disabilities: a review and report of family influences on outcomes. Pediatric Health Med Ther. 2015;6:45-63..

Reforça-se que os autores deste estudo são favoráveis à intervenção precoce com uso de dispositivos auditivos, quando há uma indicação adequada e pautada em fatores audiológicos e não audiológicos, nos casos de surdez com deficiências adicionais. Espera-se que esse estudo não desencoraje o uso do IC nessa população, mas sim amplie a discussão a respeito da temática e conscientize os profissionais envolvidos no tratamento a respeito da necessidade do nivelamento das expectativas dos pais e da importância de basear a prática em evidências científicas, elaborando um planejamento clínico individualizado e que considere as potencialidades da criança, mas também as variáveis intervenientes e o prognóstico esperado.

CONCLUSÃO

Observou-se pouco benefício do uso do IC para o desenvolvimento das habilidades auditivas e nenhuma evolução no desenvolvimento da linguagem falada em 2 anos e 9 meses após ativação do dispositivo em uma criança surda diagnosticada com TEA nível de suporte 3, submetida a intervenção precoce e (re)habilitação aurioral.

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  • Estudo realizado no Centro Especializado em Reabilitação - Centro Educacional de Audição e Linguagem/ Ludovico Pavoni (CER II - CEAL/LP), Brasília, Distrito Federal, Brasil.
  • Fonte de financiamento: Nada a declarar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2023
  • Aceito
    21 Set 2023
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