Composição do leite de tanques de rebanhos brasileiros distribuídos segundo sua contagem de células somáticas

Bulk tank milk composition from Brazilian herds distributed by its somatic cell count

Composição do Leite de Tanques de Rebanhos Brasileiros Distribuídos Segundo sua Contagem de Células Somáticas¹

Paulo Fernando Machado², Alfredo Ribeiro Pereira²,Gabriel Adrian Sarríes²

RESUMO- Foi realizado um levantamento dos dados de contagem de células somáticas (CCS), porcentagens de gordura, proteína, lactose e sólidos totais de amostras de leite de tanques recebidas no período de dezembro de 1996 a julho de 1998, com o objetivo de se caracterizar a composição do leite segundo sua contagem de células somáticas. Os 4785 dados de análise foram classificados segundo sua CCS, sendo formados quatro grupos (grupo 1, CCS < 500 mil cél./mL; grupo 2, 500 < CCS < 1000 mil cél./mL; grupo 3, 1000 < CCS < 1500 mil cél./mL; grupo 4, CCS > 1.500 mil cél./mL). Aos grupos foram aplicadass técnicas de estatística descritiva, análise de variância e comparações múltiplas de médias. O aumento da ordem das classes acarretou acréscimo da porcentagem de gordura e dos desvios-padrão e redução nas porcentagens de proteína e lactose. A concentração de sólidos totais, apesar de não-significativa, apresentou tendência de redução. Concluiu-se que leite de tanques com CCS mais altas apresentaram maior porcentagem de gordura, menor porcentagem de proteína e lactose e igual porcentagem de sólido totais. As mudanças significativas nas concentrações do componentes do leite ocorrem a partir de 1.000.000 cél./mL para gordura e 500 mil cél./mL para proteína e lactose. Grupos de tanques com maiores CCS apresentaram maior variabilidade nas concentrações dos constituintes do leite.

Palavras-chave: CCS, composição do leite, leite de tanque

Bulk Tank Milk Composition from Brazilian Herds Distributed by its Somatic Cell Count

ABSTRACT - A survey on the somatic cell count (SCC), fat, protein, lactose and total solids percentages on bulk tank milk samples, from December 1996to July 1998, was used to characterize the milk composition as determined by SCC. Data of 4785 from the database were classified according to the SCC, in four groups (Group 1, SCC < 500 thousand cells/mL; Group 2, 500 < SCC < 1.000 thousand cells/mL; Group 3, 1.000 < SCC < 1.500 thousand cells/mL; Group 4, SCC > 1.500 thousand cells/mL). A descriptive statistics, analysis of variance and multiple mean tests were applied to the groups. Increases on the group classes were associated with increases on concentration and standard deviation and decreases on protein and lactose concentrations. Despite of the no significance, the total solids tended to decrease as group classes increase. The bulk tank milk samples with higher SCC had greater fat percentages, lower protein and lactose percentages and the same total solids percentages. The significant changes in the milk component contents occur above 1.000.000 cells/ml for fat and 500 thousand cells/ml for protein and lactose. Bulk tank groups with greater SCC have greater variability in milk component compositions.

Key Words: SCC, milk composition, milk tank

Introdução

Células somáticas do leite são, normalmente, células de defesa do organismo que migram do sangue para o interior da glândula mamária, com o objetivo de combater os agentes causadores da mastite, podendo ser, também, células secretoras descamadas, no entanto, em uma glândula mamária infectada, as células de defesa correspondem entre 98 e 99% da células encontradas no leite (PHILPOT e NICKERSON, 1991).

A contagem de células somáticas (CCS) do leite de uma vaca indica de maneira quantitativa o grau de infecção da glândula mamária. Já a CCS do leite do tanque de resfriamento do rebanho indica a incidência média de mastite no rebanho.

A correlação entre a CCS média no tanque e a ocorrência de mastite é alta, variando de 0,50 a 0,96 (EMANUELSON e FUNKE, 1991). Elevada CCS no tanque geralmente indica perdas de produção de leite, sendo que a manutenção de baixa CCS no tanque é bom indicativo de boa saúde da glândula mamária dos animais do rebanho (SCHUKKEN et al., 1990).

A mastite altera a composição do leite, por modificar a permeabilidade dos vasos sangüíneos da glândula e alterar a habilidade de síntese do tecido secretor e pela ação direta dos patógenos ou de enzimas sobre os componentes já secretados no interior da glândula.

Segundo PEREIRA et al. (1997), as alterações na composição do leite, associadas ao aumento da CCS, ocorreriam da seguinte maneira:

- a porcentagem de gordura normalmente é diminuída, no entanto, se a redução da produção de leite for mais acentuada que o decréscimo da produção de gordura, ocorrerá concentração deste componente,

- a porcentagem de proteína é aumentada,

- as porcentagens de lactose e sólidos totais são reduzidas.

O entendimento da dinâmica da CCS de tanques é um importante passo para a melhoria da qualidade do leite (SCHUKKEN et al., 1992). No entanto, não existem no Brasil levantamentos sobre a CCS de tanque de rebanhos relacionando-os à composição do leite.

Desse modo, o objetivo deste trabalho foi realizar um levantamento junto ao banco de dados do Laboratório de Fisiologia da Lactação da ESALQ - USP dados para se caracterizar a composição do leite, segundo sua contagem de células somáticas.

Material e Métodos

Foram levantados 4785 dados de concentração de gordura, proteína, lactose e sólido totais e de contagem de células somáticas (CCS) de amostras de leite tanques de rebanhos brasileiros, localizados principalmente no Estado de São Paulo e no sul de Minas Gerais, que foram analisados no período de dezembro de 1996 a julho de 1998. Os dados encontravam-se na memória do computador do equipamento Bentley 2000, que realiza as determinações das porcentagens de gordura, proteína e lactose do leite, por absorção infravermelha, e sólidos totais, por soma dos valores dos componentes anteriores, e Somacount 300, que realiza a CCS por citometria fluxométrica (BENTLEY, 1995a,b).

Os tanques foram separados em grupos segundo sua CCS. Amostras de leite com CCS até 500 mil cél./mL foram alocadas no grupo 1; amostras com CCS entre 501 e 1000 cél./mL, no grupo 2; amostras com CCS entre 1001 e 1500 cél./mL, no grupo 3; e amostras com CCS maior que 1500 mil cél./mL, no grupo 4.

As análises estatísticas foram realizadas no pacote estatístico SAS, utilizando-se o procedimento modelos lineares gerais (Proc GLM), aplicando-se estatística descritiva, análise de variância e teste de comparação múltipla (SAS, 1990).

Resultados e Discussão

O número de análises, a média e o desvio-padrão dos 4785 dados de porcentagem de gordura, proteína, lactose, sólidos totais e CCS, encontrados no banco de dados, encontram-se na Tabela 1.

As concentrações médias dos componentes do leite encontradas foram inferiores aos valores médios de diversos autores sumarizados por OLIVEIRA e CARUSO (1996). No entanto, os valores apresentados por esses autores são referentes a amostras de leite individuais e os deste trabalho, a amostras do tanque, sendo, portanto, o resultado da mistura do leite de todos os animais do rebanho.

Os desvios-padrão da porcentagem de gordura, proteína, lactose e sólidos totais mostram que a porcentagem de gordura apresentou maior amplitude de variação, seguida pela porcentagem de proteína e, finalmente, o componente que sofreu menor variação foi a lactose. Esta escala de variabilidade é corroborada por SUTTON (1989).

O fato de o desvio-padrão ter sido maior que a média mostra a existência de grande variabilidade de CCS em tanques de rebanhos brasileiros.

Porcentagem de gordura

O número de análises, a média e o desvio-padrão dos dados de porcentagem de gordura, encontrados no banco de dados e agrupados segundo a CCS, encontram-se na Tabela 2.

Pela análise dos dados apresentados na Tabela 2, pode-se inferir que o leite de tanques com CCS mais altas apresentou porcentagens de gordura mais altas, sendo que o aumento na concentração de gordura foi significativo para tanques acima de 1.000.000 cél./mL (grupos 3 e 4).

PEREIRA et al. (1999), analisando amostras de leite de animais, também encontraram aumento na concentração de gordura relacionado a incremento da CCS, o que pode ser explicado, provavelmente, pelo fato de a redução da produção de leite, devido à ocorrência de infecção da glândula mamária, ter sido mais acentuada que aquela da produção de gordura, assim, houve concentração da gordura, aumentando sua porcentagem.

É interessante notar que o aumento da CCS também levou ao incremento da variabilidade medida pelo desvio-padrão. Os grupos 1 e 2 apresentaram desvios bem próximos e grupos 3 e 4, desvios crescentes; especialmente no grupo 4 houve forte incremento na dispersão dos dados.

Porcentagem de proteína

O número de análises, a média e o desvio-padrão dos dados de porcentagem de proteína, encontrados no banco de dados e agrupados segundo a CCS, encontram-se na Tabela 2.

Analisando-se os dados apresentados na Tabela 2, verifica-se que o leite de tanques do grupo 1 (CCS até 500 mil cél./mL) apresentaram maior porcentagem de proteína que os demais grupos. Esta diferença,somente para o leite produzido no Estado de São Paulo (+2,0 bilhões de litros ao ano), representa 800 mil kg de proteína, aproximadamente. Este montante seria suficiente para a produção de 5 mil toneladas de queijo.

Porcentagem de lactose

O número de análises, a média e o desvio-padrão dos dados de porcentagem de lactose, encontrados no banco de dados e agrupados segundo a CCS, constam da Tabela 3, na qual se verifica que o leite de tanques com CCS mais altas apresentou menores porcentagens de lactose, sendo significativa a redução da porcentagem de lactose acima de 500 mil cél./mL (grupos 2, 3 e 4). Acima deste valor houve tendência de redução mas esta não foi significativa.

AULDIST et al. (1995), analisando amostras de leite de animais, também encontraram redução na concentração de lactose, relacionada a aumento da CCS.

A redução da porcentagem de lactose seria resultado de menor síntese deste componente do leite em glândulas mamárias infectadas (PEREIRA et al. 1997), da utilização da lactose pelos patógenos intramamários (AULDIST et al. 1995) e da perda de lactose da glândula para a corrente sangüínea, devido ao aumento da permeabilidade da menbrana, que separa o leite do sangue, levando à excreção da mesma na urina (SHUSTER et al. 1991).

A variabilidade dos dados de lactose repetiu o comportamento observado na gordura e proteína, ocorrendo aumento da variabilidade, associado ao acréscimo da CCS.

Porcentagem de sólidos totais

O número de análises, a média e o desvio-padrão dos dados de porcentagem de sólidos totais, encontrados no banco de dados e agrupados segundo a CCS, encontram-se na Tabela 3.

Não houve diferença estatística entre os dados de sólidos totais dos diferentes grupos, mas houve tendência de redução da porcentagem de sólidos totais, associada a aumento da CCS.

A variabilidade dos dados de sólido totais seguiu o comportamento dos demais componente do leite analisado, apresentando variabilidade crescente, associada ao aumento da CCS, especialmente no grupo 4.

Para melhor caracterizar a alteração da composição do leite de tanques dos rebanho brasileiros, associada a CCS, devem ser conduzidos novos trabalhos de pesquisa procurando classificar os rebanhos pelas suas práticas de manejo.

Conclusões

Leite de tanques com CCS mais altas apresentaram maior porcentagem de gordura, menor de proteína e lactose e igual de sólido totais. As mudanças significativas nas concentrações do componentes do leite ocorreram a partir de 1.000.000 cél./mL para gordura e 500 mil cél./mL para proteína e lactose. Grupos de tanques com maiores CCS apresentaram maior variabilidade nas concentrações dos constituintes do leite.

Devem ser conduzidos novos experimentos para caracterizar a composição e CCS do leite de tanques de rebanhos brasileiros.

Referências Bibliográficas

Recebido em: 15/10/99

Aceito em: 17/05/00

² ESALQ/USP, Dep. Produção Animal, CEP 13418-900, Piracicaba, SP. E.mail: [e-mail]; [e-mail]

• AULDIST, M.J., COATS, S., ROGERS, G.L. et al. 1995. Changes in the composition of milk from healthy and mastitic dairy cows during the lactation cycle. Austr. J. Exp. Agric, 35(4):427-436.
• BENTLEY INSTRUMENTS 1995a. Bentley 2000 Operator's Manual. Chaska. p.77.
• BENTLEY INSTRUMENTS 1995b. Somacount 300 Operator's Manual. Chaska, p.12.
• EMANUELSON, U., FUNKE, H. 1991. Effect of milk yeld on relationship between bulk milk somatic cell count and prevalence of mastitis. J. Dairy Sci., 74(8):2479-2483.
• OLIVEIRA, A.J, CARUSO, J.G.B. 1996. Leite - obtenção e qualidade do produto fluido e derivados Piracicaba: FEALQ. 80p.
• PEREIRA, A.R., MACHADO, P.F., BARANCELLI, G. et al. 1997. Contagem de células somáticas e qualidade do leite. Rev. dos Criadores, 67(807):19-21.
• PEREIRA, A.R., SILVA, L.F.P., MOLON, L.K. MACHADO, P.F., BARANCELLI, G. et al. 1999. Efeito do nível de células somáticas sobre os constituintes do leite I - Gordura e proteína. Braz. J. Vet. Res. Anim. Sci. (http://www.scielo.br/ em 18/12/2000.
• PHILPOT, W.N., NICKERSON, S.C. 1991. Mastitis: counter attack Naperville: Babson Bros. 150p.
• SAS INSTITUTE INC. 1990. SAS/STAT user's guide version 6, 4.ed. Cary. 1022p.
• SCHUKKEN, Y.H., BUURMAN, J., BRAND, A. et al. 1990. Population dynamics of bulk milk somatic cell counts. J. Dairy Sci, 73(5):1343-1350.
• SCHUKKEN, Y.H., LESLIE, K.E., WEERSINK, A.J. et al. 1992. Ontario bulk milk somatic cell count redution program. 2. Dynamics of bulk milk somatic cell counts. J. Dairy Sci., 75(12):3359-3366.
• SHUSTER, D.E., HARMON, R.J., JACKSON, J.A. et al. 1991. Suppression of milk production during endotoxin-induced mastitis. J. Dairy Sci, 74(11):3763-3774.
• SUTTON, J.D. 1989. Altering milk composition by feeding. J. Dairy Sci., 72(10):2801-2814.

¹

FAPESP.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  08 Out 2002
• Data do Fascículo
  Dez 2000

Histórico

• Aceito
  17 Maio 2000
• Recebido
  15 Out 1999