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Residência médica: competências mínimas e psiquiatria moderna

Comentário

Residência médica: competências mínimas e psiquiatria moderna

O artigo "Estudo dos Programas de Residência Médica em Psiquiatria do Estado de São Paulo no ano de 1993", de autoria de Luís Carlos Calil e José Onildo Contel, que integra esta edição, é um dos raros (e bons) exemplos de publicação dedicada à formação do psiquiatra, e que enfatiza um ponto crucial de sua formação, ou seja, o currículo ou programa da residência em psiquiatria. Buscando definir o que chamaram de "competências mínimas" dos programas de residência, os autores analisaram os dados de sete programas de residência em psiquiatria no Estado de São Paulo, amostra considerada por eles como significativa, dada a maior concentração de tais programas nesta região.

Usando entrevistas semi-estruturadas e questionários, os autores colheram informações de uma amostra de 12 residentes e sete preceptores dos respectivos serviços e concluíram que os requisitos propostos pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) para os dois anos de residência em psiquiatria não são cumpridos em sua totalidade. Por outro lado, constataram que, em muitas áreas, tal programa mínimo é totalmente cumprido pela maioria dos programas: treinamento ambulatorial, urgências e enfermaria, sendo parcialmente cumpridos os treinamentos em hospital-dia e em neurologia.

Os próprios autores consideram seus dados, de certa forma, desatualizados, uma vez que foram colhidos há seis anos. De fato, acreditamos que muitos programas tenham mudado neste período, provavelmente devido a mudanças não só na estrutura dos serviços, mas, sobretudo, na mudança conceitual do que se entende por formação do psiquiatra, o que se reflete necessariamente no programa de residência. Para ilustrar, descreveremos o programa que dirigimos, no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq), substancialmente modificado a partir de 1994, graças às propostas e ao apoio dos dois novos professores titulares do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que foram empossados justamente neste período, isto é, após 1993.

Partindo da concepção que residência é: a) um curso de pós-graduação no sentido lato e b) um treinamento em serviço, o programa necessita de três anos de duração, com 40% de sua carga horária dedicada aos ambulatórios, 20 % às enfermarias, 20 % para cursos obrigatórios e 10% para emergências. A atividade de ambulatório enfatiza o treinamento em psiquiatria geral, mas também em patologias específicas, dando oportunidade ao residente para participar dos chamados grupos especializados do IPq, que se aprofundam no diagnóstico e tratamento dos transtornos psiquiátricos mais prevalentes: de ansiedade, do humor, psicóticos e por uso de substâncias psicoativas.

Atividades especiais são realizadas no Complexo Hospitalar do Hospital das Clínicas: interconsultas, emergências psiquiátricas, estágios em clínica médica e neurologia. Além disso, é dada ênfase especial para atividades no setor de psicoterapia do IPq, onde o residente tem oportunidade de, sob supervisão, aprender certas técnicas psicoterápicas. Atividades teóricas obrigatórias respaldam o programa: psicopatologia geral e clínica, psicofarmacologia geral e clínica, neurobiologia dos transtornos psiquiátricos, psiquiatria infantil, psiquiatria forense, teoria e prática das psicoterapias e introdução à metodologia de pesquisa em psiquiatria. Reuniões e conferências clínicas são rotina semanal, assim como um clube de revista mensal. O programa conta com a colaboração de 14 preceptores, dos quais sete com mestrado e seis com doutorado.

É um programa completo? Atende as necessidades de formação mínima do psiquiatra? Está além das condições gerais da formação do psiquiatra brasileiro? Parte da resposta pode vir da reunião sobre residência em psiquiatria realizada em São Paulo em outubro de 1998, antes do Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Nela os coordenadores de vários programas discutiram as necessidades de um programa mínimo para residência em psiquiatria para o Brasil, mas depararam-se com um fato que antecede tal discussão: antes de se pensar em conteúdos de programas de residência em psiquiatria, é preciso lembrar que em vários Estados brasileiros simplesmente não há residência em psiquiatria. Por exemplo, no caso do Paraná, existem seis faculdades de medicina em todo o Estado, mas não há sequer um programa de residência em psiquiatria implantado.

A psiquiatria tornou-se nos últimos anos uma especialidade de alta complexidade. As influências crescentes de disciplinas, tais como as neurociências, a psicofarmacologia e as técnicas de neuroimagem são óbvias. Por outro lado, novas técnicas no campo das psicoterapias, tais como as terapias cognitiva e comportamental, aliadas às tradicionais, representam instrumentos eficazes e indispensáveis na terapêutica do paciente psiquiátrico e necessitam de tempo adequado para a sua aprendizagem. Além disso, o artigo de Calil e Contel menciona que um dos programas avaliados enfatizou a necessidade de o residente "desenvolver espírito crítico". Como fazê-lo sem a aquisição dos instrumentos necessários para tal?

Para exemplificar a questão sabemos que, diante da multiplicidade de tratamentos propostos para os diversos transtornos mentais, o psiquiatra deve ultrapassar as velhas noções de que a tomada de decisões clínicas se apóia não no simples empirismo, nos que têm "mais experiência" ou no "argumento da autoridade" ("magister dixit"), mas sim nas melhores evidências disponíveis, que advêm da análise crítica dos ensaios clínicos e revisões sistematizadas. Para tal impõe-se hoje a necessidade do aprendizado de uma Psiquiatria Baseada em Evidências. No entanto, como fazê-lo sem a aquisição de conceitos de Estatística, Epidemiologia e Metodologia de Pesquisa, indispensáveis para que se possa ler e criticar um artigo de revista? (comentário à parte: como um residente pode participar de clubes de revistas e, depois da residência, seguir programas de educação continuada, se também não souber inglês, o que, infelizmente, ocorre com muitos médicos? Cabe à residência suprir tal deficiência?).

O programa mínimo proposto pela CNRM para psiquiatria é desatualizado e deve ser revisto. Foi proposto em 1983, quando as classificações psiquiátricas ainda eram a CID 9 e a DSM III, quando a maioria dos critérios diagnósticos e escalas psicopatológicas não haviam sido criados e quando nem se sonhava com a miríade de psicofármacos hoje disponíveis. O programa considera obrigatório o estágio em neurologia, não a incluindo no conceito mais abrangente de hoje, o de neurociências. Psicofarmacologia é o único curso teórico obrigatório e não a psicopatologia, que é a disciplina específica da psiquiatria; informações sobre psicoterapias, psiquiatria infantil e forense nem são mencionadas como obrigatórias. Além disso, o período de residência considerado obrigatório é de dois anos. Nossa experiência tem mostrado que um programa abrangente, como o exemplo do IPq, não pode ser feito em menos de três anos.

Há uma questão final, mencionada por Calil e Contel: dos sete preceptores entrevistados, somente um tinha mestrado e um tinha doutorado. É provável que profissionais que tenham alcançado tais patamares acadêmicos tenham melhores condições de transmitir conhecimentos do que aqueles sem tal formação. Neste sentido, a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) , que estabelece as normas para o funcionamento de cursos de pós-graduação de senso estrito, é muito rigorosa: os professores de tais cursos devem, além dos títulos acadêmicos, exibir produção científica, sendo os cursos classificados a partir desta produtividade, avaliada anualmente. Apesar de a residência ser também um curso de pós-graduação em senso lato, a CNRM age de forma diversa, não tendo estabelecido critérios bem definidos para avaliação da produtividade dos programas de residência médica, nem dos profissionais que neles ensinam, o que resultaria na melhora da qualidade da formação do residente.

Hélio Elkis

Professor Associado do Departamento de

Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP

Coordenador da Residência Médica do Instituto de

Psiquiatria do Hospital das Clínicas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Mar 2000
  • Data do Fascículo
    Set 1999
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